O inimigo máximo da vida interior, segundo os autores espirituais, não é o mundo com suas tentações, nem o demônio com suas insídias, mas o amor desordenado de si mesmo; pois se não existisse em nós este amor, as tentações do mundo e as insídias do demônio seriam facilmente vencidas; no entanto, encontram um cúmplice neste amor desordenado.
Com a doutrina de S. Tomás, exposta na Suma Teológica [Ia IIae q. 77 e 84), vejamos de modo concreto e prático: 1o. Como o amor desordenado de si mesmo se opõe ao amor de Deus e não raro o destrói? ― 2o. Como o amor desordenado de si mesmo permanece latente mesmo nos melhores católicos? ― 3o. Que devemos pensar dos subterfúgios do amor próprio? ― 4o. Como se pode eficazmente combater este amor próprio?
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1o. Como o amor desordenado de si mesmo se opõe ao amor de Deus e, não raro, o destrói?
Este amor desordenado é muito insidioso e variado. Primeiro porque esconde-se sob outros nomes, como honra, zelo do bom nome ou da própria dignidade; diz, p. ex., «o homem ama-se naturalmente, assim como o anjo se ama a si mesmo; quer para si o bem e nisto não há desordem. Sobretudo, pela caridade sobrenatural, devemos amar-nos a nós mesmo ainda mais que ao próximo». Mas o amor próprio desordenado não diz que, tanto na ordem natural, quanto na ordem sobrenatural, o amor de nós mesmos deve ser subordinado ao amor de Deus, autor da natureza e da graça. E se nos move a considerar esta subordinação, isto ocorre somente de modo teórico e abstrato, nunca de modo prático e concreto. Assim, implícita e realmente, acabamos buscando demasiadamente nosso próprio interesse.
Por conseqüência, o amor de si mesmo torna-se, pouco a pouco, desordenado; é isto uma seqüela do pecado original.
Ora, o batismo nos apaga este pecado da natureza, mas permanece nos batizados essa ferida como uma espécie de cicatriz que, por vezes, se abre por causa de nossos pecados pessoais.
Por isso, o amor próprio desordenado pode, pouco a pouco, instaurar a desordem em quase todos nossos atos, mesmo nos mais altos, se não os fizermos por Deus, como deveríamos, mas pela satisfação de nosso apetite natural e, assim, paulatinamente, nossa vida interior é viciada e se impede a vida de Cristo em nós. É verdade que La Rochefoucauld, em seu livro «Les Maximes», e os jansenistas exageram esta inclinação; mas, sob este exagero, há algo de verdadeiro, algo de demasiado verdadeiro.
Muitos cultivam em si mesmos não o amor de Deus, mas uma excessiva estima de si mesmos, das suas qualidades, procuram o louvor e a aprovação dos outros; não enxergam seus próprios defeitos mas, ao contrário, exageram os defeitos dos outros, como escritores de panfletos políticos: são, por vezes, severíssimos com os demais e extremamente indulgentes consigo mesmos. Seria então muito bom e salutar repetir a humilhação do salmista: «sois bom para mim, Senhor, pois me humilhastes». Este amor desordenado de si mesmo gera a soberba, a vaidade e, não raro, a concupiscência da carne e dos olhos e, destes, os pecados capitais, que nascem destas concupiscências, p. ex.: preguiça, gula, impureza, inveja, ira etc.
Então se verifica a enorme oposição entre o amor de Deus e o amor desordenado de si mesmo, pois o verdadeiro amor de Deus procura o beneplácito de Deus, quer agradar a Deus, enquanto o amor desordenado de si mesmo procura a satisfação pessoal, mesmo não subordinada a Deus.
O amor de Deus impele à generosidade, à tender verdadeira e praticamente à perfeição; o amor desordenado de si mesmo tende a evitar os incômodos, a abnegação, o trabalho, as fadigas. O amor de Deus é, cada vez mais, sem o interesse próprio desordenado, julga que nunca faz o suficiente por Deus e pelas almas; o amor desordenado de si mesmo pensa que sempre faz demasiado por Deus e pelo próximo. O verdadeiro amor de Deus quer não apenas receber, mas também dar glória e honra a Deus pelo zelo apostólico. O amor desordenado de si mesmo não quer dar, mas apenas receber; como se o homem fosse o centro do universo, tudo trazendo a si mesmo.
Finalmente, o amor desordenado de si mesmo tende a destruição do amor de Deus e do próximo na nossa alma, e atinge este fim quando conduz ao pecado mortal e, sobretudo, ao pecado mortal reiterado, assim mais e mais aumenta a aversão a Deus e a conversão ao bem comutável e ao mal amor de si mesmo: assim pode, cada vez mais, viciar todas nossas inclinações, como ocorre com os danados. Por exemplo, no demônio é viciada mesmo a inclinação natural de amar a Deus, autor da natureza, acima de tudo, pois, nos danados, nasce desta inclinação o desejo desordenado de fruir de Deus, não por amor a Deus, mas pela gula espiritual desenfreada, pois faltam todos os outros bens e todas as outras satisfações.
Esta oposição trágica entre o amor de Deus e o amor desordenado de si mesmo, é descrita por S. Agostinho pela oposição entre caridade e cupidez: no fim do livro 14 de A Cidade de Deus, cap. último, diz: «Dois amores fizeram duas cidades; o amor de Deus até o desprezo de si mesmo, fez a cidade de Deus e o amor de si mesmo até o desprezo de Deus, fez a cidade da Babilônia, ou da perdição.» S. Paulo dissera (1 Tm 6, 10): «A raiz de todos os males é a cupidez» ou o amor desordenado de si mesmo. Cf. S. Tomás, Suma Teológica Ia IIae, q. 77 e 84, sobre a tríplice raiz dos pecados capitais, pois da cupidez surge a soberba, a concupiscência da carne e a concupiscência dos olhos. Isto se verifica nos maus; e, de outro modo, nos justos imperfeitos .
Do amor desordenado
de si mesmo surge:
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soberba
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ira
inveja
acedia
vaidade
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cegueira da mente, ao invés de uma fé viva
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concupiscência dos olhos
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avareza
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desespero, ao invés de esperança
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concupiscência da carne
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gula
luxúria
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discórdia, ao invés da caridade, e ódio a Deus.
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Da graça surge:
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As virtudes teológicas
e os dons correlativos
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caridade
esperança
fé viva
ilustrada pelos dons
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união com Deus, confiança, contemplação.
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As virtudes morais
e os dons correlativos
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prudência cristã e o dom do conselho
justiça, religião, dom de piedade
fortaleza, generosidade
temperança, castidade, humildade.
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Cf. nossa obra «Les trois âges de la vie intérieure», II, pág. 480.
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2o. Como o amor desordenado de si mesmo permanece de modo latente mesmo nos melhores católicos?
S. Vicente de Paulo (como se lê na sua Vida, escrita por Domino Coste, I, 12; III, 300) narra um fato que lhe sucedeu quando estava no colégio: «Certo dia, disseram-me: "teu pai veio te ver" e, como meu pai era um pobre agricultor e um homem rude, não quis ir até ele para conversar; e antes, quando meu pai me conduzia à cidade, estava triste pela sua condição, e me envergonhava de meu pai».
O mesmo santo, falando do tempo posterior da fundação da sua Congregação, diz: «veio o filho do meu irmão me visitar no Colégio onde era superior e eu, considerando a situação muito modesta do meu sobrinho, que se vestia rudemente, ordenei que me fosse ele conduzido secretamente. Mas, imediatamente, mudei minha deliberação com a resolução de reparar este primeiro movimento de amor próprio, desci até o portão, e abracei meu sobrinho e, conduzindo-o pela mão pela sala comum onde estavam meus confrades, disse a eles: ´Eis a pessoa mais honorável de minha família´». Assim, S. Vicente de Paulo vencia seu amor próprio, e ainda temia que, nessa vitória, o amor próprio se escondesse sutilmente.
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3o. Perigo que nasce das evasões e subterfúgios usados pelo amor próprio.
Por exemplo, a oração mental se vicia pelo excessivo desejo de consolações sensíveis, pela gula espiritual, pelo sentimentalismo. O sentimentalismo é, na sensibilidade, uma afetação de amor de Deus e do próximo que não existe suficientemente na vontade espiritual. Então, a alma procura a si mesma mais que a Deus. Donde, para tirar a alma desta imperfeição, Deus purifica a alma pela aridez da sensibilidade.
Se, verdadeiramente, a alma nesta aridez não é suficientemente generosa, cai na preguiça espiritual, na tepidez e não mais tende suficientemente à perfeição.
Igualmente, pelo amor desordenado de si mesmo se vicia o labor intelectual ou apostólico, pois nele buscamos satisfação pessoal, buscamos o louvor, mais do que Deus ou a salvação das almas. Assim, o pregador pode tornar-se estéril «como um bronze que soa ou um címbalo que tine». A alma se retarda, não é mais iniciante, não avança ao estado dos aproveitados, permanece uma alma retardada, como um menino que, por não crescer, não permanece menino, nem se faz adolescente ou um adulto normal, mas um homúnculo deforme. Ocorre algo similar na ordem espiritual e isto provém do amor próprio desordenado, do qual nasce a esterilidade da vida.
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4o. Que se deve fazer contra este amor desordenado?
Temos de conhecer e lutar contra nosso defeito dominante para obter a vitória. O defeito dominante é como que uma caricatura da boa inclinação que deveria prevalecer, é como que o «outro lado da moeda». Daí surge o combate entre a boa e a má inclinação. A virtude e o vício oposto não podem existir simultaneamente em ato no mesmo sujeito, mas podem existir simultaneamente em potência; daí surge o combate em que prevalecerá ou a boa inclinação natural, sob a forma da virtude em ato, ou o defeito dominante, sob a forma do vício em ato.
Assim, o defeito dominante inicial é aquilo pelo qual alguma virtude degenera em um vício materialmente similar, mas formalmente contrário, por exemplo, a inclinação à humildade degenera em pusilanimidade, a inclinação à magnanimidade em soberba e ambição, a inclinação à fortaleza em amarga ironia e crueldade, inclinação à justiça em rigorismo, inclinação à mansidão e à misericórdia em debilidade. Isto compreende-se melhor quando se considera, por exemplo, que a humildade se opõe mais diretamente à soberba que a pusilanimidade, que, no entanto, também lhe é contrária, assim como a magnanimidade mais diretamente se opõe à pusilanimidade que à soberba. E estas duas virtudes são conexas, como dois arcos da mesma ogiva.
Portanto, é necessário ver sob qual forma este amor próprio prevalece em nós, isto é, se sob a forma de soberba, ou de vaidade ou de preguiça, ou de sensualidade, ou de gula, ou de ira. Em outras palavras, é preciso saber qual é nosso defeito dominante, que se manifesta nos nossos pecados mais freqüentes e que oferece alimento a nossa fantasia.
Em alguns a soberba, por exemplo, vence a irascibilidade para conservar a estima dos homens; em outros, a soberba é vencida pela preguiça e não cuida mais da estima alheia.
Deve-se vigiar, portanto, para refrear o defeito dominante e isto com tenacidade e perseverança para adquirir o domínio de si mesmo, não pela estima dos outros, mas por Deus. Isto é sempre possível no nosso caminho, ainda que seja sempre árduo. Deus não pede o impossível, mas nos adverte a fazer tudo que podemos e pedir tudo que não podemos, e nos ajuda para que consigamos.
Outros homens não tem um defeito manifestamente dominante, mas o seu amor próprio se manifesta de diversos modos.
O amor próprio deve ser combatido de diversos modos, eliminando-se o que o pode alimentar e agindo mais e mais por amor de Deus, para que o agrademos, primeiro nas coisas externas e obrigatórias e fáceis de se cumprir com espírito de fé; depois nas coisas interiores e difíceis, de modo que, paulatinamente, as três virtudes teológicas prevaleçam em nossa vida, com seus correlativos dons.
Nesta metódica luta, três coisas se exigem: pureza de intenção, abnegação progressiva, recolhimento habitual.
1. A pureza de intenção é de suma importância. Diz o Salvador [Lc 11, 34]: «O teu olho é a lucerna do teu corpo. Se o teu olho for puro, todo o teu corpo terá luz; se porém, for mau, também o teu corpo será tenebroso». S. Tomás comenta: «O olho significa a intenção. Ora, quem quer fazer algo, tem alguma intenção. Se tua intenção for luminosa, isto é, dirigida a Deus, todo teu corpo, ou seja, suas operações, serão luminosas». Isto se vê em todo bom católico e em todo bom prelado que guia bem o seu rebanho.
Esta pureza de intenção deve ser mantida primeiro nas coisas mais fáceis e ordinárias. S. Bento formava seus religiosos, que não costumavam ser de grande cultura, dizendo-lhes: «fazei com intenção pura, em espírito de fé, esperança e amor de Deus, para agradar a Deus, todos os atos determinados na regra»; e os religiosos, conversos, fazendo com este espírito e com esta pureza de intenção os atos externos da vida religiosa, atingiam grande perfeição, união com Deus, uma grande santidade e uma perfeita vitória sobre o amor próprio desordenado; assim, faziam um grande bem ao próximo. Como se lê no Evangelho (Lc 16, 10): «O que é fiel no pouco, também é fiel no muito», e será mesmo no martírio. S. Agostinho também diz: «o mínimo é, em si mesmo, mínimo; mas ser sempre fiel, até nas coisas mínimas, isto é o máximo».
2. Deve-se manter uma abnegação progressiva, externa e interna, segundo aquilo: «Aquele que quer seguir-me, negue-se a si mesmo». Há de se praticar sempre que a ocasião se apresente, para que o amor de Deus e do próximo prevaleça sobre nosso desordenado amor próprio. Isto, que é necessário aos simples fiéis que aspirem à perfeição da caridade, expressa no primeiro preceito «amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração», segundo a condição de cada um, é ainda mais necessário ao sacerdote, sobretudo se tem almas sob seu cuidado.
3. O recolhimento habitual é necessário para conservar a união com Deus, não somente durante a celebração da Missa, confissões ou pregação da palavra divina, mas constantemente.
(extrato de «De unione sacerdotis cum Christo Sacerdote et victima»)