Graças à vigilância de Antônio Olinto, na sua “Porta de Livraria” de O Globo, chego ainda a tempo para saudar o centenário de G. K. Chesterton, o incomparável escritor inglês que mais indelevelmente me marcou a alma nos dias em que andei perdido pelo mundo a procurar uma luz, luz de João e Maria, luz de Casa, luz de acolhimento entre as trevas de meu triste exílio. Devo a Chesterton as primeiras alegrias católicas. No seu grande livro, Ortodoxy, onde esteve mais à vontade para atirar nos braços da cruz seu jogo de inebriantes paradoxos, entre outras descobertas maravilhosas do cristianismo, ele nos diz aquilo que Cristo de si mesmo nos escondeu: “There was some one thing that was too great for God to show us when He walked upon our earth; and I have sometimes fancied that it was His mirth.” Tentemos traduzir estas palavras de ouro com que Chesterton fecha sua obra-prima: “Uma coisa houve que era n’Ele grande demais para nos ser mostrada enquanto Ele andou por este mundo, e eu penso às vezes que foi sua alegria”. Ou seu riso. Ou seu júbilo. O termo mirth é aqui intraduzível. E ouso dizer que o grande poeta da língua fechou seu livro-jóia sabendo bem que só podia encerrar com um termo impróprio, tratando-se de coisa que esteve sempre presente e todavia escondida na vida de Jesus.
Outro notável inglês deixou-nos, sobre a poesia, uma definição inesquecível: “poetry is emotion recollected in tranquility”; donde nós tiramos uma definição de liturgia: “liturgy is passion recollected in tranquillity”, cujo teor paradoxal, próprio do Mistério da Fé, parece mostrar, sob as aparências do júbilo e da festa, a dor e o Sangue de nossa Redenção. Fiel a esse espírito, Chesterton não procurou nos seus tão admirados paradoxos fazer acrobacias verbais, e muito menos procurou jogos para agradar os jovens e os imaturos. Pascal, com seu timbre de abismos, não é mais trágico nem mais sério do que Gilbert Keith Chesterton, em cuja obra, como disse atrás, eu tive a felicidade de encontrar no caminho daquilo que Jesus nos escondeu, isto é, das mais puras e vivas alegrias católicas deste mundo. Com um extraordinário vigor do Dom da Ciência, que está na linha da Fé e da Esperança, isto é, das virtudes peregrinas, Chesterton viu que o mundo, e mais fortemente os dias deste século de corrida atrás do vento, está desconcertado, subvertido, de cabeça para baixo, e então, para poder descobrir melhor seus erros e suas malícias, punha-se ele mesmo freqüentemente de pernas para o ar. Sua obra de apologia, assim condicionada, fazia função de revulsivo, de purgativo, e operava inopinadas restaurações nos desconcertos do mundo. O personagem principal de O poeta e os loucos era ágil, nessa ginástica, e, em quase todos os contos dessa série, quem diz loucuras é o sábio, o sisudo, o poeta, o sério; e quem fazia as mais desvairadas loucuras era o homem pausado, equilibrado na representação diplomática dos desvarios do tempo.
Chesterton criou, depois de Edgar Poe e Conan Doyle, o tipo de novela policial em que o genial investigador, longe de ser o esmiuçador sagaz e raciocinante, era o Padre Brown, o Padre Vicente O.F.M., seu amado confessor, que tinha os olhos lavados pela Fé e pelo colírio das lágrimas e assim conseguia, mesmo cochilando, descobrir os meandros da malícia mais pela ingenuidade do que pela sagacidade. Em A Esfera e a Cruz, espécie de romance simbólico e apocalíptico, reaparece o personagem obsessivo de Chesterton, em luta implacável, mas por fim, cordialíssima, com o ateísmo desvairado da época. Na verdade, porém, não é o ateu Tornbull o adversário; não, em A Esfera e a Cruz, o espírito hediondo que Chesterton detesta, como detesta o Diabo, é o liberalismo que pretende evitar o confronto e a luta entre o Bem e o Mal. O personagem mais repugnante da sucessão de figuras que se levantam contra o Combate é o pacifista, contra o qual Chesterton não disfarça sua náusea extrema. Porque Chesterton foi sempre guerreiro. Em tempo e contratempo combateu o bom combate, e guardou a Fé até o momento supremo em que o Padre Vicente, depois de ministrar-lhe a extrema-unção, ajoelhou-se aos pés da cama do agonizante e com piedade profunda beijou a pena que estava à mesa-de-cabeceira, como que a descansa-la também, depois de ter escrito mais de oitenta volumes a serviço de seu Rei e de sua Dama.
Grande falta nos fazem hoje autores como Chesterton, que souberam desarmar, denunciar, desmascarar os ídolos, os ideais dos tempos modernos, que não passam das “antigas virtudes cristãs tornadas loucas” ou perversas.
Na falta dessa leitura saudável, tônica, fortificante, curativa, inebriante do melhor espírito, surgiu em seu lugar, a fazer um sucesso editorial que deveria ruborizar o planeta Terra e empalidecer o planeta Marte, surgiu o repulsivo impostor Teilhard de Chardin, que renega a Fé, abandona os mestre da Companhia de Jesus e da Igreja, para inventar uma gnose tola, de medíocre ciência ensopada com religião ainda pior, graças a cuja fétida composição consegue atrair os espíritos fracos.
Não me canso de agradecer a Deus o fato de ter encontrado Chesterton nos dias de desolação em que, sempre crendo em Deus-Todo-Poderoso, Criador do Céu e da Terra, das coisas visíveis e invisíveis, não conseguia, entretanto, encontrar a alameda e a porta de Sua Casa. A par de todos os defeitos e imperfeições, tenho a alma muito agradecida, porque desde cedo até tarde, na tarde da vida, deu-me Deus a ventura de sentir a dependência em que vivi, de minha mãe, de meus irmãos, de meus alunos, de meus professores, de todos os que neste longo trajeto que já se aproxima do marco assinalado pelo salmista para os vigorosos, sim, sempre tive a ventura de sentir muito melhor o bem que me fizeram e que especialmente reservo aos que me ajudaram na morte para o mundo. E entre esses reservo um especial lugar no altar que hoje adornei em meu velho coração para lembra G. K. Chesterton.
O resto desta apologia e deste estudo está no livro Três alqueires e uma vaca, que escrevi quando, graças a Chesterton, entre tantos autores e amigos, consegui passar no vestibular da Casa do Pai, isto é, consegui voltar à Fé e à Igreja de meu batismo. Ave Maria!
O Globo 06/06/1974.