Todos que possuem rudimentos de iniciação da Sagrada doutrina sabem que foi na Quinta-feira Santa, véspera de sua morte na cruz, que o Cristo Nosso Senhor instituiu o sacramento da Eucaristia (Mt. XXVI, 20-25); (Mc. XIV, 17-21); (Luc. XXII, 14-20); (Jo. XIII, 18-30) e (1 Cor. XI, 23-26).
Parece-me, todavia, que é pouco dizer que todas as passagens acima referem-se apenas à instituição da Sagrada Eucaristia. Na verdade o que Jesus fez na Ceia, que ardentemente desejou comer com seus discípulos e amigos (Jo. XV, 14) foi não somente o comovido anúncio da traição (Jo. XIII, 21) de um dos apóstolos; não somente a despedida e o anúncio de sua volta ao Pai; não somente a prevenção do ódio do “mundo” que odiará os apóstolos porque primeiro a Ele mesmo odiou; não somente o veemente apelo à permanência de todos os galhos da videira ao tronco; não somente o “novo mandamento” de amarem-se uns aos outros “como Ele os amou”; não somente a promessa do Espírito Santo; não somente para prometer que dentro de pouco tempo não mais o veriam, mas logo após outro pouco tempo o veriam; não somente para lavar os pés dos apóstolos e diante deles elevar ao Pai a oração sacerdotal que é certamente o ponto mais alto do ensinamento evangélico – mas principalmente Jesus reuniu-se aos discípulos, para diante deles pela primeira vez celebrar o verdadeiro sacrifício redentor, apresentado de um modo velado, sacramental, quanto à vítima.
Sabemos que são três os modos do mesmo e único sacrifício redentor. Na ordem do tempo o primeiro se realizou na ceia, onde o sacerdote era o próprio Cristo e a vítima foi Ele mesmo, mas presente sacramentalmente no pão e no vinho. Depois dessa primeira missa do mundo, o Sacrifício culmina na Cruz onde Jesus é ao mesmo tempo o oficiante e a vítima que derrama Seu sangue para nossa Salvação. O terceiro modo do sacrifício é o da Santa Missa em que tanto o oficiante como a vítima estão escondidos no sacramento: e esse modo se repetirá, se difundirá, e assim permitirá a todos os fiéis, até o fim do mundo, o espetáculo do Sacrifício Salvador, e o contato de todas as dores humanas com a dor da divina Vítima.
Na ordem da precedência ontológica a Cruz é, retroativamente na ceia, e prospectivamente nas missas, a usina do transbordamento de graças salvíficas. Nosso Pai quis deixar-nos a Paixão do filho escondida na tranqüilidade da Santa Missa. Servindo-me de um verso de Wordsworth eu diria que “Mass is passion recollected in tranquility”.
Mas a todos nós convém reler e meditar os evangelhos da Paixão, para observar que a Ceia tem uma tensão trágica, de tal espécie e tamanha magnitude, que nos autoriza a ver nessa primeira “apresentação” do Sacrifício uma intensidade terrível de dor moral de Nosso Senhor. O apóstolo e evangelista João diz: “Dito isto, turvou-se Jesus em seu espírito, e demonstrando (essa aflição) disse: “Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me atraiçoará”. Todos se perturbaram, Pedro gabou-se e mereceu o anúncio de que três vezes negaria o Senhor.
Agora atentai, amigo leitor, nesta evidência que de tão evidente se tornou obscura à nossa cansada e turvada inteligência das coisas de Deus: há hoje todo um esforço de covardia e traição universal para conjurar o insuportável espetáculo da Cruz. E então, para fugir à visão daquele divino pára-raios da cólera divina, para tirar os olhos do sangue, inventaram o recurso de fazer a missa derivar mais da ceia do que da Cruz, e com esse estratagema malicioso e parvo, fizeram da Santa Missa um espetáculo de feira, aonde a assembléia dos fiéis é aquele “respeitável público” dos palhaços de circo. Não há nada mais infinitamente distante da Ceia, onde o Cristo Jesus começou a padecer moralmente, para continuar no horto e terminar na Cruz, não há nada mais afastado, quase digo mais oposto da Ceia, do que essa difundida molecagem de missa jovem, onde, com o pretexto de cativar os jovens, e o intuito inconsciente de pervertê-los, a Santa Missa se transforma numa boate.
Nem é de boa doutrina por na Ceia do Senhor uma tônica de amizade alegre. O mundo frívolo e cheio de pruridos não suporta a tensão de gravidade do cristianismo que nunca fez questão de ganhar adeptos e salvar almas com convescotes e patuscadas. A Ceia do Senhor – por pouco que meditemos – é o mais terrivelmente trágico da história. Do lava-pés até a oração sacerdotal domina de tal modo a figura de Um (modo que toda a iconografia não consegue transmitir) que é o caso de perguntarmos se o abuso das concelebrações (que de permitidas passaram a obrigatórias) não é um índice de depressão espiritual de nosso tempo. Pior ainda é a solicitude tola com que tantos padres inculcam aos fiéis a idéia que a missa é, antes de tudo, um encontro comunitário divertido, e que a atitude correta do fiel é a de ter viva, cálida e até olfativa consciência de que está numa comunidade.
Esses frutos da epidemia de estupidez não reparam em duas coisas que caracterizam a ceia: uma é o fato de só estar presente o colégio apostólico ao qual Jesus dirá: “fazei isto...” O povo de Deus que nesse tempo já contava centenas de cristãos não foi convidado. Torna-se evidente o modo de crescer da Igreja: de cima para baixo. E o princípio da singularidade, que se aplica a tantos mistérios cristãos, ganha aqui um relevo especial, de onde tiramos a verdadeira atitude do fiel na Santa Missa: a consciência de estar na presença de um Deus imolado deve prevalecer e ofuscar todas as lembranças humanas. As intenções que trazemos, e que é bom trazer, devem ser esquecidas, nossas aflições devem ser esquecidas, para que todas as nossas faculdades se concentrem na presença de Cristo Nosso Senhor. A quinta-feira santa nos ensina isto com especial vigor.
O GLOBO, quinta-feira, 7/4/77