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Tempos de Páscoa

Não sei se já observaram uma curiosa peculiaridade dos evangelhos desta semana da Páscoa. No Domingo da Ressurreição temos a seqüência de Marias narrando a piedosa iniciativa das duas Marias e o espanto delas quando viram removida a pedra do sepulcro e um jovem luminosamente vestido de branco a explicar que ressuscitara aquele a quem buscavam. E o moço mostrava o sepulcro vazio às duas Marias espantadas. Na segunda-feira temos a narração, a meu ver a mais bela história do mundo, do encontro dos dois peregrinos de Emaús. Iam falando sobre os acontecimentos do dia quando viram que estavam acompanhados. Um terceiro homem entra na peregrinação e na conversa. «Por que estais tristes?», perguntava o desconhecido. Respondendo um deles, chamado Cleófas, disse-lhe que somente um forasteiro faria tal pergunta que demonstrava a ignorância dos acontecimentos do dia. O desconhecido insiste. «Que acontecimentos?». E então o peregrino triste conta com melancolia e acabrunhamento a paixão de Jesus. Começa então o desconhecido um estranho discurso, iniciando pela história de Moisés e dos profetas. Nesse meio tempo chegaram à aldeia e entraram num albergue. «Fica conosco», diziam os peregrinos.

 

Ele entrou, sentou-se à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, e deu-lhes aquele sinal sagrado que instituíra antes do sacrifício cruento e que agora se espalhava pelos caminhos do mundo e pelos dias da vida. Abriram-se então os olhos dos peregrinos, e Ele desapareceu. Quer dizer que, abertos os olhos da fé, fechavam-se os da evidência sensível. E diziam, um para o outro: «Reparaste como nosso coração queimava de amor quando Ele nos explicava as escrituras?». Na terça-feira temos Lucas. Os apóstolos estão fechados no cenáculo, com medo, com tristeza, quando Ele surge no meio deles e diz: «A paz seja convosco». E novamente a pergunta: «Por que estais tristes?». E novamente a familiaridade do ágape e a explicação, começando por Moisés e pelos profetas. Na quarta-feira é João que nos conta o episódio que mais tarde encherá a literatura e a iconografia com o título: A pesca milagrosa. Ele aparece no meio dos discípulos que o não reconhecem. E quando o milagre descobre o segredo da divindade vemos Pedro, o inimitável Pedro, o mais simpático de todos os Papas, o menos solene, freqüentemente o mais gaffeur, vemos Pedro tirar a camisa e atirar-se ao mar, nadando para chegar depressa perto do grande Amigo que julgara perdido. E é nessas circunstâncias, nesse quadro, que Jesus cobra a Pedro os três arrependimentos que apagam as três negações. E é aqui, nesta cena, que se torna mais visível, mais marcado, o curioso aspecto desses evangelhos da ressurreição. Há qualquer coisa de divertido, de humorístico, que nos autoriza a dizer que os evangelhos da ressurreição mostram um pouco, levemente, aquilo que Chesterton, nas última linhas de sua “Ortodoxy” diz que Deus escondeu aos homens: o seu riso. Sim, o riso de um pai do céu debruçado sobre a estultice dos homens.

 

Em outra passagem das Sagradas Escrituras há referência a um riso de Deus. Mas esse riso terrível do Antigo testamento mais parece um trovão do que uma ternura de Pai que está nos céus. Nas Matinas de Natal, o Salmista pergunta: «Por que meditam os povos coisas vãs? Por que tremem as nações?». E mais adiante acrescenta esta palavra terrível para os soberbos, para os esquecidos de Deus: «Qui habitat in coelis, irridebit eos: et Dominus subsanabit eos. Tunc loquetur ad eos in ira sua: et in furore suo conturbabit eos». Sim, quem habita nos céus se rirá deles, dos homens soberbos, suficientes, orgulhosamente esquecidos do que devem ao autor de seu ser e de seus dias. Na festa mais terna e risonha da Igreja ouvimos esse trovão da cólera de Deus; no desenlace dos acontecimentos mais dramáticos, ouvimos um timbre de infinita doçura a nos dizer, com sorriso de Pai, que é vã nossa tristeza, e que devemos afinar a alma para pegar o tom da divina alegria. E a composição que resulta de tantos paradoxos, de tantos contrastes entre as coisas da terra e as coisas do céu, é aquela esquisita, aquela inimitável espécie de humorismo que ressalta e em graus diferentes aparece em todos os evangelhos da ressurreição. Deus agora zomba de nós, como se vê no Domingo in Albis, onde o evangelho conta a história da incredulidade de Santo Tomé e o remédio que Jesus lhe dá: «Põe tua mão nas minhas chagas, e não sejas incrédulo, mas fiel». A sublime confirmação de todas as profecias e de todas as profecias e de toda a pregação de Jesus reveste-se assim de um aspecto cômico, que salienta o que há de infantil nas almas dos homens. Deus zomba de nós, seus fiéis, seus inúteis servidores, seus pequeninos seguidores, mas agora, ao contrário daquilo que o salmista cantou, o que transparece no riso divino é a luz da esperança teologal, é a infinita ternura, um pouco divertida, se posso fizer assim, de um pai infinitamente amoroso e misericordioso.

 

O GLOBO, Quinta-feira, 30/3/78

 

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