Category: Música
Pe. Gustavo Camargo, FSSPX
Introdução
As seguintes anotações são, em sua maioria, resumos de diferentes livros de música que, por interesse pessoal, fui fazendo ao longo dos anos. Têm valor de resumo somente. São poucas as apreciações pessoais. É que me parece interessante primeiro conhecer o aspecto histórico do desenvolvimento da música, especialmente da música sacra, através dos séculos, para só depois estudar mais a fundo a sua essência mesma, a sua linguagem.
Para a parte histórica, os resumos foram feitos sobretudo com base em História da Música, de Franco Abbiati (Edições Uteha, em cinco tomos). São poucas as citações entre aspas desta obra. Em geral, resumi a ideia com minhas próprias palavras. Mas a substância vem toda dela [N. do T.: da obra].
São Pio X, em seu Motu Proprio Codex musicae sacrae juridicus, diz que: “(...) o canto gregoriano considera-se, de certo modo, como o mais elevado ideal da música sacra, de maneira que, com razão, se pode assentar como geralmente válida a seguinte regra: uma obra musical que seja apropriada para o uso religioso será tanto mais sagrada e litúrgica, quanto mais, por sua posição, espírito e irradiação, aproximar-se do ‘melos’ gregoriano. Pelo contrário, será menos adequada ao serviço divino quanto mais afastar-se desse modelo”.
Segundo São João da Cruz, a realização artística deve ser simples, pura, evocadora e despojada – para ser pura e simples – para conduzir a alma a Deus sem retê-la no gozo estético. A arte na liturgia, como acessório que é do culto, deve subordinar-se estritamente a seu fim, a sua função. Será, pois, mais própria para a liturgia, a música que, ao ser escutada nas funções religiosas, não inclinar o ouvinte a deter-se nela, a estancar-se no gozo estético que produz; senão a levar sua alma, através desse gozo, ao recolhimento, à oração e a dispor-se para melhor receber as graças de Deus. (Continue a ler)
Dr. Andrew Childs
O desenvolvimento da cultura antes da Segunda Guerra Mundial aconteceu em resposta a dois episódios cataclísmicos: a ascendência do modernismo e a Primeira Guerra Mundial. A relação entre ambos – muito semelhante a uma relação entre causa e efeito – merece uma análise em separado; no entanto, ao passo que o modernismo afirma que não se deve crer no sobrenatural, os horrores da Primeira Guerra Mundial dificultam essa descrença, sobretudo quando as expressões artísticas os amplificam. Um leitor que não se impressiona com as descrições factuais da obra “War That Will End War” [A Guerra para acabar com a Guerra] deve duvidar da própria sanidade; um leitor que não se comove com a poesia de guerra de Wilfred Owen deve duvidar da própria humanidade. Esta apresentação considerará o desenvolvimento musical durante essa época de profundo desengano e se concentrará em dois elementos motivadores: o duradouro impacto social e o esgotamento que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, e a emergência e a organização das formas da arte popular americanas que viriam a dominar o cenário cultural e musical do planeta à deflagração da Segunda Guerra Mundial.
A Fé traça uma linha acidentada entre duas visões incompatíveis da realidade. A vida da fé pressupõe a cooperação necessária e a compatibilidade entre a fé e a razão e a existência do sobrenatural. A visão de mundo humanista progride da insistência na distinção entre a fé e a razão até à rejeição definitiva da possibilidade da realidade sobrenatural. O crente que aceita a declaração da Igreja, de que “se alguém disser que o único Deus verdadeiro, nosso Senhor e Criador, não pode ser conhecido com certeza pelas luzes naturais da razão humana, seja anátema” , e o filósofo agnóstico que insiste, mormente em relação à crença religiosa, em que “aquilo que se afirma sem provas, nega-se sem provas”, encontrarão muito pouco terreno filosófico em comum. De fato, um crê que o outro está delirando.
A negação do absoluto acompanha a negação do sobrenatural – segundo a evolução necessária da verdade no constructo humanista – ao que se segue como conseqüência natural o desmonte da hierarquia. As preferências substituem os padrões objetivos de qualidade, de molde que o nivelamento exigido para que todas as expressões artísticas e intelectuais tenham a mesma validade cria uma espécie muito incômoda de caos absoluto. Rubens e grafite, Shakespeare e e. e. cummings, balé e teatro de revista merecem idêntica consideração segundo os avaliadores iluminados, mas assim como um filósofo humanista comete um crucial engano ao negar o pecado original – ao supor num otimismo equivocado que o homem, abandonado a si mesmo, escolherá o bem – assim o crítico humanista peca ao supor que a eliminação dos padrões oferece ao artista a irreprimível liberdade criativa que é necessária ao maior e melhor desenvolvimento das técnicas e dos gêneros. Numa atmosfera de liberalidade irreprimível e amoral as coisas tendem antes a descer que a subir. A liberdade irrestrita, tão logo venha à tona, fica à mercê, ao fim e ao cabo, da atração da natureza decaída.
Postulou Aristóteles: “A natureza tem horror ao vácuo”. Também a cultura tem horror ao vácuo. No decorrer da história da música ocidental, sempre houve um equilíbrio saudável – ou ao menos razoável – entre a arte culta e a popular. Quando e por que, todavia, o fiel da balança pendeu para a arte popular? Já sugeri nestas páginas que o domínio da arte popular decorreu tanto do abandono, por parte dos compositores modernistas eruditos, dos processos e propósitos da música, quanto do poder irresistível das formas de música popular – o observador honesto por força deve admitir o seu inegável encanto. Com a inversão da hierarquia, a dissolução dos padrões e a traição das academias musicais, o público decidiu por se entregar cada vez mais aos prazeres outrora culpáveis das formas musicais mais rasteiras. Para além disso, a apreciação duma música substanciosa requer um esforço significativo. Poderia eu argumentar que as recompensas – profunda consolação emocional e beleza transcendente, sem mencionar o revigorante esforço intelectual – fazem o trabalho valer a pena, mas alguém contra-argumentaria que a recreação não deve exigir um grande esforço, e que os homens nalgum momento devem afrouxar as gravatas, quando não retirá-las de todo.
No período de que falamos, a exaustão era um problema que se estava disseminando. “A mocidade americana em geral”, escreve Richard Weaver, “enfiada em uniformes, transladada para ambientes novos e mormente estéreis, e imbuída de todos os lados com a missão de matar, padeceu um severíssimo deslocamento. Tudo isso concorreu contra as platitudes benevolentes com as quais a educaram, por isso não é espantoso que ela adote a posição inversa” . Ou ainda, como disse com muito mais entusiasmo o historiador Samuel Hynes: “Os sobreviventes ficaram escandalizados, desenganados e amargurados com a experiência da guerra, e perceberam que os verdadeiros inimigos não eram os alemães, mas os velhos homens de casa que lhes haviam mentido. Eles rejeitaram os valores da sociedade que lhes enviara para a guerra, e ao fazê-lo separaram-se da geração anterior e sua herança cultural” . A humanidade sofreu um golpe duríssimo, e uma cultura permissiva e “rebelde” nunca pareceu tão atrativa.
Na virada do séc. XX, a música popular americana deu início a um domínio de escala global, baseado nos sucessos dos talentos nacionais de Stephen Foster (1826-1864) e Scott Joplin (1868-1917). Foster “entendeu, como nenhum compositor antes dele, que a verdadeira música popular deve ser assimilada na primeira ou na segunda audição, lembrada com alguma exatidão depois de poucas repetições, e deve ser facilmente executada em casa por pessoas de habilidades rudimentares” . As canções de Foster, modelares e reconhecidas de imediato até hoje, tinham um encanto universal, quase preternatural. “Os métodos da musicologia”, segundo o historiador da música Charles Hamm, “não explicam a contento como foi ele capaz de escrever... canções que continuaram populares por mais de um século. Os recursos eram tão simples que se chega a cogitar que quase qualquer pessoa seria capaz de escrever tais canções; ainda assim, ninguém as escreveu senão Foster” . Foster não descobriu o veio nostálgico da música popular americana, mas ninguém o explorou com mais eficácia. Para um público mundial cada vez mais exausto, “My Old Kentucky Home” pareceu um lugar mais aconchegante e hospitaleiro que uma sinfonia de Mahler.
O ragtime, e sobretudo a música de Scott Joplin, talvez expresse uma mistura incomum, contudo inegável, entre as tradições musicais européia e africana. Não obstante seja agora um gênero de nicho, o ragtime legitimou duma vez por todas os elementos fundamentais da tradição africana e conseguiu aceitação no repertório de músicas relevantes para piano, ao ser imitado por numerosos compositores europeus, dentre os quais Debussy, Stravinsky, Dvorak, Satie e Darius Milhaud. Por meio do seu estilo característico e do seu gênio interpretativo, Joplin provou-se essencial ao transpor a crítica barreira social entre negros e brancos, e ao franquear aos estilos de influência africana – assinalados por reconhecíveis elementos tradicionais – uma aceitação popular mais ampla: antífonas de “pergunta e resposta”, repetição de curtas frases melódicas, vocalização não-melódica, sincopação, polirritmia e improvisação.
Dois grupos populacionais que viviam à margem da sociedade conquistaram efetivamente a cultura musical do mundo antes da deflagração da Segunda Guerra Mundial: os judeus, que eram maioria entre os compositores da Tin Pan Alley, e os músicos negros e urbanos que desenvolveram o blues e algumas composições mais ou menos ligadas ao jazz, por primeiro em Nova Orleans e mais tarde em cidades maiores por todo o país.
De início, a Tin Pan Alley se referia a uma região suburbana de Manhattan — próxima à Union Square — que pelos fins do séc. XIX abrigava muitas editoras musicais. Essas editoras empregavam compositores e letristas que eram verdadeiramente prolíficos e talentosos, e que hoje são conhecidos por todo o mundo — George Gershwin, Irving Berlin, Jerome Kern, Oscar Hammerstein, Frank Loesser, Cole Porter, Al Jolson, Johnny Mercer —, bem como um exército de “propagandistas musicais” que divulgavam as novas músicas por apresentações em lugares públicos. Com efeito inventaram uma franquia de música popular, ao criarem fórmulas de fácil assimilação que tinham êxito garantido e baseavam-se em pesquisas de mercado. Algumas dessas canções se venderam na casa dos milhões. Os compositores negros e judeus “que perseguiam o sucesso” formaram uma compreensível aliança social e profissional, e a mútua colaboração não apenas expandiu o blues, o jazz e a música popular, mas também resultou no surgimento de novos gêneros, como a Música de Teatro, o Cancioneiro Americano, as Big Bands, e finalmente o Rock ’n Roll.
Cada um desses subgêneros da música persistiu por tempo suficiente para que se desenvolvesse uma literatura e um campo de estudo próprios, alguns legítimos (o registro objetivo da evolução dos estilos, e a catalogação dos artistas, dos intérpretes e do repertório), e alguns meio vergonhosos (pseudomusicólogos que servem de capacho para artistas e obras populares) . Não obstante, a vastidão dessa literatura e desses subgêneros não representa as várias moradas dum excelso reino artístico, mas tão somente os diferentes cômodos duma mesma casa numa vizinhança suspeita, cujos ocupantes de contínuo a redecoram, renovam e expandem. Embora, em certos aspectos, a “estrutura” tenha sido alterada na sua substância, nunca se mudou de endereço.
Aqui começa a moral da história. Apesar de ser tentador, a demonização das formas de música popular ou vulgar tem pouco a oferecer à inspiração dum comportamento nobre. Podemos zombar da arquitetura da pensão cultural da música popular e descompor os pensionistas como instigadores do pecado. Podemos ultrajar o “espírito de fornicação” que anima muitos desses estilos, mas tal ultraje talvez facilmente se converta numa caricatura, que diz respeito tanto ao crítico quanto ao criticado. Para conhecimento, leia-se esta mordaz afirmação da década de 50 sobre os efeitos do jazz: “Após a disseminação do jazz, que com certeza foi obra das Forças do Mal, tornou-se notável um declínio na moral sexual. Enquanto outrora as mulheres se contentavam com uma corte decorosa, hoje em dia muitíssimas delas estão quase sempre inquietas em busca de aventuras eróticas, e transformaram esse furor sexual numa espécie de passatempo” . O Demônio, que toca saxofone numa banda de jazz, leva a menina a fazê-lo. O jazz, que em termos técnicos é indefinível — ao mesmo tempo monótono e fascinante —, faz tanto mal para os seus apreciadores em particular quanto qualquer outra forma de música popular: isso só prova que o homem, diante duma recreação cultural que se aparte de conseqüências morais, e abandonado a si mesmo, escolherá o pior e buscará experiências prazerosas ao menor custo possível.
Ainda resta o fato concreto de que, à época da Segunda Guerra Mundial, os homens perderam a vontade de lutar pelos absolutos transcendentais, e de que o progresso contínuo de quase um milênio de cultura superior chegou quase a um ponto final, ao ser entravado, descarrilado e impedido por amigos e por inimigos. O ímpeto cultural perdido, como em tudo, requer mais esforço para recomeçar do que seria necessário para conservar o movimento. Todos os indivíduos que lutam em prol da nobreza devem tomar a difícil decisão de carregar a sua cruz e trabalhar; devem comprometer-se dia após dia com os esforços necessários para transcender a sedutora desolação duma realidade apenas natural sem negar as realidades da natureza humana, que são compartilhadas por almas simplórias e por almas formosas. “A educação”, escreve Alan Bloom, “não consiste em fazer para as crianças uma arenga contra os seus instintos e prazeres, mas proporcionar uma continuidade natural entre o que sentem e o que podem e devem ser” . O Demônio é um demolidor, e os artistas do séc. XX devem construir entre escombros para uma plateia de almas desenganadas. O artista popular constrói habitações baratas, sem ter em perspectiva nenhuma outra morada, e o mundo inteiro entra nesse lugar acessível e familiar onde encontra uma posição aconchegante. Sem negar a necessidade de abrigo nem subestimar a sedução do conforto, nunca percamos de vista que a posição está invertida: não escolhamos para moradia lugares culturais potencialmente arriscados, por mais que os reputemos convidativos ou legitimamente prazerosos. Quanto à cultura, sabemos a que lugar pertencemos. A jornada ainda é longa e dolorosa, mas gloriosíssima.
Antônio Hernandez
Há exatamente 300 anos, na pequena cidade de Eisenach, Alemanha Oriental, a poucos quilômetros de Kassel, nascia Johann Sebastian, quarto filho de Elisabeth e Johann Ambrosius Bach, mortos quando o menino mal completara dez anos. Johann Ambrosius era músico, altamente respeitado na região. Com ele, Bach aprendeu a tocar violino. Com seu irmão mais velho, Johann Christoph, estudou órgão e cravo. Na escola de Ohrdruf, onde vivia o irmão, aprendeu a cantar e tinha tantas qualidades que ainda menino conseguiu seu primeiro emprego, no coro local. A compor, ele aprendeu praticamente sozinho, copiando às escondidas partituras de mestres alemães, italianos e franceses quw seu irmão importava com dificuldades.
Através de seus próprios recursos, já adolescente, Bach ganhou também a melhor educação a que podiam aspirar os fihos dos nobres de sua época: latim, francês, teologia, literatura, filosofia. Aos 18 anos, organista célebre na região, tinha uma base cultural invejável que, aliada à maturidade fatalmente adquirida pela sua condição de órfão desde os dez anos, fazia dele um artista capaz de assumir responsabilidades profissionais como qualquer adulto.
A prática da música, do canto e das técnicas instrumentais e da composição eram quase fator hereditário na vida de Bach. Ao longo de mais de quatro séculos da história da criação musical, registram-se aproximadamente 40 músicos em sua família espalhados por diversas cidades alemãs. O mais antigo foi um conselheiro municipal de Wichmar, Haus Bach, apreciado na região como exímio tocador de cítara. Os conhecimentos técnicos e artísticos eram assim transmitidos de geração a geração e o nome de família chegou a ser sinônimo de músico. Casado duas vezes, o próprio Bach educou seus filhos com extremo cuidado no universo musical e vários deles, por seus próprios méritos, têm lugar assegurado entre os maiores vultos da história: Johann Christian, Carl Philip Emanuel, por exemplo, nomes de grande destaque na evolução das formas do período clássico.
Johann Sebastian Bach, mais do que a figura culminante da história de toda sua família, foi o ponto de confluência das mais importantes vertentes da cultura musical do Ocidente, na primeira metade do século XVIII. Além da síntese das qualidades artísticas que vinham desde a Renascença, Bach é também o ponto de partida da música moderna: suas luzes, que iluminaram Mozart e Haydn e os românticos continuaram a aquecer os cérebros de mestres como Shoenberg, Alban Berg, Stravinsky e Villa-Lobos que, considerando-o uma espécie de “repositório do folclore universal”, comprometeu o Brasil nessa homenagem monumental que são as nove “Bachianas Brasileiras”.
Quando Bach chegou ao mundo, vivia-se o segundo século da descoberta das Américas, da invenção da imprensa de Guttemberg e do protestantismo de Lutero. O criador da ópera, o italiano Claudio Monteverdi, havia falecido 50 anos antes. A grande explosão da polifonia ocorrera três séculos antes e já envelheciam os exageros contrapontísticos dos renascentistas, que chegaram a trabalhar peças a 30 partes reais. Nem anacrônico, nem revolucionário, na sua condição de criador, Bach comportou-se dentro dos limites de um conservadorismo nada estéril. No que diz respeito ao enriquecimento dos recursos armônicos, por exemplo, ele se pronunciou corajosamente em defesa do “Temperamento” da divisão da oitava em 12 semitons fixos, o que permitiria a utilização dos teclados em qualquer tonalidade, sem ajustes de afinação. E o pronunciamento veio com a força amazônica dos 48 Prelúdios e Fugas para o cravo bem temperado.
Quanto às formas que cultivou, Bach conseguiu levá-las, com espírito científico e capricho artesanal, até as últimas consequências, animando-as também com essa sensibilidade que, no século XIX, Robert Schumann reconheceria como autêntico romantismo.
Os aspectos biográficos, entretanto, não são particularmente favoráveis às explorações literárias. O mais alemão e ao mesmo tempo o mais universal de todos os compositores alemães jamais deixou a Alemanha. Casado com sua prima Maria Bárbara, que morreu ainda jovem, e depois, com Anna Magdalena, teve ao todo 17 filhos. Escreveu, dia e noite, à luz das velas ou da lua, até ficar cego. Trabalhou para a nobreza até os 37 anos e, a partir daí, até morrer, para a igreja e a municipalidade de Leipzig. Antes de assumir as funções de Kantor, que incluiam obrigatoriamente a criação de música para os serviços religosos, Bach viveu o período mais feliz de sua vida – segundo seu próprio depoimento em cartas – na corte do príncipe de Anhalt-Cohten. Esse período corresponde à sua produção instrumental mais importante: as Aberturas (ou Suítes para orquestra); os Concertos de Brandenburgo – um dos quais, o quinto, inaugura a forma tão prestigiada pelos românticos do diálogo concertante entre um instrumento de teclado e um grupo instrumental; as Sonatas e Partitas para violino solo, para violoncelo, para violino e cravo, para cravo solo, e, entre muitas outras obras importantes, o primeiro volume de Prelúdios e Fuga para o cravo bem temperado.
Romantismo latente e perfeição artesanal
A segunda parte da vida, em Leipzig, corresponde à composição da maior das cantatas, das Paixões – “segundo São Mateus” e “segundo São João” – o segundo volume para cravo (a Oferenda Musical) e, para mencionar apenas alguns dos monumentos maiores da criação de Bach, a Arte da Fuga, que deixou inacabada, para consagrar seus últimos anos à conclusão da Missa em si menor, uma tarefa que não obedecia a nenhuma encomenda nem tinha a menor perspectiva de execução em público.
Esse período em Leipzig foi marcado por desgostos e por desentendimentos com as autoridades. Compositor livre, Bach era um músico oprimido nas suas aspirações e até hostilizado nas suas tarefas de diretor de música e de professor. Homem forte, ele era capaz de vencer a pé grandes distâncias para poder ouvir os organistas célebres de seu tempo, como Buxtehude ou Pachelbel, influências marcantes na sua formação instrumental (como compositor de música religiosa, vinha de Schutz, que nascera justamente cem anos antes). Extremamente sensível, emocionava-se quando meditava sobre as responsabilidades que lhe cabiam pessoalmente pelos “sofrimentos de Nosso Senhor Jesus Cristo”, segundo depoimento registrado no livro de sua mulher Anna Magdalena, que o surpreendeu gemendo na sua mesa de trabalho enquanto escrevia a Paixão segundo São Mateus.
Compondo para a “Maior Glória de Deus”, conciliando um romantismo latente com a perfeição do computador que tinha no cérebro, Bach deixou, aos 65 anos, obras perfeitas que pouco interessaram aos seus sucessores imediatos e que não chegaram até nós em sua totalidade. Calcula-se que apenas a metade do que escreveu está incluído nos catálogos modernos. E, a não ser por Haydn, Mozart e Bethoven, não existem muitas luzes de admiração pela sua obra, no século seguinte. Mesmo assim, a música instrumental teve razoável importância na vida concertista européia, sobretudo as Aberturas e os Concertos de Branderburgo, além dos Prelúdios – que eram a bíblia de músicos como o primeiro professor de Chopin. Seria preciso, entretanto, esperar até o século XIX para uma verdadeira ressurreição do nome de Bach, por ocasião da revelação da Paixão segundo São Mateus, por inciativa (e sob a direção) de Mendelsohn.
Todos os grandes românticos, particularmente Shumann, Liszt, Chopin e Brahms, prestaram homenagens significativas ao gênio de Bach. Depois, já no século XX, vieram os reconhecimentos de Villa-Lobos, animando as leis do reino bachiano com sangue brasileiro; de Strawinsky, confessando que o centro de suas aspirações era chegar a ser um pequeno Bach; e de Shoenberg e Alban Berg, que mergulharam na Arte da Fuga, procurando saídas na floresta do atonalismo.
Nota da Permanência: O presente artigo foi escrito em 1959, centenário do nosso compositor maior, pelo crítico musical Antônio Hernandez. O texto foi tirado do livro "Músicos - Compositores - Interpretes", e posso ser adquirido na nossa livraria.
O mundo celebra hoje o centenário de Heitor Villa-Lobos, o mais importante compositor das Américas, em todos os tempos. Nascido no Rio, iniciado desde a infância pelo pai, violoncelista, clarinetista, violonista, diretor de orquestra, autodidata – as suas passagens pelos conservatórios foram breves – e cultivado à luz da Bach, de Haydn e dos valores mais puros procedentes da terra, Villa-Lobos deixou ao morrer, em 1959, um catálogo de mais de novecentas obras de diversificada destinação, transcedente pela invenção idiomática, pela representatividade nacional, pelo valor instrumental. Os Quartetos, as Bachianas Brasileiras, a música religiosa, a obra para piano, os Concertos, a imensa cordilheira dos Choros, a produção camerística, tudo configura um símbolo sonoro do Brasil culto e respeitado no mundo. Título de maioridade da arte brasileira, todas as autoridades reconhecem em Villa-Lobos o grande, senão “o único” (segundo Bandeira) gênio nascido no País. Em termos de grande público, entretanto, a sua obra continua a ser ignorada. De domínio popular são apenas alguns números para piano e para violão, poucas canções e as Bachianas Brasileiras n° 5. Algumas das obras de maior importância não tiveram sequer uma audição no Brasil, nas últimas décadas.
Durante três décadas, Villa-Lobos ocupou, nos Estados Unidos e na França, o trono do maior compositor das Américas. Quando ele morreu não foi substituído, apesar do reconhecimento dos méritos do norte-americano Aaron Copland, do argentino Alberto Ginastera e do mexicano Carlos Chávez, defendidos fanaticamente pelos seus compatriotas.
Foi o mestre nascido no Rio mais do que um prodígio do “Terceiro Mundo”, um grande entre os grandes do século, ao lado de Bartok, Strawinsky, Mnuel de Falla, e diferente de todos. Frustradas são as tentativas de explicar um gênio, mas sempre tem alguma utilidade a lembrança das circunstâncias que permitiram a sua formação. Em Villa-Lobos impõe-se o reconhecimento da vontade paterna, como primeiro impulso cultural. Uma vontade sem a qual teria sido impossível preparar o artesão. Comentaristas de hoje identificam naquele pai, Raul Villa-Lobos, falecido em plena juventude quando o futuro compositor apenas começava a superar a primeira infância, uma espécie de déspota de interesses exclusivamente elitistas. Modesto funcionário, porém, Raul Villa-Lobos deixou bela impressão no seu filho (entrevista de 1957):
“Além de ser homem de aprimorada cultura geral e excepcionalmente inteligente, meu pai era músico prático, técnico e perfeito. Com ele assisti a ensaios, concertos e óperas... Aprendi, também, a tocar clarinete e era obrigado a discernir o gênero, estilo, caráter e origem das obras, como a declarar com presteza o nome da nota dos sons ou ruídos que surgiam incidentalmente, como, por exemplo, o guincho da roda do bonde, o pio de um pássaro, a queda de um objeto de metal... Pobre de mim quando não acertava...”
Tão pequeno era o menino quando foi iniciado ao violoncelo, que o pai precisou adaptar uma viola para que ele conseguisse colocar os dedos nas cordas, abraçar o instrumento e fazê-lo cantar com o arco.
A influência daquele pai é determinante. Villa-Lobos estaria, poucos anos depois, em condições de reeditar o prodígio de Mozart, que reproduziu de memória o Miserere de Allegri, até então de uso exclusivo do Vaticano. O compositor brasileiro fez outro tanto, no campo do repertório de bandas de cidades rivais do interior do Brasil. Isso lhe permitiria depois poupar anos de trabalho nos conservatórios. Violoncelo, clarinete, piano – que aprendera de ouvido bebendo o Cravo bem temperado, de Bach, das mãos da tia – violão, que cultivara às escondidas, o menino aos 12 anos era um músico bem equipado, capaz de discernir, modificar e sintonizar o sentimento popular e vestir as ideias com roupagens requintadas. Com os anos desenvolveria o talento necessário para inovar também em matéria de roupagens. Antes de ter ouvido sequer mencionar o nome de Claude Debussy, ele já adivinhara o Impressionismo. Antes de conhecer Igor Strawinsky, coincidia com ele na força da invenção, na capacidade de pensar a multiplicidade de elementos superpostos que fazem o esplendor da Sagração da Primavera, do mestre russo, ou do Noneto que resume o Brasil, na obra de Villa-Lobos.
As outras forças formadoras do gênio foram, depois de Raul Villa-Lobos e de Bach, os Quartetos de Haydn; os chorões cariocas; os motivos folclóricos de Minas Gerais, onde a família se refugiou em tempo de contrariedades políticas do pai; a ópera italiana (é quase palpável a afinidade com Puccini), o folclore nordestino, que ele pesquisou com fome pantagruélica, mas sem as preocupações científicas de Pedrell, na Espanha, ou de Bartok, na Hungria (nesse campo, Villa-Lobos está mais perto do instintivismo de Chopin). Não levou gravadores, o futuro autor das Cirandas e do Guia Prático, na sua infatigável peregrinação pelo Brasil, mas era tal a identificação do sentimento popular com a sua própria consciência que, com total autenticidade ele poderia afirmar, anos mais tarde: “O folclore sou eu”. Em circunstâncias parecidas, Luís XIV da França afirmara com menos autoridade: “O Estado sou eu”.
A declaração de plenos poderes explicava um certo processo de simbiose entre Villa-Lobos e o folclore, principalmente no que concerne às práticas dos chorões cariocas, no início da carreira do compositor, fenômeno que se registraria mais tarde na evolução de Francisco Mignone (Chico Bororó).
De qualquer maneira, a simpatia do músico pelos valores autênticos da terra ficou documentada nas suas declarações à imprensa quando visitou pela primeira vez a França: “Estudei no Conservatório de Cascadura, na classe de mestre Pixinguinha”.
Villa-Lobos era já o autor de obras que conquistaram de maneira fulminante as plateias mais cultas do mundo. A Prole do Bebé, por exemplo, que Rubinstein revelara nos anos vinte e que cultivou até o fim da vida. O Polichinelo deve ter alcançado o índice de mais de cinco mil execuções públicas nos recitais do pianista polonês. Era também autor do Noneto, obra pouco mais jovem do que a História do Soldado de Strawinsky, e não menos interessante no que diz respeito às inovações idiomáticas e que, pour cause, até hoje continua quase totalmente desconhecida.
Capítulos especiais, nas matérias comemorativas, mereceriam a colaboração do mestre com o Governo da Revolução de 1930, sobretudo no campo da educação musical, das concentrações de 40 mil vozes de escolares, da fundação do Conservatório de Canto Orfeônico e da Academia Brasileira de Música, instituições que bem merecem reativação. Milhares de brasileiros cresceram condicionados pela espécie de pedal que representou nas consciências a prática do canto em conjunto. Era o povo se capacitando para um dia chegar a entender as obras de arte de seu mais autorizado porta-voz.
Em matéria de registros discográficos o panorama é lamentável. Não apenas no que toca às técnicas mais modernas de gravação numérica para leitura a raio laser. Os discos convencionais de música de Villa-Lobos são de má qualidade, a maioria, e o repertório gravado é pequeno, em comparação com o imenso número de obras importantes: as Bachianas Brasileiras; os Choros, que começam com espécies de diários íntimos e se transformam em verdadeiras epopeias; as Sinfonias; as 16 Cirandas; preciosidades do repertório pianístico, como as Danças Africanas e as duas séries de Proles do Bebê; os cinco Concertos para piano (já editados em versão de Fernando Lopes com a Orquestra de Campinas, mas não disponíveis no mercado), os Concertos para harpa, para harmônica de boca, para violoncelo, para violino, as Sinfonias, o Guia Prático e centenas de títulos de música de câmara que contém o melhor Villa-Lobos.
As obras mais favorecidas em discos continuam sendo os Estudos e os Prelúdios para violão. O poema sinfônico Amazonas, a música incidental para A Floresta do Amazonas (o filme Green Mansions), as quatro Suites do Descobrimento do Brasil, as Óperas, as Canções e a gigantesca produção coral, os 17 Quartetos para cordas e a música religiosa, tudo está à espera de registros modernos, sob a responsabilidade de intérpretes tecnicamente habilitados, sensíveis e, sobretudo, honestos e sem compromissos com o sucesso comercial.
A edição da música em de Villa-Lobos em termos internacionais ficou em boas mãos, com a Casa Max Eschig, em Paris. Para os consumidores brasileiros, porém, isso traz dificuldades, que o Museu Villa-Lobos vem tentando solucionar.
Em matéria de estudos de interesse musicológico, apesar da tradição implantada por Dona Arminda Villa-Lobos, faltam atividades. Foram excelentes os exemplos dos trabalhos de artistas como Arnaldo Estrella, Adhemar Nóbrega, Souza Lima. Poucas pessoas, entretanto, conhecem no Brasil trabalhos de excepcional interesse crítico produzidos em universidades e publicados apenas no exterior. Juan Orrego Salas, por exemplo, fez análises da maior seriedade, nem sequer foram traduzidas para o português.
O Globo, 5 de março de 1987
Pe. Gustavo Camargo, FSSPX
Objeção:
Quando escutamos o canto gregoriano pela primeira vez, a impressão que nos causa talvez seja negativa. Pode ser que nos impressione não tanto por que nele há, senão por que nele não há. Sentimos a ausência de harmonia ou de acompanhamento de apoio; ou bem sentimos a falta de valores de tempo definidos claramente e de acentos regulares; ou bem advertimos que a linha melódica por vezes toma giros estranhos, que muitas vezes não concluem na nota esperada; ou bem desgosta-nos o não intentar essa música tocar-nos os sentimentos ou mover-nos as emoções.
Em nossas capelas muitas vezes é difícil que se dê lugar merecido ao canto gregoriano. Há certo rechaço da parte dos fiéis, que o acham “demasiado simples, sem ornato, maçante, que alarga muito a cerimônia etc”, e mesmo também da parte dos sacerdotes, que lhe sentem uma desconfiança instintiva.
André Charlier, em um de seus artigos sobre o canto gregoriano, traz a citação de um sacerdote que escrevera as seguintes palavras em “Semaine religieuse de Paris”, em 1965, as quais muitos de nós poderíamos talvez subscrever (lamentavelmente).
“O gregoriano é inaceitável, a não ser quando bem cantado, por religiosos ou por escola paroquial bem formada. Em toda parte, porém, ele é impraticável e não interessa a ninguém. O ouvido dos jovens, que estudam solfejo desde a escola primária com as tonalidades clássicas e com a notação musical moderna, já não intui nem pode captar quanto há de religioso no gregoriano. (…) Essas melopeias não incidem mais nas sensibilidades contemporâneas; bastante já durou essa experiência. Por que, então, tentar prolongá-la? Conservemos o gregoriano para os santuários como Solesmes, Saint-Wandrille e alguns cenáculos da cristandade. (…) Mesmo onde se canta com arte e conforme as regras, somente os da “Schola” cantam. A multidão permanece inerte e contenta-se com escutar. É este, acaso, o objetivo que se busca?”.
A essa desconfiança soma-se o desprezo a toda a Tradição da Igreja, que as reformas do Concílio Vaticano II difundiram universalmente, e que fizeram, entre muitas outras coisas, que o gregoriano se extinguisse em quase todas as paróquias.
Na prática, o resultado é que em nossas capelas se canta muito pouco o gregoriano, estuda-se menos, e o povo desconhece-o e até sente por ele certa repulsa.
Argumentos de autoridade:
Sem embargo, vendo o que os papas disseram constantemente, durante toda a história da Igreja, ficamos em situação incômoda. São Pio X, por exemplo, que iniciou magna obra de restauração do canto gregoriano, afirmou o seguinte, fazendo eco de toda a Tradição: “Essas qualidades (santidade, bondade de forma e universalidade) encontram-se em sua medida maior no canto gregoriano, e por isso ele é o único canto autêntico da Igreja romana. É o único que os padres da antigüidade legaram-nos; manteve-se com o maior esmero através dos séculos nos manuscritos litúrgicos. As últimas investigações lograram restaurá-lo felizmente em sua antiga integridade e pureza. Por isso, o canto gregoriano considera-se em certo modo como o mais elevado ideal da música sacra, podendo assentar-se como universalmente válida a seguinte regra: a música que seja apropriada para o uso religioso é tanto mais sagrada e litúrgica, quanto mais, por sua posição, espírito e irradiação, acerque-se do ‘melos’ gregoriano. Ao contrario, é menos adequada para o serviço divino se se afasta deste modelo. Destarte, o primitivo canto gregoriano deve ser de aplicação no âmbito dos serviços religiosos, e deve ter-se o convencimento de que uma cerimônia sagrada não perde brilho algum por vincular-se a esta arte musical” .
Pio XII não é menos absoluto: “Este canto, por causa da união íntima da melodia e do texto sagrado, não somente se lhe adapta perfeitamente, senão que igualmente parece expressar toda sua grandeza e eficácia, e penetra com sua doçura no espírito de quem o escuta. Tudo isso com meios musicais muito simples e fáceis, mas que, inspirados de arte sublime e muito santa, suscitam sincera admiração e convertem-se, para os mestres e conhecedores de música sacra, em fonte inesgotável de novas harmonias. Todos a quem Cristo Nosso Senhor confiou a custódia e dispensa das riquezas de sua Igreja devem conservar cuidadosamente o precioso tesouro do canto gregoriano e fazer o povo cristão participar dele profusamente” .
São Pio X faz referência à autoridade da própria liturgia quando diz: “manteve-se com o maior esmero através dos séculos nos manuscritos litúrgicos”. Recorde-se que a liturgia é uma escola de santidade. Todas as rubricas, gestos, mínimos detalhes foram guardados com sumo cuidado, muitos deles recebidos das mãos de Nosso Senhor mesmo e dos apóstolos, e transmitidos com tanto cuidado através dos séculos, que se chegou a constituir o que poderíamos chamar “a perfeita inserção do sagrado no material”, ou seja, o equilíbrio justo do uso do sensível no culto de Deus, permitindo-lhe ser perfeito instrumento ao fim próprio da liturgia. Exatamente nesse equilíbrio perfeito e inserção do sagrado no material, entra o canto gregoriano, parte constitutiva da Sagrada Liturgia. Trataremos adiante sobre este ponto importante.
São conhecidas as belas palavras de Santo Agostinho em seu livro Confissões: “Confesso que ainda agora encontro algum descanso nos cânticos que as vossas palavras vivificam, quando são entoadas com suavidade e arte. Não digo que fique preso por eles. Mas custa-me deixá-los quando quero. (…) Sinto que todos os afetos da alma encontram, na voz e no canto, segundo a diversidade de cada um, as suas próprias modulações, vibrando em razão dum parentesco oculto, para mim desconhecido, que entre eles existe. Mas o deleite da minha carne, ao qual se não deve dar licença de enervar a alma, engana-me muitas vezes. Os sentidos, não querendo colocar-se humildemente atrás da razão, negam-se a acompanhá-la. Só porque, graças a razão, mereceram ser admitidos, já se esforçam por precedê-la e arrastá-la! Deste modo peco sem consentimento, mas advirto depois. (...) Quando me lembro das lágrimas derramadas ao ouvir os cantos da vossa Igreja nos primórdios da minha conversão à fé, e ao sentir-me agora atraído, não pela música, mas pelas letras dessas melodias, cantadas em voz límpida e modulação apropriada, reconheço, de novo, a grande utilidade deste costume.” .
Corpus:
Antes de responder às objeções, tratemos de aprofundar o tema. Que é o canto gregoriano? Como se constitui? Por que é tão apto para elevar nossas almas? Como entender e apreciá-lo?
Para responder a essas perguntas, evitemos um pouco o tema de sua história (formação, decadência e restauração) e centremo-nos em sua constituição íntima, com algumas mínimas noções musicais necessárias para entendê-la.
Quando escutamos distintos tipos de música, como por exemplo música medieval, renascentista, barroca, e mesmo músicas orientais, damo-nos conta (talvez sem poder defini-lo) de que cada uma tem um “ar” distinto. Esse “ar” chama-se “modo” e faz referência à relação das notas entre si. Se pomos lado a lado as notas de um “modo” particular, formamos a sua escala. A música moderna, nesse aspecto, é relativamente pobre, porque conservou apenas dois modos: o maior e o menor. Constrói-se sobre a base da escala diatônica (por tons e semitons) e possui somente essas duas variantes. A música oriental usa os ¼ de tom, intervalo difícil de captar e que lhe dá “ar” mais confuso.
Qual é o “ar” do canto gregoriano?
O “ar” do canto gregoriano deriva de seus modos, ou seja, da maneira como se dispõem as notas e os intervalos que formam a sua “estrutura interna”.
Há quatro notas iniciais de escala: Ré, Mi, Fá e Sol. Cada uma das notas dá origem a uma escala, que pode estar em registro superior (modo autêntico) ou inferior (modo plagal), e, conseqüentemente, aos oito modos gregorianos. Cada um dos modos tem uma “corda de recitação” ou “tenor”, que é uma nota dominante (este é o termo que se usa em música moderna) em redor da qual se desenvolve a melodia.
Tudo isto possibilita grande variedade de estruturas modais, cada uma com suas características, seus recursos próprios, para expressar um “ar” particular, um “ethos”, estado de alma ou ideia. A palavra “ethos” usavam-na os gregos para definir o caráter moral dos modos musicais.
Muitas vezes se disse e acreditou, e segundo isso se interpretou, que o gregoriano fosse canto totalmente impessoal, frio, sem sentimento. No entanto, sem deixar de afirmar a sobriedade, o canto gregoriano usa freqüentemente de recursos musicais para reforçar ideias e sentimentos. Alguns exemplos:
No responsório do Ofício de Trevas da Sexta-Feira da Paixão, a letra diz: “exclamou Jesus com grande voz: Deus meu, por que me abandonaste?”. Justamente nesse grito, “Deus meu”, o autor da melodia gregoriana põe notas muito altas - as mais altas registradas no gregoriano. Quer, obviamente, reproduzir e ilustrar musicalmente o grito de Nosso Senhor na Cruz.
Mais alguns exemplos (que são abundantes).
O intervalo de semitom, por suas características musicais, é bastante usado para indicar sentimento de tristeza, lamento. Em si mesmo, não tem a inteireza e estabilidade do tom inteiro, e, usando-se no final de frase ou inciso, produz instabilidade, como algo não concluído. É até muito usado por alguns autores (Bach, entre outros, e, em minha opinião, também dá-se no canto gregoriano) como recurso onomatopeico que se assemelha ao gemido. Todas essas características encontram-se no responsório penitencial “Media vita” (Cantus selecti, p. 41* ou 39). A letra diz: “Eis que chegamos ao meio da vida e encontrou-nos a morte: em quem buscaremos ajuda, senão em Ti, Senhor? Em Ti esperaram nossos pais, esperaram e Tu livraste-os; a Ti clamaram e não foram confundidos”.
Etc etc (há muitos exemplos na peça).
Como último exemplo, é muito interessante o jogo de alternância do tom inteiro e do semitom (usando o si bemol), no introito “Laetare” do 4.º Domingo de Quaresma. E nele, quando, exatamente, a letra diz “qui in tristitia fuistis”, insiste-se no si bemol (semitom), querendo, assim, ilustrar musicalmente a palavra “tristitia” (tristeza).
Tudo isso dá-nos ideia do que é o “ethos” do gregoriano.
Dentre os capitéis conservados no “celeiro” de Cluny, dois ilustram, sobre suas quatro fachadas, os oito tons gregorianos; cada destes com uma figura que simboliza o tom musical e uma pequena frase que o descreve.
1.º tom: “Eis aqui o primeiro tom, ordenador dos sons musicais”.
2.° tom: “Segue o tom que é o segundo por nome e lei”.
3.º tom: “O terceiro salta e mostra que Cristo ressuscitou”.
4.º tom: “Segue o 4.º tom, que é semelhante a poema de lamento” (justamente esse tom de lamento usa-se no “Media Vita”, canto penitencial).
5.º tom: “Mostra quanto é humilhado quem quer se inflar (por orgulho)”.
6.º tom: “Se buscas o sentimento de piedade, olha o sexto tom”.
7.º tom: “O sétimo introduz o Sopro benéfico (Espírito Santo) com seus dons”.
8.º tom: “O oitavo ensina que todos os santos são bem-aventurados”.
Além disso, os antigos assinavam um “ar” especial para cada tom.
1.º : Gravis (serenidade, nobreza, solenidade)
2.º : Tristis (recolhido, interior)
3.º : Mysticus (contemplativo, rico, extático, ardente)
4.º : Harmonicus (o modo que não termina; a oração contínua; interior; queixoso)
5.º : Laetus (alegria humana; corresponde ao modo maior moderno)
6.º : Devotus (piedade filial, candidez, alegria espontânea, equilíbrio, paz)
7.º : Angelicus (entusiasmo, juvenil, ligeireza, vivacidade)
8.º : Perfectus (plenitude; solene e cheio de fineza)
No quadro seguinte, podem ver-se resumidas todas essas características.
Modos antigos
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Terminologia
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Dominante
Corda de recitação ou tenor
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Final
tônica
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Escala
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Qualificativo
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Ethos
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Referências
Exemplos
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Moderna
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Antiga
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Protus
RÉ
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1º
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Autêntico
Agudo
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LÁ
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RÉ
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Ré-Lá-Ré
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Gravis
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Modos ditos “menores” por sua “seriedade”.
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Madurez adquirida.
Modo da paz, serenidade, nobreza, solenidade.
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Intr. Statuit
Intr. Rorate
Grad. Ecce quam
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2º
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Plagal
Grave
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FÁ
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Lá-Ré-Lá
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Tristis
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Subjetivo.
Recolhido e um pouco fechado em si mesmo.
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Intr. Cibavit
Intr. Dominus dixit
Resp. Emendemus
Ofert. Dne. Jesu Christe
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Deuterus
MI
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3º
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Autêntico
Agudo
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SI
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MI
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Mi-Si-Mi
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Mysticus
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Místico-contemplativo
Rico, um pouco desordenado, extático, ardente.
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Intr. Vocem jucundit.
Ofert. Sperent in te
Kyrie II
Comm. Scapulis
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4º
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Plagal
Grave
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LÁ
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Si-Mi-Si
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Harmonicus
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Interior.
Modo “que não termina”; a oração contínua; lastimoso.
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Intr. Reminiscere
Credo I
Resp. Subvenite
Grad. Dne. praevenisti
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Tritus
FÁ
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5º
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Autêntico
Agudo
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DÓ
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FÁ
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Fá-Dó-Fá
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Laetus
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Modos ditos “maiores” por sua alegria.
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Alegre.
Alegria “humana”; “maior” moderno.
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Intr. Laetare
Grad. Omnes de Saba
Comm. Domus mea
Grad. Constitues eos
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6º
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Plagal
Grave
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LÁ
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Dó-Fá-Dó
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Devotus
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Piedade filial.
A candidez da infância espiritual. Alegria espontânea.
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Intr. In medio
Intr. Quasimodo
Intr. Requiem
Alle. Dne in virtute
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Tetrardus
SOL
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7º
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Autêntico
Agudo
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RÉ
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SOL
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Sol-Ré-Sol
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Angelicus
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Entusiasmo juvenil
Ligeireza, alegria, vivacidade.
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Com. Factus est repente
Intr. Puer natus
Alle. Pascha nostrum
Grad. Dirigatur
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8º
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Plagal
Grave
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DÓ
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Ré-Sol-Ré
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Perfectus
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Plenitude
Cômodo em todas as partes. Solene e sonoro, mas também cheio de delicadeza.
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Intr. Jubilate
Intr. Spiriuts Dni.
Alle. Venite ad me
Offert. Ave Maria
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Respostas às objeções:
Mencionamos a crítica de que o canto gregoriano seria “fastidioso”, demasiado sóbrio, sem apelo à sensibilidade. Em primeiro lugar, a compreensão de suas características, do “ethos” de cada modo, como vimos acima, nos ajuda a apreciá-lo melhor. Ademais, entra aqui um tema muito importante e delicado, que diz respeito à música, e chega mesmo a relacionar-se com a arte em geral. Há na arte o [chamado] elemento material. No caso da música, poderíamos assinalar como exemplo, talvez, a combinação de sons, o modo escolhido etc. Há também o elemento formal, que poderíamos chamar (não com estrito rigor filosófico) a “mensagem” que a arte quer passar ou transmitir; seria a ideia central que ela intenta transmitir, algo de ordem intelectual. Ora, a arte verdadeira deve encontrar o equilíbrio entre os dois. Muitas vezes, o excesso de elemento material “afoga” a mensagem, pois traz o foco para si mesmo e dificulta a compreensão do elemento formal. Na pintura, por exemplo, os renascentistas chegaram a uma grande perfeição do elemento material, mas isso nem sempre ajudou a arte como um todo. Se compararmos uma “Virgem com o Menino Jesus” de Leonardo da Vinci, admiramos, sem dúvida, a perfeição técnica e material; mas talvez não nos inspire tanta piedade como um ícone bizantino, muito mais tosco e imperfeito tecnicamente. A economia de meios materiais e a sobriedade ajuda muitas vezes a transmitir melhor o elemento formal.
O gregoriano, podemos dizer, representa o equilíbrio perfeito dos dois elementos da arte musical, sendo assim mais apropriado ao canto litúrgico. Sua simplicidade não é pobreza, mas elevação. Custa-nos apreciá-lo, não porque seja muito pobre; custa-nos, na verdade, por ser assaz rico. Quando escutamos o gregoriano em nossas capelas, não sentimos o impacto sensível de uma polifonia. E, provavelmente, é essa a razão por que nos ajuda a elevar nossas almas, cumprindo assim sua função, sem deixar de ser arte verdadeira. Em lugar de deter-nos no gozo estético, a música sagrada deve elevar nossas almas a Deus.
A respeito disso dizia Charlier: “Deste modo, o artista (gregoriano) vai além da natureza. Isso não significa que ele a despreze; ao contrário, sobrepassa-a para dar-lhe o seu verdadeiro sentido. Priva-se de certos meios, que consideramos indispensáveis para a arte, e somos nós, no entanto, que nos equivocamos julgando-o pobre: ele é capaz de dar-nos mais do que lhe pedimos. Esses meios entorpecê-lo-iam. O objetivo da arte não é remover as paixões; é comover aquela parte de nós que a vida diária não é capaz de alcançar e que é feita para a contemplação”.
Outra crítica, que creio mais fácil de responder, é a de que sua execução seja difícil. “Melhor não cantá-lo que cantá-lo mal”. Ora, isso vale para qualquer canto, mesmo o polifônico. Se fosse verdade teríamos de calar-nos completamente na Igreja. Demais, a experiência diz-nos o contrário. Diz-nos que, em todos os lugares em que um capelão consciencioso se propõe a cultivar o canto gregoriano, os resultados são sempre satisfatórios. Leiamos mais uma vez o testemunho interessante de Charlier:
“Durante vinte anos dirigi uma ‘Schola” composta de jovens. No começo, poucos tinham alguma cultura musical; os outros só conheciam as notas musicais. Estavam acostumados, naturalmente, às tonalidades da música moderna (...); nada os dispunha a gostar da música gregoriana (...) todavia, compreenderam mui prontamente o caráter melódico de cada modo (...) eu seguia os progressos desta adaptação, pelas expressões de admiração que lhes escapava ante tal e qual frase melódica; achavam-se perfeitamente capacitados para sentir a beleza de tom de um salmo”.
Do mesmo modo, quando se diz que o gregoriano não foi feito para o povo das paróquias, afirma-se falsidade tão patente como seria o dizer que a arte românica não foi feita para o povo das paróquias, [afirmação] a que tantas e tantas igrejas de povos e aldeias testemunham contrariamente. A multidão [no passado] cantava o ordinário da missa e toda a salmodia, e reservava-se à Schola somente o próprio da missa.
Na aldeia em que habito, ainda não faz dez anos, todos sabem cantar a missa dos domingos ordinários, a missa “De Angelis”, a do Advento, a da Quaresma, e até a do tempo pascal. Em verdade, o gregoriano praticou-se nas paróquias, desde a reforma de São Pio X, em toda parte onde se encontrasse um sacerdote que verdadeiramente cresse na importância da adoção do gregoriano, em vista da fulguração religiosa que provoca nas almas ou, dito de outro modo, por ser o gregoriano simplesmente uma escola de santidade.
Conclusão:
Tratemos, pois, de entrar como crianças nesta escola de santidade da liturgia católica. A Mestra provou-se sempre idônea, e seus frutos são patentes, ao longo dos séculos. Aprofundemos o conhecimento deste canto sagrado e cultivemo-no em nossas capelas e igrejas.
“Homens perversos e depravados usam a música como excitante para entregar-se aos gozos terrenos, em vez de levantar-se beatificamente por seu meio a Deus e à contemplação das coisas divinas. De minha parte, (...) trabalho, graças a Deus, unicamente para conseguir que a modulação das vozes seja dedicada exclusivamente ao fim para que fora inventada no princípio, isto é: ‘Deo optimo clarissimo laudibusque suis’ (a Deus ótimo e glorioso e para seu louvor)” (Tomás Luis de Victoria).
(Revista Permanência 268 - Tradução: Permanência)
Pe. Hervé Gresland
Existem muitas missas compostas por vários músicos que são boa música, e que podemos chamar de música religiosa, pois possuem caráter religioso. O gregoriano, porém, não é uma “música religiosa” entre outras, mas, segundo a feliz fórmula de Dom Gajard, é uma “oração cantada”. Aí está toda a diferença.
A alma que canta essa oração, ou que escuta esse canto num espírito de fé, é o contrário de um esteta. Quem concorda em abrir a sua alma para o mistério do cantochão, atinge o objetivo para o qual foi concebido, pois o gregoriano tem a vocação de nos abrir e nos conduzir ao reino do qual Nosso Senhor nos fala no Evangelho, que é o reino da graça.
O canto gregoriano ensina a rezar
Antes de tudo, esse canto é essencialmente oração. É verdadeiramente um canto “consagrado” , porque deve servir unicamente ao culto. O seu fim primeiro, com efeito, é o “sacrifício de louvor” da Igreja. Por ser feito e por voltar-se para Deus, coloca-nos de saída diante do nosso Criador numa atitude de oração. Esse canto faz com que nos voltemos para as realidades sobrenaturais e divinas. Ensina ao homem o senso do sagrado e da grandeza de Deus. Ele lhe ensina a rezar, a contemplar a Deus, a louvá-lo. Ele nos faz encontrar a Deus para podermos lhe falar de coração a coração. Suas melodias nos introduzem imediatamente numa atmosfera sobrenatural.
A maior parte das peças gregorianas são curtas, mas são capazes de impor desde logo uma atitude de fé, de admiração, de confiança, de adesão a Deus e a sua vontade – elas nos fazem atingir Deus diretamente. Elas conduzem à contemplação dos mistérios mesmos que revivem. Com efeito, a virtude essencial do nosso canto é a de ser capaz de conduzir e manter o nosso olhar (tanto quanto possível aqui embaixo) em algo de perfeitamente puro, em Deus, que habita uma luz inacessível. Esse canto é transparente ao espiritual, reflete um outro mundo, diz o que nenhuma outra música diz: fala à alma do invisível, dos mistérios divinos. Introduz-nos no mistério, no sagrado, abre-nos as mais altas realidades espirituais. É uma arte impregnada do sobrenatural.
O canto gregoriano ajuda e favoriza assim o recolhimento, a contemplação e inspira o bom gosto. Dirige-se ao que há de mais profundo dentro da alma. É por isso que atrai as almas amantes da beleza e do sagrado. Traz consigo uma graça própria que é a de nos introduzir de modo único no coração do mistério, na contemplação.
Ordenado desde o início ao louvor de Deus, é igualmente um admirável fator de vida interior. Transforma a alma que se abandona à sua divina influência. Em um canto assim, a música é instrumento de vida, de vida sobrenatural. Como explicava Dom Gajard, “são os atos com os quais louvamos a Deus que nos santificam”. Esse canto é um veículo da graça, e é por essa razão que podemos chamá-lo de um sacramental, e mesmo de um poderoso sacramental. Por meio dele, a Igreja procura à nossa alma uma santificação certa. Sim, o canto gregoriano é um meio de santificação.
Isso mostra que foi composto não apenas por grandes artistas, por homens de gênio, mas por homens cheios de luz sobrenatural, grandes contemplativos que tiraram a sua inspiração de um contato estreito com Deus e viviam intensamente do Criador. Essa música nasceu da oração, da contemplação, e ela alimenta a contemplação.
Auguste Le Guennant tinha razão ao definir o gregoriano como “a oração que se fez música” . Verdadeiramente, assim como se dizia dos quadros pintados por Fra Angélico, algumas melodias gregorianas parecem ter sido compostas de joelhos.
É nesse mesmo espírito de oração que o canto deve ser escutado ou cantado, como dizia o Papa Pio XII:
“visto que a voz de quem reza repete os cantos escritos por inspiração do Espírito Santo, que proclamam e exaltam a perfeitíssima grandeza de Deus, é ainda necessário que a essa voz se junte o movimento interior do nosso espírito para fazer nossos aqueles mesmos sentimentos com os quais nos elevamos ao céu, adoramos a santíssima Trindade e lhe rendemos os devidos louvores e ações de graças: ´Devemos salmodiar de modo que a nossa mente concorde com a nossa voz´. Não se trata, pois, de uma recitação somente, ou de um canto que, embora perfeitíssimo segundo as leis da arte musical e as normas dos sagrados ritos, chegue apenas ao ouvido; mas sobretudo de uma elevação da nossa mente e da nossa alma a Deus”.
Origens do canto gregoriano
Após evocar os compositores desse canto, será útil ao nosso propósito dizer algumas palavras sobre a sua história.
Em conformidade com práticas que remontam ao Antigo Testamento, o uso do canto litúrgico na Igreja remonta ao início. Numa celebre carta ao imperador Trajano, Plínio, o Jovem, governador da Bitínia, descreve os católicos como homens que “se reuniam habitualmente num dia fixo [o domingo], antes do amanhecer, para cantar entre eles um cântico a Cristo como a um Deus”. Os católicos eram assim definidos como aqueles que cantam louvores a Cristo.
Mas, de quando data o canto gregoriano? Nos livros de canto que possuímos, as datas das composições das peças do Kyriale (isto é, Kyrie, Gloria, Sanctus, Agnus Dei) é indicada, por exemplo, como do XIo ou XIIo século. Mas, para o próprio das missas, nada está indicado. Qual é a razão disso? A data de composição de cada peça é a dos manuscritos mais antigos conhecidos, quando os encontramos; mas as peças próprias de cada missa formam os manuscritos mais antigos que possuímos, remontando ao IXo século. Antes dessa data, não existiam manuscritos e os cantos eram decorados. Portanto, as peças do próprio da missa já existiam no IXo século, no império de Carlos Magno, tal como as cantamos atualmente.
Mas, na verdade, o canto gregoriano é anterior a isso. Foi de São Gregório Magno (papa de 590 a 604) que tirou o nome. Não porque o canto tenha sido obra desse papa, mas por ter ele desempenhado um papel muito importante na refundação do repertório litúrgico. “Ele recolheu cuidadosamente e dispôs com sabedoria tudo o que os antigos haviam transmitido”. Sua obra foi, portanto, a de reunir e ordenar “o tesouro das melodias sacras, a herança e a memória dos Padres.”
“Do ponto de vista litúrgico e musical, o período criador estende-se do Vo ao VIIo século; no VIIIo século já havia se encerrado”. Foi Carlos Magno que estendeu esse canto a todo o seu império: “a liturgia romana e o canto romano entraram na Gália franca sob Pepino, em 754, e foram impostos por Carlos Magno a todo o Império.” A perfeição desse canto era tamanha, a obra tão equilibrada e dotada de tal variedade, que ninguém ousou, a partir de então, retoca-la. Esse canto tornou-se a língua litúrgica de toda a Idade Média cristã.
O cantochão não foi uma obra artificial, uma construção que surgiu pronta num belo dia, como o esperanto, saída do cérebro de um intelectual. Suas origens ainda são misteriosas, mas os musicólogos pensam que partiu das ladainhas da liturgia sinagogal, das modas da música grega, dos velhos cantos celtas, gauleses ou romanos. Com esses elementos diversos, foi formado e lentamente elaborado por homens que lhe transmitiram sua marca própria: esses homens são os católicos. Quando esses homens receberam a revelação de que foram redimidos, reintroduzidos na família de Deus, feitos irmãos dos anjos pela graça e concidadãos dos santos, o seu canto precisou exprimir algo novo, algo que jamais havia sido expresso.
Canções de amor, de sofrimento ou marchas militares sempre foram inventadas, canções que exprimem a alegria ou o sentimento nacional -- ao menos é o que sabia fazer no passado, como testemunham muitas e admiráveis canções populares. Mas há uma coisa de que os cantos da terra não nos falam, a saber: da Beleza e da Bondade absoluta, de Deus. Se a alma iluminada pela fé conhece e saboreia o mistério da sua elevação à ordem sobrenatural, então, o seu canto não se assemelha a nenhum outro. O gregoriano não se assemelha a nenhum dos cantos de que lançou mão. A alma e a sensibilidade católica os transformaram e transfiguraram para que pudessem dizer coisas que jamais foram ditas, e fazer com que servissem a um propósito que ultrapassa a ordem natural.
Um pequeno número de exceções à parte, essas melodias são anônimas. Os nomes dos compositores não chegaram até nós. Poderíamos ver nisso uma intenção da Providência que, desejando dotar a Igreja de um canto muito próprio, dissimulou a sua origem sob o anonimato? Desse modo, as melodias não são de tal ou tal compositor, mas pertencem à Igreja. Camille Bellaigue escreveu a esse propósito: “Tudo que elas receberam dos homens, ainda que fosse um nome, pereceu. Elas só guardaram o que veio de Deus.”
A oração da Igreja
À nossa oração pessoal, o canto gregoriano acrescenta a eficácia espiritual da orgação da Igreja, posto que se trata aqui não da oração de um homem particular, ou de uma pequena comunidade, mas de um ato de toda a Igreja, da “sociedade do louvor divino” (como a definia Dom Guéranger), dito de outro modo, da Santa Igreja, do Corpo místico de Cristo, que apresenta pessoalmente – com Jesus à sua frente – essa súplica ao Pai.
A Igreja, e somente ela, possui o segredo da oração e sabe como se portar perante Deus. Ela traduz nesses cantos aquilo cujo segredo só ela possui. Ela mesma roga ao Pai, a Cristo, seu divino Esposo, por meio desses textos e dessas melodias. Nossas melodias são o seu canto. Exprimem os sentimentos com os quais presta culto ao Pai, por meio de Cristo, seu divino Esposo. Pois a liturgia não é outra coisa que a piedade da Esposa de Cristo que se une ao seu Esposo. Essa voz que nós ouvimos é a voz da Esposa que nos revela algo do seu mistério mais profundo. E nossa oração funde-se com a sua. Por meio dessas orações cantadas na liturgia, a alma da Igreja comunica-se a nossa, e essa alma é o Espírito Santo que a assiste sempre e que inspirou esses cantos.
Forma-se, assim, dia a dia, festa a festa, canto a canto, esse “sensus Ecclesiae” que cada católico pode adquirir quase automaticamente por meio da oração solene. A Igreja nos faz cantar como crê, como espera, como ama. O católico que entra nessa oração oficial e se associa a ela pode, com a certeza de ser ouvido, fazer seu o clamor da liturgia: “Não olhai os meus pecados, mas a fé da vossa Igreja.”
É por isso que a Igreja reconheceu no gregoriano o seu canto próprio. E o fez a tal ponto que podemos mesmo dizer que se tornou conatural à Igreja latina: quando a Igreja canta, exprime-se pelo gregoriano, que Dom Gajard chama de “o canto da Igreja em oração”, ou “oração cantada da Igreja”.
Por essa razão, não é de se estranhar a beleza desse canto, pois a beleza da própria Igreja só poderia produzir algo belo. Posto que a Igreja é a Esposa de Cristo, sua música é um canto digno tanto de uma tal Esposa como de um tal Esposo. O gregoriano é, aqui embaixo, a antecipação do canto que ouviremos pela eternidade na Jerusalém celeste.
(Le Rocher, 54. Tradução: Permanência)