Dr. Andrew Childs
O desenvolvimento da cultura antes da Segunda Guerra Mundial aconteceu em resposta a dois episódios cataclísmicos: a ascendência do modernismo e a Primeira Guerra Mundial. A relação entre ambos – muito semelhante a uma relação entre causa e efeito – merece uma análise em separado; no entanto, ao passo que o modernismo afirma que não se deve crer no sobrenatural, os horrores da Primeira Guerra Mundial dificultam essa descrença, sobretudo quando as expressões artísticas os amplificam. Um leitor que não se impressiona com as descrições factuais da obra “War That Will End War” [A Guerra para acabar com a Guerra] 1 deve duvidar da própria sanidade; um leitor que não se comove com a poesia de guerra de Wilfred Owen deve duvidar da própria humanidade. Esta apresentação considerará o desenvolvimento musical durante essa época de profundo desengano e se concentrará em dois elementos motivadores: o duradouro impacto social e o esgotamento que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, e a emergência e a organização das formas da arte popular americanas que viriam a dominar o cenário cultural e musical do planeta à deflagração da Segunda Guerra Mundial.
A Fé traça uma linha acidentada entre duas visões incompatíveis da realidade. A vida da fé pressupõe a cooperação necessária e a compatibilidade entre a fé e a razão e a existência do sobrenatural. A visão de mundo humanista progride da insistência na distinção entre a fé e a razão até à rejeição definitiva da possibilidade da realidade sobrenatural. O crente que aceita a declaração da Igreja, de que “se alguém disser que o único Deus verdadeiro, nosso Senhor e Criador, não pode ser conhecido com certeza pelas luzes naturais da razão humana, seja anátema” 2, e o filósofo agnóstico que insiste, mormente em relação à crença religiosa, em que “aquilo que se afirma sem provas, nega-se sem provas”, encontrarão muito pouco terreno filosófico em comum3. De fato, um crê que o outro está delirando.
A negação do absoluto acompanha a negação do sobrenatural – segundo a evolução necessária da verdade no constructo humanista – ao que se segue como conseqüência natural o desmonte da hierarquia. As preferências substituem os padrões objetivos de qualidade, de molde que o nivelamento exigido para que todas as expressões artísticas e intelectuais tenham a mesma validade cria uma espécie muito incômoda de caos absoluto. Rubens e grafite, Shakespeare e e. e. cummings, balé e teatro de revista merecem idêntica consideração segundo os avaliadores iluminados, mas assim como um filósofo humanista comete um crucial engano ao negar o pecado original – ao supor num otimismo equivocado que o homem, abandonado a si mesmo, escolherá o bem – assim o crítico humanista peca ao supor que a eliminação dos padrões oferece ao artista a irreprimível liberdade criativa que é necessária ao maior e melhor desenvolvimento das técnicas e dos gêneros. Numa atmosfera de liberalidade irreprimível e amoral as coisas tendem antes a descer que a subir. A liberdade irrestrita, tão logo venha à tona, fica à mercê, ao fim e ao cabo, da atração da natureza decaída.
Postulou Aristóteles: “A natureza tem horror ao vácuo”. Também a cultura tem horror ao vácuo. No decorrer da história da música ocidental, sempre houve um equilíbrio saudável – ou ao menos razoável – entre a arte culta e a popular4. Quando e por que, todavia, o fiel da balança pendeu para a arte popular? Já sugeri nestas páginas5 que o domínio da arte popular decorreu tanto do abandono, por parte dos compositores modernistas eruditos, dos processos e propósitos da música, quanto do poder irresistível das formas de música popular – o observador honesto por força deve admitir o seu inegável encanto. Com a inversão da hierarquia, a dissolução dos padrões e a traição das academias musicais, o público decidiu por se entregar cada vez mais aos prazeres outrora culpáveis das formas musicais mais rasteiras. Para além disso, a apreciação duma música substanciosa requer um esforço significativo. Poderia eu argumentar que as recompensas – profunda consolação emocional e beleza transcendente, sem mencionar o revigorante esforço intelectual – fazem o trabalho valer a pena, mas alguém contra-argumentaria que a recreação não deve exigir um grande esforço, e que os homens nalgum momento devem afrouxar as gravatas, quando não retirá-las de todo.
No período de que falamos, a exaustão era um problema que se estava disseminando. “A mocidade americana em geral”, escreve Richard Weaver, “enfiada em uniformes, transladada para ambientes novos e mormente estéreis, e imbuída de todos os lados com a missão de matar, padeceu um severíssimo deslocamento. Tudo isso concorreu contra as platitudes benevolentes com as quais a educaram, por isso não é espantoso que ela adote a posição inversa” 6. Ou ainda, como disse com muito mais entusiasmo o historiador Samuel Hynes: “Os sobreviventes ficaram escandalizados, desenganados e amargurados com a experiência da guerra, e perceberam que os verdadeiros inimigos não eram os alemães, mas os velhos homens de casa que lhes haviam mentido. Eles rejeitaram os valores da sociedade que lhes enviara para a guerra, e ao fazê-lo separaram-se da geração anterior e sua herança cultural” 7. A humanidade sofreu um golpe duríssimo, e uma cultura permissiva e “rebelde” nunca pareceu tão atrativa.
Na virada do séc. XX, a música popular americana deu início a um domínio de escala global, baseado nos sucessos dos talentos nacionais de Stephen Foster (1826-1864) e Scott Joplin (1868-1917). Foster “entendeu, como nenhum compositor antes dele, que a verdadeira música popular deve ser assimilada na primeira ou na segunda audição, lembrada com alguma exatidão depois de poucas repetições, e deve ser facilmente executada em casa por pessoas de habilidades rudimentares” 8. As canções de Foster, modelares e reconhecidas de imediato até hoje, tinham um encanto universal, quase preternatural. “Os métodos da musicologia”, segundo o historiador da música Charles Hamm, “não explicam a contento como foi ele capaz de escrever... canções que continuaram populares por mais de um século. Os recursos eram tão simples que se chega a cogitar que quase qualquer pessoa seria capaz de escrever tais canções; ainda assim, ninguém as escreveu senão Foster” 9. Foster não descobriu o veio nostálgico da música popular americana, mas ninguém o explorou com mais eficácia. Para um público mundial cada vez mais exausto, “My Old Kentucky Home” pareceu um lugar mais aconchegante e hospitaleiro que uma sinfonia de Mahler.
O ragtime, e sobretudo a música de Scott Joplin, talvez expresse uma mistura incomum, contudo inegável, entre as tradições musicais européia e africana. Não obstante seja agora um gênero de nicho, o ragtime legitimou duma vez por todas os elementos fundamentais da tradição africana e conseguiu aceitação no repertório de músicas relevantes para piano, ao ser imitado por numerosos compositores europeus, dentre os quais Debussy, Stravinsky, Dvorak, Satie e Darius Milhaud. Por meio do seu estilo característico e do seu gênio interpretativo, Joplin provou-se essencial ao transpor a crítica barreira social entre negros e brancos, e ao franquear aos estilos de influência africana – assinalados por reconhecíveis elementos tradicionais – uma aceitação popular mais ampla: antífonas de “pergunta e resposta”, repetição de curtas frases melódicas, vocalização não-melódica, sincopação, polirritmia e improvisação10.
Dois grupos populacionais que viviam à margem da sociedade conquistaram efetivamente a cultura musical do mundo antes da deflagração da Segunda Guerra Mundial: os judeus, que eram maioria entre os compositores da Tin Pan Alley, e os músicos negros e urbanos que desenvolveram o blues e algumas composições mais ou menos ligadas ao jazz, por primeiro em Nova Orleans e mais tarde em cidades maiores por todo o país.
De início, a Tin Pan Alley se referia a uma região suburbana de Manhattan — próxima à Union Square — que pelos fins do séc. XIX abrigava muitas editoras musicais. Essas editoras empregavam compositores e letristas que eram verdadeiramente prolíficos e talentosos, e que hoje são conhecidos por todo o mundo — George Gershwin, Irving Berlin, Jerome Kern, Oscar Hammerstein, Frank Loesser, Cole Porter, Al Jolson, Johnny Mercer —, bem como um exército de “propagandistas musicais” que divulgavam as novas músicas por apresentações em lugares públicos. Com efeito inventaram uma franquia de música popular, ao criarem fórmulas de fácil assimilação que tinham êxito garantido e baseavam-se em pesquisas de mercado. Algumas dessas canções se venderam na casa dos milhões. Os compositores negros e judeus “que perseguiam o sucesso” formaram uma compreensível aliança social e profissional, e a mútua colaboração não apenas expandiu o blues, o jazz e a música popular, mas também resultou no surgimento de novos gêneros, como a Música de Teatro, o Cancioneiro Americano, as Big Bands, e finalmente o Rock ’n Roll.
Cada um desses subgêneros da música persistiu por tempo suficiente para que se desenvolvesse uma literatura e um campo de estudo próprios, alguns legítimos (o registro objetivo da evolução dos estilos, e a catalogação dos artistas, dos intérpretes e do repertório), e alguns meio vergonhosos (pseudomusicólogos que servem de capacho para artistas e obras populares) 11. Não obstante, a vastidão dessa literatura e desses subgêneros não representa as várias moradas dum excelso reino artístico, mas tão somente os diferentes cômodos duma mesma casa numa vizinhança suspeita, cujos ocupantes de contínuo a redecoram, renovam e expandem. Embora, em certos aspectos, a “estrutura” tenha sido alterada na sua substância, nunca se mudou de endereço.
Aqui começa a moral da história. Apesar de ser tentador, a demonização das formas de música popular ou vulgar tem pouco a oferecer à inspiração dum comportamento nobre. Podemos zombar da arquitetura da pensão cultural da música popular e descompor os pensionistas como instigadores do pecado. Podemos ultrajar o “espírito de fornicação” que anima muitos desses estilos, mas tal ultraje talvez facilmente se converta numa caricatura, que diz respeito tanto ao crítico quanto ao criticado. Para conhecimento, leia-se esta mordaz afirmação da década de 50 sobre os efeitos do jazz: “Após a disseminação do jazz, que com certeza foi obra das Forças do Mal, tornou-se notável um declínio na moral sexual. Enquanto outrora as mulheres se contentavam com uma corte decorosa, hoje em dia muitíssimas delas estão quase sempre inquietas em busca de aventuras eróticas, e transformaram esse furor sexual numa espécie de passatempo” 12. O Demônio, que toca saxofone numa banda de jazz, leva a menina a fazê-lo. O jazz, que em termos técnicos é indefinível — ao mesmo tempo monótono e fascinante —, faz tanto mal para os seus apreciadores em particular quanto qualquer outra forma de música popular: isso só prova que o homem, diante duma recreação cultural que se aparte de conseqüências morais, e abandonado a si mesmo, escolherá o pior e buscará experiências prazerosas ao menor custo possível.
Ainda resta o fato concreto de que, à época da Segunda Guerra Mundial, os homens perderam a vontade de lutar pelos absolutos transcendentais, e de que o progresso contínuo de quase um milênio de cultura superior chegou quase a um ponto final, ao ser entravado, descarrilado e impedido por amigos e por inimigos. O ímpeto cultural perdido, como em tudo, requer mais esforço para recomeçar do que seria necessário para conservar o movimento. Todos os indivíduos que lutam em prol da nobreza devem tomar a difícil decisão de carregar a sua cruz e trabalhar; devem comprometer-se dia após dia com os esforços necessários para transcender a sedutora desolação duma realidade apenas natural sem negar as realidades da natureza humana, que são compartilhadas por almas simplórias e por almas formosas. “A educação”, escreve Alan Bloom, “não consiste em fazer para as crianças uma arenga contra os seus instintos e prazeres, mas proporcionar uma continuidade natural entre o que sentem e o que podem e devem ser” 13. O Demônio é um demolidor, e os artistas do séc. XX devem construir entre escombros para uma plateia de almas desenganadas. O artista popular constrói habitações baratas, sem ter em perspectiva nenhuma outra morada, e o mundo inteiro entra nesse lugar acessível e familiar onde encontra uma posição aconchegante. Sem negar a necessidade de abrigo nem subestimar a sedução do conforto, nunca percamos de vista que a posição está invertida: não escolhamos para moradia lugares culturais potencialmente arriscados, por mais que os reputemos convidativos ou legitimamente prazerosos. Quanto à cultura, sabemos a que lugar pertencemos. A jornada ainda é longa e dolorosa, mas gloriosíssima.