Padre argentino de enorme erudição que viveu de 1899 a 1981.
[Apresentamos a seguir a primeira parte do trabalho do Padre Leonardo Castellani sobre Os quatro Evangelhos Canônicos (de Mateus, Marcos, Lucas e João), que constituem, como lembra o autor, os únicos documentos fidedignos que temos sobre os feitos e ditos de Cristo. Como aqui verá o paciente leitor, eles SÃO fidedignos.]
I. Composição
O conteúdo dos Evangelhos constitui a Catequese Apostólica, i. e., esse conteúdo permaneceu durante algum tempo na memória dos recitadores (os nabis e meturgemanes hebreus) antes de ser fixado por escrito. A memória desses recitadores é um prodígio, e a fidelidade lhes constitui um dever profissional, uma vez que nos chamados meios de estilo oral – onde não vige a escritura e o livro não existe ou é raro – constituem a imprensa viva e os depositários do Tesouro – espiritual e moral – da raça. Cristo foi um deles.
Estes recitatores hebreus (os rabis, os nabis e os meturgemanes) não são um fenômeno especial; existiram em todos os povos na segunda etapa da vida da língua: rapsodos gregos, brâmanes hindus, poetas árabes, guslares russos, ritmadores tuaregues, menestréis da Idade Média... até nossos payadores. Sua memória não é de modo algum um fenômeno inexplicável. É o que afirma Fr. S. Krauss, psicólogo alemão investigador das faculdades mnemônicas dos guslares, por exemplo:
Os guslares são os recitadores nômades – iletrados mas decerto não ignorantes – entre os eslavos meridionais... A opinião popular atribui a esses indivíduos uma memória a primeira vista surpreendente: fala-se de alguns que sabem 30.000, 40.000 ou ainda mais de 100.000 “esquemas rítmicos”. Agora bem, por mais surpreendente que seja, o povo diz a verdade. O fenômeno é explicável: os recitativos dos guslares – parecidos com os recitativos de Homero, dos profetas hebreus, das epístolas de Baruque, de São Pedro e São Paulo, dos delicados paralelismos chineses – são uma justaposição de clichês relativamente limitados. O desenvolvimento de cada clichê é automático, de acordo com leis fixas...
Um bom guslar é o que joga com os clichês como com um maço de cartas de baralho, ordenando-os de diversas formas segundo lhe dê na cabeça. Cada guslar ademais tem seu estilo pessoal. Um desses recitadores, que ajudaram Krauss, chamado Milovan, cuja memória era apenas “ordinária”, podia recitar 40.000 esquemas rítmicos em seqüência. Instrutiva também é a seguinte constatação: em 18 de março de 1885, Fr. S. Krauss mandou recitar na presença de Milovan um recitativo de 458 esquemas rítmicos, que Milovan repetiu palavra por palavra em 4 de outubro do mesmo ano, sete meses e meio depois; nove meses mais tarde, Krauss mandou-o recitar outra vez: as variantes foram insignificantes .
II. Datas.
Essa catequese apostólica e rítmico-mnemotécnica se fixou por escrito entre os anos 7 e 63 depois da morte de Jesus. A data da escrita de cada um desses Evangelhos foi larga e tenazmente investigada e discutida durante os últimos séculos, sob o estímulo da crítica racionalista, que propendia a fixar a data o mais distante possível [da época de Cristo].
Atualmente a data está fixada com bastante acurácia, a saber – segundo a sentença de Cornely –:
Evangelho de Mateus: cerca do ano 50;
Evangelho de Marcos: cerca do ano 55;
Evangelho de Lucas: cerca do ano 60;
Evangelho de João: cerca dos anos 95-100.
Vejamos por exemplo a composição do Segundo Evangelho, segundo o testemunho de Papías – séc. I – e São Clemente de Alexandria – séc. II –:
Marcos, que era o meturgeman de Pedro, escreveu palavra por palavra tudo o que retivera de cor; não obstante, não pôs na ordem em que aconteceram os ditos e feitos de Cristo, porque não ouvira o Senhor nem o havia seguido; só mais tarde ele seguiria Pedro, que ensinava os recitativos do Senhor segundo a necessidade mas sem ordem certa, de sorte que Marcos não cometeu nenhum erro ao escrever a catequese de Pedro conforme a aprendera de memória: sua única preocupação era não omitir nada nem alterar o menor detalhe [dos esquemas rítmicos]...
Quando Pedro predicou em público a Palavra em Roma e recitou a Boa Nova sob a inspiração do Espírito, muitos dos ouvintes suplicaram a Marcos – que já o acompanhava há muito tempo [como meturgeman] e sabia de memória os recitativos – que pusesse por escrito o que ele [por ofício] repetia. Logo, Marcos escreveu o Evangelho e o entregou a quem o pedia. Pedro, sabendo disso, não se opôs à obra de seu intérprete, embora também não a estimulasse.
Por sua vez Lucas fixou a catequese de São Paulo, mas completando-a com acréscimos doutros recitadores – para o quê viajou para a Palestina – e esforçando-se em seguir a cronologia, à qual os primeiros Evangelhos não prestam muita atenção, pois Mateus recitou para convencer os judeus e Pedro para ensinar os romanos, de modo que na catequese dos dois a ordem lógica predomina sobre a ordem cronológica.
Já Mateus e João foram discípulos desde o começo, e portanto só tiveram o trabalho de escrever o que haviam cuidosamente aprendido por ofício e missão, e de repeti-lo sempre, como fonógrafos vivos, em suas respectivas ecclesias.
Assim a Providência usou um instrumento adequado para nos conservar a Palavra de Deus. Cristo sabia escrever mas não escreveu nenhum livro – ditoso era ele, que não tinha editores! A breve e encantadora Carta de Nosso Senhor Jesus Cristo ao Rei de Odessa, Abgaro V, é um apócrifo dos primeiros tempos, que Eusébio traduziu do siríaco para o grego e espalhou que tinha sido encontrada nos arquivos públicos de Edessa. É provável que existisse uma resposta oral de Cristo ao rei Abgaro, contemporâneo seu, cujo conteúdo passou a essa carta apócrifa, conforme os testemunhos antigos e a leitura do Evangelho, no passo acerca dos “gentios que rogavam a Cristo para que fossem vê-los”; à época ele declinara da petição, prometendo enviar-lhes os discípulos, pois “fui enviado apenas para as ovelhas que pertencem à casa de Israel”.
Cícero tinha três escravos taquígrafos que o seguiam a todas as partes tomando nota de tudo quanto dizia; já Cristo lançou os recitativos ao vento, ao menos em aparência; em realidade os depositou em receptáculos vivos, mais fiéis que um taquígrafo. Várias obras escritas de Cícero se perderam; já a Palavra permaneceu.
A pregação do Evangelho foi e segue sendo oral em essência. Os protestantes, que enclausuraram a fé num livro sagrado, são pessoas de estilo escrito e erram por limitação. Ao dar a todo o mundo licença de improvisar a própria religião a partir da leitura dum livro – difícil e intrincadíssimo – de modo que para ser religioso é preciso ser “alfabetizado”, o protestantismo em vez de popularizar a religião – não há nada mais popular que o ensino oral – plebeizou-a: a rebelião de Lutero está no começo do que hoje chamam de “a rebelião das massas”. Lutero foi “o homem mais plebeu do mundo – disse Kirkegor com amargura; ao tirar o papa da cátedra, instalou nela a opinião pública”. Pode parecer exagero, mas existe uma ligação direta – embora invisível – entre o doutor Martinho Lutero, conhecedor do hebraico, do grego e do latim e forrado de textos paulinos, e German Ziclis, por exemplo: mistura de barbárie e bazófia. Os German Ziclis sempre existiram no mundo, mas não totalmente livres, leves e soltos como agora.
Não dissemos isso para que não se leia o Evangelho; ao contrário, aqui se lê muito pouco. Dissemos para deixar claro que a religião de Cristo não foi fundada sobre um livro – como de fato nenhuma outra religião – mas sobre a pregação e a ação dum soberano nabi, que por sorte se fixou por escrito com toda a fidelidade, no entanto sem nunca deixar de ser o que foi. De fato as principais igrejas protestantes retornaram à pregação oral como principal meio de cultivo religioso.
III. Os Apócrifos
Ao lado dos quatro Evangelhos Canônicos, chegaram-nos uma boa quantidade (uns 62 segundo Fabrício e o Pseudo-Gelásio) de evangelhos apócritos – sem contar com os que se perderam – de redação posterior e anônima, e muitas vezes confusa. Apócrifo aqui significa simplesmente que não estão no Cânon dos livros sagrados: a Igreja não os reconheceu como parte da revelação cristã.
Os mais importantes são o Evangelho segundo os Hebreus, o Evangelho segundo Felipe, o Evangelho dos Doze Apóstolos, o Protoevangelho de Tiago, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Nicodemos, o Evangelho do Pseudo-Mateus, o Evangelho Arábico da Infância de Jesus, a História de José o Carpinteiro, os vários Trânsitos de Maria, a Morte de Pilatos, a Vingança do Salvador [?], e a Correspondência [apócrifa] de Cristo com o Rei Abgaro. Também existem vários Atos dos Apóstolos, Epístolas dos Apóstolos e Apocalipses apócrifos. O grande crítico Constantino Tischendorff publicou em 1853 em Leipzig uma abundante coleção grega desses interessantes documentos.
Alguns desses “evangelhos” são obras de heresiarcas, que pretendiam intercalar ou defender erros; o extenso Evangelho de Valentino, por exemplo – sécs. II-III –, não tem nada em comum com os nossos Evangelhos, afora o nome, a forma externa e as personagens (Cristo, os Apóstolos, Maria): não contém relatos mas uma série de discursos que expõem uma heresia gnóstica muitíssimo extravagante, e especulações abstrato-simbólicas, análogas às dos “teósofos” atuais: Wilder, Head, Mme. Blavatzski... Para dar uma idéia dele basta transcrever uns versículos do começo:
Jesus ascende aos céus e depois descende para doutrinar os discípulos.
1. Quando ressuscitou dentre os mortos, Jesus passou onze anos falando com os discípulos.
2. E lhes ensinava sobre os lugares, não somente do primeiro mistério, que está dentro dos véus e do primeiro preceito, que constitui o mistério dos primeiros preceitos e até dos lugares do vinte e quatro, mas também das coisas que estão mais além, no segundo lugar do segundo mistério, que está antes de todos os mistérios.
3. E disse aos discípulos: Vim do primeiro mistério, que é o último mistério, que é o vinte e quatro.
4. Mas os discípulos não o compreendiam, porque ninguém havia penetrado no primeiro mistério, que é o ápice do universo.
5. E pensavam que era o fim dos fins, porque Jesus lhes falava desse mistério que diz respeito ao primeiro preceito, e dos cinco moldes, e da grande luz, e dos cinco assistentes e de todo o tesouro da luz.
6. Jesus não falara aos discípulos de toda a emanação dos próbolos do tesouro da luz, nem tampouco de seus salvadores, segundo sua ordem e modo de existência. Não lhes falara do lugar dos três “amém”, que estão espalhados no espaço.
7. E não lhes dissera de que lugar brotam as cinco árvores, nem os sete “amém”, que são as sete vozes... e os cinco círculos... e os três tríplices poderes... e os vinte e quatro indivisíveis... e os eons, que são também os próbolos do grande invisível... e os arcontes, e os anjos, e os arcanjos, e os decanos, e os satélites e todas as moradas das esferas, etc.
E prossegue assim indefinidamente por uma selva escura de mitologias extravagantes e incoerentes enfileiradas num vago esquema de filosofia neoplatônica, que deixam a impressão de que o egípcio Valentino foi tão-só um delirante atacado de mitomania religiosa. Mas o crítico (?) Edmundo González Blanco considera esse evangelho (?) superior aos evangelhos canônicos, diz que o gnosticismo foi o fundo primitivo da religião (!) e o que chamamos de Igreja – “que só existiu a partir do séc VII” – foi no começo uma confusa aglomeração de seitas gnósticas... O papel aceita tudo, e a imprensa é indiferente às baboseiras.
Nem todos os apócrifos são disparatados ou maus, embora nenhum ostente a majestade, a dignidade e a vívida realidade dos canônicos. Os Santos Padres se valeram de alguns deles, e vários pormenores plausíveis, que a tradição popular cristã conserva, deles provêm, como os nomes de Joaquim e Ana, a Apresentação da Virgem ao Templo, o Trânsito de Maria Santíssima, as legendas sobre seus desposórios com os detalhes novelescos que Rafael imortalizou, a história de Verônica, etc. Quiçá algumas das sentenças de Cristo recolhidas ali são autênticas. Emile Jacquier , depois de examiná-las, considera que existem dezessete espúrias, uma duvidosa e seis históricas.
Os melhores entre os apócrifos são reduções ou antes glosas ingênuas dos canônicos, com a intercalação de pormenores pitorescos, nem sempre dignos e verossímeis. Assim por exemplo o segundo Trânsito de Maria, cuja versão e transcrição se atribui a São Vicente de Beauvais, narra a morte da Santíssima em cinco breves capítulos piedosos e dignos, embora imaginários:
No segundo ano depois da Ascensão, estava um dia a Virgem chorando, e eis que o Anjo de Deus estava diante dela.
E a saudou e disse “Da parte de Deus, que me manda a ti, dou-te uma palma do Paraíso”.
“E a levarás contigo quando, daqui a três dias, entrares no Paraíso”.
E tendo Maria pegado a palma, que resplandecia com grande luz, foi ao Monte das Oliveiras, orou e voltou.
E eis que num domingo, quando João pregava em Éfeso, aconteceu um terremoto.
E uma nuvem levantou João e o conduziu à casa onde a Virgem estava.
Mas ele disse: “Meus companheiros e irmãos ainda não chegaram para fazer as exéquias”.
E eis que subitamente, por mandato de Jesus Cristo, todos os apóstolos foram arrebatados em belas nuvens dos lugares onde pregavam e levados ao lugar onde estava Maria...
E entre eles estava Paulo, que com Barnabé evangelizava os gentios.
E no terceiro dia, na terceira hora, abateu-se sobre todos um grande sono, de modo que só os apóstolos e três virgens ficaram acordados.
E eis que Nosso Senhor veio com grande resplendor e um sem conto de anjos.
E disse Nosso Senhor a Maria: “Vem e entra no tabernáculo da vida eterna”.
E ela se ajoelhou no solo, adorou a Deus e disse: “Bendito seja, Senhor, o nome de tua glória”.
E acabando de falar Nosso Senhor, ela se recostou no leito e entregou o espírito com ação de graças.
E os Apóstolos viram que sua alma era de tal brancura que a língua humana não poderia descrever.
E Nosso Senhor disse aos Apóstolos: “Tomai o corpo, levai-o à direita da cidade, ao Oriente”.
“E ali encontrareis um sepulcro, e a sepultareis, até que eu retorne a vós...”.
Esse poema ingênuo não menciona a Assunção; por sua vez, o Trânsito da Bem-Aventurada Virgem Maria árabe descreve a Assunção em meio a um cenário fantástico, bem como a entrada no Céu, além de alguns milagres subseqüentes, igualmente fantásticos. Trata-se duma espécie de novelinha devota, de não muito bom gosto, apesar de reverente e repleta de textos dos quatro Evangelhos. “O humilde José, filho de Khalil Nunnak, transcreveu esta história”, diz ao final; não sabemos quem foi nem quem fez a história... que é romance.
É possível afirmar que os apócrifos, embora todos se considerem histórias, são a primeira manifestação da novelística em torno de Cristo; exceto os escritos com intenção heretizante, respondem eles à curiosidade dos fiéis em conhecer detalhes que a narração séria e substancial dos autênticos calou. Não é um gênero muito recomendável: “O romance é o gênero híbrido por antonomásia”.
O último apócrifo que conhecemos é o livrinho em três tomos, de Heredia: Memórias dum repórter nos tempos de Cristo, glosa desbotada duma concordância evangélica qualquer, cujo objetivo ou proveito não se consegue vislumbrar por nenhum ângulo; talvez sirva para algo.
Selma Langerlöf explorou os detalhes ou os fragmentos poéticos dos apócrifos em Cristus-legenden, começando pelo milagre dos pardais de barro, que está no Evangelho Árabe da Infância, no cap. XXXVI, e que se transmitiu ao folclore cristão. Nesse evangelho árabe não há mais nada de aproveitável: está repleto de milagres grotescos (como o da “Mula transformada em homem”, no cap. XXI), irreverentes e absurdos. Mas a romancista sueca escolheu suas onze legendas com apurado bom gosto e sentido cristão.
Os principais evangelhos apócrifos saíram em espanhol na Colección de Bolsillo, do comunista Bergua, sob a direção de E. González Blanco, traduzidos – bem mal – da coleção francesa de Michel Peeters, se não nos enganamos. Um deles, o Evangelho de Taciano, não passa duma das primeiras tentativas de organizar uma concordância evangélica, mui tosca, com grandes supressões e lacunas, e uma ordem descuidosíssima, de maneira que não é propriamente um apócrifo mas um resumo e harmonia tosca dos evangelhos autênticos.
O editor e o tradutor lhes entestam de trezentas páginas da mais desordenada, indigesta e disparatada “introdução” que conhecemos: “rudis indigestaque molis – Quam dixere Chaos”. O sedizente “crítico” derrama nela uma erudição indigesta e inútil, vazada numa verborragia implacável e numa absoluta falta de verdadeiro sentido crítico – em suma, de qualquer ciência; e está recheada com as afirmações mais peregrinas e com o furor demolidor do típico anticlerical galego. Não honra muito a ciência espanhola, ao contrário. Se Franco a suprimiu, como me dizem, velou pela honra nacional .
IV. O Cânon
Chama-se cânon o elenco dos livros da Bíblia que a Igreja recebeu e conserva como de revelação divina, ou seja, inspirados. Para conhecer o cânon, basta tão-só abrir qualquer Bíblia católica: 46 livros no Antigo Testamento, e os quatro Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, 21 Epístolas Apostólicas e o Apocalipse, no Novo Testamento. Algumas Bíblias católicas acrescentam três apócrifos muito respeitados pelos Santos Padres: a Oração de Manassés, rei de Judá, e o 3º e o 4º Livro de Esdras, que são um livro histórico, e um apocalipse. Algumas Bíblias protestantes suprimem a Epístola do Apóstolo São Tiago.
Dentre os livros do Novo Testamento existem alguns chamados protocanônicos que são aceitos, desde o início e por todos, como inspirados; e os deuterocanônicos – ou posteriores – dos quais algumas Igrejas ao princípio duvidaram, e se incorporaram ao cânon posteriormente. São estes sete:
- Epístola aos Hebreus;
- Epístola de São Tiago;
- II Epístola de Pedro;
- II e III Epístolas de João;
- Epístola de São Judas Tadeu;
- Apocalipse.
Para comprovar o cânon recorre-se ao critério da unanimidade das primeiras Igrejas e do testemunho dos Santos Padres antiqüíssimos, às citações de textos reconhecidos como inspirados, e aos elencos ou listas de algumas Igrejas que chegaram até nós, embora múltiplas ou fragmentárias, como o famoso Fragmento Muratoriano. O trabalho acerca do cânon – três séculos de pertinaz investigação e discussão – já está encerrado; já não cabem dúvidas acerca do sentimento da Igreja Primitiva em relação aos livros que estão em nossas Bíblias. Lutero repeliu a Epístola de São Tiago, chamando-a “nec divina nec apostolico stylo digna” de forma arbitrária e sem prova nenhuma, pois era flagrante que ela contradizia sua teologia da justificação pela fé e não pelas obras, conforme o Apóstolo diz ali ore rotundo: “A fé sem obras é morta”. Do mesmo modo repeliu como não canônicos o Apocalipse, as Epístolas ad Hebraeos e a de São Judas Tadeu. Já outros livros, como os três sinóticos, os Atos dos Apóstolos e algumas epístolas de Paulo, declarou-os “semicanônicos”, o que – significando “meio-inspirados” – é contraditório.
Quanto aos quatro Evangelhos, não resta a menor dúvida de que a Igreja sempre os considerou livros inspirados, citando-os com tal autoridade; os Primeiros Padres já citavam os quatro, chamados Apostólicos, desde o primeiro século: Clemente Romano cita os quatro nos anos 96-98; o escrito chamado Didaquê (Ensinamento), que é ainda anterior, cita três; e assim por diante até o séc. II com Santo Inácio Antioqueno, São Policarpo, Papías, São Justino, o Pastor de Hermas e outros; e também nos escritos dos hereges daquele tempo: Basilíades, Marcião e o nosso conhecido Valentino, que cita os quatro.
Talvez o documento mais importante para se comprovar o cânon seja o Fragmento Muratoriano, um códice latino do séc. VI encontrado na Biblioteca de Milão pelo erudito Ludovico Muratori, que é a transcrição dum documento eclesiástico mais antigo, cujo autor afirma ter vivido durante o Pontificado de Pio I, ou seja, entre os anos de 140-150. O documento está mutilado no começo e no fim, e escrito em latim tosco, provável obra dum gaulês; ele manifesta a crença das Igrejas ocidentais nos livros do Novo Testamento. Todos os livros do Novo Testamento estão enumerados ali – e os Evangelhos com grande distinção – exceto as Epístolas de São Tiago, a 3ª de João, a 1ª e a 2ª de Pedro, e a Ad Hebraeos, os quais poderiam constar no fragmento final do catálogo, que se perdeu. O documento distingue os livros sacros doutros escritos daquele tempo, mui venerados mas não inspirados, como o Pastor de Hermas; e professa que eles provêm do Espírito Santo: “Embora cada um desses livros evangélicos ensine coisas diversas, não são diferentes para a fé dos crentes, uma vez que um mesmo Espírito principal [autor] as proferiu” (lin. 16-20) .
Existem apenas três pequenos fragmentos dos Evangelhos que se podem chamar deuterocanônicos, porque faltam nalguns códices antigos e alguns críticos os puseram em dúvida:
1) O fim do Evangelho de Marcos (16, 9-20).
2) A narração do “Suor de Sangue” por Lucas (22).
3) O episódio da “Adúltera Perdoada” em João (7, 53- 8, 11).
Sabemos por Santo Agostinho a razão da omissão desta última perícope nalguns códices latinos: a antiga moral romana era tão severa com o adultério que a leitura do perdão generoso de Cristo à adúltera nalguns auditórios produzia um “choquezinho”, e talvez o que se chama de “escândalo farisaico”, motivo por que alguns sacerdotes a eliminavam, a fim de não “chocar as pessoas”... e de dar trabalho aos críticos futuros. Esse costume ainda não se perdeu, pois ainda hoje em dia vemos que alguns padres retiram partes do Evangelho que se lhes afiguram pouco “populares”; e queira Deus se contentem apenas com isso, e não ponham de escanteio todo o Evangelho e passem a pregar “sociologia”.
Não cabe aqui tratar do excelente conjunto de textos e análises com que se comprova o cânon, pois somente a conclusão nos interessa aqui. Quem queira conhecê-los pode abrir qualquer boa Introdução, das quais as melhores que conhecemos são Clodder, H.J., Unsere Evangelien (B.I, Herder, Friburgo); Zahn, Th., Geschichte des neutestamentlichen Kanons (B. i, Herder, Friburgo); E. Jacquier, Le nouveau Testament dans l’Église Chrétienne (t. I, Paris, 1911); Levesque, Nos Quatre Évangiles (Beauchesne, Paris); Rosadini, Introductio in libros Novi Testamenti (t. I, Univ. Gregoriana, Roma, 1931); Souter, A., The text and Canon of the New Testament (Londres, 1913); Wikenhauser, A., Einleitung in das Neue Testament (1952).
V. Os Evangelhos
O fato de que os quatro Evangelhos estejam e sempre tenham estado no cânon da Igreja significa para um católico, de forma direta, a inerrância desses documentos, e de forma indireta, sua integridade e historicidade, quer dizer, não chegaram até nós corrompidos e pertencem realmente aos autores aos quais se atribuíram. Todas essas notas conjuntas se chamam autenticidade dos Evangelhos.
A autenticidade dos Evangelhos a pressupôs tacitamente a Igreja Primitiva – implicitly, como dizem os ingleses, ou seja, sem nenhuma dúvida – e os séculos cristãos a aceitaram em paz; com o protestantismo começa a contenda em torno dela, que hoje em dia enche os livros de “apologética”. A rápida decomposição da teologia da Reforma – que, apesar do conservadorismo bíblico de Lutero e dos primeiros reformadores, levava em si o fermento revolucionário de per si incoercível – engendrou a crítica racionalista, que a si mesma se chamou de “a alta crítica”; no fundo, era anticristã. A autenticidade dos Evangelhos foi atacada por todos os lados, pontos e métodos, e igualmente defendida no plano científico pelos doutores católicos e protestantes crentes. Atualmente ela pertence mais à História: quem queira conhecê-la, pode encontrá-la em qualquer bom tratado de Introdução ou Propedêutica. Todos os pontos capitais, que a Tradição conservava, foram criticamente vingados um a um, às vezes através de investigações e discussões intrincadíssimas, que aqui não interessam; o acúmulo de hipóteses diversíssimas – talvez todas as possíveis – elaboradas como aríetes contra a antiga crença são agora peças de museu ou alimento de semicultos atrasados, como Lisandro de la Torre, ou de anticlericais furibundos, como o supracitado Gonzáles Blanco. Não obstante, esse trabalho de defesa e controvérsia favoreceu em definitivo o conhecimento dos livros santos e até sua hermenêutica. Talvez sem isso, por exemplo, Jousse não teria descoberto a psicologia do gesto...
A nós nos compete dar aqui, à brevidade, o conhecimento direto das conclusões.
1. Evangelho de Mateus
Mateus ou Levi, filho de Alfeu, era um cobrador de impostos a serviço de Roma (publicano ou fiscal) no Lago de Genesaré. Chamado de supetão por Jesus, que estava passando, seguiu-o e lhe aderiu à escola, sendo mais tarde designado por Ele entre os Doze. Depois da Ascensão pregou seu evangelho na Judéia e arredores, o qual reduziu a escrito antes da separação dos Doze, ou seja, uns 7-17 anos depois da morte do Senhor. Quando deixou a Judéia, para onde foi e onde morreu é coisa sobre que não existe certeza histórica total, restando apenas as legendas. A tradição católica considera-o mártir, celebrando-lhe a festa em 21 de setembro.
O Evangelho de Mateus parece que foi escrito em aramaico ou hebraico vulgar, e em seguida traduzido para o grego por um homem competentíssimo: abunda em aramaísmos, embora a dicção grega esteja correta e até elegante. A versão grega se difundiu com rapidez entre a cristandade nascente, e o original aramaico não chegou a nós... se é que existiu, pois é factível a possibilidade de que o próprio Mateus tenha escrito o texto grego – contra o testemunho algo duvidoso de Eusébio (ele se queixava de Papías) que os outros Padres depois repetem – pois o grego vulgar era então a segunda língua dos palestinos, que era um povo bilingüe, como o são os catalães e os irlandeses de hoje. Mais ainda, críticos eminentes agora defendem que Cristo falou em grego. Pode ver-se na pág. 106 do De Profundis de Oscar Wilde a exposição dessa hipótese: o fino e desditado poeta irlandês se regozijava no cárcere de Reading de que ao ler a cada dia – “depois de limpar a cela e lavar as cobertas” – o Evangelho grego, lia as “ipsissima verba” de Cristo. “Para mim é uma delícia pensar que, ao menos no que concerne à conversação, Cármides pudesse escutar ao Cristo, Sócrates discutir com Ele, e Platão compreendê-lo; que Ele de fato pronunciou ‘egóo eimí o poiméen o kalós’ (“Eu sou o Bom Pastor”); que quando pensou nos lírios do campo ‘que não trabalham nem fiam’, expressou-se exatamente assim: ‘katamáthete ta krina tu argoín’, e que seu grito derradeiro, quando exclamou: ‘Tudo está consumado, minha vida está completa, cheguei à perfeição dela’, foi tão-só esta palavra única e pungente que nos dá São João: ‘telélestai’ e nada mais”.
Como quer que seja, certo é que não existiu um Protoevangelho (urevangelium) de Mateus, nem sequer na forma de “loguia Jristos” (“ditos de Cristo”), como pressupôs a ciência racionalista. Ignorantes das condições do meio oral em que surgiram os Evangelhos, acreditaram fosse necessário estabelecer uma hipotética fonte escrita comum e perdida a fim de explicar as numerosas coincidências literais dos primeiros Evangelhos. A ciência atual acha graça dessa hipótese baseada sobre um falso pressuposto, ou melhor, uma ignorantia elenchi. “Mateus não precisou de nenhuma coleção escrita de ‘Ditos’, ainda menos dum Protoevangelho desconhecido, pois seu próprio evangelho aramaico [ou grego] é em realidade o evangelho primogênito”. Antes das descobertas lingüísticas decisivas de D’Udine, De Saussure, De Foucauld, Jousse e sua escola, entre outros, já o grande intelectual protestante Schleiermacher pressentira que a crítica racionalista estava no falso caminho, e ria-se “dos que imaginam que os evangelistas escrevessem num escritório coberto de notas e livros de referências”, como nós; o que equivale a imaginar São Mateus com uma máquina de escrever.
Mateus dirigiu o evangelho a seus compatriotas, e portanto sua finalidade era convencer de que Cristo de fato foi o Messias que Israel esperava; daí ele insistir tanto sobre o cumprimento das profecias, repetindo a fórmula “para que se cumprisse o que disse o Profeta” ou “conforme disse a Escritura”, citando mais copiosamente que os demais o Antigo Testamento (é possível contar em 28 capítulos 265 citações ou alusões ao Antigo Testamento) e interpretando-o nem sempre literalmente.
A questão de se Marcos ou Lucas conheceram o Evangelho de Mateus, ou se Mateus (ou ao menos seu tradutor) conheceu o de Marcos (como opinava Grotius) tão debatida pelos partidários da interdependência – hoje em dia não faz sentido, a não ser como curiosidade. Provavelmente Marcos não conheceu o Evangelho de Mateus, mas Lucas sim; ao passo que João conheceu os três sinóticos.
2. Evangelho de Marcos
Marcos foi judeu de nação, e com seu primo Barnabé acompanhou a pregação de São Paulo, embora com abandonos repentinos e alguns atritos. Não obstante, no primeiro encarceramento de Paulo em Roma, Marcos estava com ele (Col 4, 10). Depois durante muitos anos acompanha Pedro como meturgeman – repetidor intérprete (1 Pe 5, 13). Após a morte dos apóstolos, fundou a Igreja de Alexandria, no Egito, onde governou como bispo até o martírio. A Igreja lhe celebra a festa em 25 de abril.
Marcos escreveu o Evangelho em Roma; as condições e os motivos da escrita vimo-los nos testemunhos de Papías e Clemente Alexandrino, recolhidos por Eusébio. O exame interno deste Evangelho confirma a notícia das testemunhas: ele é vivo e visual, como duma testemunha presencial; a personalidade de Pedro transparece nele; acusam-se ali as faltas e as debilidades do Príncipe dos Apóstolos, enquanto as honras faltam ou ressoam em surdina; observam-se ainda as explicações dos costumes judaicos, as traduções das palavras aramaicas, a latinização das palavras gregas, as ilustrações topográficas da Palestina... em câmbio os lugares e os costumes romanos dão-se por conhecidos; tudo indica que o documento está direcionado aos cristãos provenientes da gentilidade, em especial aos latinos.
No Evangelho de Marcos existe um episódio curioso, que não se sabe para que serve nem está nos outros evangelistas (“ápax legómenon”, como dizem os críticos), que talvez seja uma espécie de “firma” discreta do autor. Quando levavam Cristo preso pelo Horto das Oliveiras, “seguia-o um jovem, coberto apenas com um pano de linho. E prenderam-no. Mas, lançando ele de si o pano de linho, escapou-lhes despido”. Que quer dizer isso? Os intérpretes fizeram várias interpretações ‘místicas”, como por exemplo aquela que diz:
Mas se esse é o caminho
do que não faz, mas consente,
far-me-ei santo somente
aceitando meu destino:
o do mancebo que, mudo
com um lençol coberto
viu a Cristo que ia ser morto
e o tirou e fugiu desnudo.
Hoje Cristo vai para morrer
e testemunhá-lo, pois,
segue minha vida, depois
do desejo de viver.
Mas ninguém sabe o que literalmente significa esse passo e para que se pôs ali. Alguns intérpretes supõem que esse mancebo era Marcos que, à semelhança dos pintores do Renascimento que punham o próprio rosto no quadro – Velásquez se pintou a si como um cavalariço em a Rendição de Breda – se comprazeu em estampar essa relação fugaz com o Cristo. Tal episódio tinha contra si o testemunho de Papías, de que Marcos “não conheceu nem seguiu a Cristo”. Contudo, ambas são conciliáveis: Papías se refere provavelmente ao discipulado, e não a um conhecimento fugaz. A mim me agrada essa hipótese, e não existe outra melhor para explicar esse fragmento; sem embargo, não lhes recomendo o que o poeta D’Annunzio fantasia sobre ela no livro Contemplazione della morte.
3. Evangelho de Lucas
Lucas foi um médico grego, de provável nascimento em Antioquia, na Síria, companheiro fiel e impertérrito do apóstolo Paulo em muitos caminhos por mar e terra, a partir da segunda missão de Troas a Macedônia até o martírio do Apóstolo das Gentes. Acompanhou-o em Roma – talvez na Espanha – e esteve com ele, incansável, durante as duas prisões: na segunda prisão “só ele”, atesta o Apóstolo (2Tm 4, 11): “Só Lucas está comigo”. Acompanhando Paulo esteve ele em Jerusalém nos anos de 42 a 50, onde suplementou a catequese oral de Paulo, pois como meturgeman a sabia de memória; além disso, tinha notícias “recolhidas diligentemente” – como disse ele – sur place e da boca das testemunhas presenciais e dos catequistas ou recitadores: daí seu Evangelho conter muitas novidades (datas e episódios exclusivos, até parábolas) em relação aos dois primeiros. A tradição afirma que conheceu a Mãe de Jesus, e dela recebeu o relato da Anunciação do Anjo e da Infância de Jesus, que só ele nos transmite. Ainda mais, dizem que pintou um retrato da Virgem, que hoje se conserva em Santa Maria sopra Minerva em Roma: por desgraça é um retrato bastante ruim, possivelmente apócrifo, mas dele saíram as diversas descrições do “físico” da Mãe de Deus, que deleitaram os poetas cristãos:
...De estatura de cuerpo fue mediana,
rubio el cabello, de color trigueño
afilada nariz, rostro aguileño
cifrado en él un alma humilde e llana.
los ojos verdes de color oliva.
la ceja negra y arqueada, hermosa,
la vista sana, penetrante y viva,
labios y boca de púrpurea rosa...
disse Rey de Artieda. Ou aquel’outro esplêndido de Lope de Vega:
Poco más que mediana de estatura
como trigo el color, rubios cabellos,
los ojos grandes, y la niña dellos
de verde y rojo com igual dulzura.
Las cejas de color negra y no oscura
aguileña nariz, los labios bellos
tan hermosos que hablaba el cielo en ellos
por ventanales de su rosa pura.
La mano larga para siempre darla
saliendo en los peligros al encuentro
de quien para vivir quiera tomarla...
Esa es María, sin llegar ao centro,
que el alma sólo puede retratarla
pintor que estuvo nueve meses dentro.
A alma de Maria aparece em Lucas somente em algumas frases cheias de mistério e modéstia. Não é possível retratar Maria, a criatura mais modesta e escondida do Universo, fonte selada do Criador. A devoção cristã diz que, se a formosura de Maria ficasse exposta, os homens a teriam adorado como uma deidade – é o que conta a legenda de São Dionísio o Areopagita.
O Evangelho de Lucas é o de melhor composição, o mais literário e cuidado; no entanto, seu estilo é semelhante aos outros, e conserva o traço – um pouco menos visível – dos esquemas rítmicos que caracterizam o estilo oral. O crítico Johann Perk, S.S., no livro Synope der Vier Evangelien, p. 23, escreve sobre ele estas palavras, que mostram conhecimento das descoberta da escola lingüística francesa:
Alguns investigadores consideram que a “memória” dos palestinos daquele tempo era capaz de conservar fielmente os esquemas originais, mesmo ao longo de dezenas de anos. A prova está nas centenárias transmissões orais dos rabinos e as surpreendentes memorizações dos povos primitivos. A transmissão oral possivelmente conservou com fidelidade e plasmou com exatidão os ditos e os feitos do Mestre, dos quais [os recitadores hebreus] queriam ser tão-só e exclusivamente “testemunhos” e não glosistas ou historiadores.
Lucas se serviu dessa transmissão oral, técnica e fidelíssima, auxiliado nessa tarefa pela sua própria função de meturgeman.
O Evangelho de Lucas, bem como o Ato dos Apóstolos, que também escreveu, estão dedicados a “Teófilo”, que alguns acreditam ser uma pessoa insigne, e outros dizem que é um nome simbólico, que representa a multidão dos cristãos.
Depois que muitos disseram
sobre as coisas que se passaram entre nós
dar relato ordenado –
como já nos deram a nós
os que desde o princípio as viveram
e se converteram em Servidores do Verbo –
me pareceu caber a mim também,
inteirando-me [dos fatos] com ordem e cuidado,
oh poderoso Teófilo,
pô-las por escrito e em ordem
para que tenhas fundamento seguro
do Verbo em que foste catequizado.
Assim reza o texto grego do começo do Evangelho de Lucas.
4. Evangelho de João
O quarto Evangelho é o livro mais egrégio que já saiu de mãos de homem.
A Igreja sempre afirmou que seu autor é o mesmo que escreveu o Apocalipse, o apóstolo João, que é chamado neste Evangelho de o “Discípulo Amado”. No começo do Apocalipse está escrito, à laia de título:
Revelação de Jesus Cristo
que lhe deu Deus Poderoso
para manifestar aos servos seus
o que deve acontecer em breve
e por intermédio do Anjo
comunicou a seu servo João,
que testemunhou o Verbo de Deus,
e o testemunho de Jesus Cristo:
coisas que ele mesmo viu.
Ao final do quarto Evangelho (21, 24), está escrito como firma ou autenticação:
Este é o Discípulo
Que dá testemunho disto
e que escreveu tudo isto
e sabemos que é verdade
o testemunho dele...
O penúltimo versículo crêem hoje em dia os críticos foi escrito pelos Presbíteros (ou Anciãos) da Igreja de Éfeso, como uma espécie de autenticação ou recomendação do livro às demais Igrejas.
O atropelo da crítica racionalista, ou “hipercrítica”, a este livro foi o maior de todos. O que já não disseram sobre ele e seu autor! Que o Apocalipse é um apócrifo, que o autor não é o autor do Evangelho, que o autor do Evangelho foram os anciãos de Éfeso, que foi um ancião desconhecido chamado João, que não teve autor e foi um produto “coletivo”, que é um livro teológico e “místico”, não histórico – escrito com o fim de inculcar a idéia “nova” de que o Messias Cristo era Deus; em suma, um livro “místico”, uma invenção, sublime decerto, mas irreal.
A crítica católica teve de pacientemente brigar com todas essas hipóteses, no fundo fantásticas, embora realizada às vezes com grande virtuosidade de erudição de formiga. Quem queira conhecer a briga vai encontrá-la na Introdução de P.M.J. Lagrange, O.P., no douto Comentário ao Evangelho segundo São João ou noutro dos livros técnicos que traz na bibliografia. A erudição aliada ao preconceito é uma arma perigosa; um historiador erudito e preconceituoso pode obrigar a “história” a dizer o que ele quer – isso sabemos de sobra.
Fácil nos seria resumir essa intrincada controvérsia, mas aqui não convém. Um argentino que queira repelir o Evangelho, por uma necessidade de qualquer ordem, basta dizer: “São coisas de padres”, sem empreender a tarefa alemã de aprender latim, grego e hebraico e ler os livros antigos – ademais não existem muitos deles aqui – para neles encontrar os indícios e os vestígios que lhe permitam com alguma decência negar a autenticidade de João “de forma científica”; e afirmar depois, por exemplo, que o quarto Evangelho é obra dum impostor de seita gnóstica, que se disfarçou com o nome do apóstolo, sumulando-o, para enfiar nela sua “doutrina gnóstica” de matuto, como afirmava Loisy, seguindo Heitmueller – e outras fantasias do estilo.
Mas, para os homens de ciência galeses ou germanos, tudo isso já é história antiga. O grande esforço da impiedade para destruir o Evangelho certamente foi um fator real de confusão e obscuridade, contribuindo para a grande apostasia; mas hoje em dia só cai no engodo quem quiser.
Certo é que o quarto Evangelho foi recebido desde o início em todas as Igrejas como da lavra do apóstolo João, endossado com a autoridade apostólica e o testemunho de todos os contemporâneos. Não existe possibilidade de erro ou engano em algo tão capital para os cristãos coevos. A “autenticidade” do Evangelho de João está, pois, in possessione, como dizem os juristas; por isso, são os que se opõem a ela – no séc. XIX! – que tem o dever de provar, contudo eles não provam suas negações de maneira nenhuma. Isto bastaria mas, para rematar a questão, o exame interno do escrito confirma a atribuição ao filho mais novo de Zebedeu; ademais, o testemunho unânime dos Santos Padres do séc. II e até o dos hereges daquele tempo, como os valentinianos Ptolomeu e Heracleão, além de Basilíades e Marcião, constituem uma evidência esmagadora.
Quem começasse a dizer que o livro De Bello Gallico não é de César, seria motivo do riso do mundo inteiro; por seu lado, existe um peso testemunhal muito maior a comprovar que o Evangelho de São João é do apóstolo João. Mas, como disse Pascal, se o teorema de Pitágoras impusesse aos homens alguma obrigação grave ou peso, há muitíssimo tempo já teria sido “refutado”.
João, o Discípulo Amado, galileu, foi filho do pescador Zebedeu e de Salomé, uma das santas mulheres que seguiu a Cristo até a morte – e além. Como Pedro e André, e muitos outros, seguiu primeiro João Batista, que lhe apontou a Cristo, e depois foi eleito como um dos Doze; foi testemunha ocular e ainda ator de todos os grandes episódios messiânicos. Com Pedro e seu irmão Tiago forma o grupo de comando dos apóstolos: presenciaram os três a Transfiguração, a ressurreição da filha de Jairo e a Agonia do Horto. Na Última Ceia reclina a cabeça sobre o ombro do Mestre e por sugestão de Pedro pergunta a Ele quem é o traidor; ao pé da cruz recebe a encomenda de cuidar da Mãe Deípara. Depois de Pentecostes permanece vários anos em Jerusalém e trabalha com Tiago e Pedro na organização e difusão da primeira Igreja. Depois se estabelece em Éfeso como bispo e primeiro Patriarca – como diríamos hoje – da Ásia Menor, cujas sete Igrejas sufragâneas menciona no Apocalipse; ali forma uma escola de doutores da fé, donde sai o ancião Papías, bispo de Hierápolis, Policarpo de Esmirna e talvez o mártir Santo Inácio Antioqueno – três padres apostólicos da maior importância. No ano 14 do império de Domiciano, João é desterrado para a ilha de Patmos e, como se acredita, condenado às minas – uma tremenda condenação naquele tempo, pior que a morte, porque para os condenados o labor das minas se realizava em condições tão atrozes que levava amiúde os desaventurados ao embrutecimento, à demência e ao suicídio. A rebelião das legiões, que matou o imperador Domiciano e alçou em seu lugar o “general” Nerva, o salvou desse inferno; o Senado Romano declarou nulos todos os decretos firmados pelo “tirano deposto”. De volta à Éfeso, João difundiu seu Evangelho, escrito não se sabe em que data, mas provavelmente após os oitenta anos de idade. Morreu no começo do reinado de Trajano, com uns 100 anos de idade; a Igreja lhe comemora a morte em 27 de dezembro.
É verdade que os 879 versículos deste livrinho por sua vez simples e sublime – dividido mais tarde em 21 capítulos – constituem um evangelho espiritual, e não místico segundo o sentido de Loisy e Renan, que para eles significa inventado ou mítico. Sua finalidade é proclamar explicitamente, e com maior clareza do que os sinóticos, que Cristo foi ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, ou seja, o abismo mais insondável que o intelecto humano já enfrentou, mas isso não isenta totalmente de que se trate duma narrativa estritamente histórica – e história de fonte direta, quer dizer, a crônica dum testemunho ocular.
O que era desde o princípio, o que temos ouvido,
[o que temos visto com os nossos olhos;
O que com as nossas mãos tocamos do Verbo da Vida –
Porque a vida se manifestou, e vimos, e testemunhamos,
E anunciamos a vós a vida eterna –
Que estava no Pai, e que se nos manifestou;
O que vimos e ouvimos nós vos anunciamos
Para que tenhais comunhão conosco
E que a nossa comunhão seja com o Pai
E com seu Filho Jesus o Cristo;
Escrevemo-vos estas coisas para que vos alegreis
E vossa alegria seja completa.
exclama o apóstolo na Primeira Epístola, que era provável acompanhasse o Evangelho, repetindo os conceitos do princípio e do final do próprio Evangelho.
De mais a mais João firmou propósito de complementar os três sinóticos, motivo por que seu Evangelho contém mais material novo, e é – como diria o literatismo atual – o mais “original”. Exceto na narrativa da Paixão, João não repete quase nada do que está nos três Evangelhos anteriores. Seu relato tem a vida, a viveza e o colorido dum testemunho ocular, além duma profunda e recatada ternura. Os grandes diálogos dramáticos da vida de Cristo se encontram em João tratados com a fineza dum dramaturgo; os grandes episódios da Promessa da Eucaristia seguida do primeiro cisma, as bodas de Caná e o primeiro milagre, a vida pública do Batista, a cura e o processo do cego de nascença, a ressurreição de Lázaro, a amizade do Cristo com os três irmãos de Betânia, o Sermão de Despedida e a Oração Sacerdotal da Ceia, a personalidade do traidor, o perdão da adúltera, o diálogo com a samaritana e as duas grandes contendas com os letrados – incluindo a autoafirmação de Cristo acerca de sua natureza divina – são como haustos de vento fresco no mundo, cuja excelência narrativa, sem a menor afetação de arte literária, a mão do homem não é capaz de sobrepujar.
João é o evangelista do coração de Cristo: ele o ouviu bater. O interior das pessoas e seu caráter está muito mais aprofundado em João que nos sinóticos, o que pode solucionar muitas perguntas problemáticas. São uma ou três madalenas, por exemplo? Os intérpretes racionalistas, com prurido de originalidade e mania de negar a tradição, inventaram que são quatro mulheres diferentes – ou três; daria no mesmo dizer duas ou cinco se quisessem: a “Adúltera” que Jesus salvou da lapidação, a “Pecadora” que ungiu seus pés na casa de Simão o Leproso e que o Salvador defendeu e louvou, e a “Maria” irmã de Marta e Lázaro que, em casa, sentada a seus pés “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”; além da “Madalena” que presenciou ao lado da Mãe a Crucificação e foi agraciada com a primeira aparição. Cansados de discutir com argumentos livrescos, exegetas resolveram comodamente declará-la uma questão insolúvel.
Mas quem leia com um pouco de intuição psicológica o Evangelho de São João tem a impressão clara de que se trata da mesma mulher: seus gestos são iguais entre si, que é a impressão que a Igreja teve durante anos. Existe um refinado drama velado com discrição por trás desses episódios soltos, e sua linha psicológica é visível. Cristo se deu ao luxo de salvar uma mulher, que é a façanha por antonomásia do cavaleiro; mas não apenas lhe salvou a vida, como São Jorge ou Sir Galaardo, mas a restabeleceu na honra e a devolveu perdoada e honrada a casa, com uma honra nova que só Ele poderia dar. Na cavaleria ocidental os dois feitos essenciais do cavaleiro são combater até a morte pela justiça e salvar uma mulher:
“salvaguardar as mulheres
e não renhir sem motivo”.
diz Calderón – como nas fitas de caubóis, atual reflexo pueril duma grande tradição perdida. Cristo fez os dois, e sendo Ele o mais alto que existe, sua “dama” teve de ser o mais baixo que existe, porque só Deus levanta o mais baixo até a maior altura, que é Ele mesmo.
Cristo exerceu a mais alta cavalaria. Os românticos do século passado e os deliqüescentes do nosso têm uma devoção mórbida pela Madalena, não precisamente pela penitente – que o Tintoretto pintou com toda a gama de seus amarelos na hórrida cova de solitária – mas pela outra, pela mulher perdida, pela traviata ou dama das camélias, de que fizeram um tema literário bastante estúpido. Até o nosso Lugones se sujou com o tema – que às vezes chega ao blasfemo – numa de suas filosofículas. Porém todos esses flibusteiros, ou filo-embusteiros, da Madalena não sabem muito: de cavalaria pouco, e do amor de Cristo absolutamente nada. “Cristo se apaixonou por uma mulher!” – dizem muitos, contentes – “Que humano!”. Sim. Cristo se apaixonou perdidamente pela humanidade perdida, e a viu como simbolizada numa pobre mulher, sobre a qual verteu regiamente todas as riquezas.
Dizemos isso como exemplo, a fim de caracterizar o quarto Evangelho. Concluamos com o resumo breve e preciso de São Jerônimo: “O apóstolo João, a quem Jesus muito amou – filho de Zebedeu, irmão do apóstolo Tiago, que Herodes mandou decapitar depois da morte do Senhor – foi o último de todos a escrever, a pedido dos bispos da Ásia Menor, seu Evangelho; contra Kerinto e outros heresiarcas, em particular contra os ebionitas [heresia de forte caráter judaizante], que asseveravam que Cristo não existira antes de Maria. Por isso se sentiu forçado a provar a origem divina de Jesus de Nazaré” .
(Tradução: Permanência)