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Discurso sobre a educação religiosa

 

Proferido no Colégio Diocesano de São José no Rio de Janeiro em 8 de dezembro de 1905, como paraninfo na colação do grau de bacharel em ciências e letras.
 
Exm. E Revm. Sr. Governador do Arcebispado.
 
Revd. Visitador da Congregação dos Maristas.
 
Revd. Reitor do Colégio Diocesano.
 
Exma. Senhoras.
 
Meus Senhores.
 
Triunfante a revolução e separado da Igreja o Estado; rotos assim os vínculos que através do Brasil Império nos vinham desde as mais remotas origens da nossa nacionalidade; proclamado o indiferentismo religioso no mundo oficial e erguida uma barreira entre a Nação Brasileira e o Deus de nossos pais, — nem por isto se aniquilou a crença dos brasileiros e antes lhes recresceu o dever de acudir às necessidades da religião, entre as quais avulta a da educação dos filhos.
 
 
A dissociação da crença religiosa e da instrução é uma utopia que não resiste à menor análise. O sentimento e as idéias do professor no tocante às causas finais e à constituição do universo inevitavelmente se refletem no ensino que ele tem de ministrar à juventude. O ideal de uma escola em que jamais se esflrore, sequer, um assunto de religião, é uma vã criação da falsa democracia, que pretende guerrear a Deus, proibindo que n’Ele se fale.
 
Já por alguém foram assinaladas as fases de oposição e hostilidade que tem atravessado o cristianismo.
 
Primeiros os potros e os eqüídeos, os pentes de ferro, as rodas dentadas que rasgavam as carnes, os circos de feras e as lúgubres oficinas dos carnífices: — foi a época do terror, época de que luminosos, e agitando palmas triunfantes, saíram os primeiros mártires cristãos.
 
Depois veio a contradita, a impugnação, o cisma sob a forma sofistica dos heresiarcas medievais ou, conglobando todos os erros já vencidos, sob a falaciosa aparência de um protesto de liberdade de interpretação. Foi a quadra dos pretensos reformadores, Lutero continuando João Huss... Mas, vencedora ainda, a Igreja, aproximou-se do seu único chefe, e, em frente das negações protestantes, afirmou a sua unidade indestrutível, assentando, mais tarde, como remate desse movimento sublime, a solene proclamação da inerrabilidade pontifícia.
 
A satânica explosão que os anti-cristãos saúdam como a grande emancipação do espírito humano, — a revolução francesa em 1789, — principalmente resultou da sistemática e implacável desmoralização do princípio da autoridade, propaganda de que se fizeram corifeus os Voltaires e os Rousseaus — pluralizados estes nomes, porque verdadeiramente se deveram chamar Legião, nomen mihi est legio, quia multi sumus, como lá diz o Evangelho (Marc., v. 9). O sarcasmo, pelo feitio mais pungente que imaginar se possa, foi então a grande arma da irreligião. Cessara a função do carrasco e do sofista, e, durante muitos anos, Jesus Cristo e sua doutrina, mais duramente ainda que no átrio de Pilatos, curtiram as irrisões e os apódos dos filosofantes, que preparavam o cataclismo social.
 
Ele veio e pela aversão da autoridade organizou este mundo novo que vemos oscilar ao sabor das revoluções, fazendo e desfazendo governos, e trucidando despiedoso os chefes de estado, quer se aderecem com a coroa, como Humberto da Itália, quer simples depositários de um poder efêmero, como Mac Kinley ou Sadi Carnot. Ela dura ainda, a tremenda procela revolucionária; mas quando, aterrado por tais horrores, em torno de nós procuramos algo estável e permanente, logo se nos impõe esta Igreja de Cristo, fundada sobre a rocha dos príncipes e que, assoberbando as ondas irritadas, bem alto eleva o seu fanal, índice e guia da salvação.
 
Agora, senhores, não é mais a vez da tortura, nem a do sofisma, nem a do sarcasmo — agora é a vez do silêncio. Vencido na tríplice fase da sua campanha contra Deus, o espírito da negação adotou um singular sistema de combate: nega-se a si próprio por melhor negar o Criador. As constituições que ele inspira, não perseguem nem contradizem, nem zombeteiam: mandam simplesmente calar o nome adorável do Criador e fonte de todo o bem. Chamou-se isto — separação da Igreja do Estado. Na falange adversa ao cristianismo formigam lemas que propugnam tal modus vivendi: nas cortes católicas — ai de nós! — também não falta quem praticamente o sufrague, atenta a dureza dos tempos... Mas, Deus, senhores, o eterno regedor dos povos, o indefectível dispartidor dos bens e males que opulentam ou degradam as nações na devida conta leva estas apostasias públicas, estas negações afrontosas, que tão diretas se opõem aos desígnios providenciais de formação de sua Igreja.  
 
Não me compete, senhores, neste lugar e com a brevidade que me impõem as circunstâncias, longamente desenvolver tais idéias, trabalho fácil, aliás, e em que copiosos auxílios me forneceriam os que do assunto já se têm fartamente ocupado; mas lícito me seja encarecer, posto que sumariamente, os crescentes encargos de que aos pais de família, em geral, e em particular aos católicos, incumbe a nova ordem de coisas, na qual, da direção religiosa da juventude, se desinteressam os poderes públicos.
 
Todo homem que constitui família e a quem a divina Bondade concede a benção dos filhos, não se pode manter indiferente à formação do espírito, à educação da prole. Tendo dito educação, tenho dito tudo, porque não falei simplesmente de instrução. Instruir é fácil; no educar é que está a dificuldade. Em uma grande capital, com já é o nosso Rio de Janeiro, abundam professores que, com maior ou menor competência, podem ministrar aos moços variadas noções de matemática, de ciências físicas e naturais, de línguas e literaturas, de geográfica e de história... Mas o que principalmente importa, não é tanto o ensino, como o espírito com que seja ministrado.
 
Se do estudo da natureza física não resultar o sentimento da unidade de composição desse admirável conjunto que, com semelhança notável, os Gregos denominaram Cosmos e os Latinos Mundus; se das estrofes balbuciadas nos laboratórios e nos museus não fizerdes um hino, o hino sublime que os Galenos e os Newtons entoavam no começo e no fecho de suas obras geniais; se das minúcias, talvez demasiadas, da moderna observação, não ascenderdes até aos grandes princípios da filosofia natural, — baldados terão sido os vossos esforços, e na inteligência juvenil mal ficarão úteis vestígios de tais ensinamentos. Imperitamente guiados, os vossos discípulos terão recitado as estâncias sem perceber o poema, e admirado algumas pedras, um fuste ou um capitel, sem compreender a majestosa traça do monumento.
 
Em vão também os obrigareis a decorar datas e nomes históricos, se a exercícios puramente cronológicos e onomásticos se tem de reduzir o seu trabalho. A história não é, como pensam alguns pedagogos, uma transcendente matéria que se deva reservar para o ensino superior. Longe disto, uma filosofia não pedantescamente inacessível, mas profundamente moral, infiltra-se em todas as páginas da história e tão clara se mostra à meditação do sábio quanto ao bom senso da criança.
 
E aí, como em tudo, é preciso que filosófica e religiosamente se revele o professor.
 
Citai um data (já observou alguém) e eis suscitada no espírito do ouvinte a questão da era, isto é, do fato que se tomou como origem para o cômputo dos tempos.
 
— É nascimento do Cristo, dirá o professor... — mas que homem esse, (interrogará o aluno) que homem esse, cujo advento ficou um marco, o marco capital, na história da humanidade? Um conquistador? Um rei de muitos povos? Um descobridor de continentes? — Não; um judeu que morreu no patíbulo... Esta resposta, senhores, o professor tem de explicá-la sob pena de não ser professor. Se a der, denunciando um erro de superstição universal, terá negado ao Cristo; se devidamente explanar a verdade, terá dado uma primeira e inolvidável lição de cristianismo.
 
Assim, por toda a parte, e aonde quer que levemos os olhos, o problema religioso se nos depara, temeroso, inadiável. Em vão nos prescreve o positivismo uma perpétua suspensão de juízo sobre o que mais nos interessa conhecer. Chegado àquela plaga temerosa aonde vêm bater as vagas do infinito, quedava-se Littré, desanimado e triste, porque para sulcar tais ondas lhe faleciam batel e velas... Pois bem, senhores, essa desanimada quietação do filósofo não é, não pode ser a regra geral da humanidade. A travessia do infinito é a máxima questão humana — e argonautas desse mar misterioso são todos os crentes e todos os bons, não desfibrados pelo filosofismo, e que no Evangelho aprenderam a caminhar por sobre o pego, sustentados pela mão do Cristo.
 
Urge, pois, que às portas da escola se opte pelo sistema filosófico que tem de vivificar o ensino.
 
Pais católicos é dever de consciência vosso, e dever inelutável, a educação, não simplesmente a instrução de vossos filhos. Não os entregueis, querendo que como vós sejam cristãos, a essas escolas onde não é lícito falar em Deus.
 
Mas não somente aos pais cristãos se endereçam agora as minhas palavras, senão também aos que o não sejam, e bem assim aos governos que não são nem deixam de ser cristãos.
 
A um pertinaz adversário de toda religião revelada, e que tinha os filhos em conhecido colégio católico, perguntei, certa vez, porque assim procedia, de modo tão dissonante de suas notórias idéias irreligiosas; ao que prestamente me respondeu: — Para mim são indiferentes todas as religiões; mas prefiro que por ora sejam católicos os pequenos, porque isto os mantém quietos e morigerados.
 
Nisto, senhores, vai por igual uma lição aos pais de família e aos chefes de povos. Perpassa por todo o mundo um sopro de rebelião e desordem. Erguem-se primeiro os generais contra os imperadores, depois os subalternos contra os generais, agora já soldados e marujos contra os subalternos. Aspirações indefinidas e indefiníveis, tendências para derruir sem que se cogite no que há de estabelecer, descontentamentos que têm as suas raízes na inveja e que com poderosos galhos bracejam no ambiente insalubre do socialismo, as mais odiosas violências sob a fingida capa de propagandas populares, o cetro do mundo prometido às populaças ininteligentes e viciadas, a dinamite substituindo o discurso e o livro, o pavor e a morte erigidos em meios de convicção — eis os consectários dessa revolução cujos filhos principiam a colher os amargos frutos da triste sementeira.
 
Para aplacá-la, a tormenta que estua no velho mundo, e que já está repercutindo no fronteiro continente, o segredo não está na repressão pela força, mas na doutrina que consola e que salva, a doutrina do Cristo. É preciso cristianizar o mundo; é preciso que a torrente do Evangelho, momentaneamente embargada pelos ímpios, retome o seu curso refrigerante e fertilizador, levando o conforto e a vida dos areais abrasados pela soalheira da revolução. Urge cristianizar o mundo, e, senhores, o meio mais fácil de o conseguirmos é cristianizar a escola.
 
Convicto desta grande verdade foi que, Reverendos Irmãos Maristas, o venerável fundador da vossa Congregação, o padre Champagnat, bem claro traçava os delineamentos da educação cristã, ao lançar as bases do vosso instituto.
 
“Se apenas se tratara (disse ele) de ensinar aos meninos as ciências humanas, os Irmãos Maristas não seriam necessários, porque para essa tarefa bastariam os mestres da escola. Se tão somente pretendêramos prover à instrução religiosa, contentar-nos-iam as funções de meros catequistas, e uma hora por dia certo que fora suficiente para reunir as crianças e fazê-las repetir as verdades cristãs. Porém melhor ainda projetamos fazer: queremos educar a juventude, isto é, instruí-la em seus deveres, ensiná-la a praticá-los, dar-lhe o espírito e sentimentos do cristianismo, hábitos de religião, virtudes cristãs e cívicas. Para isso é preciso que nos façamos professores, que vivamos entre os nossos discípulos e que diuturna seja a sua convivência conosco”.
 
Eis, senhores, os conceitos que partiram no nobre e santo fundador dos Maristas; eis, com admirável concisão, exposto o fim da sua ordem, a sua razão de ser, o papel que providencialmente lhe está marcado na obra da propaganda cristã, e que, mercê de Deus, estão desempenhando em nossa pátria. 
 
Aqui, onde escasseia o clero; onde há dioceses sem recursos para manter seminários; onde à mingua de párocos desmedram muitíssimas freguesias; e onde o zelo apostólico das rareadas fileiras do sacerdócio, apesar de toda a sua dedicação, não logra prover às necessidades espirituais do povo — aqui, muito em boa hora, apelou a sabedoria do Sr. Cardeal Arcebispo para a coadjuvação dos beneméritos Maristas.
 
Obra patriótica e essencialmente brasileira é, pois, a que eles estão a fazer, cooperando para a educação da juventude nacional; porque, senhores, todo o segredo da reconstrução moral deste país está no levantamento do caráter, e tal escopo só atingiremos assentando as virtudes cívicas sobre os largos e sólidos fundamentos da verdade religiosa.
 
Por isto compreendereis também as explosões que de súbito irrompem contra os educadores cristãos, desde que abram as oficinas onde trabalham à mentalidade juvenil. A revolução tolera o padre, o congregado que reza, que pede e disparte esmolas; mas não perdoa ao educador, ao formador de inteligências e corações. Em cada menino que freqüenta uma escola católica, a revolução vê uma força subtraída à sua influência, um colaborador da ordem social, um respeitador do princípio de autoridade, que ela trata de solapar, um adorador do Deus cuja providência e misericórdia ela impiedosa contesta.
 
Daí os ódios, a calunia soez e contra a qual penosa se faz a defesa, a exploração de todos os sentimentos baixos, de todas as perfídias e rancores, de todas as mesquinhezas e atrocidades — campanha de descrédito e difamação, a que complacente se prestam o jornalismo sectário e a propensão popular para os escândalos.
 
Contra esse gênero de perseguições, beneméritos Irmãos Maristas, permiti, não que vos lembre, pois não a tereis esquecido, mas que publicamente vos repita, em resumo, a sublime instrução que sobre a constância vos fez o egrégio fundador do vosso instituto.
 
“Temos de combater e lutar (disse o venerável padre Champagnat) contra nós mesmos, contra as nossas paixões e más inclinações; contra o leão rugidor que em torno de nós sempre vigilante e esfaimado vagueia; contra o mundo, contra suas vaidades, suas máximas e seus escândalos; contra os que gratuitamente se constituem nossos inimigos, pagando com o mal o bem que lhe fizemos; e, assim se pode dizer em certo sentido contra o próprio Deus, fazendo-lhe uma santa violência com fervorosas preces, e tolerando com resignada paciência todos os desgostos, indiferenças e provações com que ao mesmo Deus apraza que sejamos experimentados”.
 
“Ora, só uma inabalável firmeza e uma constância bem enérgica, podem prevalecer em tão violenta e porfiadas lutas. Os inconstantes, os pusilânimes, e os covardes nunca as poderão sustentar; grande é o seu perigo de perdição, e por isto a eles é que se endereça aquela assustadora máxima de Nosso Senhor: — que para o reino do Deus não presta quem mete a mão ao arado e se põe a olhar para trás”.
 
Ao arado a que metestes mãos, meus caros maristas, urge que de contínuo apliqueis os vossos melhores esforços, correspondendo assim às esperanças dos católicos brasileiros, e à confiança do eminentíssimo Arcebispo, cuja púrpura cardinalícia bem simboliza as ardências do paterno afeto que ao Brasil consagra o sumo representante de Cristo e cabeça visível da nossa Igreja.
 
Perseverai, pois, e inscrevereis o nome da vossa Congregação junto ao dos Franciscanos e Jesuítas, nossos heróicos catequistas; dos Beneditinos, a quem tanto entre nós deve a instrução popular; dos Lazaristas, que têm restaurado e elevado o ensino do clero em tantas dioceses nacionais.
 
Quanto a vós, briosos e ótimos bacharéis, umas palavras também vos direi, as últimas que vos endereço como mestre.
 
Longos anos convivemos, e assim pude formar sobre os vossos talentos uma convicção que me autoriza a vos prognosticar lisonjeiros destinos.
 
Essa convivência vai acabar, mas na separação uma idéia me consola, e é que convosco irá uma parte de mim mesmo, alguma coisa das minhas convicções, da minha fé, da minha própria alma, — que vos procurei transmitir.
 
Começa para mim o declínio da vida; já dos propínquos montes me descem as sombras vespertinas da existência; ao passo que ela em vós alvorece, rubra de promessas e cantante de utopias, que Oxalá se façam realidades... Segui, pois, alegres e felizes o vosso caminho, que no momento dos vossos triunfos alguma coisa deles também há de ser nossa, — minha e dos vossos outros educadores.
 
Muitas vezes, em meio da interpretação de uma página de Homero ou Demóstenes, eu me interrompi, preferindo ao desenvolvimento gramatical do texto a lição moral que aí se continha; e eu vos mostrei nas letras dos pagãos o sentimento religioso que vivaz as penetra e que foi o segredo da sua grandeza.
 
Ensejo também não nos faltava, em nossas palestras sobre literatura, para que em vossos ânimos juvenis eu surpreendesse um sadio critério, alegrado muito embora pelos ímpetos inseparáveis da juventude.
 
Dos sentimentos que vos animam, meus caros bacharéis, dá testemunho eloqüente, a divisa que tomastes para exornar o quadro do estilo: — Theòn oú léxo potè prostátan ischon; que um tradutor verteu em latim: — Deo non desinam unquam patrono uti; ou, em vernáculo: — Jamais deixarei de ter a Deus como meu protetor.
 
Ela foi tirada de uma tragédia, a do Rei Édipo, do grande Sófocles, genial agitador de paixões. O vosso lema, meus caros bacharéis, forma parte do soberbo cântico com que o coro, entremeando o elemento lírico no dramático, exora a Divindade em prol da pátria ameaçada e inditosa.
 
Desajudado da Revelação, o espírito helênico todavia lobrigava a idéia de Deus, só com o fraco lume da razão natural, e entusiástico o saudava, deprecando a divina proteção. Grande lição para aqueles a quem o Cristo se revela e que desdenhosos o postergam!
 
Não assim vós, meus caros discípulos e já também colegas; não assim vós que, por uma feliz coincidência, estudastes sob o patrocínio de Maria, comigo a invocáveis antes de todas as nossas lições, e ides receber o vosso primeiro grão no dia em que se enaltece o augusto privilégio cuja definição marca o fastígio do movimento católico no transacto século.
 
Assim protegidos não haverá dificuldades que se vos não aplanem, barreiras que se não abatam, perigos que se não conjurem, inimigos que se não debelem. Nós, os vossos mestres, aqui ficamos para contemplar-vos... Marchai resolutos à conquista do futuro!

 

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