[...] Nesta ocasião, gostaria de examinar [a coalizão de alguns católicos com os comunistas] sob o aspecto mais central e, por assim dizer, do interior da oficina onde destilam os seus venenos. Já disse uma vez que inúmeros clérigos e laicos cristãos estavam sendo empurrados implacavelmente para as garras poderosas dos comunistas, por conta de equivocadas convicções hiperdemocráticas. É preciso insistir nesta idéia.
Tudo é cristão, inclusive o erro. Isso não é um paradoxo. O gênio do cristianismo é tão universal, tão penetrante, tão radical que impregna tudo quanto existe. Desde o nascimento do Cristo, nada há no homem que não seja afetado por um coeficiente religioso. Doravante, qualquer verdade possui um aspecto religioso. O desvio da verdade, o sofisma, a aberração – tudo se matiza duma tonalidade religiosa. Não existe outra possibilidade para a manifestação do erro, senão sob a forma de heresia.
Eis aí um mistério, e dos grandes. Mas sem ele, a história da humanidade, depois do Cristo, é com certeza ininteligível. Sem ele, não há história, conforme a terrível expressão de Shakespeare: “uma história louca, cheia de ruído e tempestade, contada por um idiota”. Se tem sentido a história, inclusive nas desordens e nas quedas, este sentido só pode ser cristão. Cada vez que tentamos chegar ao fundo da história, encostamos a mão na presença irredutível e ubíqua do cristianismo sob a forma ortodoxa ou herética. O Cristo é o eixo único da história.
Particularmente, no plano social, desde o Advento, a desordem e o desmazelo sempre se traduziram sob a forma de heresia. Na Idade Média, não houve investida contra a ordem social que se não constituísse ao mesmo tempo em heresia cristã. É típico o caso dos albigenses, não menos que o do protestantismo no raiar dos tempos modernos. Quanto à Revolução Francesa, ninguém melhor que Michelet percebeu seu caráter herético. Exprimiu-o numa frase lapidar: “A revolução continua o cristianismo, e o contradiz. Ela é, ao mesmo tempo, sua herdeira e adversária”.
A definição da heresia se origina no seio do cristianismo, para combatê-lo. Como escrevia, já faz muito tempo, Maritain, “as idéias revolucionárias são corrupções das idéias cristãs”, e “o fermento divino corrompido é necessariamente um agente de subversão com poderes incalculáveis”.
Os nossos pais eram mui sensíveis aos conflitos, na medida em que ainda viviam na cristandade: eles observavam os atentados contra a ordem social transformarem-se automaticamente em heresia, visto que o cristianismo embebia a sociedade e suas instituições. Não condenavam a desordem apenas como contrária à natureza das coisas, mas enquanto oposta à ortodoxia cristã e à vontade divina.
Atualmente, isso não acontece: o cristianismo sobreviveu, mas a cristandade repousa sobre destroços cada vez mais disjuntos e tênues. Inúmeros cristãos não sentem mais os erros políticos e sociais como heresias cristãs hostis à fé. Vivendo numa sociedade descristianizada, são incapazes de perceber que as violências que se exercem contra a sociedade são heresias inimigas de sua crença. Despojados dos critérios de apreciação à uma só vez sociais e cristãos, estão entregues ao julgamento próprio e à sensibilidade particular. Quando se está aí, uma pessoa pode sustentar, sem a menor preocupação de coerência interior, que é permitido ser cristão e comunista.
Os católicos de quem falei, padres e laicos, estão precisamente neste caso. São, por sua vez, ortodoxos e heréticos. A despeito de seus clamores de indignação, é dever dizê-lo e redizê-lo.
Eles tornam-se hermafroditas, à proporção que os constrangem as convicções democráticas. Como todo sistema político, submete-se a democracia à lei da degenerescência. A monarquia decadente se torna tirania. A aristocracia, em seu declínio, se transforma em oligarquia. A democracia, em que cada cidadão se pronuncia segundo sua competência real, reduz-se a um regime que não tem nome em língua alguma, reinando a ignorância mais profunda do bem comum. À medida que a democracia se espalha, os problemas sociais e políticos tornam-se mais complexos, árduos e difíceis de se resolver. Extrapolando, a democracia universal exigiria uma inteligência universal. Outrora restrita à experiência efetiva e possível das pequenas repúblicas comunais ou regionais onde estavam enraizadas, a democracia distancia-se mais e mais dos fatos concretos, suprindo o desconhecimento com o mito e a fé. Construções arbitrárias, imaginárias e abstratas substituem a apreciação segura e precisa da realidade. Tudo indica que a democracia evolui para essa direção. As almas que aderem sem reticências a tal sistema degenerado se evadem para o irreal, e tornam-se insensíveis às armadilhas que a natureza dos fatos ofendidos arma sob seus pés. São semelhantes aos cegos que se libram apenas na exaltação interior; eles vão adiante sem duvidar, sequer um pouco, que a realidade os contradiz.
Ainda que o comunismo e o marxismo lhes apareçam com as verdadeiras cores, i. é, como heresias cristãs que nenhuma cristandade, tão inexperiente quanto seja, poderia dissimular, não obstante constituem-se eles em atrativos para os cristãos, como a realização integral do generoso sonho democrático que os incha. Eis enfim o sonho encarnado! Não estão preocupados, se se trata duma mentira. São incapazes de enxergar. O irrealismo impede-os de julgar a árvore pelos frutos: somente as flores postiças, artificialmente perfumadas de democracia, lhes cativam a miopia e a ausência de faro.
Em suma, a ilusão democrática embotou-lhes o senso do cristão e do herético, do bem e do mal, do justo e do injusto, do conveniente e do inconveniente, do belo e do feio, que busca o contato assíduo com a realidade que os diferencia.
A falta de discernimento, resultado duma inteligência amputada das benesses da experiência, é grave. Por todo lado, ela nos acossa. Infelizmente, podemos amiúde contemplar o espetáculo ridículo de padres ou religiosos, sem procuração para tanto, que se ocupam do que não conhecem, nem têm experiência. Um fala sobre a vida íntima no casamento. Outro disserta acerca da administração como se fosse um grande industrial. Outro ainda exalta a arte que se vende nos arredores da igreja de São Sulpício, ou a arte moderna, do alto duma sensibilidade estética embotada ou deformada. Outros enfim tecem questionamentos políticos ou econômicos imbuídos de pathos ou retórica.
Maus cozinheiros, diria Platão, que cortam a torto e a direito a ave! Os “cristãos progressistas” levam essa depravação espiritual ao cúmulo. Quando vejo um padre caminhar por uma estrada junto com o camarada Duclós ou bradar numa manifestação comunista, afirmo que é uma estupidez e que o povo mesmo percebe vagamente o gesto como uma estupidez. A Igreja e o que sobrou da cristandade só tem a perder.
Concluindo, o dito de Chesterton acerca do mundo atual, repleto de verdades cristãs tornadas loucas, aplicar-se-iam à perfeição a certos cristãos.
Sábado, 13 de dezembro de 1952, La Libre Belgique