Hugues Keraly
Em 370, a perseguição ariana continua a seviciar em grande escala todos os estados do Império, e os santos continuam a resistir a ela tão soberbamente, que emudecem alguns de seus carrascos. Prova disso é o diálogo referido por Gregório de Nazianzo entre São Basílio, jovem bispo de Cesaréia (uma sucessão difícil) e Modesto, Prefeito Imperial do Oriente. A matéria, em seu perfeito arranjo dramático, dispensa qualquer comentário.
O Prefeito — Como, tu não temes o meu poder?
O Bispo — Que poderia ocorrer-me? Que poderia sofrer?
O Prefeito — Um só dos inumeráveis tormentos que estão em meu poder.
O Bispo — Quais são eles? Deixa-me conhece-los.
O Prefeito — A confiscação, o exílio, as torturas, a morte.
O Bispo — Se tens outras espécies de tormentos, podes ameaçar-me com elas, pois nada existe aí que me atinja.
O Prefeito — Como? Que queres dizer?
O Bispo — É que, na verdade, o confisco não tem valor para um homem que nada possui, a não ser que te refiras àqueles horríveis andrajos que ali estão e a alguns livros: é tudo o que tenho. Quanto ao exílio, desconheço-o, uma vez que não estou preso a lugar algum: aquele em que moro não é meu e eu me considerarei em casa em qualquer lugar para o qual me designem; aliás tenho que toda a terra pertence a Deus e sinto-me estrangeiro em qualquer parte que esteja. Referente aos suplícios, onde os aplicarias? Não tenho corpo capaz de suporta-los, a menos que chames suplício o primeiro golpe que me darás: é a única coisa em que és o soberano. Quanto à morte, ela me será benfeitora, conduzir-me-á mais cedo para Deus para quem vivo, por quem ajo, para quem já estou quase morto e por quem de há muito suspiro.
O Prefeito — Ninguém até hoje me falou desse modo e com tanta audácia.
O Bispo — É que talvez jamais tenhas tratado com um bispo; ele usaria da mesma linguagem, se tivesse que defender a mesma causa. Na maioria das vezes, somos afáveis, prefeito, e mais humildes que ninguém, pois a lei o exige; e não somente com autoridade tão alta, mas até mesmo com uma pessoa qualquer evitamos o menoscabo. Mas, quando Deus é questionado e quando dele se trata, desconsideramos todas as coisas; não vemos senão a Ele. O fogo, o cutelo, as feras, as garras que dilaceram as carnes antes são para nós delícias que terror. Depois disso, injúria, ameaça, faz tudo o que queiras, utiliza-te de teu poder. Que se notifique ao imperador que tu não conseguirás que nos dobremos à impiedade nem pela violência, nem pela persuasão. (1)
(1) Segundo a Histoire de l’Eglise, de Fliche et Martin, tomo 3, página 260.
“Presence d’Arius” — D.M.M. — pág. 108 — Tradução de Afonso dos Santos
Revista Permanência N° 162-163 Maio-Junho de 1982.