“Mesmo se derramássemos todo o Rio Elba em lágrimas, não seria o suficiente para lamentar os desastres da Reforma: é um mal sem solução”. Por mais estranho que pareça, essas palavras não foram ditas por um católico, mas por Filipe Melâncton, amigo de Lutero e um dos principais realizadores da Reforma. O próprio Lutero, pouco antes de morrer, escreveu sobre a mágoa que sentia a respeito do caos e da proliferação das seitas propagadas por seus ensinamentos:
“Devo confessar que minhas doutrinas produziram muitos escândalos. Não posso negá-los, e isso me assusta, especialmente quando minha consciência traz-me a lembrança de que destruí a situação na qual a Igreja se encontrava, calma e tranquila, sob o papado”.
Se até mesmo alguns líderes protestantes chegaram a ter essa percepção sobre a Reforma, não espanta que os católicos a vejam como uma verdadeira catástrofe. O historiador Paul Johnson chamou-a de “uma das maiores tragédias da história, e a tragédia central do cristianismo”. Ela foi uma catástrofe e um castigo para a Cristandade; um desastre levado até as últimas conseqüências, pois foi o apogeu de uma série de castigos sem precedentes, desatrelados no curso dos dois séculos anteriores.
Duzentos anos antes de Lutero pregar suas famosas teses em 1517, o primeiro dos castigos que demoliriam a civilização medieval já havia sido lançado: a grande fome de 1315 a 1322, que causou muitas mortes no norte da Europa, onde algumas áreas tiveram uma taxa de mortalidade de 10%. No mesmo século, houve sete outras grandes fomes no sul da França.
Desastres ainda piores vieram em seguida. Menos de trinta anos depois, a Peste Negra, a maior pandemia que o mundo já viu, tirou a vida de milhões. Iniciou-se a Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra, e o papado enfrentava uma série de adversidades, entre elas o Papado de Avignon, o Grande Cisma do Ocidente e a heresia do conciliarismo (que reivindicava para os concílios uma autoridade maior que a do papa). Como se já não bastasse, um novo grupo muçulmano, os turcos otomanos, invadiu o sudeste da Europa em 1354.
Por que Deus parecia estar punindo a Europa de Santo Tomás de Aquino e São Luís, de São Gregório VII, São Francisco de Assis e tantos outros grandes santos católicos? É claro que historiadores seculares negam que os desastres dos séculos XIV, XV e XVI tenham sido castigos divinos. Para eles, as coisas na história simplesmente acontecem, sem qualquer plano ou desígnio superior. Mudanças climáticas ocorrem periodicamente, guerras simplesmente estouram, epidemias podem se espalhar a qualquer momento. Para eles, o trabalho do historiador consiste apenas em analisar e registrar os acontecimentos e não buscar neles algum significado transcendente. O historiador católico, porém, vê a história como a ação de Deus no mundo em que Ele se encarnou. Para isso, Deus utiliza-se de instrumentos humanos, e nem sempre é fácil notar de que modo e em que lugar opera a Sua mão.
Mas podemos examinar as pistas. Com efeito, desastres e catástrofes aparentam ser respostas de Deus a ações imorais. Por isso, enquanto o historiador secular considera a catastrófica dissolução da civilização medieval como um mero fenômeno interessante, eu me inclino a considerá-la um castigo. Mas um castigo contra o quê, visto que a era precedente parecia tão dedicada às coisas de Deus e à Sua Igreja?
A frieza
São Francisco de Assis já havia notado algo errado em sua época, o começo do século XIII. Apesar da impressão que se tem do século XIII como uma época fervorosamente devota, Francisco a via como uma nova “era do gelo” para a espiritualidade. “A caridade”, dizia ele, “congelou”.
Como é possível, no século em que o Papa Inocêncio III ordenara a internação gratuita dos pobres nos hospitais de todas as grandes cidades, no período em que até mesmo reis e duquesas se dispunham a cuidar dos doentes, em que se fundaram novas ordens para pregar, ensinar, curar e redimir prisioneiros?
É evidente que São Francisco, ao utilizar a palavra “caridade”, não se referia somente aos trabalhos de misericórdia corporal — embora estivesse profundamente empenhado neles — mas pensava antes de tudo naquele terno amor por Deus, ordenado pelo que Nosso Senhor chama de “o primeiro e maior” dos mandamentos. Era o amor a Deus que havia esfriado. (Vale a pena observar que Dante, ao escrever na entrada do século XIV, representou as punições dos recantos mais profundos do inferno não com o tradicional fogo, mas com gelo).
A coleta da Festa dos Estigmas de São Francisco de Assis, em 17 de setembro (Missal Tridentino), se refere a esse crescente esfriamento:
Senhor Jesus Cristo, que no meio da indiferença do século Vos dignastes, para reacender os nossos corações no fogo da Vossa caridade, gravar na carne do bem-aventurado Francisco os estigmas da Vossa paixão, concedei-nos, por seus merecimentos e intercessão, a graça de sempre levar a cruz e produzir frutos dignos de penitência.
Outro sinal desse esfriamento espiritual é o fato de que o Quarto Concílio de Latrão, em 1215, viu-se obrigado a exigir o recebimento da Sagrada Comunhão ao menos uma vez por ano, sob pena de pecado mortal. O fato de que a expressão central da devoção católica — sem mencionar o inefável privilégio — precisasse ser transformada em obrigação em vez de ser naturalmente considerada uma alegria, mostra-nos uma vez mais como o fervor religioso havia diminuído. É claro que Deus não responde ao pecado somente com castigos, ele também envia graças especiais. Aqui, encontramos Deus se revelando de maneira extraordinária a duas almas santas desse mesmo século: Ele deu à bem-aventurada Juliana de Liège a missão de promover a Festa de Corpus Christi, para reviver a devoção ao Santíssimo Sacramento; e a Santa Gertrudes, no final do século, Ele revelou o Seu Sagrado Coração.
A sociedade medieval e o desenvolvimento do comércio
A questão permanece: o que causou essa diminuição do fervor e o crescimento da frieza, mesmo no século que parece ser o mais católico de todos? Alguns culpam as heresias que colocavam em dúvida a verdadeira presença de Cristo na Eucaristia. Todavia, a maioria delas havia fracassado e não trouxe muitos danos, embora tenha sido necessário o uso de grande força militar para reprimir a bizarra seita dos cátaros, que florescia no sul da França e em partes da Áustria e Itália. O ensinamento cátaro de que toda matéria era produzida por um espírito maligno atacava implicitamente o culto ao Corpo de Cristo no Santíssimo Sacramento. No século XIII, contudo, as heresias ainda não tinham a grande influência que viriam a ter mais tarde dentro da Cristandade; ainda não chegara o seu momento. As heresias medievais, portanto, não foram a causa principal do crescimento da frieza, tampouco a corrupção que existia em certas áreas do clero.
Logo, deve haver outro elemento envolvido no enfraquecimento da fé e do amor na Idade Média Plena, e o ambiente no qual São Francisco cresceu nos dá uma pista dele. Seu pai era um próspero comerciante de tecidos e residia numa movimentada cidade-Estado, num tempo em que a atividade comercial crescia por toda a Europa. Por si só, isso não foi algo ruim. Comerciantes e associações de artífices operavam sob princípios cristãos, prestando serviços sociais aos seus membros, regulando a qualidade do trabalho, pagando salários dignos e cobrando preços justos. Gradualmente, porém, aumentava a complexidade dos negócios e o individualismo dos comerciantes; no século XIII, ganhar dinheiro tornou-se uma preocupação muito maior do que nos séculos anteriores.
Um medievalista francês observou que embora o povo do começo da Idade Média pudesse ser ganancioso, ao cobiçar terras, prestígio, poder, entre outras coisas, o que ele vê no período final da Idade Média é diferente. É o crescimento da avareza: o amor pelo dinheiro. Enquanto a cultura dos negócios crescia rumo ao que por vezes se chama protocapitalismo, os corações católicos se mostravam cada vez mais divididos entre Deus e o mundo. Um mercador do século XV escreve no topo do seu livro de contabilidade: “Em nome de Deus e do lucro”. Como observa outro historiador da Idade Média Tardia: “Começou-se a manter dois tipos de condutas: uma voltada para o lucro e a outra voltada para Deus”.
Nosso Senhor afirma claramente: “Não podeis servir a Deus e a Mamom”. Daí a pobreza radical esposada por São Francisco: Deus enviara um santo que dizia aos católicos o que estava errado e o inspirara a lhes ensinar o remédio. Ao que parece, os ensinamentos de São Francisco não foram suficientemente praticados. A ordem franciscana cresceu rapidamente, e as massas ouviam os frades pregarem. Governantes santos como Isabel da Hungria e Luís de França entraram para a Ordem Terceira franciscana. Porém, tudo indica que esse grau de conversão não satisfez os pedidos de Nosso Senhor.
É difícil acreditar que essa crescente preocupação com lucro não teve efeitos sobre a vida espiritual dos habitantes cada vez mais ocupados das cidades do século XIV. O amor pelo dinheiro talvez não impeça que uma alma ame a Deus, mas pode facilmente destruir o ardor espiritual, o gosto pela contemplação, pelas devoções e o zelo pelos trabalhos de caridade. As crônicas nos contam que mesmo depois da Peste Negra, as pessoas não se tornaram menos avarentas, muito pelo contrário. As heresias que brotaram naquele momento, de algum modo, causaram mais danos e fincaram raízes mais fortes nas mentes do que as heresias anteriores; as ideias heterodoxas de John Wycliffe na Inglaterra e Jan Hus na Boêmia duraram bastante nos seus países de origem. Tudo isso, além dos problemas que prejudicaram o papado e neutralizaram sua resistência aos males da época, havia debilitado as almas dos católicos comuns, tornando-os mais vulneráveis aos heresiarcas do século XVI.
Subversão do pensamento
Quanto aos intelectuais, muitos haviam sido influenciados ao longo dos séculos XIV e XV pelas novas ideias de Guilherme de Ockham, cuja filosofia do nominalismo subverteu a grande síntese escolástica entre fé e razão, ao destruir sua fundação filosófica no realismo aristotélico. Ockham defendia que a mente humana é capaz de conhecer coisas individuais, mas não conceitos universais (defendidos pelos realistas), ou seja, não se pode conhecer Deus pela natureza; algo que é verdadeiro pela fé não o deve ser pela razão, e vice-versa. Esses são apenas alguns pontos de um amplo e complexo pensamento, mas eles já indicam uma mudança radical na mentalidade: da confiança dos medievais e clássicos no uso da mente, para o pessimismo teológico e filosófico.
A perda de confiança na possibilidade de que a razão pudesse demonstrar a existência de Deus, e a ideia das “duas verdades” (uma de fé e outra da razão) geraram incerteza teológica e até mesmo futilidade. O nominalismo tornou-se popular entre círculos reformistas; é até possível que tenha sido o motivo de Lutero se voltar inteiramente contra a razão: “A razão é a prostituta, sustentáculo do Diabo”, escreve ele. “O Batismo deve eliminá-la”.
O Renascimento do final do século XV e do século XVI desferiu o derradeiro golpe na estrutura cambaleante da civilização medieval. O individualismo, já alimentado pela nova cultura dos negócios, tornou-se um verdadeiro culto para escritores como Pico della Mirandola, que glorificava o homem de uma maneira nunca antes vista em cultura alguma, incluída aí a dos gregos e romanos. Outros exaltavam o “indivíduo heroico”, enquanto Maquiavel, com o seu infame mote “os fins justificam os meios”, conseguiu ser o mais imoral de todos os que estavam determinados a manter sua posição e poder. As ideias desses homens representavam a antítese do pensamento medieval, que valorizava a coletividade em vez do individualismo, a humildade em vez do orgulho e a moral católica em todas as áreas.
A revolta seguinte
Esses elementos não representam as causas inevitáveis do desastre conhecido como Reforma Protestante, mas contribuíram para favorecer sua emergência. A frieza espiritual, a preocupação excessiva com os afazeres mundanos, o individualismo, a exposição a diversas noções heréticas e a corrupção generalizada do pensamento (o que prejudicou a relação entre fé e razão): todos esses elementos contribuíram para deixar as mentes confusas e as almas indefesas perante o tsunami que estava prestes a atingi-las.
Aqui já podemos notar a diferença entre essa análise e a versão convencional sobre as origens da Reforma. O mito da Reforma é descrito da seguinte maneira: No século XVI, a Igreja Católica havia se tornado mundana e corrupta. O clero era imoral, os mosteiros eram fossas de iniquidade e se praticava a compra e venda de coisas santas. A situação era intolerável por toda parte, todos sentiam que alguma medida precisava ser tomada. Havia uma insatisfação generalizada contra a Igreja Católica, e um grande anseio por uma religião mais simples, fiel aos Evangelhos e que colocasse as pessoas em contato direto com Deus. Por fim, um corajoso padre alemão, Martinho Lutero, revoltado com a venda de indulgências, indignou-se e protestou publicamente. Esse foi o começo de uma grande renovação do cristianismo, inevitável e historicamente necessária.
A maioria dos protestantes, evidentemente, tem aceitado esse enredo, e até mesmo historiadores católicos aceitaram partes dele, talvez intimidados com a difusão universal do mito nos livros didáticos e nas universidades. A verdade, porém, é muito diferente.
Em 1991, a Oxford University Press publicou uma revisão do assunto feita por Euan Cameron intitulada The European Reformation. É um resumo excelente e erudito sobre a Reforma, e inclui uma investigação das pequenas seitas e das práticas religiosas do povo comum. Contribuiu muito para desmantelar os elementos do mito reformista. A respeito da afirmação de que a corrupção no clero inflamou entre o povo um clamor generalizado por reforma, Cameron diz o seguinte:
Antes do ano 1500, padres extravagantes ou libertinos vinham sendo reprimidos em sermões havia pelo menos 150 anos. São Bernardo de Claraval, já no ano 1150, escrevia severamente contra a avareza no clero. A respeito de vícios e ambições políticas, João XII (955-964) ultrapassou facilmente o Papa Alexandre VI. Se os problemas eram antigos, também eram as críticas. Mas, os agitadores “reformistas” do ano 1500 pensavam que sua época era um tempo de declínio catastrófico, precedida por séculos de primordial piedade. É preciso que esse mito seja visto somente como mais um clichê.
Uma abordagem como essa traz novos ares para os estudos sobre a Reforma. Males existiam e sempre existiram. Os católicos comuns não esperavam que o homem — com sua natureza corrompida — fosse perfeito, e não mudariam da indignação com as “maçãs podres” dentro do clero para a ideia de que a própria Igreja devia ser fragmentada. Não há evidências de que a maioria dos católicos sequer quisesse que a Igreja ensinasse algo que já não fizesse antes. Muitos estavam conscientes da necessidade de reformas institucionais, para garantir, por exemplo, que os bispos fizessem seu trabalho adequadamente e que os padres fossem corretamente educados. Com efeito, o Quinto Concílio Geral de Latrão, realizado de 1512 a 1517, incluiu entre os diversos temas a serem discutidos a necessidade de reformas. O seu foco principal, porém, foram as questões políticas urgentes, e o seu trabalho foi dificultado pelas rivalidades entre alguns participantes. Talvez tenha sido uma última chance dada à Igreja para que respondesse com vigor à apatia e ao materialismo dentro do clero; pouco depois, naquele mesmo ano de 1517, era tarde demais, pois Lutero havia entrado em cena.
Ao analisar as origens da Reforma, é preciso lembrar também que grande parte da Europa não cedeu às suas ideias. Onde a Reforma de fato ocorreu, observa Cameron, o seu êxito estava ligado à prática de submeter o dogma ao debate público. Em lugar da verdade revelada por Deus, convidavam-se as pessoas a escolher aquilo em que desejavam acreditar. Nessas áreas, contudo, a religião misturou-se com a política. O historiador Carlton Hayes diz: “O protestantismo foi o aspecto religioso do nacionalismo”. Segundo Cameron: “A Reforma deu a muitos grupos da Europa as primeiras lições sobre o comprometimento político com uma ideologia universal. No século XVI, a religião se tornou política de massa”.
Três “reformistas”: Lutero, Calvino e Henrique VIII
Não discutirei aqui em detalhes as posições teológicas dos fundadores das três novas religiões criadas na Reforma. Além da falta de espaço, seria inútil falar sobre a “posição teológica” de um homem como Henrique VIII. As principais novidades ensinadas pelos heresiarcas se encontram em diversas obras católicas conceituadas. Em todo caso, minha preocupação é menos com as complexidades teológicas do movimento herético do que com a questão de por que ele obteve sucesso. Irei simplesmente apontar algumas características do novo ensinamento protestante que parecem ter agravado o enfraquecido estado espiritual em que grande parte da Cristandade já se encontrava: esfriamento da devoção a Deus, a Nossa Senhora e à Santa Eucaristia, preocupação excessiva com dinheiro e aumento do individualismo. Até mesmo o abuso que levou Lutero a apregoar publicamente suas novas ideias religiosas — que ele já havia desenvolvido — era o tipo que interessava à sua época: a venda de indulgências.
A questão das indulgências
Essa afronta causou escândalo na época, e embora o Papa Leão X (Giovanni di Lorenzo de Médici) a tivesse ordenado, algumas autoridades da Igreja não a permitiam em suas dioceses. Leão — que queria dinheiro para a construção da nova basílica de São Pedro — e um arcebispo alemão endividado com jogos reuniram forças para implantar a venda de indulgências (reduções das punições temporais decorrentes do pecado, inclusive os pecados dos indivíduos que estão no purgatório). O famoso verso citado por Tetzel, “Assim que soa a moeda no fundo do cofre, sai do purgatório a alma que sofre”, talvez seja um pouco exagerado, mas sintetiza o objetivo da campanha: venda por atacado de benefícios espirituais em troca de dinheiro.
Esse tipo de comércio imoral não era algo novo; há um vendedor de indulgências trabalhando de modo semelhante nos Contos de Cantuária, obra de Geoffrey Chaucher, do final do século XIV. O mais interessante é a razão de esse comércio estar ativo naquele momento. Não se pode imaginar a venda de indulgências sendo tão lucrativa sem que houvesse uma economia florescente e uma mentalidade receptiva da parte das classes endinheiradas. É certo que o comerciante, não propenso a adquirir as indulgências mediante orações e boas obras, e sem tempo para rezar por seus parentes falecidos, viu o mercado de indulgências como uma bênção. Dinheiro, tinha-o; tempo livre, não. Mais tarde, quando Lutero dizer-lhe que não existe a necessidade de indulgências e que, portanto, ele poderia guardar seu dinheiro, o comerciante ficará ainda mais feliz.
As ideias de Lutero se adaptam a uma era comercial e individualista
Podemos agora examinar as ideias de Lutero no contexto de sua época. A sua afirmação de que “somente a fé” é necessária para a salvação, por exemplo, casou bem com a época, ao livrar-se da necessidade daquelas penosas boas obras. (Lutero não disse que não se devia fazer boas obras; na verdade, ele disse que se devia fazê-las; mas é natural ao homem concluir que, se algo não é estritamente necessário para a salvação, pode ser deixado de lado). Lutero também disse que “o cumprimento dos deveres temporais é a única maneira de agradar a Deus”. Essa perda na ênfase da contemplação e da vida espiritual provavelmente contribuiu para o fechamento dos mosteiros e conventos na Alemanha e para a concentração em objetivos seculares, entre eles o comércio. Isso soou bem aos ouvidos dos burgueses do Sacro Império Romano-Germânico, e se adaptou bem ao espírito da época. Devemos relembrar que desde a Idade Média reis e autoridades se esforçavam incansavelmente para controlar as terras da Igreja dentro do império. Não é de admirar que seus descendentes tenham se encantado ao ver esses valiosos territórios, que seus ancestrais tanto haviam cobiçado, desprotegidos e sem poder de reação.
Outro ponto que casou bem com a época e que seduziu mentes cada vez mais individualistas foi o princípio de que somente a Bíblia era a regra de fé e que cada indivíduo podia interpretá-la sozinho.
Como observa um autor moderno, “o mandato divino de decidir o que era verdade e o que era heresia passou da Igreja — a quem pertencia — para o indivíduo”.
A teologia de Calvino prepara o terreno para os negócios
O pregador francês João Calvino concordava com Lutero em muitos pontos, mas enfatizou a doutrina que se tornaria seu cartão de visitas: a Predestinação Absoluta. Calvino acreditava que, desde a eternidade, Deus havia determinado algumas almas ao Céu e outras ao Inferno, e nada que um indivíduo fizesse poderia mudar sua sentença eterna. Era horrível ter de conviver com uma ideia como essa, e os primeiros calvinistas freqüentemente se angustiavam com a noção de que talvez estivessem condenados e que não podiam fazer nada a respeito.
A teoria, porém, fora de algum modo abrandada pela ideia de que se o indivíduo fosse um dos “eleitos”, sabê-lo-ia mediante alguns sinais de Deus. Acreditar nos ensinamentos calvinistas seria um desses sinais, assim como se comportar bem; mas o sinal mais seguro, porque mais objetivo, seria o de que os negócios mundanos da pessoa estavam melhorando. Isso se inspira no modo como Deus lidava com os hebreus no Antigo Testamento, recompensando-os com prosperidade material quando eles O agradavam.
Henrique VIII promove o cisma da Inglaterra
Diferentemente de Lutero e Calvino, Henrique VIII não pretendia criar uma nova teologia; ele queria apenas um divórcio, mas o papa não queria concedê-lo.
Quando fez de si mesmo o chefe da Igreja na Inglaterra, rompendo com Roma, ele primeiramente criou um cisma, e não uma nova igreja. Contudo, mesmo antes de morrer, depois de ter passado por mais dois divórcios e ter executado duas esposas, seus colegas de ideologia protestante haviam começado a introduzir mudanças na liturgia católica.
Durante o reinado do sucessor de Henrique, surgiu a Igreja da Inglaterra. Era uma nova seita protestante que costurara remendos católicos com diversas ideias heréticas e uma forte associação à coroa e aos deveres patrióticos. Mais tarde, alguns calvinistas — sempre radicais e militantes — se tornaram muito influentes no país, a ponto de, no século XVII, conseguirem implantar uma revolução e executar o rei legítimo (Carlos I). Essa influência calvinista afetaria a sociedade e a economia tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, onde rebeldes puritanos fundaram as primeiras colônias da Nova Inglaterra em 1620 e 1630. As ideias calvinistas inglesas contribuiriam para moldar a perspectiva americana sobre a vida política, social e econômica.
Os resultados
Conhecemos bem os resultados da Reforma. Criaram-se novas religiões hostis a Roma e, geralmente, submissas às novas monarquias sob as quais haviam emergido. A Cristandade foi fragmentada de modo irreversível, e a Igreja perdeu grande parte da Europa, a qual conseguira unificar a duras penas durante a Alta Idade Média. Os santos da Contrarreforma conseguiram recuperar alguns desses territórios e reformar os abusos na administração eclesiástica, mas grande dano já havia sido causado e grande parte da Civilização Ocidental permaneceria infestada com ideias protestantes. O Padre Frederick Faber, um convertido do anglicanismo, analisou diversos efeitos da mentalidade protestante nos católicos da Inglaterra do século XIX. “É difícil”, observa ele, “viver entre icebergs e não sentir frio”.
Em um de seus livros, ele aponta um dos resultados mais prejudiciais da convivência dos católicos com os descrentes:
As Sagradas Escrituras comparam a vida a uma terra cansada (...) Assim é com a religião. Não podemos viver entre descrentes e, ao mesmo tempo, gozar da brilhante vida espiritual dos que vivem nos tempos e regiões de fé. Os que passam a vida numa espécie de Éden doméstico, que deixariam senão com pesar, e convivem em demasia com os que não são filhos da Igreja, logo são prejudicados por estas relações, desde que vivam em paz com aqueles a quem nunca deveriam cessar de tentar converter. A fé, bem como a santidade, debilita-se e fenece no convívio de tal sociedade, cuja atmosfera não lhes é conveniente. Daí originam-se tantas opiniões estranhas sobre a facilidade da salvação para os hereges, indo até a baixeza de considerar a bondade de qualquer doutrina como medida de verdade. E bondade, entenda-se, não para com Nosso Senhor e a Sua Igreja, mas para com os que não estão ligados a Ele ou a Ela.
Quem, hoje em dia, não tem na família ao menos um descrente, com o qual ninguém quer discutir, para não ter que perturbá-lo com incômodas questões religiosas?
O processo de mudança da civilização católica da Idade Média até a fragmentação do mundo cristão no século XVI pode se resumir da seguinte maneira: a cobiça e a mundanidade primeiro produziram indiferença às coisas de Deus, e o amor por Nosso Senhor esfriou. Quando nem sequer os numerosos santos que Deus enviou no século XIII puderam tocar os corações dos cristãos na medida que Ele desejava, a Europa sofreu os castigos da fome, da peste e da guerra. Conseqüentemente, os homens cresceram piores e não melhores. Até mesmo os papas foram punidos com cismas e heresias. O castigo seguinte, muito pior, foi a difusão de erros filosóficos e teológicos em toda a Cristandade por heresiarcas carismáticos e obstinados, pregadores de falsas doutrinas e ódio à Igreja.
Esse processo continua até hoje. Com efeito, o julgamento privado alcançou sua conclusão lógica no culto do homem moderno: a partir do conceito “todo homem é um papa” durante a Reforma, para a ideia de que “todo homem é seu próprio rei” no período revolucionário seguinte, chegando ao atual “todo homem é seu próprio deus”. É verdade que a Igreja da Contrarreforma, cuja ponta de lança foi o Concílio de Trento, reformaria abusos e conseguiria grandes vitórias. Papas exemplares a lideraram, e ela recebeu a graça de ser auxiliada por vários santos. O número total das legiões de almas que ela não pôde recuperar na Europa talvez tenha sido compensado pela conversão de milhões no Novo Mundo.
Entretanto, muito do que se perdeu nunca mais foi recuperado. A Igreja, no mundo moderno, tem permanecido na defensiva, e todos nós fomos afetados pela mudança do clima intelectual originariamente introduzido pela mentalidade protestante.
Fonte: Dez datas que todo católico deveria conhecer, Castela Editorial, 2013.
Tradução de Gabriel Galeffi Barreiro