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A predestinação de São José e sua eminente santidade

Qui minor est inter vos, hic major est 1.

 

Não é possível escrever um livro sobre a Santíssima Virgem sem falar da predestinação de São José, de sua eminente dignidade e perfeição, do caráter próprio de sua missão excepcional, de suas virtudes e de seu papel atual para a santificação das almas.

 

Sua preeminência sobre todos os outros santos é cada vez mais afirmada na Igreja

A doutrina segundo a qual São José é o maior dos santos depois de Maria tende a se tornar uma doutrina comumente admitida na Igreja. Ela não teme declarar o humilde carpinteiro superior em graça e em beatitude aos patriarcas, a Moisés, aos maiores profetas, a São João Batista, e ainda aos Apóstolos, a São Pedro, a São João, a São Paulo, e com mais forte razão superior em santidade aos maiores mártires e aos maiores doutores da Igreja. O menor, pela profundeza de sua humildade, é, em razão da conexão das virtudes, o maior pela elevação da sua caridade: Qui minor est inter vos, hic major est; quem é o menor entre vós, este é o maior.

Essa doutrina foi ensinada por Gerson2 e por São Bernardino de Sena 3; tornou-se cada vez mais corrente a partir do século XVI e foi admitida por Santa Teresa, pelo dominicano Isidoro de Isolanis, que parece ter escrito o primeiro tratado sobre São José 4, por São Francisco de Sales, por Suárez 5, posteriormente por Santo Afonso de Ligório 6 e, mais recentemente, pelo Cônego Sauvé 7, pelo Cardeal Lépicier 8 e por Monsenhor Sinibaldi 9; toda essa doutrina está muito bem exposta no Dictionnaire de Théologie Catholique, no artigo José (São), por M. A. Michel.

Ademais, essa doutrina recebeu a aprovação do Papa Leão XIII em sua encíclica Quamquam pluries, de 15 de agosto de 1899, escrita para proclamar o patrocínio de São José sobre a Igreja universal. Nela está dito: “Certamente a dignidade de Mãe de Deus é tão elevada que não pode haver uma maior. Mas, não obstante, como São José esteve unido à Bem-aventurada Virgem pelo vínculo matrimonial, não há dúvida que se aproximou, mais que qualquer outra pessoa, dessa dignidade supereminente pela qual a Mãe de Deus supera de tão alta todas as naturezas criadas. A união matrimonial constitui, com efeito, a maior de todas e, em razão de sua própria natureza, é acompanhada da comunicação recíproca dos bens dos esposos. Se, então, Deus deu São José por esposo à Virgem, deu-o certamente não só como companheiro na vida, como testemunha de sua virgindade e guardião de sua honra, mas também fê-lo participar pelo próprio vínculo conjugal da eminente dignidade que ela havia recebido 10.

Ao dizer Leão XIII que São José se aproximou mais que ninguém da dignidade supereminente da Mãe de Deus, pode-se deduzir que ele está, na glória, acima de todos os anjos? Não se pode afirmar com certeza; contentemo-nos em expressar a doutrina cada vez mais admitida na Igreja, dizendo: São José é o mais elevado de todos os santos no Céu, depois de Jesus e Maria; ele está entre os anjos e os arcanjos.

Na oração “A cunctis 11, a Igreja nomeia São José imediatamente após Maria e antes dos Apóstolos. Se não é mencionado no Cânon da Missa, não só tem um prefácio próprio, mas o mês de março lhe é consagrado como o protetor e defensor da Igreja universal.

A ele, num sentido muito real, ainda que oculto, foi especialmente confiada a multidão dos cristãos de todas as gerações que se sucedem. É o que expressam as belas ladainhas aprovadas pela Igreja e que resumem as suas prerrogativas: “São José, ilustre descendente de David, luz dos Patriarcas, Esposo da Mãe de Deus, casto guarda da Virgem, nutrício do Filho de Deus, zeloso defensor de Jesus, chefe da Sagrada Família; José justíssimo, castíssimo, prudentíssimo, fortíssimo, obedientíssimo, fidelíssimo, espelho de paciência, amante da pobreza, modelo dos trabalhadores, honra da vida de família, guardião das virgens, amparo das famílias, consolação dos infelizes, esperança dos enfermos, patrono dos moribundos, terror dos demônios, protetor da santa Igreja”. Ninguém é tão excelso depois de Maria.

 

A razão dessa preeminência

Qual é o princípio dessa doutrina cada vez mais admitida desde há cinco séculos?

O princípio invocado de forma cada vez mais explícita por São Bernardo, São Bernardino de Sena, Isidoro de Isolanis, Suárez e outros autores mais recentes é um princípio tão simples quanto elevado; foi formulado por Santo Tomás a propósito da plenitude de graça em Jesus e da santidade de Maria. Resume-se brevemente da seguinte forma: Uma missão divina excepcional requer uma santidade proporcionada.

Esse princípio explica porque a Santa Alma de Jesus, estando unida pessoalmente ao Verbo, à fonte de todas as graças, recebeu a plenitude absoluta de graça, que devia transbordar sobre nós, segundo as palavras de São João: “De plenitudine ejus omnes accepimus 12.

Essa é também a razão pela qual Maria, chamada a ser Mãe de Deus, recebeu desde o instante de sua concepção uma plenitude inicial de graça que já ultrapassou a graça final de todos os santos reunidos. Estando mais próxima da fonte de toda graça, ela deveria beneficiar-se disso mais que qualquer outra criatura13.

Essa é, pois, a razão pela qual os Apóstolos, mais próximos de Nosso Senhor que os santos que vieram em seguida, conheceram mais perfeitamente os mistérios da fé. Para pregar infalivelmente o Evangelho ao mundo, eles receberam em Pentecostes uma fé eminentíssima, claríssima e inabalável, princípio e base de seu apostolado 14.

Esse mesmo princípio explica também a preeminência de São José sobre todos os outros santos.

Para bem entendê-lo, deve-se notar que as obras de Deus, que provêm diretamente d’Ele, são perfeitas. Não se poderia encontrar nelas desordem ou mesmo imperfeição.

Assim aconteceu na obra divina no dia da criação, desde as mais altas hierarquias angélicas até as criaturas mais ínfimas 15. Assim ainda é com os grandes servidores de Deus que Ele mesmo escolhe, excepcional e imediatamente, sem a intermediação de nenhuma escolha humana, e que são suscitados por Ele para restaurar a obra divina perturbada pelo pecado. No princípio anteriormente enunciado, todas as palavras devem ser ponderadas e meditadas: “Uma missão divina excepcional requer uma santidade proporcionada”.

Não se trata de missão humana, por mais elevada que seja, nem de missão angélica, mas de uma missão propriamente divina, e não de uma missão ordinária, mas tão excepcional, que no caso de São José, é única no mundo em todo o transcurso dos tempos.

Compreende-se melhor ainda a verdade desse princípio, tão simples quanto elevado, quando se considera, por contraste, como são feitas costumeiramente as escolhas humanas. Os homens escolhem freqüentemente, para as mais altas funções de um governo difícil, os incapazes, os medíocres, os imprudentes. Tal atitude leva o país à ruína, se não houver uma salutar reação.

Não se encontra nada semelhante naqueles que são imediatamente escolhidos pelo próprio Deus e preparados por Ele para serem seus ministros excepcionais na obra da Redenção. O Senhor lhes dá uma santidade proporcionada, porque Ele realiza todas as coisas com medida, força e suavidade.

Como a Santa Alma de Jesus recebeu, desde o instante de sua concepção, a plenitude absoluta de graça, a qual não aumentou posteriormente; como Maria, desde o instante de sua concepção imaculada, recebeu uma plenitude inicial de graça que era já superior à graça final de todos os santos e que não cessou de aumentar até sua morte; assim também, e guardadas as proporções, São José recebeu uma plenitude relativa de graça proporcionada à sua missão, uma vez que foi direta e imediatamente escolhido, não pelos homens, nem por nenhuma criatura, mas por Deus mesmo e por Ele somente, para essa missão única no mundo. Não se pode precisar em qual momento ocorreu a santificação de São José, mas tem-se o direito de afirmar que, em virtude de sua missão, foi confirmado na graça desde seu matrimônio com a Santíssima Virgem 16.

 

A qual ordem pertence a missão excepcionalíssima de São José?

É evidente que a missão de São José ultrapassa a ordem da natureza; não só da natureza humana, mas também da natureza angélica. Seria ela unicamente da ordem da graça, como a de São João Batista, que preparou as vias da salvação, como a missão universal dos Apóstolos na Igreja para a santificação das almas ou como a missão especial dos fundadores de ordens religiosas?

Se observarmos atentamente, veremos que a missão de São José ultrapassa a ordem mesma da graça e culmina, por seu termo, com a ordem hipostática constituída pelo próprio mistério da Encarnação. Mas devemos entendê-la bem, evitando qualquer exagero e qualquer diminuição.

A ordem hipostática limita-se à missão única de Maria, a Maternidade Divina, e também, em certo sentido, à missão oculta de São José. Esse ponto de doutrina é afirmado cada vez mais explicitamente por São Bernardo, São Bernardino de Sena, pelo dominicano Isidoro de Isolanis, por Suárez e por vários autores recentes.

São Bernardo disse de São José: “Ele foi o servidor fiel e prudente que o Senhor constituiu como sustentáculo de sua Mãe, o pai nutrício de sua carne e o único cooperador fidelíssimo na Terra do grande desígnio da Encarnação” 17.

São Bernardino de Sena escreveu: “Quando Deus escolhe alguém por graça para uma missão sublime, concede-lhe todos os dons necessários para essa missão. É o que se verificou eminentemente em São José, o pai nutrício de Nosso Senhor Jesus Cristo e esposo de Maria...” 18.

Isidoro de Isolanis coloca igualmente a vocação de São José acima da dos Apóstolos; ele observa que a vocação dos Apóstolos tem por fim pregar o Evangelho, iluminar as almas e reconciliá-las, mas a vocação de São José está mais intimamente relacionada ao Cristo mesmo, uma vez que ele é o esposo da Mãe de Deus, o pai nutrício e o defensor do Salvador19.

Suárez disse também: “Certos ofícios exigem a ordem mesma da graça santificante e, nesse gênero, os Apóstolos tiveram o grau mais elevado; também tiveram necessidade de mais socorros gratuitos que os outros, sobretudo no que concerne aos dons gratuitamente dados e à sabedoria. Mas existem outros ofícios que confinam com a ordem da união hipostática, em si mais perfeita, como se vê claramente da Maternidade Divina na bem-aventurada Virgem Maria, e é a essa ordem de ofícios que pertence o ministério de São José”20.

Há alguns anos, Monsenhor Sinibaldi, Bispo titular de Tiberíades e secretário da Sagrada Congregação dos Estudos, detalhou esse ponto da doutrina. Apontou que o ministério de São José pertence, em certo sentido, por sua finalidade, à ordem hipostática: não quer dizer que São José tenha intrinsecamente cooperado, como instrumento físico do Espírito Santo, no cumprimento do mistério da Encarnação; desse ponto de vista, seu papel é muitíssimo inferior ao de Maria, Mãe de Deus; mas, enfim, foi predestinado a ser, na ordem das causas morais, o guardião e custódio da virgindade e da honra de Maria e, ao mesmo tempo, o pai sustentador e protetor do Verbo feito carne. “Sua missão pertence, por seu fim, à ordem hipostática, não por uma cooperação intrínseca, física e imediata, mas por uma cooperação extrínseca, moral e mediata (por Maria); o que é ainda, no entanto, uma verdadeira cooperação”21.

 

A predestinação de São José foi simultânea ao decreto mesmo da Encarnação

O que acabamos de dizer aparece mais claramente ainda se considerarmos que o decreto eterno da Encarnação não se refere somente à Encarnação em geral, com abstração das circunstâncias de tempo e lugar, mas à Encarnação hic et nunc, aqui e agora, quer dizer, à Encarnação do Filho de Deus que, em virtude da operação do Espírito Santo, teve de ser concebido num determinado instante pela Virgem Maria, unida a um homem da casa de David, chamado José, “Missus est angelus Gabriel a Deo in civitatem Galileae, cui nomen Nazareth, ad virginem desponsatam viro, cui nomen erat Joseph, de domo David22 “Foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão, que se chamava José, da casa de Davi”.

Tudo leva, pois, a pensar que José foi predestinado a ser o pai nutrício do Verbo feito carne antes de ser predestinado para a glória. A razão é que a predestinação de Cristo como homem à filiação divina natural é anterior à de qualquer homem eleito, porque Cristo é o primeiro dos predestinados 23. Ora, a predestinação de Cristo à filiação divina natural não é outra coisa que o decreto mesmo da Encarnação, o qual se refere à Encarnação a realizar-se hic et nunc. Esse decreto implica por si mesmo a predestinação de Maria à Maternidade Divina e a de São José para ser o pai nutrício e protetor do Filho de Deus feito homem.

Assim como a predestinação de Cristo à filiação divina natural é superior à sua predestinação à glória e a precede, como o admitem os tomistas 24, e como a predestinação de Maria à Maternidade Divina precede (in signo priori) sua predestinação à glória, como vimos no início desta obra, assim também a predestinação de José para ser o pai nutrício do Verbo feito carne precede para ele a predestinação à glória e à graça. Em outros termos: José foi predestinado ao mais alto grau de glória depois de Maria, e em seguida, ao mais alto grau de graça e de caridade, porque foi chamado a ser o digno pai nutrício e protetor do Homem Deus.

Assim se vê a sublimidade da sua missão única no mundo, uma vez que sua predestinação primeira é simultânea com o decreto mesmo da Encarnação. Isso é o que se quer dizer correntemente quando se afirma que José foi criado e posto no mundo para ser o pai nutrício do Verbo feito carne, e para que fosse um digno pai, Deus quis para ele um altíssimo grau de glória e de graça.

 

O caráter próprio da missão de São José

Esse ponto é admiravelmente exposto por Bossuet no primeiro panegírico desse grande santo (3º ponto), quando nos diz: “Entre todas as vocações, chamo a atenção para duas que, nas Escrituras, parecem diretamente opostas: a primeira, a dos Apóstolos; a segunda, a de São José. Jesus foi revelado aos Apóstolos para que O anunciassem a todo o universo: foi revelado a José para que O silenciasse e O ocultasse. Os Apóstolos são as luzes para mostrar Jesus Cristo ao mundo. José é um véu para cobri-Lo, e sob esse véu misterioso se nos oculta a virgindade de Maria e a grandeza do Salvador das almas... Quem glorifica os Apóstolos pela honra da pregação, glorifica São José pela humildade do silêncio”. A hora da manifestação do mistério da Encarnação ainda não havia chegado; essa hora teve de ser preparada por trinta anos de vida oculta.

A perfeição consiste em fazer o que Deus quer, cada um segundo sua vocação; mas no silêncio e na obscuridade, a vocação de José supera a dos Apóstolos, porque toca mais proximamente o mistério da Encarnação redentora. José, depois de Maria, esteve mais próximo que ninguém do autor da graça, e no silêncio de Belém, durante a sua estada no Egito e na casinha de Nazaré, recebeu mais graças que nenhum outro santo jamais receberá. 

Sua missão foi dupla.

Em relação à Virgem Maria, preservou sua virgindade contraindo com ela um verdadeiro matrimônio, mas absolutamente santo. O anjo do Senhor lhe disse: “José, filho de Davi, não temas receber em tua casa Maria, tua esposa, porque o que nela foi concebido é (obra) do Espírito Santo 25. Maria é certamente sua esposa; é um verdadeiro matrimônio, como explica Santo Tomás 26, mostrando suas conveniências: nenhuma suspeita devia ocorrer, por menor que fosse, quanto à honra do Filho e a da Mãe; se alguma vez essa honra estivesse em causa, José, o testemunho mais autorizado e menos suspeito, estaria lá para atestar-lhe a integridade e a pureza. Maria, ademais, encontrou em José ajuda e proteção. Ele a amava com um amor mais puro, mais devotado, com um amor teologal, pois a amava em Deus e para Deus. Era a união sem mancha mais respeitosa com a criatura mais perfeita que já existiu, na situação mais humilde, a de um pobre artesão de aldeia. José aproximou-se, então, mais intimamente que qualquer outro santo daquela que é a Mãe de Deus e a Mãe espiritual de todos os homens, do próprio José, e a distribuidora de todas as graças. A beleza de todo o universo não é nada comparada à beleza sublime da união dessas duas almas; união criada pelo Altíssimo, que encantava os anjos e alegrava o próprio Senhor.

Em relação ao Verbo feito carne, José velou por Ele, protegeu-O e contribuiu para Sua educação humana. Chamam-no de pai nutrício, ou melhor, de pai adotivo de Nosso Senhor, mas esses nomes não podem expressar plenamente essa relação misteriosa e plena de graça. É acidentalmente que um homem se torna pai adotivo ou pai nutrício de uma criança, enquanto que não foi acidentalmente que José se tornou pai nutrício do Verbo feito carne; ele foi criado e veio ao mundo para isso; esse foi o objeto primeiro de sua predestinação e a razão de todas as graças que recebeu. Bossuet exprime-o admiravelmente 27: “Quando a natureza não dá um coração paternal, onde ir buscá-lo? Numa palavra, São José, não sendo pai, como teria um coração de pai para Jesus? É aí que devemos entender que o poder divino interveio nessa obra. É por um efeito desse poder que José teve um coração de pai, e, se a natureza não proporcionou isso a ele, Deus lhe fez um com sua própria mão. Porque d’Ele está escrito que muda as inclinações para onde Lhe apraz... Ele dá um coração de carne a alguns quando os abranda pela caridade... Não dá a todos os fiéis, não um coração de escravo, mas de criança, quando lhes envia o Espírito de seu Filho? Os Apóstolos tremiam diante do menor perigo, mas Deus lhes fez um coração novo e sua coragem tornou-se invencível... Foi essa mesma mão que fez um coração de pai em José e um coração de filho em Jesus. Por isso Jesus obedecia e José n’Ele mandava sem temor. E de onde lhe vem essa ousadia de mandar em seu Criador? É que o verdadeiro Pai de Jesus Cristo, esse Deus que o engendra desde toda a eternidade, tendo escolhido o divino José para servir de pai no tempo ao Seu Filho único, fez de algum modo correr em seu seio um raio ou uma centelha desse amor infinito que Ele tem por Seu Filho, e mudou-lhe o coração, e deu-lhe um amor de pai; tanto que o justo José sente em si mesmo um coração paternal, formado de uma vez pela mão de Deus; sente também que Deus lhe ordenou usar da autoridade paternal e ousa efetivamente comandar Aquele a quem reconhece por seu Mestre”. Isso equivale a dizer que José foi predestinado primeiro para “servir de pai ao Salvador; pai que não podia ter na Terra”, e, em segundo lugar, predestinado a todos os dons que lhe foram concedidos para que fosse digno protetor do Verbo feito carne 28.

Após isso, é necessário dizer com qual fidelidade José guardou o tríplice depósito que lhe tinha sido confiado: a virgindade de Maria, a pessoa de Jesus Cristo e o segredo do Pai Eterno o da Encarnação de Seu Filho, segredo guardado até que chegou a hora da manifestação desse mistério 29.

Sua Santidade o Papa Pio XI, num discurso pronunciado na sala consistorial no dia da festa de São José, em 19 de março de 1928, dizia, depois de ter falado da missão de João Batista e da de São Pedro: “Entre essas duas missões, aparece a de São José, missão recolhida, calada, quase despercebida, desconhecida, que não devia iluminar-se senão alguns séculos mais tarde; um silêncio ao qual devia suceder, sem dúvida, mas muito tempo depois, um retumbante canto de glória. E de fato, ali onde é mais profundo o mistério, mais espessa a noite que o encobre; quanto maior o silêncio, é justamente ali que está a mais elevada missão, o mais brilhante cortejo das virtudes exigidas e dos méritos chamados, por uma feliz necessidade, a fazer-lhes eco. Missão única e altíssima essa de custodiar o Filho de Deus, o Rei do mundo, a missão de guardar a virgindade e a santidade de Maria. Missão única a de poder participar do grande mistério escondido aos olhos dos séculos e de cooperar assim na Encarnação e na Redenção!” Equivale a dizer que é em vista dessa missão única que a Providência concedeu a José todas as graças que ele recebeu; em outros termos: José foi predestinado primeiramente a servir de pai ao Salvador e, posteriormente, à glória e à graça que convinham a uma tão excepcional vocação.

 

Virtudes e dons de São José

Brilham nele, sobretudo, as virtudes da vida oculta, em grau proporcionado ao da graça santificante: a virgindade, a humildade, a pobreza, a paciência, a prudência, a fidelidade que não pode ser quebrantada por nenhum perigo a simplicidade, a fé esclarecida pelos dons do Espírito Santo, a confiança em Deus e a mais perfeita caridade. Guardou o depósito que lhe foi confiado com uma fidelidade proporcionada ao preço desse tesouro inestimável. Cumpriu o preceito: Depositum custodi, guarda o que te foi confiado.

Sobre essas virtudes da vida oculta, Bossuet faz estas considerações gerais 30: “É um vício comum nos homens entregar-se inteiramente às coisas exteriores e desprezar o interior; trabalhar para as aparências e adornos e menosprezar o efetivo e o sólido; preocupar-se com fazer parecer e não com o que deve realmente ser. Por isso são estimadas as virtudes que envolvem negócios e ocupações e exigem o trato com a sociedade; ao contrário, as virtudes ocultas e interiores, que não levam em conta o público, onde tudo se passa entre Deus e a alma, não só não são praticadas, mas não são sequer compreendidas. E, não obstante, nesse segredo reside todo o mistério da virtude verdadeira... É preciso formar um homem em seu verdadeiro sentido antes de pensar que lugar ocupará entre os outros; e se não se trabalhar sobre essa base, todas as outras virtudes, por mais brilhantes que possam ser, não serão mais que virtudes de vã ostentação... elas não formam o homem segundo o coração de Deus. Ao contrário, José, homem simples, buscou a Deus; José, homem desprendido, encontrou a Deus; José, homem reservado, desfrutou de Deus”.

A humildade de José consolidou-se ao considerar a gratuidade de sua vocação excepcional. Ele deve ter dito a si mesmo muitas vezes: por que o Altíssimo me deu Seu Filho Unigênito para custodiá-Lo, a mim, José, antes que a este ou àquele outro homem da Judéia, da Galiléia, ou de outra região e de outro século? Foi unicamente o beneplácito de Deus, beneplácito que é por si mesmo a razão e o motivo pelo qual José foi livremente preferido, escolhido e predestinado desde toda a eternidade, antes deste ou daquele outro homem, a quem o Senhor poderia ter concedido os mesmos dons e a mesma fidelidade para prepará-lo para essa excepcional missão. Vemos nessa predestinação um reflexo fiel da gratuidade da predestinação de Cristo e de Maria.

O conhecimento do valor dessa graça e de sua gratuidade absoluta, longe de prejudicar a humildade de José, confirmou-a. Ele pensava em seu coração: “O que tens que não recebeste?.

José aparece como o mais humilde de todos os santos depois de Maria; mais humilde que qualquer um dos anjos; e se é o mais humilde, é por isso mesmo o maior de todos, porque todas as virtudes estando conexas, a profundeza da humildade é proporcionada à elevação da sua caridade, como a raiz da árvore é tanto mais profunda quanto mais alta ela é: Aquele dentre vós todos que é o menor, disse Jesus, este será o maior 31.

Como nota ainda Bossuet: “Possuindo o maior dos tesouros por uma graça extraordinária do Pai Eterno, José, longe de vangloriar-se desses dons ou de revelar as suas vantagens, oculta-se o quanto pode dos olhos dos mortais, desfrutando pacificamente com Deus do mistério que lhe é revelado e das riquezas infinitas que o Altíssimo colocou a seu encargo” 32. “José tem em sua casa motivos para atrair todos os olhares da Terra, e o mundo não o conhece; possui um Deus Homem, e não diz nenhuma palavra; é testemunho de um mistério tão extraordinário, e o aprecia em segredo, sem o divulgar” 33.

Sua fé é inquebrantável, apesar da obscuridade do mistério inesperado. A palavra de Deus transmitida pelo anjo esclarece-lhe a concepção virginal do Salvador: José poderia ter hesitado em acreditar em algo tão extraordinário, mas acreditou firmemente com a simplicidade de seu coração. Por sua simplicidade e humildade, ele ascende às alturas de Deus.

A obscuridade não tarda em reaparecer: José era pobre antes de ter recebido o segredo do Altíssimo, mas tornou-se ainda mais pobre observa Bossuet   quando Jesus veio ao mundo, porque Ele veio com Sua abnegação e desprendimento de tudo para unir-Se a Deus. Não há lugar para o Salvador no último dos albergues de Belém. José deve ter sofrido ao ver que não tinha nada para oferecer a Maria e a seu Filho.

Sua confiança em Deus manifestou-se nas provações, pois a perseguição começou logo após o nascimento de Jesus. Herodes pretendia matá-Lo. O chefe da Sagrada Família devia esconder Nosso Senhor, partir para um país distante, onde ninguém o conhecia e onde não sabia como poderia ganhar a vida. Partiu, colocando toda a sua confiança na Providência.

Seu amor a Deus e às almas não cessa de crescer na vida oculta de Nazaré, pela influência constante do Verbo feito carne, o foco de graças sempre novas e sempre mais elevadas para as almas dóceis, que colocam toda a sua confiança em Deus e não põem nenhum obstáculo às graças que Ele lhes quer dar. Dissemos antes, a propósito do progresso espiritual em Maria, que a ascensão dessas almas é uniformemente acelerada, quer dizer, que se dirigem tanto mais rapidamente para Deus quanto mais se aproximam d’Ele e Deus as atrai mais a Si. Essa lei da gravitação espiritual das almas realizou-se exatamente em José; a caridade não parou de aumentar nele, sempre mais prontamente até sua morte; o progresso de seus últimos anos foi mais acelerado que o dos primeiros anos, porque encontrando-se mais perto de Deus, era mais fortemente atraído por Ele.

Com as virtudes teologais, cresceram também incessantemente nele os sete dons do Espírito Santo, que são conexos com a caridade. Os dons de inteligência e de sabedoria tornavam sua fé viva cada vez mais penetrante e deleitável. Com fórmulas extremamente simples, mas muito elevadas, sua contemplação dirigia-se à infinita bondade do Altíssimo. Essa foi, em sua simplicidade, a contemplação sobrenatural mais sublime depois da de Maria.

Essa contemplação amorosa lhe era muito doce, mas exigia a mais perfeita abnegação e o mais doloroso dos sacrifícios, quando recordava as palavras do velho Simeão: “Este menino será um sinal de contradição”, e as dirigidas a Maria: “Uma espada de dor transpassará a tua alma”. A aceitação do mistério da Redenção por meio do sofrimento apareceu para José como a consumação dolorosa do mistério da Encarnação, e ele necessitava de toda a generosidade do seu amor para oferecer a Deus, em sacrifício supremo, o Menino Jesus e sua Santíssima Mãe, a quem amava infinitamente mais que sua própria vida.

A morte de São José foi uma morte privilegiada; assim como a da Santíssima Virgem, foi disse São Francisco de Sales uma morte de amor 34. O santo admite também, com Suárez, que José estava entre os santos que, segundo São Mateus35, ressuscitaram após a Ressurreição de Nosso Senhor e manifestaram-se na cidade de Jerusalém; ele argumenta que essas ressurreições foram definitivas e que José entrou no Céu em corpo e alma. Santo Tomás é muito mais reservado sobre esse ponto: depois de ter admitido que as ressurreições que se seguiram à de Jesus foram definitivas 36, mais tarde, examinando as razões contrárias aduzidas por Santo Agostinho, concluiu que estas são muito mais sólidas 37.

 

O papel atual de São José para santificação das almas

Quanto mais humilde e oculta foi a vida do simples carpinteiro aqui na Terra, tanto mais está glorificado no Céu. Aquele a quem o Verbo feito carne esteve “submetido” aqui na Terra conserva no Céu um poder de intercessão incomparável.

O Papa Leão XIII, na encíclica Quamquam pluries, encontrou na missão de São José em relação à Sagrada Família “as razões pelas quais ele é o patrono e protetor da Igreja Universal... Do mesmo modo que Maria, a Mãe do Salvador, é Mãe espiritual de todos os cristãos... assim também José considera, como confiada a si, a multidão dos cristãos... Ele é o defensor da Santa Igreja, que é verdadeiramente a casa do Senhor e o reino de Deus na Terra”.

O que surpreende nesse papel atual de José até o fim dos tempos é que ele une admiravelmente as prerrogativas aparentemente mais opostas.

Sua influência é universal sobre toda a Igreja a qual protege e, não obstante, a exemplo da Providência, estende-se aos menores detalhes; “modelo dos trabalhadores”, está interessado em cada um dos que a ele acodem. É o mais universal dos santos por sua influência e, ao mesmo tempo, faz com que o pobre encontre o par de sapatos de que necessita.

Sua ação é evidente, sobretudo, na ordem espiritual, mas estende-se também às coisas temporais; é “o amparo das famílias, das comunidades, o consolo dos miseráveis, a esperança dos doentes”.

Vela pelos cristãos de todas as condições, de todos os países, pelos pais de família, esposos, bem como pelas virgens consagradas; pelos ricos, para inspirar-lhes uma caritativa distribuição de seus bens, bem como pelos pobres, para socorrê-los.

Está atento aos grandes pecadores e às almas mais avançadas. É o padroeiro da boa morte e das causas desesperadas; é terrível ao demônio que parece triunfar, e é também diz Santa Teresa o guia das almas interiores nas vias da oração.

Há em sua influência um reflexo maravilhoso da “Divina Sabedoria que se estende desde uma extremidade à outra do mundo, e governa todas as coisas com fortaleza e as dispõe com suavidade 38.

O esplendor de Deus esteve e permanece eternamente em São José; a graça não cessa de frutificar nele e quer fazer partícipes dela todos os que aspiram verdadeiramente “à vida oculta com Jesus Cristo em Deus 39.

  1. 1.Aquele que entre vós todos é o menor (pela sua humildade), esse é o maior (no reino dos ceús)”. Lc 9, 48.
  2. 2. Sermo in Nativ. V. Mariae, IV consideratio.
  3. 3. Sermo I de S. Joseph, c. III. Opera, Lion, 1650, t. IV, p. 254.
  4. 4. Summa de donis S. Joseph, ann. 1522, nova edição do Pe. Berthier, Roma, 1897.
  5. 5. Summa S. Tomás, IIIª, q. 29, disp. 8, sect. 1.
  6. 6. Sermone di S. Giuseppe. Discorsi morali, Napóles, 1841.
  7. 7. Saint Joseph intime, Paris, 1920.
  8. 8. Tractatus de Sancto Joseph, Paris, s. d. (1908).
  9. 9. La Grandezza di San Giuseppe, Roma, 1927, pp. 36 ss.
  10. 10. Epist. encyclica “Quamquam pluries”, de 15 de agosto de 1899: “Certe Matris Dei tam in excelso dignitas est, ut nihil fieri majus queat. Sed tamen quia intercessit Joseplio cum Virgine beatissima maritale vinculum, ad illam praestantissiman dignitatem, qua naturis creatis omnibus longissime Deipara antecellit, non est dubium quin accesserit ipse, ut nemo magis. Est enim conjugium societas necessitudoque omnium maxima, quae natura sua adjunctam habet bonorum unius cum altero communicationem. Quocirca si sponsum Virgini Deus Josephum dedit, dedit profecto non modo vitae socium, virginitatis testem, tutorem honestatis, sed etiam excelsae dignitatis ejus ipso coniugali foedere participem”.
  11. 11.A cunctis nos quæsumus Domine mentis et corporis defende periculis: et intercedente beata et gloriosa semper Virgine Dei Genitrice Maria, cum beato Joseph, beatis Apóstolis tuis Petro et Paulo, et omnibus Sanctis, salutem nobis tribue benignus et pacem; ut destructis adversitatibus et erroribus universis, Ecclesia tua secura tibi serviat libertate. Per Dominum nostrum Jesum Christum Filium tuum, qui tecum vivit et regnat in unitate Spiritus Sancti, Deus, per omnia saecula saeculorum”.
  12. 12. Jo 1, 16: “Todos nós recebemos da sua plenitude graça sobre graça”. Cf. SANTO TOMÁS, IIIª, q. 7, a. 9.
  13. 13. Cf. ibid., q. 27, a. 5.
  14. 14. Cf. ibid., IIª IIae, q. 1, a. 7, ad 4.
  15. 15. Cf. santo tomás, Iª, q. 94, a. 3.
  16. 16. Cf. Dict. Théol. cath., art. Joseph (saint), col. 1518.
  17. 17. Hom. II super Missus est, prope finem: “Fidelis, inquam, servus et prudens, quem constituit Dominus suae Matris solatium, suae carnis nutritium, solum denique in terris magni consilii coadjutorem fidelissimum”.
  18. 18. Sermo I de S. Joseph: Omnium singularium gratiarum alicui rationali creaturae communicatarum, generalis regula est: quod quandocumque divina gratia eligit aliquem ad aliquam gratiam singularem, seu ad aliquem sublimem statum, omnia charismata donet, quae illi personae sic electae et ejus officio necessariae sunt atque illam copiose decorant. Quod maxime verificatum est in sancto Joseph, putativo Patre Domini nostri Jesu Christi, et vero Sponso Reginae mundi et Dominae angelorum, quia ab aeterno electus est fidelis nutritius atque custos principalium thesaurorum suorum, scilicet Filii ejus et Sponsae suae: quod officium fidelissime prosecutus est... Si compares eum ad totam Ecclesiam Christi, nonne iste est homo electus et specialis, per quem et sub quo Christus est ordinate et honeste introductus in mundum? Si ergo Virgini Matri tota Ecclesia sancta debitrix est, quia per eam Christum suscipere digna facta est; sic proferto, post eam, huic debet gratiam et reverentiam singularem... Omnibus electis Panem de coelo, qui coelestem vitam tribuit, cum multa solertia enutrivit”.
  19. 19. Summa de Donis S. Joseph (obra muito elogiada pelo Papa Bento XIV), pars IIIª, c. XVIII. Todo esse capítulo expõe a superioridade da missão de São José sobre a missão dos Apóstolos. Ver também ibid, c. XVII “De dono plenitudinis gratiae (in S. Joseph)”.
  20. 20. Summa S. Tomás, IIIª, q. 29, disp. 8, sect. 1.
  21. 21. Cf. mons. g. sinibaldi, La Grandezza de San Giuseppe, Roma, 1927, pp. 36 ss.: “O ministério de São José e a ordem da União Hipostática... Maria nasceu para ser a Mãe de Deus... Mas o casamento virginal de Maria depende de José... De onde o ministério de José tem uma estreita relação com a constituição da ordem da União Hipostática... Celebrando sua união virginal com Maria, José prepara a Mãe de Deus, como Deus quer; e é aí que reside sua cooperação na atuação do grande Mistério. — Sua missão pertence, por seu fim, à ordem hipostática, não por uma cooperação intrínseca, física e imediata, mas por uma cooperação extrínseca, moral e mediata (por Maria); o que é ainda, no entanto, uma verdadeira cooperação”.
  22. 22. Lc 1, 26-27.
  23. 23. Cf. santo tomás, IIIª, q. 24, a. 1, 2, 3, 4.
  24. 24. In IIIam, q. 24, a. 1 e 2.
  25. 25. Mt 1, 20; item Lc 2, 5.
  26. 26. IIIª, q. 29, a. 2.
  27. 27. Primeiro panegírico de São José, segundo ponto, ed. Lebarcq, t. II, p. 135 e ss.
  28. 28. No Evangelho de São Lucas (Lc 2, 51) diz-se que o menino Jesus era “submisso” a Maria e a José. José, porém, em sua humildade, deve ter experimentado (como alguém disse) certa confusão em ser o cabeça da Sagrada Família, ele que era o mais imperfeito dos três.
  29. 29. Cf. bossuet, ibidem, no exórdio.
  30. 30. Segundo panegírico de São José, exórdio.
  31. 31. Lc 9, 48.
  32. 32. Primeiro panegírico de São José, exórdio.
  33. 33. Segundo panegírico de São José, ponto terceiro.
  34. 34. Tratado do Amor de Deus, 1. VII, c. XIII.
  35. 35. Mt 27, 52 ss.
  36. 36. IV Sent. 1. IV, dist 42, q. 1, a. 3
  37. 37. Cf. IIIª, q. 53, a. 3, ad 2.
  38. 38. Sb 8, 1.
  39. 39. Cl 3, 3.
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