A Igreja chama Maria não só de Mãe de Deus, mas também de Mãe do Salvador. Nas ladainhas lauretanas, por exemplo, após as invocações de Sancta Dei Genitrix e Mater Creatoris, lê-se Mater Salvatoris, ora pro nobis.
Não há aqui, como alguns poderiam pensar e o veremos melhor depois, uma dualidade1 que diminuiria a unidade da Mariologia como que dominada por dois princípios distintos: “Mãe de Deus” e “Mãe do Salvador, associada à sua obra redentora”. A unidade da Mariologia é mantida porque Maria é “Mãe de Deus Redentor ou Salvador”. Da mesma forma, os dois mistérios da Encarnação e da Redenção não constituem uma dualidade que diminuiria a unidade do tratado de Cristo ou Cristologia, porque se trata da “Encarnação Redentora”; o motivo da Encarnação está suficientemente indicado no Credo, onde se diz do Filho de Deus que desceu do Céu para a nossa salvação: “E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu do Céu” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano).
Vejamos como Maria tornou-se a Mãe do Salvador por seu consentimento e, em seguida, como, em virtude de ser Mãe do Salvador, foi associada à sua obra redentora.
Maria tornou-se a Mãe do Redentor pelo seu consentimento
No dia da Anunciação, a Santíssima Virgem deu o seu consentimento à Encarnação redentora quando o arcanjo Gabriel lhe disse2: “eis que conceberás no teu ventre e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus”, que quer dizer salvador.
Maria não ignorava as profecias messiânicas, principalmente as de Isaías, que anunciavam claramente os sofrimentos redentores do Salvador prometido. Ao dizer seu fiat, no dia da Anunciação, ela generosamente aceitou de antemão todos os sofrimentos que a obra da redenção acarretaria para seu Filho e para si mesma.
Ela conheceu esses sofrimentos mais explicitamente alguns dias depois, quando o santo Simeão disse-lhe: “Agora, Senhor, podes deixar partir o teu servo em paz, segundo a tua palavra. Porque os meus olhos viram a tua salvação, a qual preparastes ante a face de todos os povos”3. Ela compreendeu mais profundamente ainda a parte que devia tomar nos sofrimentos redentores, quando o santo ancião acrescentou, referindo-se a ela: “Eis que este (menino) está posto para ruína e para ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição ― e uma espada de dor transpassará a tua alma”4. Lê-se um pouco adiante5 que “Maria guardava todas essas coisas em seu coração”; o plano divino esclarecia-se cada vez mais para sua fé contemplativa, que se tornava mais penetrante e aguda pela iluminação e pelas luzes do dom da inteligência.
Maria tornou-se, portanto, voluntariamente a Mãe do Redentor como tal; e compreendia mais e mais que o Filho de Deus se tinha feito homem para nossa salvação, como diria posteriormente o Credo. Desde então, uniu-se a Jesus como só uma Mãe, e uma Mãe tão santa como ela, poderia fazer, numa perfeita conformidade de vontade e de amor a Deus e às almas. Essa é a forma especial que toma nela o supremo mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”6. Nada mais simples, mais profundo, nem maior.
A Tradição compreendeu isso muito bem, uma vez que não cessou de dizer: como Eva esteve unida ao primeiro homem na obra da perdição, Maria devia estar unida ao Redentor na obra da reparação.
Mãe do Salvador, ela percebeu, de forma cada vez mais completa, como Ele devia cumprir Sua obra redentora. Bastava-lhe apenas recordar as profecias messiânicas bem conhecidas de todos. Isaías7 anunciou as humilhações e os sofrimentos do Messias, que as suportaria para expiar as nossas faltas, que seria a própria inocência, e que conquistaria, por sua morte generosamente oferecida, grandes multidões 8.
Davi, no Salmo 21: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, descreveu a súplica suprema do Justo por excelência, o seu grito de angústia na mais profunda prostração, e ao mesmo tempo a sua confiança em Yahweh, seu apelo supremo, seu apostolado e seus efeitos em Israel e entre as nações9. Maria conhecia evidentemente esse salmo e o meditava em seu coração.
O profeta Daniel descreveu também o reino do Filho do Homem e o poder que lhe será conferido: “E ele lhe deu o poder, a honra e o reino; e todos os povos, tribos e línguas o serviram; o seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado; e o seu reino não será jamais destruído”10.
Toda a Tradição tem visto nesse Filho do Homem, como no homem das dores de Isaías, o Messias prometido como Redentor.
Maria, que não ignorava essas promessas, tornou-se, por seu consentimento no dia da Anunciação, a Mãe do Redentor como tal. Deste consentimento: “fiat mihi secundum verbum tuum”, depende tudo o que se segue na vida da Santíssima Virgem, como toda a vida de Jesus depende do consentimento que Ele deu “ao entrar neste mundo”, quando afirmou: “não quiseste hóstia, nem oblação, mas me formaste um corpo; os holocaustos pelo pecado não te agradaram. Então eu disse: Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade”11.
Também os Padres disseram que a nossa salvação dependia do consentimento de Maria, que concebeu seu Filho em espírito antes de concebê-Lo corporalmente 12.
Pode-se objetar que um decreto divino, como aquele da Encarnação, não pode depender do livre consentimento de uma criatura, que poderia recusá-lo.
A teologia responde: segundo o Dogma da Providência, Deus quis eficazmente e previu infalivelmente todo o bem que acontecerá de fato no decorrer dos tempos. Quis, pois, eficazmente e previu infalivelmente o consentimento de Maria, condição prévia da realização do mistério da Encarnação. Desde toda a eternidade, Deus, que opera tudo “com força e suavidade”, decidiu outorgar a Maria uma graça eficaz que lhe fará dar esse consentimento livre, salutar e meritório. Da mesma forma que faz florescer as árvores, Deus faz florescer também nossa livre vontade fazendo-a produzir seus atos bons; longe de violentá-la nisso, Ele a atualiza e produz nela, e com ela, o modo livre de nossos atos, que é ainda ser. Esse é o segredo do Deus Onipotente. Da mesma maneira que, por obra do Espírito Santo, a Virgem Maria concebeu o Salvador sem perder a virgindade, assim também, pela moção da graça eficaz, disse infalivelmente o seu fiat sem que sua liberdade fosse em nada lesada ou diminuída; ao contrário, por esse contato virginal da moção divina e da liberdade de Maria, esta floresceu muitíssimo espontaneamente nesse livre consentimento dado em nome da humanidade.
Esse fiat era totalmente de Deus, como causa primeira, e totalmente de Maria, como causa segunda. Da mesma maneira, uma flor ou um fruto são totalmente de Deus, como autor da natureza, e totalmente da árvore que os carrega, como causa segunda.
Nesse consentimento de Maria, vemos um perfeito exemplo do que diz Santo Tomás13: “Ora, a vontade divina, sendo eficacíssima, não somente produz as coisas que quer que se façam, mas, também do modo pelo qual assim as quer. Ora, Deus quer que algumas se façam necessariamente, outras, contingentemente”. “Como nada resiste à vontade divina, resulta que, não somente se farão as coisas que Deus quer que se façam, mas se farão contingente ou necessariamente, conforme ele o quiser” 14.
Maria, por seu fiat no dia da Anunciação, tornou-se, portanto, voluntariamente a Mãe do Redentor como tal.
Toda a Tradição o reconhece ao chamá-la de a Nova Eva. Ela só o pode ser efetivamente porque, por seu consentimento, tornou-se Mãe do Salvador para a obra redentora; do mesmo modo que Eva, ao consentir na tentação, induziu o primeiro homem ao pecado que o fez perder para si e para nós a justiça original.
Os protestantes têm objetado: os antepassados da Santíssima Virgem podem, desse modo, ser chamados pai ou mãe do Redentor, e dizer-se deles que estiveram “associados à sua obra redentora”. É fácil responder que somente Maria foi iluminada para consentir em se tornar a Mãe do Salvador e estar associada à sua obra de salvação, porque seus antepassados sequer sabiam que o Messias nasceria de sua própria família.
Santa Ana não podia prever que a sua filha tornar-se-ia um dia a mãe do Salvador prometido.
Como a Mãe de Redentor esteve associada à Sua obra?
Conforme isso que os Padres da Igreja nos transmitiram sobre Maria, a Nova Eva, que muitos dentre eles vêem anunciado nas palavras divinas do Gênesis15: “A posteridade da mulher esmagará a cabeça da serpente”, é uma doutrina comum e certa na Igreja, e mesmo próxima da fé, a que afirma que a Santíssima Virgem, Mãe do Redentor, foi associada a Ele na obra da redenção como causa segunda e subordinada, da mesma maneira que Eva esteve associada a Adão na obra da perdição 16.
De fato, já no século II, essa doutrina de Maria, a nova Eva, está universalmente admitida, e os Padres que a expõem não o fazem como se fosse uma especulação pessoal, mas como doutrina tradicional da Igreja que se apóia nas palavras de São Paulo, onde o Cristo é chamado de novo Adão e é contraposto ao primeiro, como a causa da salvação opõe-se à da queda 17. Os Padres aproximam dessas palavras de São Paulo o relato da queda, a promessa da redenção, da vitória sobre o demônio18 e o relato da Anunciação19, onde se fala do consentimento de Maria para a realização do mistério da Encarnação redentora. Pode-se, portanto, e mesmo deve-se ver nessa doutrina de Maria ― a nova Eva associada à obra redentora de seu Filho ― uma tradição divino-apostólica 20.
Os Padres que a expõem mais explicitamente são: São Justino21, Santo Irineu22, Tertuliano23, São Cipriano24, Orígenes 25, São Cirilo de Jerusalém26, Santo Efrém 27, Santo Epifânio28, São João Crisóstomo29, São Proclo30, São Jerônimo31, Santo Ambrósio32, Santo Agostinho33, Basílio de Selêucia34, São Germano de Constantinopla35, São João Damasceno36, Santo Anselmo 37 e São Bernardo 38. Posteriormente, todos os doutores da Idade Média e os teólogos modernos falam no mesmo sentido 39.
Em que sentido, segundo a tradição, Maria, a nova Eva, esteve associada, aqui na Terra, à obra redentora de seu Filho?
Não só esteve associada por tê-lo fisicamente concebido, dado à luz e o alimentado, mas moralmente por seus atos livres, salutares e meritórios.
Assim como Eva cooperou moralmente com a queda, cedendo à tentação do demônio, por um ato de desobediência e induzindo Adão ao pecado, Maria, a nova Eva, pelo contrário, segundo o plano divino, cooperou moralmente em nossa redenção, acreditando nas palavras do arcanjo Gabriel, consentindo livremente no mistério da Encarnação redentora e em todos os sofrimentos que esse mistério acaretaria para seu Filho e para si mesma.
Maria certamente não é a causa principal e efetiva da redenção; não podia nos resgatar de condigno, por justiça, porque faltava a ela um ato teândrico de valor intrinsecamente infinito, que só podia pertencer a uma pessoa divina encarnada. Mas Maria é realmente causa secundária, subordinada a Cristo e dispositiva de nossa redenção. Ela é mesmo dita “subordinada a Cristo,” não só no sentido de que lhe é inferior, mas também porque contribui com a nossa salvação por uma graça proveniente dos méritos de Cristo, e então age n'Ele, com Ele e por Ele, in ipso, cum ipso et per ipsum. Não se deve nunca perder de vista que Cristo é o mediador universal supremo e que Maria foi resgatada pelos méritos do Salvador, por uma redenção não libertadora, mas preservadora, uma vez que foi preservada do pecado original e também de toda falta pelos méritos futuros do Salvador de todos os homens. Ela também não contribui para a nossa redenção mais que por Ele, no sentido em que é causa secundária, subordinada, e não perfectiva, mas dispositiva, pois nos dispõe a receber a influência de seu Filho que, por ser o autor de nossa salvação, deve completar em nós a redenção.
Maria está, então, associada à obra de seu Filho, não como o foram os Apóstolos, mas em sua qualidade de Mãe do Redentor como tal, depois de ter dado seu consentimento ao mistério da Encarnação redentora e a todas as conseqüências que esse mistério comportaria; esteve, portanto, associada a Ele da maneira mais íntima, como só uma Mãe santa pode estar, com todo o seu coração e toda a sua alma sobrenaturalizada pela plenitude da graça. Isso é o que afirma em termos muito exatos Santo Alberto Magno, numa fórmula que já citamos: “Beata Virgo Maria non est assumpta in ministerium a Domino, sed in consortium et in adjutorium, secundum illud: Faciamus ei adjutorium simile sibi”40.
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Vê-se, portanto, que a unidade da Mariologia não é diminuída como se estivesse dominada por dois princípios (Mãe de Deus e Corredentora) e não por um somente. O princípio que a domina é o seguinte: Maria é a Mãe do Deus Redentor, e por esse mesmo título está associada à sua obra. Da mesma forma, os dois mistérios da Encarnação e da Redenção não constituem uma dualidade que diminuiria a unidade da Cristologia, porque os dois unem-se na Encarnação redentora; essa união está expressa no próprio Credo nestes termos: “Filius Dei qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est” (Símbolo Niceno-Constantinopolitano).
Ademais, como em Jesus Cristo a Filiação divina natural ou a graça da união hipostática é superior à plenitude de graça habitual e à nossa redenção, assim também em Maria a Maternidade Divina é superior à plenitude de graça que se derrama sobre nós, como demonstramos no primeiro capítulo deste livro. A unidade da ciência teológica contribui para essa certeza; essa ciência não pode ser dominada por primeiros princípios coordenados, mas por princípios subordinados. E o mesmo acontece com cada um de seus tratados, uma vez que todos eles em conjunto estão subordinados a uma verdade suprema.