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O malogro de um jovem químico

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Ia eu contar-lhes o resto da história da Astronomia, quando alguém trouxe à baila a estranha resistência vital ou os sete fôlegos dos gatos, e, desviado por essa consideração, fui parar na rua do Matoso, 107, em 1915 ou 1916. Trocara as estrelas pelos átomos, e a minha paixão, uma paixão espanhola, debruçou-se sobre a química.

No princípio não era bom aluno na matéria por me faltar o livro... e o quantitativo, como hoje se diz no Ministério da Educação. Numa tarde que suponho dourada e outonal, para colorir a lembrança, abri-me com um colega mais velho que já estava no terceiro ano, livre das retortas. Ele teve um gesto largo e magnânimo: “Eu te empresto o meu...” (Esqueci-me o nome do autor que naquele tempo era clássico). No dia seguinte o colega, rapaz meticuloso, que tinha um defeito na perna e falava fanhoso, trouxe-me os dois volumes: mas daí por diante, sempre que cruzava comigo, fazia um gesto paternal, feliz, e saudava:

Como vais, químico?

A paixão, como costuma aparecer, veio de repente. Até certo ponto eu estudava com aquela disposição morna de todo aluno meio-termo que quer passar nos exames. De repente entrevi uma caverna mais espaçosa e mais maravilhosa que a de Ali Babá, mas não me lembro qual foi o elemento, ou a reação que representou o papel fulminante. O caso é que de certo dia em diante eu sonhava com tubos de ensaio e acordava fazendo projetos de ter um laboratório em casa. Aos poucos fui comprando balões, tubos, lamparinas e as preciosas substâncias que deveriam depois, diante de meus olhos fascinados, dar dimensões de realidade ao que o livro abstratamente prometida. Grande coisa! Grande coisa esse exercício que consiste em debruçarmo-nos sobre o que as coisas são, e em decifrarmos os seus segredos!

Mas deixemos para outra pauta as reflexões filosóficas e ouçamos o que a memória nos diz em sua linguagem modesta.

Montei um pequeno laboratório no quarto dos fundos do Colégio, e comecei a ser objeto de intensa curiosidade. Na hora do recreio todos os alunos vinham ver os precipitados coloridos dos sais de cobalto e de cromo, ou vinham assistir, estupefatos, à decomposição da água por um processo eletrolítico que eu improvisara. Ganhei fama. Uma fama de duzentos metros de raio. Mas acontece que nesse círculo exíguo estava incluída a casa de duas mocinhas portuguesas, muito belas, que possuíam um gato de estimação.

Precisava, para maior clareza, abrir um parêntese de cem páginas a fim de explicar aos moços de hoje como eram as moças de ontem. Na falta de tamanho espaço resumo minha demonstração: eram rigorosamente iguais, e fantasticamente diferentes. Como as igualdades, em regra geral, despertam menor interesse, vamos às diferenças. E a principal residia no fato simples de terem janelas as casas de antigamente. Digo janelas abertas para a rua pouco movimentada e por isso mesmo muito mais divertida, e também abertas para a penumbra das misteriosas salas de visitas como molduras de quadros vivos de Renoirs que se ignoravam.

Tudo isto para dizer que as minhas lindas portuguesas, ora juntas, ora alternadas, costumavam surgir no vão da janela, ao entardecer, e ali ficavam, muito tranqüilas, às vezes bordando algum paninho de pretexto, outras vezes apenas a iluminar a rua do bairro tranqüilo, onde as meninas de tranças cantavam cantigas de roda.

Os namoros, freqüentemente, começavam por uma contemplação com a nota predominante da imobilidade. E os meros admiradores, como era o meu caso, passavam pelas janelas floridas tirando o chapéu, boa tarde! boa tarde!, e, sentindo ora mais densas, ora mais tênues, as linhas de força da beleza feminina enquadrada na espera.

Sim, na espera. Este vocábulo explica tudo das moças daquele tempo. E nós passávamos e atravessávamos a zona, a nuvem, a atmosfera de expectação.

Quantas vezes passei eu debaixo daquela sacada alimentando o sonho de ver a casa incendiar-se e eu ter de saltar o gradil para salvar em meus braços vigorosos a moça desmaiada! Terão os moços de hoje esse sonho predominante? Terão ainda as moças a disposição de desmaiar nos braços do salvador? Receio que não. Mas a verdade manda dizer que nunca tive ocasião de salvar nenhuma donzela aprisionada ou ameaçada de incêndio.

A pequena oportunidade que tive de brilhar nessa época, falhou de um modo lamentável, por causa da supracitada resistência dos gatos. Foi assim: o gato de estimação das duas formosuras adoecera e agonizava de um modo espalhafatoso e incômodo. A vizinhança não conseguia dormir. Quando chegou aos ouvidos das moças minha fama de químico, faltando-lhes coragem de matar o bichano a tiro de revólver, mandaram pedir a minha mãe um veneno fulminante. E eu, felicíssimo, elaborei uma mistura terrível de cianeto de mercúrio e não sei mais o quê, que deveria ser mais mortal do que a acqua tofana da Rinacita.

Enchi um vidrinho, desenhei no rótulo a caveira com duas tíbias cruzadas, e escrevi num papel as instruções para a eutanásia do gato.

O resultado foi medonho: o gato não morreu e até parece que sentiu melhoras. Uivou ainda uns quinze dias desmoralizando assim a Ciência diante da Formosura. Sendo difícil na juventude manter a ciência em estado puro, desinteressada dos olhos negros e pestanudos das morenas bonitas, senti-me frustrado. Pode ser que me engane, mas parece-me que foi aquele gato que me desviou da vocação química e me devolveu à astronomia.

(11/05/1968, republicado em "A Tempo e Contratempo", Editora Permanência)

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