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Um amigo de verdade

Os artigos que andei escrevendo ultimamente sobre alguns pontos da teoria de Albert Einstein trouxeram-me à memória o nome e a figura de um outro judeu, pobre e obscuro, de que talvez nenhum de meus leitores ouviu falar, e que morreu de repente, na força da idade, sem deixar a obra que sonhava escrever. Para mim, entretanto, Nathan Neugroschel foi uma das mais curiosas e ricas personalidades que jamais encontrei. Foi, sem sombra de dúvida, um dos melhores homens que até hoje conheci.

 

Encontramo-nos em 1934, em torno de um aparelho destinado a proporcionar tráfego mútuo de telefonia internacional entre a Companhia Radiobras e a Companhia Telefônica Brasileira. Embora recém-chegado de Viena, e apesar dos meses perdidos no estudo da língua tupi — que um erudito germânico lhe inculcara como o idioma oficial do Brasil — Nathan Neugroschel, com a misteriosa aptidão de sua raça, já nesse tempo falava perfeitamente o português. Ficamos amigos. Almoçávamos juntos quase todos os dias, conversando de tudo. E assim, dia após dia, através de pequenas histórias contadas com um humorismo dolorido, que me lembrava o Chaplin de “Luzes da Cidade”, Nathan abria-me seu discretíssimo coração.

 

Sua grande paixão era a física matemática, ou mais precisamente, a teoria de Maxwell e a teoria da relatividade. Tinha em mente uma contribuição de que às vezes, vencendo a timidez machucada, e com ar de quem pede desculpas de sua superioridade, dava-me indicações na toalha da mesa, ou nos claros do maço de cigarro que cobria de fórmulas. Vejo-o diante de mim a instalar por cima do prato de azeitonas, com os dedos curtos e grossos, o sistema de referência xyz, enquanto a outra mão desfiava vetores. Chega então o garçom para indagar o que desejamos comer, e Nathan, segurando no ar suas forças e suas velocidades, formula com simplicidade o mais genérico dos cardápios.

 

— Boi.

 

Foi o homem mais integralmente sincero e verídico que já conheci. Discretíssimo, freqüentemente evasivo e reticente, era incapaz de produzir a sonora e insolente sinceridade com que se enfeita a vaidade ou se confortam os ressentimentos. Sua veracidade era invencível, mas aflita. Vinha de uma essencial submissão, seria quase uma incapacidade radical, congênita, de não ser verídico e sincero. Quando não exigiam sua opinião, quando não o provocavam, e sobretudo quando não estava em jogo a amizade, conseguia calar-se com um ar profundamente infeliz. Ou então ria-se, com o riso mudo que lhe sacudia os ombros robustos, e que até parecia choro, se não fosse o brilho infantil dos olhos claros.

 

No primeiro dia que veio em minha casa sentou-se numa poltrona cerimonioso, e correu os olhos pelos quadros que nesse tempo eu pintava. Por fim não se conteve, e voltou-se para mim aflitíssimo:

 

— Gustavo, você sabe que não é bom pintor?

 

De outra vez na Escola Técnica do Exército, onde ambos ensinávamos no mesmo curso de transmissões, entra um general na aula do Nathan, e faz uma brilhante preleção sobre a matéria do dia. Os oficiais alunos, de pé, ouvem a autoridade. Num ou noutro olhar vislumbra-se uma centelha de malícia, mas Nathan baixa a cabeça como se estivesse em caminho do cadafalso. Infelizmente o general fez questão de sua aquiescência. Provoca a sua opinião...

 

— É pena, desculpe, mas eu ensinei exatamente o contrário, murmura ele com mansidão. E logo depois da difícil saída do general volta-se para mim consternado:

 

— Você acha que fiz mal?

 

Nunca vi ninguém mais sensível à ênfase e ao exibicionismo, ninguém mais delicado do que aquele homem grosso, atarracado, bisonho, que andava como um urso e que se ria como criança que chora. Uma tarde, fomos convidados a uma conferência sobre a natureza da luz. Não conhecíamos quem ia falar. Ora, quando estamos sentados, na expectativa, com a esperança de algum lucro na palestra, entra-nos na sala o conferencista, corre pela assistência os óculos faiscantes, e desafivela com gestos majestosos uma enorme pasta de couro amarelo. Nathan mexe-se na cadeira e geme ao meu ouvido:

 

— Que pena! Ele é burro!

 

De outra vez, fui encontra-lo em pé no meio da praça, diante do imponente edifício da Escola do Estado Maior, a divertir-se prodigiosamente com a carranca daquela arquitetura. De repente, caindo em profunda melancolia, disse-me em tom confidencial:

 

— Se ao menos eles ainda soubessem rir...

 

Quando foi convidado para dar um curso na Escola Técnica do Exército, Nathan alvoroçou-se com a perspectiva de uma oportunidade de ensinar as teorias de sua paixão. Deram-lhe porém um curso mais técnico e pragmático onde só seria possível remontar aos princípios teóricos forçando um pouco as exigências didáticas. Passei meses sem vê-lo porque nossos horários andavam desencontrados. Já no fim do ano dei com ele na saída de uma aula, e perguntei como se desincumbira de seu programa.

 

— Bem, bem... ah! consegui dar o curso sem falar as equações de Maxwell.

 

E ele não soube, não podia talvez imaginar que naquela manhã alguém ficara parado num corredor da Escola Técnica do Exército, pensativo, envergonhado, a ver a figura atarracada que se afastava com passo de embarcadiço, a seguir a figura esquisita, despenteada e mal vestida do homem que pudera passar um ano inteiro sem falar do que mais gostava e sem mostrar o que melhor conhecia.

 

Apareceu-me um dia com um enorme galo na testa. Tinham-lhe dado na Companhia Telefônica, como assistente, um jovem engenheiro que pela primeira vez se empregava. A mesa do novo auxiliar ficava ao lado da sua. Nathan começa a trabalhar e deixa cair o lápis. O moço precipita-se e apanha o lápis no chão. Nathan resmunga um agradecimento. Pouco depois deixar cair a régua, e lembrando-se da solicitude do moço dá um salto para alcança-la antes dele. Chocam-se com estrondo as duas cabeças, e Nathan pede encarecidamente ao jovem auxiliar que não contrarie seu hábito antigo de deixar cair as coisas no chão... Dias depois — agora é o assistente que conta — Nathan ouviu no lavatório uma conversa, pela qual ficou sabendo que o moço era pobre, que tinha perdido a mãe e que gastara no enterro todo o ordenado. Mete a mão no bolso (não no bolso que tinha pouco dinheiro como o Fernando Pessoa, mas no que tinha tudo) e tira um punhado de notas, pedindo ao moço como quem se desculpa, o favor de aceitar.

 

Eu mesmo, mais tarde, terei uma prova maciça de sua generosidade. Estava para casar-me e já tinha alugado uma casa em Teresópolis onde contava passar dois meses de férias. Mas surgira uma contrariedade: um aparelho difícil, o primeiro no gênero que produzíamos em nossa fábrica, atrasara-se na oficina e devia entrar em período de prolongadas experiências justamente na época do meu casamento. Quando Nathan teve conhecimento de meus apuros veio procurar-me e disse-me só isto:

 

— Casa-te. Eu fico aqui.

 

E ficou. Deixava o escritório à tarde, jantava, e vinha trabalhar na fábrica, com os assistente escalados para esse plantão, até às duas ou três da madrugada. As experiências se prolongaram, e ele esteve nesse regime durante mês e meio, recomendando que não me dissessem nada. Na volta, informado do trabalho estafante que tivera, pedi para ele aos diretores da fábrica uma boa gratificação, que foi logo concedida, e que lhe seria muito útil porque nesse tempo chegavam da Europa, sem nada, os seus parentes que conseguiam escapar da fúria nazista.

 

Fui oferecer-lhe o dinheiro. Vejo-o ainda: ele está diante de mim como uma criança emburrada. Grosso, canhestro, taciturno. E bruscamente num gesto quase cômico, mostrou-me as mãos gordas:

 

— A m... já me sujou as mãos... mas ainda não me chegou ao coração.

 

Caí em mim, sentindo o absurdo da minha idéia; a tentativa de por em cifras, de indenizar, de fazer a quadratura de uma generosidade perfeita. Fomos dali para um café. Falamos de outras coisas. Nathan contou-me como conseguira simplificar uma passagem de seu sonhado livro de introdução à teoria da relatividade. E eu sentia a m..., isto é, o cheque a me pesar no bolso e no coração.

 

Nossas filosofias eram muito diferentes. Quando eu lhe falava em Aristóteles e em Santo Tomás (que ele, por coerência, mas sem vislumbre de gracejo chamava “o Aquino”) ouvia-me com um sorriso doloroso. Não me opunha Einstein porque era bastante inteligente para não confundir os dois graus do saber. Não eram as transformações de Lorentz que embargavam o nosso entendimento filosófico e que o acuavam numa farouche obstinação. O impedimento era outro: era a Viena perdida, era sua infância, seu sangue, seus irmãos perseguidos. Calava-me, e ele então voltava às equações para não rebentar de dor ou se envenenar de ódio.

 

Eu não tinha forças para convence-lo, não ousava esperar converte-lo. O desembaraço que mais tarde terei com os moços da gentilidade falta-me agora quando defronto o mistério e a grandeza de Israel. Sinto-me mais moço do que ele, Nathan. Recém-vindo. Menor. Gentio. Incircunciso. E não ouso propor-lhe aquilo que lhe foi oferecido antes de me ser dado. Um dia, com voz sumida, ele me dirá que, quando lhe falam em Deus, pensa nos judeus arrastados pelas barbas... Respondo-lhe então, com voz ainda mais sumida, que eu também quando me falam em Deus, penso num judeu espancado. E ficamos parados nesse encontro, ou nesse desencontro, até que um teorema nos viesse tirar da nossa espessa realidade, de realidade com cheiro de sangue, e nos permitisse a evasão para as harmonias do mundo dos entes de razão.

 

Quando me disseram que Nathan Neugroschel acabava de morrer, que morrera de repente, do coração, eu senti o maior choque, o maior abalo, o mais vivo sentimento de absurdo que jamais senti com notícia de morte. E pedi a Deus, quase como quem reclama, quase como quem exige — em nome do sangue da descendência de Davi e em nome da Judia que reina nos céus e na terra — que abrisse de par em par as portas da misericórdia para aquele homem limpo de coração, para aquele verdadeiro amigo da verdade, para aquele extraordinário varão que foi capaz de dar todo o seu curso sem falar nas equações de Maxwell.

 

Dez Anos

 

 

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