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Encontros com Oswald de Andrade

 

Foi há dois anos, creio eu, que tive um primeiro rápido encontro na porta de uma livraria com Oswald de Andrade, e a primeira impressão que logo me assaltou foi a de estar começando uma amizade, um jogo, com um menino guloso, truculento, direito e bom. Mal me lembram as palavras que dissemos e os assuntos que abordamos. Ele mesmo procurara essa aproximação. Queria saber como eu era; queria tirar a limpo o conflito, o desajuste ou a contradição que julgava existir entre meus livros e meu catolicismo. Ou melhor, e com palavras suas, desejava verificar se eu possuía um “catolicismo de Botafogo” ou algum outro de espécie mais admissível. E verrumava-me com aqueles ferozes olhos azuis que dias depois, em conversa mais íntima, deixaram escapar reflexos de ternura.
 
Ficamos amigos, amigos de uma amizade absurda e incompatível que resistiu a todos choques de idéias e que, apesar do abalo produzido pelo livro “horrivelmente dogmático” que publiquei um ano mais tarde, durou até o seu último dia.
 
Na conversa que tivemos uma noite em minha casa, ele me ouvia com a atenção de um gato que acompanha uma presa, e de vez em quando, sem despegar de mim os olhos, fazia um gesto para a Antonieta Alkmin, que assistia silenciosa ao primeiro “round” de nossa amizade:
 
— Olha a cara dele, Antonieta!
 
Não sei o que via ou o que procurava na minha cara. Sei que me embaraçava por não conseguir corresponder à generosidade de seu interesse por meu mundo. Tudo nos separava. Seus autores não eram os meus, suas admirações estavam longe de ser as minhas, e, além disso, para acréscimo de dificuldade, quase nada conhecia eu de sua história e de sua obra. Não acreditava muito na sua antropofagia, e embora pouco mais moço, nem de longe participara do famoso movimento modernista que ainda hoje me parece um jovial equívoco de uma irreverente geração. Naquele tempo eu andava pelos sertões deste desconhecido Brasil a fazer coordenadas astronômicas, e só muito raramente percebia que a cultura andava em pânico, e que os ídolos acadêmicos eram derrubados por uma dúzia de alegres iconoclastas.
 
No caso foi bom. Foi bom que eu não pudesse corresponder ao seu interesse, que eu não pudesse em sã consciência elogiar sua obra, que eu mal conhecesse seu passado e seus livros, porque essa embaraçosa situação me permitiu descobrir a largueza de alma de meu novo amigo, o velho Oswald de Andrade. Não é fácil para um escritor curtido no ofício, para um autor que sente passar seu efêmero momento, que vê transformar-se em sedimentos de saudade o que um dia fora uma vulcânica esperança, interessar-se por um novo autor que aparece tarde e segue itinerários tão diferentes. Oswald de Andrade suportou magnificamente essa prova, e posso afiançar que não lhe vi um só sinal de ressentimento em cada ocasião que não pude evitar a evidência do desencontro de nossas órbitas. O incômodo foi para mim remunerador, pois não há mais grata experiência do que a descoberta de uma generosidade. E julgo estar certo se tiro dessa grandeza do homem a explicação de sua filosofia antropofágica, que mais seria uma doutrina de bom apetite, de larga abertura para o mundo e para os outros do que cruel teoria de entre-devoração social.
 
O século dezenove foi marcado por uma concepção da sociabilidade que postula a antinomia entre o indivíduo e a sociedade e que fundamenta o convívio na luta. O essencial, o formal da convivência humana, de Rousseau a Marx, do individualismo liberal ao totalitarismo, não é a amizade cívica de Aristóteles e dos escolásticos; é antes o duelo de morte, a luta pela vida, é em suma o egoísmo, a inimizade, cruel em Nietzche, esportiva em Malthus e Darwin. O homem é o animal de rapina de Spengler, ou o mais apto sobrevivente de um torneio de símios. E para outros, na extrema esquerda, a parusia de uma sociedade perfeita tem de ser dialeticamente atingida pela luta de classes. Nesse clima cultural, que nas crises agudas produzirá o nazismo e no estado crônico constitui a disciplinação meramente extrínseca do egoísmo burguês, a antropofagia de Oswald de Andrade nada teria de original e muito menos de moderno, e sobretudo nada teria de elevado, embora, para a maioria das pessoas que vez por outra correm os olhos pelo mundo, a descoberta da ferocidade humana pareça constituir um vértice de suprema sabedoria. Penso, porém, que a filosofia de Oswald de Andrade era mais uma avidez que uma crueldade.
 
Estou com Antonio Cândido, no seu Prefácio Inútil a Um Homem sem Profissão (Oswald de Andrade, Ed. José Olímpio), em pensar que a antropofagia de Oswald de Andrade tem raízes numa cosmovisão, e, diria eu, numa espécie de dilatação do estômago espiritual.
 
Bom apetite, excelente boca, ele via o mundo como um colossal e inextinguível alimento, e atirava-se na vida, até os sessenta anos, como um faminto que se precipita sobre as iguarias de um banquete. Por isso, enquanto eu, enfastiado, afastava de mim o requentado modernismo, e apenas provara seus livros, Oswald de Andrade engolira os meus, só deixando na beira do prato os espinhos mais duros do dogma.
 
Vi-o pela última vez no Hospital das Clínicas de São Paulo. Depois de uma emocionante aventura, em que me parecida estar atravessando a cortina de ferro com passaportes falsos, consegui entrar na fortaleza das clínicas paulistas e graças à intervenção de um moço que... mas isto é outra história — cheguei ao quarto letra tal, número tanto, onde o velho modernista se refazia de recente e difícil operação na cabeça.
 
Magro, envelhecido, estava quase irreconhecível. O turbante manchado de sangue, que lhe envolvia a cabeça, tapando o olho direito, dava ao esquerdo uma redobrada ferocidade de pirata da Ilha do Tesouro. Quando entrei, a admirável Antonieta Alkmin atava-lhe ao pescoço um enorme guardanapo, e apressava-se a servir um prato de canjica cheio até a beira, que ele reclamava com rugidos de impaciência.
 
Quem é você? Gritou vendo-me entrar. Pregou em mim o olho disponível sem conseguir decifrar minha identidade na penumbra do quarto. Antonieta disse-lhe quem era, e logo o olho duro e metálico revestiu-se de uma doçura de hortênsia. Abraçamo-nos. Entre duas colheradas sorvidas vorazmente perguntava-me se estava escrevendo outro livro e interessava-se por meus projetos. Devorava a canjica, e devorava-me a mim, com a mesma grande fome, com a mesma grande boca aberta para a vida e para o mundo. Antonieta, a excelente e compassiva Antonieta, fazia-me agora por trás dele, sinais misteriosos. Apontava com insistência para a própria blusa e depois para o companheiro coroado de sangue. Entendi afinal que devia olhar para o peito de Oswald, e descobri então meia dúzia de santinhos pregados no seu pijama. Ali estavam as medalhas de nosso bravo corsário, as condecorações de suas últimas façanhas. Notando uma delas, uma humilde medalhinha milagrosa de alumínio, pedi à Virgem Santíssima que tomasse conta daquele filho voraz e que lhe ensinasse aquela passagem de seu cântico — esurientes implevit bonis1 — que é um compêndio de filosofia antropofágica do céu.
 
O Globo, em 4 de novembro de 1971

 

  1. 1. [N. da P.] "Encheu de bens os famintos" (Lc 1, 53)
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