O terceiro discute-se assim. — Parece que a Santa Virgem não foi purificada do contágio do gérmen da concupiscência.
1. Pois, assim como a pena do pecado original é a concupiscência, consistente na rebelião das potências inferiores contra a razão, assim também a pena do pecado original é a morte e as demais penalidades corpóreas. Ora, a Santa Virgem foi sujeita a essas penalidades. Logo, também não foi totalmente isenta da concupiscência.
2. Demais. — O Apóstolo diz: A virtude se aperfeiçoa na enfermidade, referindo-se à enfermidade da concupiscência, por causa da qual sofria o estímulo da carne. Ora, a Santa Virgem não foi privada de nada do que exige a perfeição da virtude. Logo, não foi de todo isenta da concupiscência.
3. Demais. — Damasceno diz, que o Espírito Santo sobrevém à Santa Virgem, purificando-a antes da concepção do Filho de Deus. O que não pode entender-se senão da purificação da concupiscência, pois, nenhum pecado cometeu, como diz Agostinho. Logo, pela santificação no ventre materno não foi de todo isenta da concupiscência.
Mas, em contrário, a Escritura: Toda tu és formosa, amiga minha, e em ti não há mácula. Ora, a concupiscência é mácula, pelo menos da carne. Logo, na Santa Virgem não houve concupiscência.
SOLUÇÃO. — Nesta matéria divergem as opiniões. — Assim, uns disseram que a Santa Virgem, pela sua santificação mesma, operada no ventre materno, ficou totalmente isenta da concupiscência. — Mas outros dizem que lhe permaneceu a concupiscência, enquanto causa de dificuldade na prática do bem; ficou porém dela isenta, enquanto inclinação para o mal. — Outros, ainda, disseram que ficou isenta da concupiscência, no atinente à corrupção da pessoa, enquanto impede para o mal e dificulta o bem; mas não o ficou, quanto à corrupção da natureza, isto é, enquanto a concupiscência é a causa da transmissão do pecado original aos filhos. — Outros, enfim, dizem que, a primeira santificação não eliminou a concupiscência, mas a deixou travada nos seus efeitos; sendo porém totalmente eliminada na concepção mesma do Filho de Deus.
Mas, para bem compreendermos, neste assunto, devemos notar que contágio do pecado nada mais é que uma concupiscência desordenada do apetite sensível; mas, habitual, porque a concupiscência atual é o movimento do pecado. Diremos porém que a concupiscência da sensualidade é desordenada, porque repugna à razão; o que se dá, por inclinar para o mal ou opor dificuldades ao bem. Por onde, é da natureza mesma da concupiscência inclinar para o mal, ou dificultar a prática do bem. Por isso, dizer que a concupiscência existiu na Santa Virgem, sem a inclinar para o mal, é querer que coexistam duas coisas opostas. - Semelhantemente, também implica oposição o permanecer da concupiscência enquanto corrupção da natureza e não enquanto corrupção da pessoa. Pois, segundo Agostinho, é a concupiscência que transmite para a prole o pecado original. Ora, essa é uma concupiscência desordenada e não totalmente sujeita à razão. Se, pois, a concupiscência tivesse sido totalmente eliminada, enquanto corrupção da pessoa, não poderia permanecer enquanto corrupção da natureza.
Resta, pois, admitirmos ou que a primeira santificação a isentou totalmente da concupiscência ou que, se esta subsistiu, ficou travada nos seus efeitos. Pois, poder-se-ia entender que a concupiscência ficou totalmente eliminada, na Santa Virgem, por lhe ter sido concedida, pela abundância da graça que lhe foi conferida, uma tal disposição das potências da alma, que as inferiores nunca se movessem sem o assentimento da razão. Tal o que dissemos ter passado com Cristo, de quem sabemos que não teve inclinação para o pecado, e com Adão, antes do pecado, pela justiça original. De modo que, assim, nesta matéria, a graça da santificação teve para a Virgem a virtude da justiça original. Mas, embora esta opinião venha salvar a dignidade da Virgem Mãe, contraria de algum modo à dignidade de Cristo, sem cuja virtude ninguém pode livrar-se da condenação primitiva. E embora pela fé de Cristo, e, antes da sua Encarnação, certos fossem espiritualmente livres dessa condenação, contudo ninguém poderia livrar-se dela, quanto à carne, senão depois da Encarnação, pela qual devia primariamente manifestar-se a imunidade dessa condenação. Por onde, assim como antes da imortalidade da carne de Cristo ressurrecto, ninguém alcançou a imortalidade da carne, assim é inconveniente admitirmos que, antes da carne de Cristo, que não teve nenhum pecado, a carne da Virgem sua Mãe, ou de quem quer que seja, fosse isenta da concupiscência, chamada lei da carne ou dos membros.
Por isso parece melhor pensarmos que, a santificação no ventre materno não isentou a Santa Virgem da concupiscência, na sua essência, mas os seus efeitos ficaram paralisados. Não por ato da sua razão, como se deu com os varões santos; pois, não teve o uso do livre arbítrio logo que começou a existir no ventre materno – privilégio especial de Cristo; mas, a abundância da graça, recebida na santificação, e ainda mais perfeitamente por ação da divina providência, paralisou-lhe todo movimento desordenado dos sentidos. Mas, depois, na concepção mesma da carne de Cristo, quando primeiramente devia refulgir a imunidade do pecado, devemos crer que do filho redundou ela para a mãe, ficando então totalmente eliminada a inclinação para o pecado. E já isso estava figurado na Escritura, quando diz: Eis que entrava a glória do Deus de Israel pela banda do oriente, isto é, por meio da Santa Virgem; e a terra estava resplandecente pela presença da sua majestade, isto é de Cristo.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A morte e outras penalidades semelhantes por si mesmas não inclinam ao pecado. E por isso Cristo, embora assumisse a elas, não se sujeitou à concupiscência. E por isso também na Santa Virgem, para conformar-se ao Filho, de cuja plenitude recebeu a graça - primeiro, a concupiscência ficou impedida nos seus efeitos e, depois, foi eliminada; mas não ficou livre da morte e de outras penalidades semelhantes.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A fraqueza da carne constituída pela sua inclinação ao pecado, é certo, para os varões santos uma ocasião de virtude perfeita; mas não a causa sem a qual não possa a perfeição ser alcançada. Basta, pois, atribuir à Santa Virgem a virtude perfeita pela abundância da graça; nem lhe é preciso atribuir toda ocasião possível de perfeição.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O Espírito Santo operou na Santa Virgem uma dupla purificação. - Uma, quase preparatória à conceição de Cristo, que veio, não purificá-la de qualquer impureza da culpa ou da concupiscência, mas imprimir mais profundamente na sua alma o caráter de unidade e elevá-la acima da multidão. Assim, também dizemos que são purificados os anjos, nos quais não há nenhuma impureza, como diz Dionísio. - A outra purificação o Espírito Santo operou na Santa Virgem, mediante a concepção de Cristo, obra do mesmo Espírito. E, por ela, podemos dizer que a purificou totalmente da concupiscência.