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Não deixe o sal perder a sua força

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Não deixe o sal perder a sua força

Uma das características mais importantes de uma instituição é sua fidelidade à ideia mestra que define sua fundação e sua linha de pensamento. Se os responsáveis por uma empresa, por um projeto qualquer, ou por uma ordem religiosa, variarem a cada passo na finalidade que determina aquela reunião de homens, ela jamais poderá perdurar no tempo, pois seus membros não saberão em que direção caminhar. LEIA MAIS

 

É nesse contexto que devemos entender aquela palavra que atribui a perseverança das grandes ordens religiosas, ao longo dos séculos, à santidade dos seus fundadores. Comparem a existência da Ordem de São Bento, dos Franciscanos ou dos Dominicanos, com a das empresas modernas. Aquelas gloriam-se de permanecerem idênticas na sua essência, por quinze (S. Bento) ou sete séculos (S. Francisco e S. Domingos); estas porém, apenas alcançam vinte e cinco ou cinqüenta anos e já se consideram tradicionais e cheias de experiência. E assim é, de fato, se considerarmos o mundo sempre cambiante e ondulante em que vivemos.
A Permanência não é ordem religiosa, mas tampouco é empresa comercial. Apesar de termos como objetivo a difusão da doutrina católica tradicional e, a partir dela, a resistência aos erros do último Concílio do Vaticano, algo mais do que a doutrina nos une. Em torno de Gustavo Corção criou-se, na Permanência, uma família que se caracteriza por um espírito sobrenatural que vai muito além da sã doutrina. Algo de difícil definição e delineamento, mas real e pessoal.
Esse espírito nasceu das aulas e escritos de Gustavo Corção. Ali transmitia-se, como de pai para filhos, um posicionamento diante das coisas de Deus e da sua Igreja que poucas vezes se encontra pelo mundo. Alguns dos nossos jovens tiveram a oportunidade de ver como os franceses da Tradição, nos anos de 1980, chegavam ao mosteiro, ao seminário, conhecendo latim, grego e Santo Tomás de Aquino. Mas bastava um acontecimento mais grave e polêmico surgir no âmbito da crise da Igreja ou da política internacional, para se perceber que aqueles rapazes não tinham recebido em sua formação o sensus fidei necessário para um julgamento sobrenatural reto e certeiro.
Quanto tempo perde-se lendo ou estudando coisas irrelevantes, que mais se aproximam da curiosidade do que da formação católica! Quantas vezes ouvimos, nas aulas de Gustavo Corção, o mestre simplesmente ignorar o assunto proposto por um de seus alunos, mostrando em duas palavras o porquê de não podermos perder tempo com aquilo. Ao mesmo tempo, nas situações mais difíceis e delicadas, com que genial simplicidade ele mostrava a solução teológica mais exata, sempre voltada para a salvação das almas, e com um aspecto constante – a fácil compreensão – pois que Corção era, realmente, um animal-professor, como ele próprio gostava de dizer.
Um dos pontos em que esse espírito sobrenatural aparece de modo impressionante é a sua compreensão sobre a natureza da crise que submerge a Igreja Católica no cataclismo atual. Desde cedo ele entendeu que estava em jogo muito mais do que os aspectos diversificados e pontuais comentados pela maioria dos defensores da Tradição. Via a importância de defender a missa contra a revolução protestante emanada de Vaticano II, ou de criticar as edições absurdas das bíblias modernistas, ou ainda os catecismos heretizantes produzidos pelas Conferências Episcopais com o aval da Roma modernista. Porém, seu espírito aguçado exigia de si mesmo e dos seus alunos uma compreensão exata da natureza da crise: é a essência do catolicismo que está ameaçada. Porque “se o sal perder a sua força, para que servirá?”
Parece-nos importante levar ainda mais adiante a lembrança dos princípios do nosso fundador quanto à crise da Igreja, e para tanto, transcreveremos aqui o artigo “A Descoberta da Outra”, de 1977, na íntegra. Pedimos especial atenção dos nossos leitores aos termos precisos usados por Corção para definir a crise no que ela tem de essencial, os quais aparecem logo nos primeiros parágrafos. São eles que nos servem ainda hoje para a posição da Permanência diante da crise que perdura.

 

“Um leitor que se diz assíduo, numa longa conversa telefônica, estranhou o pós-conciliar. O leitor entende o termo como se significasse a mesma Igreja Católica, na era pós-conciliar. Bem sei que nesse período conturbado continua a existir, na terra, a Igreja Católica dita militante. Ora, minha sofrida e firme convicção, tantas vezes sustentada aqui, ali e acolá é que existe, entre a Religião Católica professada em todo o mundo católico até poucos anos atrás e a religião ostensivamente apresentada como "nova", "progressista", "evoluída", uma diferença de espécie ou diferença por alteridade. São portanto duas as Igrejas atualmente governadas e servidas pela mesma hierarquia: a Igreja Católica de sempre, e a Outra. E note bem, leitor: quando acaso der a essa outra o nome de Igreja pós-conciliar não quero de modo algum insinuar a infeliz ideia de que, após o Concílio, a Igreja de Cristo se teria transformado a ponto de tornar-se irreconhecível, devendo os fiéis de bem formada doutrina católica acreditar nessa nova forma visível da Igreja, por pura disciplina, ainda que a maioria das pregações e dos novos ensinamentos sejam ostensivamente diversos e as vezes opostos à doutrina católica. Não! A Igreja Católica e Apostólica continua a existir na era pós-conciliar, submetida a duras provações, mas sempre permanente e fiel guardiã do depósito sagrado.
Se o leitor me perguntasse agora quais são as essenciais diferenças que separam as duas religiões, eu responderia: diferença de espírito, diferença de doutrina, diferença de culto e diferença moral. Como terei chegado a tão assustadora convicção? Com muito sofrimento e muito trabalho, são milhares os católicos que chegaram à mesma convicção.
Começamos por confrontar os novos textos, as novas alocuções, as novas publicações pastorais com a doutrina ensinada até anteontem. A começar pelos textos emanados dos mais altos escalões, citemos alguns daqueles que mais dolorosamente e mais irresistivelmente nos levaram à conclusão de que se inspiram em outro espírito e se firmam em outra doutrina. Entre os textos conciliares, citamos os seguintes: Constituição Pastoral sobre a Igreja e o Mundo Atual (Gaudium et Spes); Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio); Declaração sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis Humanae); Discurso de Encerramento do Concílio, 7 de Dezembro de 1965; Institutio Generalis do Novus Ordo Missae: Ponto 7 (na primeira redação, de 1967, e principalmente a segunda redação de 1970). Além desses documentos dos mais altos escalões, poderíamos encher as páginas deste jornal com obras e pronunciamentos de cardeais, arcebispos, bispos e padres que eram bisonhos, retraídos e discretos quando tinham vaga consciência de suas deficiências filosóficas e teológicas e que subitamente descobrem que na "nova Igreja" podem dizer tudo o que lhes vem à boca que fala ou à mão que escreve. O que menos se conhece é a Teologia, mas o que mais abunda na Nova Igreja são os "teólogos da libertação".
Devemos dar especial atenção aos pronunciamentos das Conferências Episcopais que rarissimamente dizem coisa parecida com a Santa Religião ensinada por Jesus Cristo. Basta prestar atenção, ler, e comparar toda a prodigiosa logorreia dos reformadores com o que já lemos dos santos doutores, dos santos Papas, e de toda a Tradição católica. Eles não falam a mesma língua de nossa Mãe Igreja, não usam o mesmo léxico, não seguem o mesmo espírito. Evidencia-se com brutalidade dolorosa o fato de ter sido a Igreja invadida, ou de ter se deixado seduzir pelos mesmos inimigos que combatia. Uma das notas mais características do novo espírito é a da tolerância erigida em máxima virtude, e o correlato horror por qualquer espécie de luta ou combate. Os novos levitas corrompem a juventude, destroem as famílias, mas quando alguém ergue a voz pedindo punição severíssima para os seqüestradores e para os traficantes de drogas, logo começam a esganiçar gritinhos: Violência, não! Violência, não!
E aqui encerro a concisa resposta que dou ao leitor escandalizado: foi a atenta observação desses fatos, foi a paciente leitura de himalaias de mediocridade e foi a comparação gritante entre o que ensinam e o que ensinaram os santos, e creio que foi principalmente a graça de Deus certamente pedida cada dia, cada hora, nessa especial e gravíssima intenção, que nos levaram a essas conclusões. Se é preciso usar o recurso dos gritos que tanto usam hoje, gritarei eu também, e não esconderei a reação que tive em 1965 após a primeira leitura da Constituição sobre a Sagrada Liturgia: corri ao telefone do amigo mais próximo já chorando, já engasgado de soluços que me sacudiam o corpo todo. E gritei: eles estão loucos! Eles estão loucos! E mais não digo.
Vejo em seguida nos meios católicos um dilúvio de calamidades pavorosas. Nas melhores famílias católicas, tradicionalmente católicas, os jovens, pervertidos pelos professores de colégios católicos, se transformam em anormais, comunistas, criminosos seqüestradores, ou em inutilizados toxicômanos. Meu Deus! Como pode? Como pode? Como Pode? O mistério da permissão divina nos traz vertigens quando pensamos em tantos bons pais tão terrivelmente atingidos.
Mas quando pensamos que a crise de costumes que dissolve todos os valores morais de uma civilização é principalmente gerada pela impiedade e pelo orgulho dos homens, que reivindicam todas as liberdades e todos os direitos; e principalmente quando pensamos que é exatamente nessa hora sombria que os homens de Igreja julgam ter feito uma descoberta muito inteligente, e muito oportuna – a de se abrir para o mundo e até a de nele procurar inspirações para o novo humanismo que apregoam – então, com temor e terror, pensamos que a misteriosa permissão divina, já nos foi profeticamente revelada na Sagrada Escritura, e durará até o dia em que os homens descobrirem apavorados que desprezaram Deus, que contrariaram Deus, que se riram de Deus. E, nesse dia de espantosa desolação descobrirão "que não passam de homens" e que só Deus é o Senhor.
Neste ponto da entrevista, o leitor me faz uma pergunta muito séria e de importância capital:
— Qual é, na sua convicção, o traço principal, o conteúdo essencial dessa Outra religião que o senhor vê nos recintos da Igreja Católica?
— Mais uma vez insistido neste ponto: a desordem que se observa nos meios eclesiásticos e que produz tais malefícios, não pode ser apenas uma pura desordem. A desfiguração da Igreja do Verbo Encarnado, isto é, da religião do Deus que se fez homem, tem uma figura: a da religião do homem que se faz Deus. Essa é a figura da desfiguração.
— Não foi o próprio Papa Paulo VI quem disse no discurso de encerramento do Concílio que "a Igreja de Deus que se fez homem encontrou-se no Concílio com a religião do homem que se faz Deus"?
— Exatamente. E se o amigo continuar a atenta leitura desse documento, se convencerá de que não exagero nem me perco em fantasias se lhe disser que a figura essencial da Outra é a de um humanismo que se torna uma nova religião que difere do cristianismo por seu desolado naturalismo, isto é, pela ausência da mais bela de todas as obras de Deus – a ordem da graça e da salvação.
Eles tentam disfarçar a chatice e a tristeza sinistra e feia, com retalhos de cristianismo sem vida mas a anemia profunda do corpo sem sangue está na visibilidade da Outra que só serve para eclipsar a Santa Visibilidade da Igreja de Cristo.
— E como poderá a Igreja Católica desembaraçar-se desses equívocos e voltar a ser visível, dourada, um pouco mais hoje, um pouco menos amanhã, mas sempre anunciando aos homens, aprisionados no efêmero, um Reino que não é deste mundo?
— O senhor espera ainda ver neste mundo a Igreja Militante em todo o seu esplendor?
— Não. A desordem é profunda demais e chegou aos vasos capilares dos membros da Igreja. Se ela não fosse obra sobrenatural de Deus eu diria, em termos usados pelos físicos, que a desordem é sempre prodigiosamente irreversível.
E, no caso, a improbabilidade de tal recuperação seria expressa por números espantosos como dez elevado a menos mil (10-1000) que, na verdade, não exprimem nada. Não são números concretos nem entes de razão; quando muito diríamos que só são entes de giz no quadro negro. Emile Borel dizia francamente que, diante de tais improbabilidades, é melhor dizer simplesmente que são impossíveis. Mas nós aqui estamos falando da mais maravilhosa das obras de Deus:
"Deus qui humanae substantiae dignitatem mirabiliter condidisti, et mirabilius reformasti"
E o que a nós parece impossível, é possível para Deus. Mas nossa esperança teologal não nos obriga a esperar acontecimentos neste mundo. No ponto da vida em que me acho, só posso esperar, pela misericórdia de Deus e pelo Sangue de Cristo, a felicidade de ver brevemente a Igreja do Céu em toda a sua beleza eterna e fora do alcance dos flagelos humanos.
E é a alegria dessa esperança teologal que, nestes dias de transição desejo aos meus leitores e companheiros de trabalho”.
Assinalemos a diferença por alteridade, citada por Corção. Inspira-se na epístola aos Gálatas, 1, 6. “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema”. De onde se conclui que não é necessário que se ensinem heresias, doutrinas opostas, basta que se ensine outra coisa. Por isso, os textos do Concílio não precisam ser heréticos para que sejam rechaçados pela Igreja de sempre e por todos os fiéis católicos. O que devemos sempre buscar é a identidade da Igreja. O mesmo Corção dizia: “Nenhuma reforma pode prevalecer sobre a identidade e sobre a continuidade dessa identidade”.
A natureza dessa Outra é também assinalada por Gustavo Corção: “Estamos evidentemente diante de alguma Coisa alterada, ou adulterada, que em vários sinais difere profundamente da Igreja Unam et Sanctam. Não podendo crer que a própria Igreja se alterou e se adulterou, como pretendem os que começam por duvidar de sua perseverante identidade, só nos resta pensar que outra substância está nos meios católicos sem ser católica. E faz questão de se inculcar como católica, pelos sinais exteriores e pelos títulos, não fazendo porém nenhuma questão de ser católica pelas idéias que difunde: ‘decifra-me ou devoro-te’”

Em outra ocasião publicamos um artigo comentando essa doutrina de Gustavo Corção sobre a natureza da crise, onde procuramos dar maior precisão ao modo como esta Outra atua sobre a Igreja verdadeira:

“a invasão de um câncer espiritual, como uma pele, uma fina película transparente e, sobretudo, viva, que engole a Igreja católica tornando-a prisioneira, sem movimentos próprios, sem palavra, sem rito nem lei. Como todo câncer, ela nasce de dentro e se desenvolve sem controle do organismo, levando-o por um caminho de morte. A transparência desse câncer vem do fato que o governo da Outra é feito pelos mesmos homens, a mesma hierarquia que deveria governar a Igreja católica”.

E adiante:

“O câncer que cobre a Igreja não é apenas uma metáfora. É uma realidade analógica, um verdadeiro câncer espiritual. Como tal, ele lança seus tentáculos mórbidos no interior do Corpo Místico de Cristo para sugar sua vida e a eficácia de seus ritos. Ele domina de tal modo a Esposa de Cristo, ele a mantém sob tal controle que esta vê as conseqüências terríveis dessa usurpação de sua vida sem poder nada fazer, impotente para vir em auxílio de seus filhos cegos e conduzidos à morte da heresia, do sacrilégio e do pecado. Todos os sacramentos e sacramentais, tudo o que dependerá de um rito, será assim sugado do coração mesmo da Igreja. E os fiéis serão enganados quando, assistindo a um rito novo, pensarão ver nele algo de ainda católico."

Foi pois, com esse nivel de exigências doutrinárias que fomos formados na Permanência. Aprendemos a conhecer a crise não apenas pelos exemplos práticos mais ou menos escandalosos, mas por sua natureza e pela fé sobrenatural necessária para percebermos o mistério que está por detrás da situação atual.
A Permanência aprendeu de seu fundador a manter-se sempre igual, pacifica e fiel, profundamente ligada à vontade de Deus, à adesão devida ao Mistério de Deus, verdade primeira, e que se declara e manifesta pela profissão de fé católica, mesmo nos momentos mais confusos e nebulosos que nos foi dado viver.
Devemos permanecer nesses princípios se pretendemos continuar sendo a Permanência de Gustavo Corção, de Julio Fleichman e dos demais mestres que nos precederam.

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