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A semana do gari

Se o leitor imaginava que o assunto de hoje seria a Carta Apostólica de Paulo VI, enganou-se redondamente. Eu também me enganava, e acabaria escrevendo alguma coisa de meu catálogo de aflições de acaso a vista cansada não fora atraída para o canto da página 3 do mesmo “O Globo” onde começara a ler o documento pontifício. Lá estava, num anúncio discreto e encantador, uma carrocinha de lixeiro cheia de flores, e em cima estes dizeres líricos e proféticos: “... ALGUM DIA SÓ RECOLHEREMOS FLORES...” Fiquei inteirado: estamos na Semana do Gari. Sim, leitor amigo, na exígua semana de seu irmão varredor que você de longe vê na sua roupa de fogo desbotado a tentar uma façanha maior do que as famosas de Hércules: limpar os caminhos dos homens.

 

Assim sendo, disse eu com meus velhos botões, não posso faltar. O Papa espera. O gari é que só tem essa escassa oportunidade de cantar sua esperança. Não posso faltar.

 

Creio que, entre as recordações vez por outra aqui largadas, já disse qual foi o meu primeiro (e último) cargo público. Repito hoje com muita honra: fiscal de lixeiro.

 

Naquele tempo, lá em casa, as vacas andavam esqueléticas. Eu precisava arranjar um emprego, e arranjaram-me aquele. Assinava o ponto em São Cristóvão, às 4 horas de madrugada, e recebia do chefe o itinerário que devia percorrer a carrocinha puxada por um burro e conduzida à distância por um lixeiro maltrapilho que mandava o burro parar e andar com uns gritos especiais que só o animal entendia.

 

Devia eu acompanhá-los de longe. Nos primeiros dias pareceu-me odioso o ofício de fiscalizar um pobre tão pobre. Morreria de vergonha se ele me visse e soubesse que eu o espiava. Tentei seguir itinerários diferentes, mas então afligia-me a idéia de não estar obedecendo à ordem que me haviam dado. Afinal encontrei uma fórmula: em vez de acompanhá-lo de longe como fiscal, acompanha-lo-ia de perto como lixeiro suplente ou como amigo. E assim as quatro horas de serviço encurtaram para nós ambos porque íamos andando e conversando. Lembro-me bem de um que tinha a minha idade e deixara em Muriaé uma namorada chamada Emília. Abriu-se comigo: como se conheceram, quem era ela, o que diziam quando conversavam na praça da Matriz. Um dia perguntou-me se eu poderia pôr numa carta toda a saudade que fervia nele. Mas essa carta deveria começar assim: “Idolatrada Emília”. Verti na carta, a seu pedido, todas as clássicas comparações das partes do corpo com as demais riquezas do universo — alabastro, marfim, safira, asa de graúna etc. — e pedi-lhe que abrisse mão do “idolatrada”, mas ele ficou irredutível.

 

Outras vezes filosofávamos; e enquanto o burrico obediente ia arrastando devagar as sobras, os detritos e as sujeiras de uma longa rua adormecida, nós dois, irmãos pelo lixo, conversávamos sobre as coisas simples e luminosas que são os assuntos irresistíveis de todas as almas eternizadas pela humildade e pela pobreza. Não me lembram hoje os nomes dos garis que fiscalizei ou acompanhei, mas de uma coisa estou certo: não é como intruso, nem como letrado discursador, que me intrometo na semana dos varredores; entro na festa como um velho gari aposentado que, mercê daquela prática adquirida, se obstina em querer ainda hoje despejar o lixo que afeia e entristece a Cidade de Deus.

 

E por falar em Cidade de Deus, junto os pés e num salto galgo vinte anos de vida mal vivida. Acho-me agora às portas daquela Cidade a procurar, como num pesadelo, o itinerário de um gari extraviado. Nessa procura encontrei um moço poeta que acabara de escrever um poema que começava assim:

 

Varredor que varres a rua,

Tu varres o Reino de Deus...

 

E que terminava numa esperança parecida com o anúncio de hoje. Chamava-se Lauro Barbosa, tinha idade para ser meu filho, mas teve mão para guiar-me como um pai, como um padre.

 

 

 

Recordar ou coçar, é só começar. Se a coluna das quintas e sábados não tivesse seus limites, e não devesse eu, por vocação de lixeiro perpétuo, assinar ponto e obedecer, a recordação vadia se espraiaria, e todo o papel do jornal seria pouco para patentear a gratidão que carrego por tudo o que vi e ouvi e pelo que recebi de todos, a começar pelos humildes companheiros de perambulantes e fedorentas matinas. Cada um de nós traz em si encolhido, recolhido, um personagem de Dostoievsky. O meu já várias vezes me compeliu a beijar o chão por onde passam os pés, e a beijar os objetos, a cadeira, esta mesa, que mãos invisíveis continuam a aplainar para mim, eternamente.

 

Hoje, o meu Marmeladov me atira de joelhos, com um cachação, a me dizer severamente que não seja esquecediço e que reze pelos meus irmãos varredores que aqui, ou alhures, continuam a varrer o Reino de Deus.

 

Eu também, amigo e irmão gari de antigamente e de hoje, eu também vivo a acompanhar uma carrocinha, a recolher lixo e a sonhar um dia em que SÓ RECOLHEREMOS FLORES... Quem foi o poeta municipal, perdão, estadual que escreveu para nós garis estas palavras que soam como orações? Deus o acrescente. Deus lhe pague.

 

O Rei David, grande Profeta e cantor, nunca fez, que eu saiba, a experiência de lixeiro que nós fizemos, mas sua alma imensa adivinhou a dor comum de todos os peregrinos, e por isso pôde concluir na substância de seu Salmo esta esperança de lixeiro:

 

... vão andando, chorando, carregando lixo, mas

um dia, ALGUM DIA, voltarão jubilosos, cantando e

sobraçando palmas e ramos de flores...

 

 

 

Conversa em Sol Menor, Agir 1980.

 

 

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