Skip to content

Art. 2 — Se os dons são necessários à salvação do homem.

O segundo discute-se assim. — Parece não serem os dons necessários à salvação do homem.
 
1. — Pois, os dons se ordenam a uma certa perfeição, que ultrapassa a perfeição comum da virtude. Ora, não é necessário à sua salvação o homem conseguir tal perfeição, que ultrapasse o estado comum da virtude, pois tal perfeição não é objeto de preceito, mas de conselho. Logo, os dons não são necessários à salvação do homem.
 
2. Demais. — Para a sua salvação basta ao homem proceder bem em relação ao divino e ao humano. Ora, pelas virtudes teologais o homem procede bem em relação ao divino; e pelas morais, em relação ao humano. Logo, os dons não lhe são necessários para a salvação.
 
3. Demais. — Gregório diz, que o Espírito Santo dá a sabedoria, contrária à estultícia; o intelecto, contrário ao embotamento; o conselho, contrário à precipitação; a coragem, contrária ao temor; a ciência, contrária à ignorância; a piedade, contrária à dureza; e, contrário à soberba, o temor1. Ora, as virtudes constituem remédio suficiente para se extirparem todos esses vícios. Logo, os dons não são necessários à salvação do homem.
 
Mas, em contrário. — O mais elevado dos dons é a sabedoria; e o ínfimo, o temor. Ora, ambos são necessários à salvação, pois da sabedoria diz a Escritura (Sb 7, 28): Porque Deus a ninguém ama senão ao que habita com a sabedoria; e do temor (Ecle 1, 28): Porque aquele que está sem temor não poderá ser justificado. Logo, também os dons médios são necessários à salvação.
 
SOLUÇÃO. — Como já se disse2, os dons são umas perfeições do homem, que o dispõem a seguir facilmente o instinto divino. Por onde, quando não basta o instinto da razão, mas é necessário o do Espírito Santo, é, por conseqüência, também necessário o dom.
 
Ora, Deus aperfeiçoa a razão do homem de dois modos: naturalmente, i. é, pelo lume da razão natural; e por uma perfeição sobrenatural, que são as virtudes teologais, como já dissemos3. E embora esta segunda perfeição seja maior que a primeira, contudo a primeira o homem a tem de modo mais perfeito que a segunda. Pois, aquela ele a tem de posse plena; esta, imperfeitamente, pois amamos e conhecemos a Deus imperfeitamente. Ora, é manifesto que o ser de natureza, forma ou virtude perfeita, pode, por si mesmo, obrar por meio delas, sem excluir contudo a ação de Deus, que obra interiormente em toda natureza e em toda vontade. Mas o ser de natureza, forma ou virtude imperfeita não pode obrar por si, se não for movido por outro. Assim, o sol, perfeitamente lúcido, pode iluminar por si mesmo; porém a lua, que tem imperfeitamente a natureza da luz, não ilumina senão iluminada. Também o médico conhecedor perfeito da arte médica, pode obrar por si; mas, o seu discípulo, ainda não plenamente instruído não o pode, se não for instruído por aquele.
 
Por onde, quanto ao que cai sob a alçada da razão humana, em ordem ao fim conatural ao homem, este pode obrar pelo juízo da razão. Haverá, porém uma bondade superabundante se, mesmo nesse caso, Deus o ajudar por um instinto especial. Por onde, segundo os filósofos, nem todos os que tinham virtudes morais adquiridas as tinham heróicas ou divinas. Porém, em relação ao fim último sobrenatural, ao qual a razão nos move enquanto informada, de certo modo e imperfeitamente pelas virtudes teologais, essa moção por si mesma não basta, se não lhe advier do alto o instinto e a moção do Espírito Santo, conforme àquilo da Escritura (Rm 8, 14.17): Porque todos os que são levados pelo Espírito de Deus, estes tais são filhos e herdeiros de Deus; e ainda (Sl 142, 10): O teu espírito que é bom me conduzirá à terra de retidão. Pois, a herança daquela terra dos bem-aventurados ninguém a pode alcançar se não for movido e conduzido pelo Espírito Santo. E portanto, para conseguir esse fim, é necessário ao homem ter o dom do Espírito Santo.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Os dons excedem a perfeição comum das virtudes, não quanto ao gênero das obras, do modo pelo qual os conselhos precedem os preceitos; mas quanto ao modo de obrar, enquanto o homem é movido por um princípio mais alto.
 
Resposta à segunda. — As virtudes teologais e morais não aperfeiçoam o homem em ordem ao último fim, de modo que ele não precise de ser movido por um certo instinto superior do Espírito Santo, pela razão já dita.
 
Resposta à terceira. — A razão humana não pode conhecer tudo, nem tudo lhe é possível, quer a consideremos como dotada de perfeição natural, quer como aperfeiçoada pelas virtudes teologais. E por isso não pode livrar-se sempre da estultícia, e do mais que lembra a objeção. Mas aquele, a cuja ciência e poder tudo está sujeito, nos livra, pela sua moção, de toda estultícia, ignorância, embotamento, dureza e demais deficiências. Por onde, os dons do Espírito Santo, que nos levam a lhe seguir docilmente o instinto, se consideram dados contra essas deficiências.

  1. 1. II Moral., cap. XLIX.
  2. 2. Q. 68, a. 1.
  3. 3. Q. 62, a. 1.
AdaptiveThemes