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O sentido do mundo hispânico

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Conferência proferida no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, sob o patrocínio do mesmo Instituto e da Casa de Cervantes, a 28 de abril de 1960. O autor era o editor da antiga e excelente revista Hora Presente.

 
O SENTIDO DO MUNDO HISPÂNICO
  
Síntese de continentes, de raças, de culturas.
 
Pelo que ensinam os geólogos e segundo as hipóteses mais plausíveis concernentes à formação da bacia mediterrânea e do oceano Atlântico, surge a península ibérica como autêntica Euráfrica. A etnografia parece confirmá-lo, acusando nos iberos povos vindos do norte da África antes dos mouros. E se muitas coisas atribuídas aos árabes pertencem originariamente aos espanhóis — como o “arco de ferradura” já existente nas igrejas ao tempo dos godos, ou o canto do flamenco e os bailados andaluzes provenientes dos primitivos habitantes de Tartesos — o fato é que o traço de semelhantes coisas na região marroquina tem servido de base aos historiadores para aí indicarem uma herança comum a espanhóis de um e de outro lado do estreito de Gibraltar.
 
A verdade é que as Espanhas representam um ponto de interseção entre vários mundos. Não se trata apenas da conjugação do europeu com o africano. Cadinho de raças e culturas; cenário do teatro grego, do circo romano, dos torneios medievais, das touradas de todos os tempos; palcos dos autos de Calderón e auditório de Mestre Francisco de Vitória; céu estrelado das investigações do Infante D. Henrique para juntar “o Levante com o Poente”; campo das correrias do Cid e das bravuras de Zumalacárregui, das descrições de Azorin e das rimas de Gabriel y Galán... tudo isso é a península hispânica.
 
Dos píncaros nevados aos bosques floridos, dos cálamos que lembram a Palestina aos pomares de frutas tropicais, tudo aí parece falar em linguagens de síntese e universalidade, como que formando o quadro natural do tão complexo temperamento dos seus homens. No perpassar do mundo antigo, do medievo e dos tempos modernos, essa região do orbe tinha realmente “de destinar-se, quando não por outros motivos, pelos geográficos, a centro de criação, expansão e defesa de tudo quanto é ecumênico1, tudo quanto tem caráter universal humano e, por vocação, CATÓLICO” 2.
 
As variedades geográficas fundem-se nas harmonias da História. Castela e Leão, as Províncias Vascas e Navarra, Astúrias e Galiza, Aragão e Catalunha, Valência e Múrcia, os arquipélagos das Baleares e das Canárias, formam esse conjunto de cuja unidade política se exclui Portugal, não sem permanecer na mesma linha de continuidade e significação histórica.
 
Coube a tais povos a missão de alargar as fronteiras do mundo civilizado e transmitir a novos mundos a herança da Cristandade. A fim de poderem realizar tão grandiosa tarefa, desde os primeiros tempos tiveram de lutar incessantemente para manter a sua unidade espiritual: contra o arianismo primeiro; depois contra os mouros, durante quase oito séculos; e finalmente, na época moderna, contra a Revolução, vinda da Europa, e repelida nas guerras do Roussillón, da independência e da Constituição, nas campanhas carlistas e no alzamiento de 19363.
 
É à luz de tal significação da história dos povos unificados por Castela, que podemos compreender o alcance da Inquisição espanhola. Felipe II ao seu tempo surge diante da revolta de Lutero como o campeão da Cristandade, empenhado em manter aquém dos Pirineus a unidade espiritual que a Europa perdera. Eis o mais profundo e vitorioso sentido da sua obra. O desastre da Invencível Armada, o despontar do domínio britânico sobre os mares, o fracasso da sua política nos Países Baixos impediram ao grande Caluniado de completar essa obra, refazendo a unidade da Europa perdida após Carlos V, o último Imperador do Ocidente.
 
Compreende-se assim o contraste entre a Europa moderna protestantizada, dividida, presa fácil da Revolução, e as Espanhas unidas na linha da tradição católica. Precisamente com Felipe II, além desta unidade de cultura, chegou-se à unificação política de península. Portugal restaurou a sua independência na jornada gloriosa de 1640, continuando a seguir a mesma rota de tradição cultural. E não é em vão que portugueses e espanhóis, como vimos de início, chamam de raia à linha divisória que os separa: a fronteira propriamente dita está nos Pirineus, onde, se não é a África que termina, é a Europa que começa.
 
O que estamos dizendo não implica em negar que a cultura hispânica seja um ramo do tronco da cultura européia. Mas há um momento histórico em que os valores substanciais desta se desagregam, enquanto aquela, a cultura hispânica, continua a conservá-los, a defendê-los com intransigência e a implantá-la em novos continentes e em nacionalidades novas que vai formando.
 
Tais valores são os da Cristandade. Enquanto a Europa protestantizada e racionalista se submete a um processo de desagregação religiosa e política, Portugal e Espanha, na “dilatação da Fé e do Império”, alargaram os horizontes da Cristandade, que se contrai no velho mundo. Tornam-se povos missionários, e, ao mesmo tempo em que a cultura européia se desintegra, a cultura hispânica — abrangendo o grande ramo da cultura lusíada no Brasil, ou seja a “civilização luso-tropical”, segundo a expressão de Gilberto Freyre — floresce em terras distantes, portadora do legado da unidade católica até os confins da Ásia e da América.
 
Assim os povos da península finistérrica da Europa, na sua vocação universalista, ecumênica4, passam a constituir verdadeiramente o finis terrae.
 
Referindo-se à Europa moderna, Francisco Elias de Tejada, um dos que melhor têm sabido compreender e sentir o nosso tema, escreve: “o que começa nos Pirineus é o Ocidente pré-europeu, uma zona onde ainda alentam vestígios arraigadamente tenazes da Cristandade, que ali se refugiou depois de ter sido suplantada na França, Inglaterra ou Alemanha pela visão européia, secularizada e moderna das coisas” 5.
 
E prosseguindo, faz ver que a Cristandade concebia o mundo como “agrupamento hierárquico de povos, entrelaçados segundo princípios orgânicos, subordinados aos astros de São Bernardo de Claraval, ao sol do Papado e à lua do Império”. As heresias eram numerosas, mas passavam como nuvens e borrascas, sem alterar a quietude do céu teológico, e as lutas internas não conseguiam quebrar a fraternidade dos povos, sempre unidos na defesa e arremetidas contra o inimigo comum: as Cruzadas, a Reconquista.
 
Aquele momento histórico, em que se dá a ruptura desta unidade e de um tal ordenamento hierárquico, é o período entre 1517, ano da publicação das teses de Lutero contra as indulgências, e 1648, quando são assinalados os tratados de Westfalia. Neste decurso de tempo aponta Elias de Tejada cinco rupturas sucessivas: a ruptura religiosa do protestantismo; a ruptura ética, na obra de Maquiavel; a política, através de Bodin, fornecendo os instrumentos teóricos para a justificação do absolutismo; a jurídica, depois de Grócio e Hobbes; e por fim a ruptura da comunidade orgânica das nações. Esta última se verificou ao findar da Guerra dos Trinta Anos, em Westfalia, quando a res publica christiana foi reduzida ao mecanicismo dos Estados soberanos uns em face dos outros, regulando as suas contendas com os critérios contratualistas daí por diante adotados. Para o quadro ser completo resta mencionar a ruptura filosófica a partir de Descartes, traçando os caminhos da filosofia moderna, nos quais o marco plantado por Kant indicará o rompimento maior e definitivo.
 
A chamada paz de Augsburgo aplicara a regra cutus regio eius religio para solucionar as guerras civis de natureza religiosa. E aqueles tratados de 1648 consagravam um direito internacional baseado no sistema egoístico do equilíbrio de potências, em lugar da ordem ecumênica das tradições da Cristandade. Era a moderna Europa, a surgir sob o signo revolucionário. E enquanto isso, Frei Francisco de Vitória, na cátedra de Salamanca, recolhia o patrimônio destas tradições e renovava o direito das gentes, inspirando-se no direito natural da escolástica, em declínio na Europa mas florescente na Espanha e em Portugal.
 
Dessa forma, a cultura hispânica retrucava à cultura européia desgarrada de suas fontes autênticas. Mas a resposta ia ser dada sobretudo pela Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loiola, e pela obra reformadora do Concílio de Trento, em que foi tão valiosa e decisiva a contribuição das Espanhas.
 
O humanismo da Renascença, que vinha transformar o clima espiritual dos tempos modernos, não teve na península ibérica aquele cunho acentuadamente naturalista e neopagão que o caracterizou noutras partes. Seus elementos eram assimilados pela cultura católica, pujante no século de ouro, e que nas Américas espanhola e portuguesa também ia absorvendo os elementos nativos aí encontrados. O barroco ficava sendo a réplica hispânica do classicismo.
 
Precisamos chegar ao século XVIII para vermos as idéias européias modernas, semeadoras da Revolução, penetrarem nas duas nações penínsulares. Isto se dava sob o patrocínio do “despotismo esclarecido”, graças principalmente aos poderosos ministros Pombal, Floridablanca e Aranda.
 
A infiltração de tais idéias na formação das novas gerações explica o dissídio que no século seguinte vai operar-se entre o povo e as minorias dirigentes, estas com a mentalidade cada vez mais apartadas do sentir nacional, e aquele, entranhamente arraigado ao estilo de vida e às crenças tradicionais. As elites aderiam à filosofia das luzes e ao liberalismo, enquanto o povo repudiava estas inovações, vindas do estrangeiro, sem poder entendê-las bem, mas percebendo, por uma espécie de intuição divinatória, o seu caráter ímpio. O Estado moderno “naturalista e secularizado”, segundo a expressão de Werner Sombart, chocava-se com a maneira de ser dos povos hispânicos, substancialmente identificados à visão católica do mundo.
 
Só assim se podem compreender a guerra da independência e as guerras carlistas.
 
Naquela, o povo se levantava para expulsar não apenas o invasor, mas sobretudo o hereje, pois Napoleão, com a ponta das baionetas do seu exército, vinha implantando, por toda a parte, os princípios do liberalismo de 1789. Enquanto esse povo derrama o seu sangue em defesa da Espanha tradicional, os políticos de educação moderna, na retaguarda, aviam novas receitas constitucionais copiadas de formulas francesas. E é muito significativo que, poucos anos mais tarde, quando o Duque de Angoulême, à frente dos Cem Mil Filhos de S. Luís, transpõe a fronteira dos Pirineus, chefiando uma expedição contra-revolucionária para repor na Espanha a antiga ordem de coisas, os mesmos homens, que se haviam levantado em massa contra as tropas napoleônicas, o recebem com entusiasmo e o saúdam como a um libertador.
 
Quanto ao carlismo, em seus cem anos de lutas, representa a fidelidade à história da Espanha. As populações das províncias do norte, que tanto se destacaram nessas lutas, tratavam de salvar a obra da guerra da independência. Tomavam armas para defender a Espanha castiça, tal como o haviam feito os seus antepassados em face do poderio do crescente, e mais tarde ao barrar a marcha do protestantismo ou ao impor as primeiras humilhações a Bonaparte.
 
Bem o percebi passando por Burgos, cabeça de Castela e vizinha da legendária Navarra6. Depois de uma visita à Cartuxa de Miraflores e contemplando o crepúsculo às margens do Arlanzón, era-me dado conversar com a gente simples do povo, nas ruas daquela cidade que fora a capital nacionalista durante a guerra civil. Homens simples e sem muita instrução discorriam sobre a situação política da Espanha sobre os princípios da tradição nacional pelos quais se haviam batido na guerra, com a mesma firmeza de convicções dos chefes da Comunhão Tradicionalista, que me haviam recebido em Madrid, com a mesma clareza de idéias de um universitário requeté ou de um professor carlista.
 
Poucos países que se vangloriam de praticar a democracia podem apresentar um caso tão frisante de opinião pública esclarecida e sólida como o dessas populações  do norte da Espanha, sempre ciosas dos seus fueros, das liberdades concretas que desde a guerra da independência até à Cruzada de 1936 contra o comunismo defenderam com o próprio sangue. Em nome dessas liberdades concretas se opuseram outrora à liberdade abstrata da Revolução Francesa. E a persistência do localismo regional — que nada tem de separatista — é ainda hoje na Espanha o grande obstáculo à política centralizadora, uma garantia em face das tentativas de Estado totalitário.
 
Um veterano da terceira guerra carlista, que distribuía boletins clandestinos em Burgos, dizia-me que só a Fé pode explicar a perseverança e a intransigência dos carlistas durante um século de lutas consecutivas contra a monarquia constitucional, a república socialista e o falangismo.
 
“Deus, Pátria e Rei” — é a divisa dos requetés, os bravos voluntários que, sob o comando do general Mola, em vez de usarem capacetes de aço, combatiam ostentando a sua tradicional boina vermelha.
 
E aquelas palavras do veterano burgalês evocavam-me um seu correligionário de Barcelona, filho de anarquista e educado na “Escola sem Deus” de Ferrer. Sem que o pai soubesse, começou a freqüentar o catecismo paroquial... e um belo dia seus familiares eram surpreendidos com a notícia de que o menino fora ajudar a defender a igreja-matriz de um ataque de socialistas tentando profaná-la.
 
“Foi o catecismo que me fez carlista”, concluía ao contar-me a sua história.
 
São casos estes bem expressivos de uma força espiritual, que não é apenas a manifestação de um movimento político em prol da restauração da monarquia tradicional e popular; é a chama inextinguível de perene gênio hispânico, mescla de cavalaria e misticismo, produto da fusão de raças, povos e continentes sob o signo unitário da Cruz.
 
Em sua lição de abertura dos cursos de 1942-1943 da Universidade de Madri, Manuel Garcia Morente afirmava que na Espanha a Nação e a Religião se identificavam de tal maneira que deixar de ser católica eqüivaleria, para a Espanha, deixar de ser hispânica. As empresas católicas foram sempre, na Espanha, nacionais: assim a Reconquista, assim a luta contra o protestantismo. As empresas nacionais foram sempre, na Espanha, católicas: haja vista a expansão marítima e o império das Índias, a guerra da independência e o movimento libertador de 1936.
 
De Portugal o mesmo se pode dizer. O catolicismo é algo substancial à nacionalidade. Quando os dirigentes desses dois povos se afastaram da constante linha de rumo da sua história, o Estado entrou em conflito com a Nação. Foi o processo acentuado a partir do século XVIII, suscitando crises de consciência nacional, que entre os homens de letras e de pensamento daria origem aos “vencidos da vida” em Portugal e à “geração de 98” na Espanha. Conseqüências de um desgarramento que, nos seus últimos anos, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, no grupo dos vencidos, começariam a perceber, e mais nitidamente chegaria a compreendê-lo, entre os homens de 98, Ramiro de Maeztu, redescobrindo aquela consubstancialidade essencial.
 
 
A VISÃO HISPÂNICA DO HOMEM
 
Maeztu passou também pela crise europeizante de que foram vítimas muitos de sua geração. Mas superando as vacilações e incertezas de seus companheiros, acabou por chegar às fontes cristalinas da cultura hispânica.
 
Ao lado de Victor Pradera, com os seus artigos na Acción Española, ajudou a preparar o movimento nacional. Depois deram ambos a própria vida pela causa que sustentavam. Quando o foram retirar do cárcere, numa fria madrugada de outubro, teve ainda tempo de receber a absolvição sacramental, dada por um sacerdote seu companheiro de cela, e em seguida não mais se soube dele.
 
A legenda de sua morte transmitiu-nos suas últimas palavras. Antes de ser fuzilado, fitando os verdugos, teria dito: “Vós não sabeis por que me matais! Eu sei por que morro: para que vossos filhos sejam melhores que vós!”.
 
Dom Ramiro morria para que prevalecesse, em toda a plenitude, o sentido hispânico da vida, alcançado por ele ao termo de suas andanças intelectuais e daí por diante objeto de uma doutrinação constante e corajosa. Conhecia, e por experiência, a maldade dos homens, mas acreditava na possibilidade de fazê-los bons: “morro para que vossos filhos sejam melhores que vós!” Em suas palavras está o pressuposto da visão hispânica do homem, bem diversa das concepções do ser humano elaboradas em seguida ao naturalismo da Renascença.
 
Um dos valores fundamentais da civilização do Ocidente, que se anuncia nas páginas da Antígona ou nos ensinamentos e no exemplo de Sócrates, é a idéia da dignidade da pessoa humana7. O Cristianismo fez o mundo compreender esta idéia na sua exata significação e em todo o seu alcance. As civilizações orientais baseavam-se num sistema em que a personalidade individual era absorvida pelo Todo: o totalitarismo do Estado egípcio, o panteísmo hindu, a aniquilação da alma no nirvana. A afirmação do homem como criatura de Deus a Deus destinada, da sua finalidade transcendente, da sua liberdade, da igualdade da natureza racional em todos os homens, coexistindo com as variações individuais e com as diferenciações sociais — eis uma das notas características do que costumamos chamar a cultura ocidental, nota esta procedente da ação civilizadora da Igreja, e por isso mesmo fruto de um dinamismo ecumênico tendente a abranger todos os povos da terra.
 
Ora, essa visão do homem sofre modernamente um desvio, mas subsiste de forma pronunciada entre os povos hispânicos. O desvio começa com o protestantismo e a Renascença, cuja “exaltação do indivíduo” foi posta em relevo por Burckhardt. A cultura essencialmente teocêntrica da Cristandade medieval segue-se, na Europa post-renascentista, uma cultura antropocêntrica. A tese calvinista da predestinação faz o homem separar o céu da terra, uma vez que, estando de antemão predestinado ao inferno ou ao paraíso, a sua conduta neste mundo nada tem que ver com a vida eterna a alcançar8. O mito do estado de natureza e do bon sauvage inspira a Rousseau a idéia de que o homem é naturalmente bom9. E em direção inversa à deste otimismo ingênuo, Hobbes afirma que o homem é um lobo para o homem, e Spengler vê no homem um animal de rapina, legitimando o poder absoluto do Estado e contribuindo para a justificação do totalitarismo.
 
Frente a um tal pessimismo, que acaba por anular a personalidade humana, e repelindo as exagerações dos individualismos modernos, a visão hispânica do homem mantém-se fiel à concepção católica reafirmada no Concílio de Trento.
 
O valor supremo do homem está em ser uma criatura de Deus, dotada de alma espiritual e imortal. Livre e debilitado pelo pecado original ele pode inclinar-se ao mal e ao bem, cuja prática lhe é assegurada pela graça divina. E, assim, todos podem salvar-se.
 
Escrevendo precisamente sobre o sentido do homem nos povos hispânicos, Ramiro de Maeztu fazia ver que tal foi a posição espanhola no século XVI, posição ecumênica de todos os povos de estirpe castelhana ou lusitana: “Ao tempo em que a proclamávamos em Trento, e quando pelejávamos por ela em toda a Europa, as naves espanholas davam pela primeira vez a volta ao mundo para poder anunciar a boa nova aos homens da Ásia, da África e da América”.
 
“Pode-se, pois, dizer que a missão histórica dos povos hispânicos consiste em ensinar a todos os povos da terra que se quiserem podem salvar-se, e que sua elevação não depende senão da sua fé e da sua vontade”.
 
Trata-se de um sentido transcedente da vida, que não nos leva, porém, à negação da individualidade concreta, à maneira do transcendentalismo oriental. Bem ao contrário. Há a idéia do homem na realidade existencial quotidiana, perfeitamente individualizado e vivendo nas comunidades em que se integra, às quais lhe proporcionam os elementos para plena expansão da personalidade. É o homem da família, da localidade urbana ou campestre, da região, de uma tradição nacional, e ao mesmo tempo, o fiel que pertence ao Corpo Místico.
 
Quer-se, por vezes, diferenciar o português do espanhol, dizendo que este é eminentemente individualista e aquele é, por temperamento e por hábitos, mais gregário. Na verdade, entretanto, o individualismo do espanhol não se opõe às manifestações comunitárias, tão sensíveis na sua vida de família, nas tradições foraleiras e na sua plena identificação com a universalidade católica.
 
Isto a que chamamos, nos espanhóis, o individualismo, não é mais do que o grande apreço ao valor da pessoa humana. Daí resultam os sentimentos de honra e de lealdade num grau nem sempre atingido por outros povos. Daí decorre também o respeito aos privilégios que marcam a maneira de ser de cada um e a posição de cada um na escala hierárquica do ordenamento social. Entre os privilégios devem ser incluídas as liberdades populares asseguradas pelos fueros, o que explica a coexistência da aristocracia e da democracia na tradição espanhola.
 
E tudo isso é a contradição do individualismo moderno, nas suas sucessivas modalidades.
 
O individualismo protestante, rebelando-se contra o magistério infalível, separa o fiel da comunidade eclesiástica, para fazer a vida religiosa depender do livre-exame, ou seja, da razão de cada um. O individualismo liberal, na ordem econômica, com a livre concorrência e a lei da oferta e da procura, instaura as relações abstratas entre o vendedor e comprador, produtor e consumidor, empregador e empregado. O individualismo político das democracias baseadas no sufrágio universal igualitário suprime o voto por classe ou profissão, fundamentando o poder político na vontade do povo-massa, constituído pelos cidadãos abstratos e desvinculados das pequenas comunidades, quais sejam a família, o município ou a associação profissional.
 
Eis a visão do homem gerada pelo individualismo da Renascença e da pseudo-reforma protestante. É uma visão anti-histórica, que separa o homem de suas tradições e acaba por preconizar, para todos os povos, os mesmos regimes políticos e as mesmas constituições, meras decorrências dos Direitos do Homem e do Cidadão, sem levar em conta as particularidades diferenciadoras de cada comunidade nacional. É também uma visão infra-histórica, pois aceita os postulados fatalistas da predeterminação teológica ou do determinismo científico, transpondo para a vida social o princípio darwiniano do struggle for life e acabando por considerar os homens como animais, sujeitos a uma evolução que não alcança o plano da história.
 
A visão hispânica, pelo contrário, é uma visão histórica do homem inserido numa tradição e pertencente a grupos naturais (família), ou conjuntos sociais formados pelo direito costumeiro (comunidade de vizinhos, associação dos profissionais do mesmo ofício, etc.). mas daí não se segue um historicismo positivista, semelhante ao da escola histórica de direito de Savigny ou ao positivismo de Taine e Maurras, aceitando os elementos da tradição como simples fatos históricos da nacionalidade, independentemente de uma valoração metafísica.
 
A visão hispânica é também uma visão supra-histórica, de sentido transcendente. O homem dessa concepção entranhadamente católica é o peregrino em demanda da Eternidade, o homo viator, a alma na busca ansiosa do Infinito.
 
Até mesmo pensadores como Unamuno, desgarrados da essência mais profunda das Espanhas, com o espírito mais ou menos influenciado pelo racionalismo vindo das terras frias da Europa ou a se debaterem nas angústias existencialistas, como foram as do autor de El sentimiento tragico de la vida, até mesmo estes, quando não vencidos de todo pelo vírus europeizante, refletem na sua obra o sentido transcendentalista da vida.
 
Daí o contraste estabelecido por Unamuno entre a ciência e a sabedoria, esta tendo por objetivo a morte, e aquela a vida. Ensinam os autores espirituais que, quando meditamos sobre a morte é para vivermos bem, e daí uma compreensão melhor da vida e uma intensidade vital como a de São Francisco de Assis, desprezando a todas as coisas do mundo e empolgando-se diante da natureza, compondo o hino ao sol e às criaturas, sentindo-se numa só família com o irmão sol, com a irmã água, com os irmãos peixes e também com a irmã morte.
 
A ciência pode tornar mais agradável a vida, pode contribuir para prolongá-la. Mas há valores que estão acima da própria vida. E mais vale morrer salvando esses valores do que viver indignamente. Assim também para a consciência de um cristão la pena de vivir sin consuelo vale el consuelo de morir sin pena, como se lê numa inscrição colocada à entrada das ermidas de Córdova, na Serra Morena.
 
Nuestras vidas son los rios que van dar a la mar. Não há na lírica espanhola — observa Maeztu — pensamento tão repetidamente expresso, e com tanta beleza. A sabedoria dos Salmos e do Eclesiástico reflete-se nesse pensamento das coplas de Jorge Manrique, e também nos versos de Espronceda:
 
Pasad, pasad en óptica ilusoria...
Nacaradas imágenes de gloria,
Coronas de oro y de laurel, pasad.
 
Isto não implica em cair na contemplação passiva dos hindus e no negativismo do nirvana. O homem hispânico é o homem que dá o devido valor à sua vontade, da qual depende a própria salvação, a ponto de por vezes exagerá-lo.
 
Diante de tais premissas metafísicas e teológicas, compreende-se que seja incompatível com o caráter histórico dos povos hispânicos o liberalismo do homem abstrato e do Estado naturalista secularizado, bem como as ideologias a que esse mesmo liberalismo deu origem, isto é, o socialismo, em suas várias modalidades, e a concepção do Estado totalitário. Repare-se que o socialismo espanhol se filia principalmente ao anarquismo, o qual implica numa exaltação do indivíduo em face da coletividade. Por sua vez, as tendências totalitaristas manifestam sobretudo o fenômeno do caudilhismo, isto é, significam a glorificação carismática do valor pessoal do chefe e não o culto a essa entidade abstrata a que chamamos Estado.
 
Com todos os cambiantes do caráter português, sem esquecer o cunho menos individualista e mais comunitário da formação lusitana, o mesmo amor ao concreto, a mesma afirmação da liberdade pessoal, a mesma inadaptação ao liberalismo de tipo anglo-saxônico ou às formulas revolucionárias e abstratas de 1789, nota-se na história de Portugal. Daí o fracasso das experiências republicanas, e as crises insolúveis suscitadas pela democracia política moderna em povos que, pela sua formação histórica e pela própria índole dos seus habitantes, foram sempre tão apegados às liberdades populares e souberam criar admiráveis formas de organização social autenticamente democráticas.
 
 
O BRASIL E A HERANÇA HISPÂNICA NAS AMÉRICAS
 
O antagonismo entre a Europa moderna, protestantizada e racionalista, e os povos da península ibérica, arraigados na sua formação católica de tipo medieval, reproduz-se, de certa maneira, na dualidade do Novo Continente. De um lado, a América anglo-saxônica; de outro lado, a América hispânica, abrangendo os povos espano-americanos e o Brasil. Estes últimos foram os legítimos herdeiros e continuadores da cultura européia tradicional, tendo-se avantajado de muito às colônias inglesas do norte do continente durante o período em que faziam parte dos Impérios espanhol e português. É sabido que as primeiras universidades americanas surgiram sob o patrocínio da Coroa de Castela, e, tanto nas letras como nas artes, as manifestações de cultura nos vice-reinados espanhóis e no Brasil superavam, nitidamente, o que neste sentido pudesse haver nos estabelecimentos ingleses da América do Norte.
 
Entretanto, depois do movimento da independência, de que resultam os Estados Unidos da América, começava a expansão imperialista desta república, em detrimento dos antigos domínios espanhóis situados nas suas vizinhanças, e ao mesmo tempo o pioneirismo dos norte-americanos assumia a vanguarda do desenvolvimento econômico e do progresso técnico, dos quais lhes viria a supremacia que passaram a exercer de um modo cada vez mais acentuado.
 
Vários motivos podem ser apontados para explicar a liderança continental e até mesmo mundial que coube aos Estados Unidos. Primeiramente, quando do início da fase da aplicação da máquina a vapor às indústrias, deve-se levar em conta a riqueza do subsolo americano, favorecido com o carvão de pedra, combustível básico para a máquina. Depois, a era do petróleo veio acentuar ainda mais a hegemonia ianque. E não se deve omitir a influência das instituições e do tipo de governo, uma vez que, estruturada politicamente na linha de continuidade histórica que vinha seguindo desde os tempos da colônia, a república norte-americana não passaria pelas crises tão freqüentes, e por vezes fatais, a acometerem as numerosas repúblicas nas quais se haviam fragmentado os antigos vice-reinados espanhóis.
 
Contrastavam com os Estados Unidos da América inglesa os Estados desunidos da América espanhola.
 
Enquanto aqueles partiram de núcleos coloniais distintos para uma nacionalidade que aos poucos se foi consolidando e expandindo, os grandes vice-reinados espanhóis, após a emancipação política, se dividiram em repúblicas de pequena expressão. O sonho de Bolivar e dos Libertadores, uma confederação dos povos espano-americanos, dissipava-se em meio às contendas dos chefes militares e às querelas dos bacharéis, ideólogos dos novos regimes e das suas constituições. A Grã-Colômbia cederia lugar a vários Estados independentes, e a mesma divisão se processaria entre os povos da bacia platina e do Pacífico.
 
Acentua-se o contraste quando notamos os Estados Unidos a seguirem, na sua organização institucional, a linha de continuidade histórica da qual se apartavam os demais povos do continente. A constituição americana, elaborada em fins do século XVIII, reproduzia o espírito e dispositivos das antigas cartas de colonização e das primeiras cartas políticas dos colonos em sua luta com a Mãe-Pátria. Pelo contrário, na América espanhola se adotavam constituições inspiradas nas ideologias francesas ou nas instituições anglo-saxônicas, umas e outras discrepando da formação histórica de seus povos. Daí se originaram crises políticas, revoluções, freqüentes mudanças de constituição, tudo isto gerando um clima de instabilidade propício aos surtos da demagogia e aos golpes do caudilhismo.
 
É de se notar ainda que o exemplo dos Estados Unidos exerceu uma forte influência sobre o ânimo dos homens de letras e dos bacharéis que tiveram a seu cargo a elaboração das constituições. Por sua vez se fazia sentir o contágio dos doutrinadores políticos revolucionários europeus de Bolivar, freqüentador dos salões literários de Paris e Londres.
 
Desta forma originou-se um dissídio entre a cultura das elites e o estado mental e social do povo. Eis o tema da oposição entre civilización e barbarie, na obra de Mitre, um argentino europeizado, e que entre nós Euclides da Cunha suscitou ao focalizar o antagonismo entre a formação das cidades litorâneas e a do interior ou o “sertão”.
 
Mais vinculados ao sentido real do povo, os Libertadores, com Bolivar à frente, viam a sua obra esfacelar-se desde que a liderança política passava para as mãos das minorias desenraizadas do meio nacional.
 
A preponderância norte-americana e o prestígio da cultura francesa e da política inglesa contribuíram para que essas elites se fossem desgarrando cada vez mais da formação nacional, cujo sentido haviam perdido, ao mesmo tempo em que, por uma conseqüência lógica, iam também perdendo a consciência das origens hispânicas. Não compreendiam nem o significado da tradição espanhola, de que seus povos eram herdeiros, nem o ambiente indígena e a mentalidade nativa, de cuja fusão com o elemento espanhol havia resultado a sintesis viviente espano-americana.
 
Algo de muito semelhante se passou com a América portuguesa. Entretanto certas particularidades históricas favoreceram imensamente o Brasil, impedindo que a mesma anarquia cultural e política se alastrasse tanto entre nós. Primeiro foi a presença da Realeza, quando da vinda de D. João VI, por ocasião da invasão de Portugal pelas tropas de Junot. Foi a época em que se constituiu definitivamente a nacionalidade brasileira, cujo artífice, como o mostrou magnificamente Oliveira Lima, foi aquele soberano português, rematando a obra de seus predecessores. O fato de seu filho, o príncipe D. Pedro, se ter colocado à frente do movimento emancipacionista, permitia ao Brasil separar-se de Portugal mantendo a unidade do seu vasto território. Graças à continuidade monárquica e dinástica, era assegurada essa unidade, sendo facilmente vencidas as tentativas esporádicas de fragmentação. Por outro lado, embora as instituições inglesas e os doutrinários franceses exercessem grande influência nas nossas elites dirigentes, feitas também de homens marginais, a manutenção da forma de governo e do Estado unitário, na constituição de 1824, nos livrava das comoções que as instituições republicanas provocaram em toda a América espanhola.
 
Desta forma, desde logo o Brasil, por tais fatores históricos e geográficos, se tornava nação de relevância máxima na América hispânica. Os grandes Estados de amanhã serão necessariamente Estados de base numa vastidão territorial, e assim o Império nos fornecia o lastro que hoje aí está para edificarmos sobre ele uma potência de primeira grandeza. E quando a república tentava implantar entre nós um regime de inspiração nas instituições norte-americanas, na época de um Rui Barbosa, com a sua mentalidade toda formada na leitura dos mestres anglo-saxônicos, já tínhamos nós uma tradição consolidada que foi capaz de resistir ao abalo revolucionário, como não se verificara com os povos espano-americanos nas tormentosas décadas da independência.
 
Além disso, o tipo de colonização posto em prática pelos portugueses sempre contribuiu para realizar, em algum grau, aquela síntese de raças e de culturas que Belaunde e José Vasconcelos apontam como característicos dos povos hispano-americanos. No Brasil, mais do que em qualquer parte do mundo, sente-se o caldeamento étnico, ou seja, a formação da raza cosmica, de que fala o insigne mexicano Vasconcelos. A assimilação racial foi acompanhada, entre nós, da assimilação jurídica, pela implantação das instituições da metrópole e a aplicação das mesmas leis, e finalmente da assimilação moral e religiosa, na obra eminentemente missionária levada a efeito pelos portugueses, da mesma forma que pelos espanhóis.
 
Em seu notável Cuadro histórico de las Indias, uma introdução a Bolivar, pondera Salvador de Madariaga que “a base do regime espanhol no Novo Mundo foi em todos os momentos a igualdade religiosa de todos os homens, sem distinção de origem ou de raças” 10.
 
O mesmo deve ser dito do regime português no Brasil, como aliás ainda hoje do sistema de governo seguido pelos portugueses nas províncias de Ultramar.
 
E daí vem precisamente a posição privilegiada que o Brasil ocupa no mundo hispânico. Além de manter uma tradição anti-racista, como toda a América espanhola, e poder assim confraternizar com as nacionalidades novas que se levantam na África e na Ásia contra o colonialismo imperialista, baseado no odioso sistema de discriminações étnicas, o Brasil, inserindo-se na Comunidade Lusíada, tem ao seu alcance meios excelentes para estabelecer um convívio com os povos afro-asiáticos, à base da tradição e das recordações deixadas pela nação portuguesa naqueles continentes.
 
É o que, com muita clarividência, soube perceber um ilustre diplomata brasileiro, escrevendo o livro O Brasil e o mundo asio-africano. Nestas páginas mostra Adolpho Justo Bezerra de Menezes como Portugal é a única nação da Europa que não desperta animosidade, antes simpatia, da parte dos asiáticos e africanos, isto graças à sua tradicional política de assimilação e compreensão cristã. Mas, sob este aspecto, “o futuro homo brasiliensis levará maior vantagem para convencer, para aproximar, para estabelecer duradouras pontes de entendimento pelo corpo e pelo espírito, que o próprio homo portucalensis”.
 
A razão é simples: Enquanto o português leva à África e à Ásia o exemplo do homem branco, do europeu sem preconceitos, nós já poderemos levar e exibir a existência de tais sentimentos. Enquanto Portugal, mercê de seu reduzido potencial humano, e de seus encargos ultramarinos, não pode expandir-se pela África ou pela Ásia, com a intensidade que era de desejar, o Brasil pode cada vez mais, tendo em vista a progressão rápida de sua população” 11.
 
Podemos concluir.
 
O homem europeu é um homem da visão católica de mundo, que sofreu um desvio com o protestantismo e daí por diante se foi encaminhando no sentido individualista até chegar à concepção do homem abstrato da Revolução Francesa, nos esquemas racionalistas cujo epílogo veio a ser, em nossos dias, o aparecimento do Estado totalitário. Desde o momento em que teve início tal desvio, ao homem europeu moderno, desentranhado da sua formação autêntica, opõe-se o homem hispânico, continuando a incarnar o cavaleiro cristão medieval, simbolizado na figura de D. Quixote. Na América, o homem hispânico foi portador de um patrimônio de cultura, que transmitiu às novas nacionalidades constituídas pela fusão de raças aborígenes e, mais tarde, dos africanos e imigrantes, com portugueses e espanhóis, impondo estes os seus padrões éticos e assimilando os elementos culturais das outras raças.
 
Ao contrário do que se dá com povos de outros continentes, tudo entre nós predispõe à união. Comuns procedências étnicas, afinidades lingüísticas, a mesma fé religiosa, “tudo nos une, nada nos separa”.  
 
A grande questão para os povos hispano-americanos está em saberem defender a sua personalidade cultural, não permitindo que formas políticas, doutrinas filosóficas, sistemas de educação e costumes dissolventes de procedência européia moderna ou norte-americana venham desvia-los da sua rota histórica, da sua genuína formação. Aceitando as inovações compatíveis com a sua própria maneira de ser, e recebendo a ajuda econômica e as contribuições da técnica avançada dos Estados Unidos, cumpre-lhe manter o seu tipo de originalidade cultural, a fim de poderem, dentro em breve, reconquistar todo o Ocidente para os ideais que o Ocidente abandonou, renegando-se a si mesmo.
 
Uso desta expressão “Ocidente” com as devidas cautelas e sem cair no equívoco daqueles que vêem no aparente conflito entre Oriente e Ocidente a questão fundamental de nossos dias. Questão evidentemente mal posta. E quando emprego tal expressão, válida para nós na posição geográfica em que nos achamos — pois o nosso mundo ocidental é o Oriente para os asiáticos — quero referir-me ao tipo histórico de cultuar formado na Europa e daí transposto para a América. Quando, ao nos aproximarmos do século XXI, os mais diferentes ciclos culturais se encontram, na convivência dos povos, muitos valores começam a ser postos em cheque, e o que importa é salvar os valores eternos e ecumênicos legados ao mundo de hoje pela Cristandade medieval, em face das novas formas de organização social que estão por surgir. Ora os povos hispânicos são, por excelência, os portadores daquela ecumenicidade, fruto da ação civilizadora da Igreja difundindo a mensagem de Cristo para reunir a todas as gentes, sem diferença entre o judeu e o gentio, o grego e o bárbaro, o ocidental e o oriental, o branco e o preto.

  1. 1. O termo "ecumênico" deve ser aqui entendido em sua acepção verdadeira, como sinônimo de "universal" -- ecumênico vem do grego oikoumenikós, pelo latim oecumenicu, o qual significava literalmente “toda a terra habitada”.. Não confunda o leitor com o neologismo de origem protestante "ecumenismo". [N. da P.]
  2. 2. É o que bem observa ARLINDO VEIGA DOS SANTOS,  em Reconquista, volume I, número 1, São Paulo, 1950, pág. 9.
  3. 3. A história da guerra civil (1936-1939) está por ser escrita. Desfigurada pelos que a consideram um simples preparativo da guerra mundial ou um duelo entre comunismo e fascismo, foi na verdade uma guerra de libertação que salvou a Espanha e preservou a Europa do jugo moscovita. Ao povo espanhol, no século passado, vencedor dos exércitos de Napoleão, resta, até este momento, a glória de ter sido o único a vencer o comunismo em campo de batalha. Os bolchevistas anunciaram que a Espanha seria o segundo país comunista do mundo, em seguida à Rússia. E é bem de ver que se não fosse o movimento de 1936, a península ibérica teria sido transformada numa cabeça de ponte para a dominação soviética estender-se facilmente por todo o continente europeu após a segunda guerra mundial.
  4. 4. “Universalista” e “Ecumênico” aqui se dizem no sentido já dado na nota nº 1; os povos ibéricos, nesta caso, também foram daqueles que receberam o tal “impulso e crescimento”, tendo como dínamo a propagação da Fé e do Império católicos para além das terras de Europa, já então carcomidas de secularismo, sob suas diferentes formas (o humanismo naturalista e neopagão do Renascimento, o protestantismo e o advento do “eu” como critério último da fé, o nominalismo como possibilitador do grande movimento cético e anti-escolástico, desembocando na chamada filosofia moderna, de cunho racionalista: Descartes, Malebranche, Bacon, etc.). [N. da P.]
  5. 5. FRANCISCO ELIAS DE TEJADA, La Monarquia Tradicional, Ediciones Rialp, S. A., Madrid, 1954, págs. 31 a 68: La Tradición de las Españas.
  6. 6. Nosso leitor tem de ter em mente que o presente texto fora escrito nos anos 60. Muito então se passou,  desde então; de forma alguma, sobretudo neste início de séc. XXI, com seus Zapateiros no comando, pode considerar-se a Espanha como “campeã da Cristandade”, como outrora. [N. da. P.]
  7. 7. Outro termo que pede esclarecimentos. É sabido que o ser humano, ontologicamente, possui uma dignidade que lhe é própria, nata ao ser que Deus lhe deu; como criação deste Supremo Bem à sua própria imagem, tem em si grande dignidade – a dignidade humana. Todavia, toma conta de nossos jornais e revistas, das conversas de bar ou em qualquer ocasião que se lhe dê azo, a expressão “dignidade da pessoa humana”, que é o mesmo que dizer que a pessoa, não enquanto unidade ontológica, mas psicológica, possui uma dignidade própria construída, não importando – eis aí o mal – o conteúdo destes valores. [N. da P.]
  8. 8. Daí, entre outras comunidades, a ausência de restrições morais à atividade econômica do homem, o que levou Max Weber e outros a apontarem no protestantismo um dos principais fatores na formação da mentalidade capitalista.
  9. 9. Daí vem todo o liberalismo político. Sendo o homem naturalmente bom, uma liberdade sem limites pode e deve ser dada ao homem, no pressuposto de que ele a exercerá sempre bem. A liberdade, para o liberalismo, passa a ser um valor absoluto. Nem sequer se cogita da questão de usa-la bem ou mal, pois ela é o bem em si mesma. Não se cuida, pois, de regulamenta-la, de ordena-la para o bem comum da sociedade e o bem particular dos indivíduos. Nada disto tem mais sentido. É a “liberdade abandonada”, que acaba por levar à opressão dos fracos pelos fortes (donde, p. ex., a plutocracia capitalista e proletariado na miséria).
  10. 10. RAMIRO DE MAEZTU, Defensa de la Hispanidad, 4ª edição, Madri, 1941, pág. 86.
  11. 11. SALVADOR DE MADRIARGA, Cuadro histórico de las Indias, Editorial Sudamericana, pág. 49.
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