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A Crise da Democracia

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Gustavo Corção

Num interessante inquérito promovido pelas revistas norte-americanas U.S. News and World Report, e publicado com grande destaque pelo O GLOBO, desde os dias 18 e 19 do corrente, vem sendo abordado problema da crise, do malogro ou do futuro da “democracia”. Numerosos intelectuais norte-americanos e ingleses, de alto prestígio, como: Professor Samuel P. Huntington — Cientista Político, Professor Charles Frankel — Filósofo, Professor Robert L. Heilbroner — Economista, Professor Max Beloff — Cientista Político, Professor William H. McNeill — Historiador, Professor Michael J. Crozier — Sociólogo, Professor Friedrich A. Hayek — Economista e Professor René Dubos. Cientistas, trouxeram sua contribuição ao debate que, para esses intelectuais, parece assentado em claros postulados aceitos por todos e motivado por mais uma inquietação do mundo moderno, ou pelo menos, do ocidente moderno.

Em primeiro lugar observo que o termo “democracia” sempre demarcado com o artigo “a” que reforça sua determinação designa um conceito quase tão claro e tão unívoco como o de “quadrado”. Ora, desde aqui me parece que esse inquérito aceita, sem sinais de relutância, todos os movediços equívocos que formam a atmosfera cultural de nosso tempo. Leia mais.
 

Efetivamente, o termo “democracia”, no tumulto provocado por guerras, revoluções, reformas de coisas irreformáveis e mise en question de todos os princípios morais e religiosos, o termo “democracia”, embora pretenda ter permanecido imóvel no mercado das idéias baratas, sofreu deslocamentos semânticos denunciados pelos adjetivos que lhe são anexados: democracia-liberal, democracia-cristã, democracia-popular etc. Mas também sofreu deslocamentos metafísicos mais profundos e mais perturbadores. Na sua primeira e clássica acepção o termo “democracia” significava forma de governo caracterizada pela mais ampla participação do povo — como “monarquia” significava forma de governo de mais concentrada autoridade. No processo revolucionário  que, nos últimos quatro séculos, corre nos subterrâneos da História, o termo “democracia” passou a significar uma filosofia de vida, e não apenas uma especial forma de governo. Seria melhor dizer que passou a ser um humanismo, que pretende marcar os eixos essenciais de uma nova civilização que deixara de ser essencialmente cristã, mas ainda tolera ou respeita o cristianismo subsistente como uma opção individual.

Voltaremos a abordar este provocante problema de nosso tempo. No momento quero apenas assinalar a tranqüila simplicidade com que todos os depoimentos colhidos toma o termo “democracia” no sentido amplo tomado por Jacques Maritain em seu livro Cristianismo e Democracia, e que para nós mesmos, durante a Guerra e em nossa ingênua Resistência Democrática, se transformou em bandeira. Quase em religião.

Uma das vozes gravadas no inquérito da U. S. News resumiu seu pensamento nesse ato de Fé: “Fora da democracia não há salvação”.

Assinalo até aqui apenas este aspecto ingênuo do inquérito, cuja leitura me traz uma curiosa sensação de haver remoçado quarenta anos, da qual sensação, em vez de tirar e saborear as partes positivas como dizem os boletins da CNBB, eu sinto ânsias de vômito. Sim, em lugar de uma indulgente saudade dos “bons tempos”, sinto vergonha e tristeza de tudo o que engoli naquele mundo brutalmente simplificado pela guerra.

Mas, depois de haver sofrido a mais humilhante decepção jamais sentida por um cidadão do Planeta habitado, desde a pré-história, sim, depois de ter sido esbofeteado por Satanás no dia da chamada “vitória das democracias”, e depois de ter sofrido as conseqüências de todos os equívocos da falsa guerra, da falsa vitória, da falsíssima paz, e mais falso reformismo e progressismo religioso, posso admirar, sem nenhuma inveja, a imobilidade dos intelectuais que viraram estátua de sal e tranqüilamente ignoram a existência de vozes que, desde um Donoso Cortês, até um Pio X, e até os mais ardorosos defensores do cristianismo, responsabilizam com justa severidade esse mito de origem maçônica, como um dos principais corrosivos de uma civilização que se desagrega em todas as suas partes.

Não sendo possível alhear-se inteiramente ao espetáculo apocalíptico que até as crianças já começam a perceber, esses professores, economistas e sociólogos do mais fracassado dos mundos descobertos e civilizados por homens de outra têmpera e outra fé, esses capitalizadores de erros se assustam diante do avesso da democracia. Seria o caso de dizer-lhes que, neste himalaia de erros acumulados pelo novo humanismo que se afastou de Deus, esses pobres herdeiros de imposturas e de enganos enganam-se tão perfeitamente, que chegam a fingir que é dor a dor que deveras sentem.

Na verdade, a grande tragédia “desse humanismo do homem-exterior” é aquele vínculo vicioso  do amor-próprio que na vida individual prende a alma à mentira com que ela mesma se exalta e se envenena. Em termos de Teologia da História, e de transcurso dos valores de uma civilização que já foi cristã, podemos dizer que a mentira da exaltação do homem-exterior — do homem-autônomo, isto é, do homem que é a sua própria lei, do homem que se declara adulto e que culmina na ascensão de imposturas quando anuncia uma fraternidade nos mesmos dias em que proclama seu desprezo pelo Pai — chegou ao máximo de seu trágico ridículo quando foram badaladas dentro das cúpulas de uma Igreja que reformava, deformava e transformava o cristianismo num exaltado humanismo.

O Globo, 29 de abril de 1976

 

 

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