59 — Como é necessário ao cristão acreditar na Encarnação do Filho de Deus, é também necessário acreditar na sua Paixão e Morte, por que, como disse S. Gregório, “em nada nos teria sido útil o seu nascimento, se não favorecesse à Redenção”. Essa verdade, isto é, que Cristo morreu por nós, é de tal modo difícil que a nossa inteligência pode apenas conhecê-la, mas, de modo algum, por si mesmo descobri-la. Isso é confirmado pelas palavras do Apóstolo: “Farei uma obra em vossos dias, que nela não podereis acreditar se alguém antes não a tiver revelado” (At 13, 41). Confirma-o também o que falou o Profeta Habacuc: “Será feita uma obra em vossos dias que ninguém acreditará quando for narrada” (Hab 1, 5).
A graça e o amor de Deus para conosco são tão grandes, que Ele fez por nós mais do que podemos compreender.
60 — Não se deve, porém, crer que quando Cristo morreu por nós, a Divindade também morreu. N’Ele morreu a natureza humana; não morreu enquanto Deus, mas enquanto homem.
Três exemplos esclarecerão essa verdade.
Um deles, encontramos em nós mesmos. Sabe-se que quando um homem morre, na separação que há entre a alma e o corpo, a alma não morre, mas o corpo, a carne.
Assim também na morte de Cristo não morreu a divindade, mas a natureza humana.
61 — Pode-se aqui fazer a seguinte objeção: — Se os judeus não mataram a divindade, evidentemente o pecado deles, matando Cristo, não foi maior do que se tivessem morto um outro homem.
62 — Respondamos a essa objeção:
— Se alguém sujasse as vestes com as quais o rei estava vestido, cometeria falta tão grande como se tivesse sujado o próprio rei. Assim também os judeus. Como não puderam matar a Deus, matando a natureza humana assumida por Cristo, eles mereceram severa punição, como se tivessem assassinado a própria divindade.
63 — Como dissemos acima, o Filho de Deus é o Verbo de Deus, e o Verbo de Deus Encarnado é como a palavra de Deus escrita em uma carta. Se alguém rasgasse a carta do rei, cometeria a mesma falta daquele que tivesse rasgado a palavra do rei.
Por isso os judeus pecaram tão gravemente como se tivessem morto o Verbo de Deus.
64 — Mas perguntas:
— Que necessidade havia de o Verbo de Deus padecer por nós?
— Grande necessidade, e por duas razões. Uma, porque foi remédio para os nossos pecados; outra, porque foi um exemplo para as nossas ações.
65 — Foi sim, um remédio, porque contra todos os males que contraímos pelo pecado, encontramos o remédio na Paixão de Cristo.
Contraímos pelo pecado cinco males.
66 — O primeiro, é a própria mancha do pecado. Quando um homem peca, conspurca a sua alma, porque, como a virtude embeleza, o pecado a enfeia. Lê-se em Barruch: “Por que estás, ó Israel, na terra dos inimigos, e te contaminaste com os mortos?” (Br 3, 10).
Mas a Paixão de Cristo lavou esta mancha. Cristo, na sua Paixão, fez do seu sangue um banho para nele lavar os pecadores: “Lava-os do pecado no sangue” (Ap 1, 5) . No Batismo a alma é lavada no Sangue de Cristo, por que este recebe do Sangue de Cristo a força regeneradora. Por isso, quando alguém batizado se macula pelo pecado, faz uma injúria a Cristo e o seu pecado é maior que o cometido antes do batismo. Lê-se na Carta aos Hebreus: “O que desprezou a lei de Moisés, após ouvido o testemunho de dois ou três, deve morrer” (Heb 10, 28-29). Como não deve merecer maiores suplícios, aquele que pisou no Sangue do Filho de Deus e considerou impuro o Sangue da Aliança?
67 — O segundo mal que contraímos pelo pecado é nos tornarmos objeto da aversão de Deus. Assim como quem é carnal ama a beleza da carne, do mesmo modo Deus ama a beleza espiritual, que é a beleza da alma. Quando, por conseguinte, a alma se deixa contaminar pelo mal do pecado, Deus fica ofendido e odeia o pecador. Lê-se no Livro da Sabedoria: “Deus odeia o ímpio e a sua impiedade” (Sb 14, 9) . Mas a Paixão de Cristo remove essas coisas, por que ela satisfez ao Pai ofendido pelo pecado, cuja satisfação não poderia vir do homem. A caridade e a obediência de Cristo foram maiores que o pecado e a desobediência do primeiro homem. Lê-se em S. Paulo: “Sendo inimigo, fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho” (Rm 5, 10) .
68 — O terceiro mal é a fraqueza. O homem, pecando pela primeira vez, pensa que depois pode abster-se do pecado. Acontece, porém, o contrário: debilita-se pelo primeiro pecado e fica inclinado a pecar mais.
O pecado vai dominando cada vez mais o homem, e este, por si mesmo, coloca-se em tal estado que não pode mais se levantar. É como alguém que se lançou num poço. Só pode sair dele pela força divina.
Depois que o homem pecou, a nossa natureza ficou debilitada, corrompida, e, por isso mesmo, ficou ele mais inclinado para o pecado.
Mas Cristo diminuiu essa fraqueza e debilidade, bem que não as tenha totalmente apagado.
O homem foi fortalecido pela Paixão de Cristo e o pecado, enfraquecido, de sorte que este não mais o dominará. Pode, por esse motivo, auxiliado pela graça divina, que é conferida pelos sacramentos cuja eficácia recebem da Paixão de Cristo, esforçar-se para sair do pecado. Lê-se em S. Paulo: “O nosso velho homem foi crucificado juntamente com Ele, para que fosse destruído o corpo do pecado” (Rm 6, 6). Antes da Paixão de Cristo, poucos havia sem pecado mortal. Mas, depois dela, muitos viveram e vivem sem pecado mortal.
69 — O quarto mal é a obrigação que temos de cumprir a pena do pecado. A justiça de Deus exige que o pecado seja punido, e a pena é medida pela culpa. Como a culpa do pecado é infinita, porque ela vai contra o bem infinito, Deus, cujo mandamento o pecador desprezou, também a pena devida ao pecado mortal é infinita.
Mas Cristo pela sua Paixão livrou-nos dessa pena, assumindo-a Ele próprio. Confirma-o S. Pedro: “Os nossos pecados (i. é., a pena do pecado) Ele carregou no seu corpo” (1 Pd 2, 24).
Foi de tal modo exuberante a virtude da Paixão de Cristo, que só ela foi suficiente para expirar todos os pecados de todos os homens, mesmo que fossem em número de milhões. Eis o motivo pelo qual aquele que foi batizado, foi também purificado de todos os pecados. É também por este motivo que os sacerdotes perdoam os pecados. Do mesmo modo, aquele cujo sofrimento mais se assemelha ao da Paixão de Cristo, consegue um maior perdão e merece maiores graças.
70 — O quinto mal contraído pelo pecado foi nos termos tornados exilados do reino do céu. É natural que aqueles que ofendem o rei sejam obrigados a sair da pátria. O homem foi afastado do paraíso por causa do pecado: Adão imediatamente após o pecado foi expulso do paraíso, e sua porta lhe foi trancada.
Mas Cristo, pela sua Paixão, abriu aquela porta e novamente chamou os exilados para o reino. Quando foi aberto o lado de Cristo, foi também a porta do paraíso aberta; quando o seu Sangue foi derramado, a mancha foi apagada, Deus foi aplacado, a fraqueza foi afastada, a pena foi expiada, e os exilados foram convocados para o reino. Por isso é que foi logo dito ao ladrão: “Estarás hoje comigo no Paraíso” (Lc. 23, 43).
Observe-se que nesse momento não foi dito — outrora; que também não foi dito a outrem — nem a Adão, nem a Abraão, nem a David; foi dito, hoje, isto é, logo que a porta foi aberta, e o ladrão pediu e recebeu perdão. Lê-se na carta aos Hebreus: “Confiantes na entrada no santuário pelo Sangue de Cristo” (Heb 10, 19).
Fica assim esclarecido como a Paixão de Cristo foi útil, enquanto remédio contra o pecado.
Mas a sua utilidade não nos foi menor, enquanto ela nos serviu de exemplo.
71 — Como disse S. Agostinho: “A Paixão de Cristo é suficiente para ser modelo de toda a nossa vida”. Quem quer que queira ser perfeito na vida, nada mais é necessário fazer senão desprezar o que Cristo desprezou na cruz, e desejar o que nela Ele desejou.
72 — Nenhum exemplo de virtude deixa de estar presente na cruz. Se nelas buscas um exemplo de caridade, — “ninguém tem maior caridade do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15, 13).
Ora, foi o que Cristo fez na cruz.
Por isso, já que Cristo entregou a sua vida por nós, não nos deve ser pesado suportar toda espécie de males por amor a Ele. “O que retribuirei ao Senhor, por todas as coisas que Ele me deu?” (Sl 115, 12).
73 — Se procuras na cruz um exemplo de paciência, nela encontrarás uma imensa paciência. A paciência manifesta-se extraordinária de dois modos: ou quando alguém suporta grandes males pacientemente, ou quando suporta aquilo que poderia ser evitado e não quis evitar.
Cristo na cruz suportou grandes sofrimentos: “Ó vós todos que passais pelo caminho parai e vede se há dor igual à minha!” (Js 1, 17) “Como a ovelha levada para o matadouro e como o cordeiro silencioso na tosquia” (1 Pd 2, 23) .
Cristo na cruz suportou também os males que poderia ter evitado, mas não os evitou: “Julgais que não posso rogar a meu Pai e que Ele logo não me envie mais que doze legiões de Anjos?” (Mt 26, 53) .
Realmente, a paciência de Cristo na cruz foi imensa! “Corramos com paciência para o combate que nos espera, com os olhos fitos em Jesus, o autor da nossa fé, que a levará ao termo: Ele que, lhe tendo sido oferecida a alegria, suportou a cruz sem levar em consideração a sua humilhação” (Heb 36, 17).
74 — Se desejares ver na cruz um exemplo de humildade, basta-te olhar para o crucifixo. Deus quis ser julgado sob Pôncio Pilatos e morrer: “A vossa causa, Senhor, foi julgada como a de um ímpio” (Jo 36, 17). Sim, de um ímpio, porque disseram: “Condenemo-lo a uma morte muito vergonhosa” (Sb 2, 20).
O Senhor quis morrer pelo seu servo, e Aquele que dá a vida aos Anjos, pelo homem: “Fez-se obediente até à morte” (Fl 2, 8)
75 — Se queres na cruz um exemplo de obediência, segue Àquele que se fez obediente ao pai, até à morte: “Assim como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores; também pela obediência de um só homem, muitos se tornaram justos” (Rm 5, 19).
76 — Se na cruz estás procurando um exemplo de desprezo das coisas terrenas, segue Àquele que é o Rei e o Senhor dos Senhores no qual estão os tesouros da sabedoria, mas que na cruz aparece nu, ridicularizado, escarrado, flagelado, coroado de espinhos, na sede saciado com fel e vinagre e morto.
Não deves te apegar às vestes e às riquezas, “porque dividiram entre si as minhas vestes” (Ps. 29, 19); nem às honras, porque “Eu suportei as zombarias e os açoites”; nem às dignidades, porque “puseram em minha cabeça uma coroa de espinhos que trançaram”; nem às delícias, porque “na minha sede deram-me vinagre para beber” (Sl 68, 22)
Comentando este texto da Carta aos Hebreus — “Que, apesar de lhe oferecerem alegria, suportou a cruz, desprezando a humilhação dela” (Heb 12, 2) —, Agostinho, nos diz: “O homem Cristo Jesus desprezou todos os bens terrenos, para mostrar que devem ser desprezados”.