Durante a Quaresma de 1273, S. Tomás, entre outros sermões, proferiu este, que é uma das mais perfeitas exposições que existem sobre o Credo. Pronunciado em dialeto napolitano, foi traduzido fielmente (conforme atestam os testemunhos históricos) para o latim, pelos discípulos do Santo. Para ouvir a palavra do Doutor Angélico, acorriam às igrejas de Nápoles, os habitantes dessa agitada cidade medieval e os seus alunos universitários. Por isso o grande teólogo usava de uma linguagem mais acessível que a das suas obras teológicas. O conteúdo, porém, dos seus sermões, conserva a mesma profundeza doutrinária e a peculiar ortodoxia do Doutor Comum:
1 — O primeiro bem necessário para o cristão é a fé. Sem a fé ninguém pode ser chamado de fiel cristão.
2 — O primeiro bem é a união da alma com Deus. Pela fé realiza-se uma espécie de matrimônio entre a alma e Deus, conforme se lê no Profeta Oséias: “Desposar-te-ei na fé”. (Os 2, 20).
Quando o homem é batizado, deve, em primeiro lugar, confessar a fé ao responder à pergunta — crês em Deus? — porque o batismo é o primeiro sacramento da fé. O Senhor mesmo disse: “O que crer e for batizado será salvo” (Mc 16, 16).
O batismo sem a fé é destituído de valor. Deve-se, portanto, ter por certo que ninguém pode ser aceito por Deus sem a fé”. “Sem a fé é impossível agradar a Deus”, diz S. Paulo (Heb 11, 6).
Sto. Agostinho comentando este texto da carta aos Romanos — “Tudo o que não procede da fé é pecado” (14, 23), assim se expressa: “Onde não existe o conhecimento da verdade eterna e imutável, a virtude é falsa mesmo nas pessoas retas”.
3 — O segundo bem é este: pela fé é iniciada em nós a vida eterna. A vida eterna não consiste senão em conhecer a Deus, conforme lê-se em S. João: “Esta é a vida eterna, que Vos conheçam como único Deus verdadeiro”. (Jo 17, 3). Esse conhecimento de Deus inicia-se aqui pela fé, mas é completado na vida futura, quando O conheceremos tal como é. Por isso lê-se na carta aos Hebreus: “A fé é a substância das coisas que se esperam” (11, 11). Ninguém alcançará a bem-aventurança eterna, sem que tivesse primeiramente o conhecimento de fé, pois está escrito: “Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29).
4 — A vida presente é orientada pela fé: eis o terceiro bem. Para que o homem viva bem, convém que conheça os princípios do bem viver. Se pelo próprio esforço devesse aprender esses princípios, ou não chegaria a conhecê-los, ou só os poderia conhecer após um longo tempo. Mas a fé ensina todos os princípios do bem viver. Ora, ela ensina que há um só Deus, que Deus recompensa os bons e pune os maus, que existe uma outra vida, e outras verdades semelhantes. Esse conhecimento é suficiente para nos levar a praticar o bem e evitar o mal, pois diz o Senhor: “O meu justo vive da fé” (Hab 2, 4).
Eis porque nenhum filósofo antes da vinda de Cristo, apesar do grande esforço intelectual que despendiam, pôde chegar ao conhecimento de Deus e dos meios necessários para alcançar a vida eterna, como depois do advento do Cristo, qualquer velhinha chegou pela fé. Eis porque Isaías profetizou assim esse advento: “Encheu-se a terra da ciência de Deus” (11, 23).
5 — O quarto bem é que pela fé venceram as tentações, conforme lê-se nas Escrituras: “Os santos pela fé venceram os reinos” (Heb 11, 23). As tentações procedem do diabo, do mundo, ou da carne. O diabo tenta para que tu não obedeças nem te submetas a Deus. Ora, é pela fé que o repelimos, porque é pela fé que conhecemos que há um só Deus e que só a Ele devemos obedecer. Por isso escreveu São Pedro: “O diabo, vosso adversário, está rondando para ver se devora alguém: a ele deveis resistir pela fé” (1 Pd 5, 8).
O mundo nos tenta, seduzindo-nos na prosperidade, ou nos atemorizando nas adversidades. Mas ambas as tentações vencemos pela fé. Ela nos faz crer numa vida melhor, e, por isso, desprezamos as prosperidades do mundo e não tememos as adversidades. Eis porque está escrito: “Esta é vitória que vence o mundo, a vossa fé” (1 Jo 5, 4). Além disso, a fé nos ensina a acreditar que há males maiores, isto é, que existe o inferno.
A carne nos tenta, conduzindo-nos para os deleites momentâneos da vida presente. Mas a fé nos mostra que por eles, se a eles indevidamente aderimos, perderemos os deleites eternos. Por isso nos aconselha o Apóstolo: “Tende sempre nas mãos o escudo da fé” (Ef 6, 16).
Por essas razões fica provado que é muito útil ter fé.
6 — Mas pode alguém objetar: é insensatez acreditar naquilo que não se vê: não se deve crer senão naquilo que se vê.
Respondo a essa objeção com os seguintes argumentos.
7 — Primeiro. É a própria imperfeição da nossa inteligência que desfaz essa dúvida. Realmente, se o homem pudesse por si mesmo conhecer perfeitamente as coisas visíveis e invisíveis seria insensato acreditar nas coisas que não vemos. Mas o nosso conhecimento é tão limitado que nenhum filósofo até hoje conseguiu perfeitamente investigar a natureza de uma só mosca. Conta-se até que certo filósofo levou trinta anos no deserto para conhecer a natureza das abelhas. Ora, se a nossa inteligência é tão limitada assim, é muito maior insensatez não querer acreditar em algo a respeito de Deus a não ser naquilo que o homem pode conhecer por si mesmo d’Ele. Lê-se no livro de Jó: “Eis como Deus é grande e ultrapassa a nossa ciência” (36, 26).
8 — Segundo. Consideremos, por exemplo, um mestre que assimilou uma verdade e de um aluno pouco inteligente que a entendeu diversamente, porque não a atingiu. Ora, esse aluno pouco inteligente deve ser considerado como bastante tolo. Sabemos que a inteligência dos Anjos ultrapassa a do maior filósofo, como a deste, a inteligência dos ignorantes. Portanto, seria tolo o filósofo que não acreditasse nas coisas ditas pelos Anjos. Ele seria muito mais tolo se não acreditasse nas coisas ditas por Deus. Lê-se, a esse respeito, nas Escrituras: “Foram-te apresentadas muitas verdades que ultrapassam a inteligência do homem” (Ec 3, 25).
9 — Terceiro. Se o homem não acreditasse senão nas coisas que vê, nem poderia viver neste mundo. Pode alguém viver sem acreditar em outrem? Como podes tu saber que este é teu pai? É, pois, necessário que o homem acredite em alguém, quando se trata de coisas que por si só não as pode conhecer. Ora, ninguém é mais digno de fé do que Deus. Por conseguinte, os que não acreditam nas verdades da fé não são sábios, mas tolos e soberbos. São Paulo refere-se a esses como sendo — “soberbos e ignorantes...” (1 Tm 6, 4). Por isso S. Paulo diz de si: “Sei em quem acreditei e tenho certeza...” (2 Tm 1, 12). Tudo isso é confirmado no Livro do Eclesiástico: “Vós que temeis o Senhor, acreditai n’Ele” (2, 8).
10 — Quarto. Pode-se ainda responder dizendo que Deus comprova as verdades da fé. Se um rei enviasse suas cartas seladas com o selo real, ninguém ousaria dizer que aquelas cartas não vinham do próprio rei. É claro que as verdades nas quais os santos acreditaram e que nos transmitiram como sendo de fé cristã, estão seladas com o selo de Deus. Esse selo é significado por aquelas obras que uma simples criatura não pode fazer, isto é, pelos milagres. Pelos milagres Cristo confirmou as palavras do Apóstolo e dos Santos.
11 — Pode, porém, replicar dizendo que ninguém viu esses milagres. É fácil responder a essa objeção. É conhecido que toda a humanidade prestava culto aos ídolos e que a fé cristã foi perseguida, confirmando-o, além do mais, a história do paganismo. Converteram-se todos, porém, em pouco tempo a Cristo. Os sábios, os nobres, os ricos, os governos e os grandes converteram-se pela pregação de poucos homens rudes e pobres. Ora, de duas uma: ou se converteram por que viram milagres, ou não. Se foi porque viram milagres que se converteram, a tua objeção não tem sentido. Se não o foi, respondo que não poderia haver maior milagre que esse de todos os homens converterem-se sem terem visto milagres. Deves te dar por vencido.
12 — Eis porque ninguém pode duvidar da fé. Devemos acreditar mais nas verdades da fé do que nas coisas que vemos, por que a vista do homem pode falhar, mas a ciência de Deus é sempre infalível.