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A vida é morte

A um vaso de vinho misturado com três partes de água não chamaremos com razão vinho; nem a um pouco de açúcar envolvido em três tantos de sal chamaremos com razão açúcar.
 
Logo, se eu mostrar como a nossa vida é misturada, ao menos, com três tantos de morte, provado ficará que lhe não devemos chamar, absoluta e simplesmente, vida, pois vai o seu vigor tão aguado e a sua doçura tão salgada com as propriedades da morte.

A primeira parte de morte, que anda misturada com a nossa chamada vida, é ser esta sucessiva e transeunte, tão pelo miúdo, que não é possível lograrmos dela dois instantes juntos, porque, para adquirirmos um, é força perdermos outro, que por isso a mulher de Técua a comparou não à água que está em um tanque ou lago, senão à que vai correndo1. E isto é o mesmo, sem dúvida, que ir morrendo por partes.
 
Por isso Filo, o discretíssimo entre os hebreus, disse que cada idade era morte da outra antecedente idade, dando-nos a piedosa mão de Deus este amargoso cálice da morte a tragos, e misturado com o cálice da vida para no fim acabar de nos dar as fezes, que é a última morte de todas as outras mortes antecedentes, a qual é força que bebamos todos os filhos de Adão, uma vez que todos nele pecamos.
 
Porém São Paulo estes intervalos de morte a morte não os pôs distantes de idade a idade, senão de dia a dia: quotidie morior 2. E pela mesma razão o Papa Inocêncio III os pôs de instante a instante; nem pode deixar de ser assim, uma vez que o cálice da vida se bebe por instantes líquidos e nele vai delido o da morte.
 
A isto atinou também um poeta étnico, Horácio, dizendo que os anos da nossa vida eram ladrões da mesma vida. E outro, cristão, dizendo que desde o berço se ia formando a tumba, porque a árvore da mesma vida leva em si semente da morte.
 
E outro a um amigo, que lhe perguntara que anos tinha, respondeu discretamente que nenhuns, porque os que tinha eram os mesmos que não tinha:
 
Perguntas-me com empenho
pela idade, e que anos somo.
Respondo: — Nenhum. — E como?
— Os que tenho, já os não tenho..
 
Mas esta nossa vida outra maior parte tem de morte, por ser vida limitada, finita e, enfim, mortal. Desde que nascemos, e ainda antes de nascermos, já de certo vamos caminhando para a morte. A vida que Deus tinha dado a Adão antes do seu pecado, e que nós todos havíamos de lograr, era vida viva; esta outra, que, chamada por Adão, entrou em seu lugar, é vida morta, como dizem os Santos Padres. Porque, assim como, separando-se a alma do corpo, fica este morto; assim, separando-se da nossa vida a alma da mesma vida, fica morta esta vida. E qual é a alma da vida? A imortalidade. Tirando-se logo à nossa vida o ser imortal, que havia de ficar senão o cadáver dela, que é a vida mortal que agora trazemos às costas?
 
Quantos homens há, tantos cadáveres somos; quanta carne do pecado, tanta cinza da morte. Se assim não fora, não diria Deus e a Igreja a todos nós, que somos agora em vida o mesmo pó e cinza que havemos ser na morte: Pulvis es, et in pulverem reverteris. Como quem diz: Então sereis mortos, e já agora também cinza e pó; porque se ausentou a alma da nossa vida, que era a imortalidade, e assim ficou vida morta.
 
Usa a morte com o homem os mesmo termos de crueldade e vexação que usou aquele rigoroso credor do Evangelho com o servo que lhe devia cem dinheiros. Diz o sagrado texto que o pobre, prostrando-se a seus pés, lhe rogava que esperasse pela paga, prometendo que lhe satisfaria inteiramente.
 
Racionável parece esta petição, mas cuida alguém que a morte se leva disso? Quer que já de presente lhe comecemos a pagar, e tanto nos aperta a garganta, que um Job nem engolir a sua saliva podia. As doenças e achaques são os seus sacadores, que ela manda para arrecadar a sua dívida, ao menos em parcelas; e estes sacadores parece que nos querem tirar os olho, pois só dos olhos, diz Galeno, há cento e quinze diferentes doenças.
 
A corrupção e os bichos, que, conforme dizia o mesmo Job, são nosso pais, não se contentam com ser nossos herdeiros forçados na sepultura, senão que nos querem herdar em vida. E, ainda que a morte não faça logo a última execução, todavia leva de casa penhores ou usuras: a uns o sentido da vista, a outros o dos ouvidos, a outros algum braço, ou perna, que lhes inutiliza. Porque todo o uso dos nossos sentidos e membros eram partes da dívida do pobre devedor, e depois ficam sendo partes da morte.
 
Não é tudo isto verdade? Já há muitos séculos que o tinha dito o filósofo Xenocrates, discípulo do divino Platão.
 
E ainda que a morte se não penhore em doenças e aleijões, sempre tira para um seu irmão muito parecido com ela — que é o sono — a quarta ou terça parte da vida; que não é pequena miséria ser necessária para sustento da mesma vida esta quotidiana contribuição à morte...
 
Porém não só os defeitos e misérias do corpo nos diminuem e apoucam a vida, senão também os defeitos e misérias da alma. Porque, como disse Sêneca, a puerícia a leva a ignorância; a mocidade a arrebata o furor cego da sensualidade; na idade do meio (que era o mais bem parado da vida) prendem a inveja, ira, cobiça e ambição; ultimamente a velhice fica para as doenças a pasto...
 
(Tirado de “Nova Floresta”, pde. Manuel Bernardes)

  1. 1. Livro dos Reis (14, 14).
  2. 2. Cada dia morro... (2 Cor. 15, 30).
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