Alexandre Bastos
Intra muros
Uma antiga tradição diz que São Pedro, ao deixar Roma para fugir das perseguições promovidas por Nero, viu Nosso Senhor andando em sentido contrário, com uma cruz nas costas. Quo vadis, Domine? (Aonde vais, Senhor?), perguntou o primeiro dos papas. “Vou a Roma para ser novamente crucificado”, respondeu Jesus. Com esta resposta, não apenas indicou a Pedro o que devia fazer naquele momento, mas estabeleceu um critério para todos os papas futuros: “Vá a Roma para ser crucificado”. A loucura da cruz — para empregar os termos do Apóstolo — é a medida de todos os pontificados.
Na história da Igreja, muitos papas cumpriram fielmente este ideal, a começar por São Pedro, que voltou a Roma para ser literalmente crucificado. Vieram em seguida os santos Lino, Anacleto, Clemente, Calixto, Ponciano e uma longa lista de papas que morreram por Cristo. Nos tempos modernos, surgidos sob o estandarte da liberdade, Pio VI morreu sequestrado pelos revolucionários e Pio IX bebeu um cálice amargo antes de terminar seus dias prisioneiro no Vaticano. Pas de liberté pour les ennemis de la liberté!
Quando Leão XIII recebeu a Tríplice Coroa, a maçonaria, que é a igreja da Revolução, ganhara a adesão dos Estados modernos e os erros do socialismo e do liberalismo justificavam a guerra à Igreja: queriam expulsá-la da vida pública e subordiná-la aos detentores do poder. De um ponto de vista temporal, a situação era desesperada: os Estados Pontifícios haviam sido invadidos, os bens da Igreja, espoliados, e já não havia os recursos financeiros que o Patrimônio de São Pedro proporcionava a toda a Igreja.
Nenhum papa viveu tão longamente a dolorosa situação de prisioneiro como Leão XIII. Nos vinte e cinco anos do seu pontificado, jamais pôde deixar o Vaticano, e até mesmo a bênção Urbi et Orbi era dita internamente, desde uma janela que dava para os jardins — único lugar em que o pontífice ainda podia abençoar o mundo livremente. A cruz do seu pontificado será, pois, a tentativa de restaurar, para si mesmo e para toda a Igreja, a liberdade perdida.
Mas não se deve pensar que fosse desprovido de consolações: era um papa de enorme vida interior. O cardeal Luigi Lambruschini, que conheceu o jovem Joaquim Pecci nos seus tempos de estudante, dizia que ele se parecia com um anjo, e Santa Teresinha do Menino Jesus, que o viu celebrar a Santa Missa numa peregrinação a Roma, elogiou a “sua ardente piedade, digna do Vigário de Jesus Cristo”.
Ora, a menina que tinha pressa de ser santa, relata em suas memórias o seu encontro com Leão XIII no Vaticano:
“Um instante depois, eu estava aos pés do Santo Padre. Tendo eu beijado seus pés, ele me apresentou a mão. Em vez de beijá-la, pus as minhas e, levantando para o rosto dele meus olhos banhados em lágrimas, exclamei: "Santíssimo Padre, tenho um grande favor para pedir-vos!..." Então, o Soberano Pontífice" inclinou a cabeça de maneira que meu rosto quase encostou no dele e vi seus olhos pretos e profundos fixarem-se sobre mim e parecer penetrar-me até o fundo da alma. "Santíssimo Padre", disse, "em honra do vosso jubileu, permiti que eu entre no Carmelo aos 15 anos!..."
A impressão deste encontro foi tal, que ela se esqueceu de ir embora: “A bondade do Santo Padre me animava e eu queria falar mais, mas os dois guardas tocaram-me polidamente para fazer-me levantar”.
Já está pronto, moço?
Em março de 1810, na pequenina cidade do Carpineto romano, a poucos quilômetros de Roma, nascia o sexto filho do Conde Ludovico Pecci e da Condessa Ana, o pequeno Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci Prosperi Buzzi. Os pais vislumbravam um grande futuro para o seu mais novo filho. “Quero fazer dele um general”, disse o conde. “Fará dele um papa”, respondeu a mãe.
Desde a primeira infância, Nino, como era chamado, dava provas de um gênio agudo e de uma vontade insaciável de saber. “Quero aprender a ler e escrever como o sábio de Aquino”, dizia o pequeno. Sua trajetória acadêmica foi espetacular. Iniciou os estudos aos oito anos de idade, mas, aos doze, já compunha versos em latim, hábito que manterá até o último dia de sua vida. No Colégio dos Jesuítas de Viterbo, era insuperável em oratória e retórica, e ganhou muitos prêmios pelo seu desempenho em matemática, química, filosofia e teologia. Amante da poesia, seus livros preferidos eram a Divina Comédia, que sabia recitar de cor do primeiro ao último verso, e a Eneida.
Ele continuou seus estudos em Roma, onde descobriu e aprendeu a amar a doutrina de Santo Tomás de Aquino, a quem chamava “o Arquimandrita dos teólogos” 1. Por aquele tempo, reinava o ecletismo nas escolas e seminários, que já foram comparados a uma “loja de argumentos”. Não que se ensinassem erros, como viria a acontecer com a crise modernista, mas já não se ensinava um sistema único, forte e coerente para enfrentar os diversos sistemas filosóficos surgidos desde Descartes. Mais tarde, o Papa Leão XIII trabalhará com afinco para corrigir esta situação, que transmite aos alunos “uma filosofia nada firme, estável e forte como as de antigamente, mas sim fraca e vacilante. E se, por acaso, ela alguma vez não se encontra à altura dos golpes de seus adversários, deveria reconhecer ser ela mesma a culpada por este estado de coisas.”
Estudava da manhã até a noite, apaixonadamente. Um colega de escola o descreveu assim: “Durante os seus estudos em Roma, ele não conhecia companhias nem diversões. Sua mesa era o seu mundo, a investigação científica, seu paraíso”. Aos 22 anos, Joaquim Pecci tornou-se doutor em teologia, mas, para não interromper seus estudos, ingressou na Academia dos Nobres Eclesiásticos. Desejava aperfeiçoar a sua teologia, desejava instruir-se no Direito Civil e Canônico, desejava estudar. Todo este esforço faria com que o ilustre filho de Carpineto se tornasse um dos homens mais brilhantes de seu tempo. Não foi por outra razão que o historiador de filosofia Etienne Gilson escreveu: “Leão XIII entrou na história da Igreja como o maior filósofo cristão do século XIX, e um dos maiores de todos os tempos” — o que não é dizer pouco.
Por aquele tempo, surgiu a questão da vocação religiosa. “Já está pronto, moço?”, perguntou-lhe, certa feita, o Cardeal Sala, amigo da família e seu protetor. O estudante não conseguia decidir-se entre o sacerdócio e a política, que será sempre seu calcanhar de Aquiles. Embora profundamente devoto, a piedade paterna, o desejo de tornar ilustre o nome de sua família, fazia com que adiasse indefinidamente a tomada de ordens. Foi preciso que a Providência destravasse de modo particularmente doloroso as molas de heroísmo escondidas no coração do rapaz.
No ano de 1837, logo após perder o pai, Joaquim Pecci caiu gravemente enfermo durante uma epidemia de cólera. Contavam-se numerosas vítimas nas ruas de Roma, e o moço não duvidava de que seria uma delas. Porém, graças a vigorosos tratamentos médicos, recuperou a saúde. Ato contínuo, decidiu ajudar os padres nos cuidados com os doentes e, sem ser médico ou enfermeiro, passava os dias nas cabeceiras dos moribundos. “Se hei de ser contado entre as vítimas”, escreveu então, “curvo minha cabeça em submissão aos desígnios do Altíssimo, a quem já consagrei minha vida em expiação dos meus pecados. Aconteça o que acontecer, meu coração está perfeitamente tranquilo”.
A carreira política já não fazia o menor sentido para ele e, no mês de dezembro daquele ano, recebeu as três ordens maiores.
Do sacerdócio ao Conclave
À grande capacidade intelectual de que era dotado, Joaquim Pecci unia uma vontade de ferro. Foi esta a razão de o Papa Gregório XVI o ter nomeado tão jovem como delegado apostólico da cidade de Benevento, no Reino de Nápoles. Os habitantes daquele lugar sofriam, por um lado, uma bandidagem cada vez mais ousada e, por outro, a extorsão dos que lhes cobravam por proteção. Como num filme Western, o futuro papa fez prender os bandidos e salvou a cidade em tempo recorde.
Aos 31 anos foi nomeado para um cargo político, tornando-se núncio apostólico junto à corte de Bruxelas. Seu desempenho foi decepcionante. Após apoiar o episcopado belga de cariz liberal contra as políticas do Rei Leopoldo I, foi formalmente repreendido pelo Cardeal Luigi Lambruschini, que dizia “esperar que doravante saiba corresponder melhor à confiança de que é depositário”. Sua experiência na Bélgica durou pouco: voltou à Itália em 1846, ano da eleição de Pio IX.
Por um período de 32 anos, ou quase todo o reinado do Papa da Imaculada, Joaquim Pecci ficou “esquecido” na pequena diocese de Perúgia, na região da Umbria. Embora haja quem atribua ao Cardeal Giacomo Antonelli, Secretário de Estado de Pio IX, a responsabilidade pelo exílio de Pecci, é fato que o papa então reinante não nutria grande simpatia pelo seu futuro sucessor.
Naqueles anos, contudo, algo de realmente importante estava em curso: a restauração do tomismo, promovida em Itália pelos padres da Civiltà Cattolica, Matteo Liberatori, Sordi e Taparelli, mas com repercussões em toda a Europa. O bispo de Perúgia, entusiasmado pelo autor da Suma Teológica desde a mocidade, como vimos, não poderia ficar alheio ao movimento. Assim, reformou todo o currículo do seminário local a fim de conformá-lo à doutrina do Aquinate e fundou uma Accademia di San Tommaso d’Aquino, com o objetivo de refutar os erros do tempo.
Mesmo distante da Cúria romana, Dom Joaquim Pecci conseguiu destacar-se em meio ao episcopado italiano, de modo que, quando chegou a Roma em 1877, nomeado Cardeal Camerlengo, já era apontado como um papabile.
No início de fevereiro de 1878, Pecci foi chamado às pressas. Conforme os ritos, entrou vestido de púrpura nos aposentos em que o papa era velado pelos penitentes de São Pedro. Ajoelhou-se então para entoar o De Profundis, retirou-lhe a coberta do rosto e, com um martelo de prata, tocou-lhe três vezes na face, chamando-o pelo nome de batismo: “Giovanni!”, “dormisne?” (dormes?). Encerrado o ritual, o futuro papa declarou que Pio IX estava morto.
“Viva papa Leone!”
Poucos dias depois, numa sala escondida do mundo, encerrou-se em apenas dois dias o primeiro conclave realizado após a ocupação de Roma. Os cardeais aproximaram-se do homem que já não era um seu igual, e usava na cabeça uma mitra ornada de diamantes e, no dedo, o anel do pescador. O novo papa, sentando-se no trono de Pedro aos 67 anos de idade, gemia: “Sou idoso e fraco, não posso carregar este fardo. O que me espera é a morte e não o pontificado!”. Seu papado, no entanto, seria um dos mais longevos da história, estendendo-se por 25 anos.
Saltavam aos olhos as diferenças entre o novo pontífice e seu predecessor. Pio IX era um homem de aspecto majestoso e temperamento ardente, enquanto Leão XIII, muito magro, muito pálido, parecia um asceta. Pio IX era um orador, sentia-se à vontade em meio a multidões e falava muito espontaneamente. Leão XIII era um escritor, amava a solidão e, perfeccionista, revisava até o último momento os seus belos e profundos escritos. Pio IX era homem de ação: na juventude, quisera fazer-se missionário nas Américas. Leão XIII era um intelectual e uma alma profundamente política.
Nesta última frase encerram-se dois aspectos marcantes do seu pontificado. O primeiro, sublime e inteiramente bem-sucedido, é assinalado pelo seu Magistério, que, continuando e elaborando a obra de seus predecessores, causou forte admiração no mundo católico. O segundo aspecto expressa-se pela sua política, que rompe com a de Pio IX com resultados desastrosos.
Esse primeiro aspecto nunca foi melhor traduzido que pelo epíteto Il Papa Caesareo, que o povo romano lhe atribuiu. O termo Caesareo aqui não guarda relação direta com os imperadores da antigüidade, mas significava o mesmo que sublime. E realmente o foi: as cerimônias em São Pedro nunca foram tão requintadas; não dispensava os mais rigorosos protocolos e as pompas; e para locomover-se sua preferência recaía na Sedia Gestatória. Todo esse aparato não poderia ser mais conveniente, após terem espoliado o Papado da soberania temporal. Contudo, este papa nunca foi mais sublime do que em seu Magistério, que fez Roma resplandecer como a verdadeira lux mundi num século culpado de racionalismo.
Um dos seus primeiro atos como papa foi reorganizar a biblioteca e os arquivos do Vaticano, abrindo-os aos estudiosos e dotando a sua estrutura com um corpo de lingüistas, arqueólogos, numismatas, orientalistas, paleógrafos, enfim, uma verdadeira elite de homens eminentes nos estudos históricos. Enganar-se-ia, porém, quem julgasse tratar-se de mero beletrismo. Não! A sua intenção era combater os erros modernos, transformar Roma numa trincheira intelectual contra as doutrinas nefastas do racionalismo e do naturalismo — tão combatidas pelos seus predecessores — e seus dois rebentos: o liberalismo e o socialismo.
É nesta linha que devemos compreender a sua ação pela restauração do tomismo, “um dos principais títulos de glória de Leão XIII”, segundo dele escreveu São Pio X. Como papa, fundou uma segunda Academia Santo Tomás de Aquino (1880), reeditou as suas obras completas (é a chamada edição leonina), proclamou-o patrono das escolas católicas (1880) e nomeou ainda, para todas as escolas e universidades romanas, professores tomistas. Leão XIII convidará Louis Billot para vir lecionar na Gregoriana e, pouco depois, o Padre Sertillanges começará a lecionar em Paris. Mas a obra decisiva para a restauração do tomismo foi a grande e eruditíssima Encíclica Aeterni Patris, que suscitou uma tempestade de protestos na imprensa contrária à Igreja. Nela, Leão XIII faz o elogio de Santo Tomás e assinala a preferência da Igreja pela doutrina do grande santo:
“Entre todos os doutores escolásticos, porém, brilha, com uma luz sem igual, o príncipe e mestre de todos, Tomás de Aquino, o qual, como observa o Cardeal Caetano, ‘por ter venerado profundamente os santos doutores que o precederam, herdou, de certo modo, a inteligência de todos’. Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como defensor especial e honra da Igreja. De espírito dócil e penetrante, de fácil e segura memória, de perfeita pureza de costumes, levado unicamente pelo amor da verdade, prenhe de ciência divina e humana, justamente comparado com o sol, aqueceu a terra com a irradiação de suas virtudes e encheu-a com o resplendor de sua doutrina.” (Aeterni Patris)
O combate do pontífice traduziu-se numa sucessão de encíclicas admiráveis: foram 64 em 25 anos de Pontificado, número superior à soma do que terão produzido seu predecessor e seu sucessor2. Mas não é o aspecto material —seja a quantidade de documentos, seja a perfeição literária — o que mais nos impressiona, e sim a profundidade da doutrina e o rigor da exposição.
Muito industrioso, Leão XIII não se poupava absolutamente — trabalhava por até 16 horas seguidas — assim como não poupava os seus assessores mais próximos. Conta-se que, muitas vezes, ele os “trancava” o dia inteiro na sua biblioteca particular, fazendo-os pesquisar algum ponto de doutrina ou aprimorar a redação de algum documento. Poderíamos aplicar ao próprio papa o que ele escreveu da Igreja: “Inimiga nata da inércia e da preguiça, deseja grandemente que o exercício e a cultura façam o gênio do homem dar frutos abundantes” 3.
As encíclicas não eram traduzidas, mas redigidas diretamente em latim pelo papa — diz-se que, desde Urbano VIII, nenhum pontífice manejou com tanto esmero a língua da Igreja. Revisor incansável, levantava-se à noite para corrigir uma pontuação ou trocar uma palavra. E depois de tudo ter sido exaustivamente meditado, revisado e ponderado, trancava o documento acabado numa gaveta e esperava: patiens quia aeternus (paciente porque é eterno). O resultado, para além da renovação tomista, foram os monumentos que inauguraram a doutrina social da Igreja, condenaram o comunismo, o liberalismo, a escravidão, o americanismo, a maçonaria e tantos outros erros e males.
A profecia de São Malaquias atribui ao glorioso Pio IX um título bastante conveniente, Crux de cruce. Realmente, foi um papa cumulado singularmente de tribulações, e chegou a ser chamado, ainda em vida, de “o Papa da Cruz”. Não é menos apropriado o nome atribuído a Leão XIII: Lumen in Caelo, luz no céu.
AS RUÍNAS DO SOCIALISMO
Temos um especial interesse em nos debruçar sobre o magistério de Leão XIII, em ouvir atentamente as lições que, com tanta ciência, ele próprio quis nos transmitir, pois nas suas encíclicas encontramos remédio para muitos dos males que atormentam o triste e confuso mundo moderno.
Trataremos aqui apenas da sua doutrina sobre o comunismo e o socialismo, tal como exposta em Quod Apostolici Muneris, deixando para outra oportunidade os demais aspectos da doutrina e da política deste grande pontífice.
Vigilância dos papas
Leão XIII é freqüentemente maltratado pelos comentadores, que mudam-lhe as feições a ponto de torná-lo irreconhecível. Chamam-no democrata, coisa que nunca foi; liberal, quando é um dos principais autores da doutrina anti-liberal da Igreja; socializante, mas talvez seja o papa mais violentamente anti-comunista que jamais se sentou na Cátedra de Pedro.
Há uma história na origem deste último equívoco. Nos tempos que antecederam imediatamente a publicação da sua Rerum Novarum, havia de um lado um grupo de católicos que, reunidos na Bélgica em torno de Charles Périn e, na França, em torno de numerosos escritores, destacava-se pelo valente combate contra o socialismo, mas a custo de abraçar em maior ou menor medida as idéias liberais. De outro lado, havia um grupo minoritário reunido em torno de Dom Gaspard Mermillod, chamado “União de Friburgo”, que buscava em Santo Tomás os alicerces para uma doutrina social. Leão XIII favoreceu este último grupo, e os católicos liberais começaram imediatamente a acusar ao papa e a sua doutrina social de “socializante”. Anos após sua morte, intelectuais deram seqüência às acusações e, por sua vez, os progressistas adoraram: seqüestraram Leão XIII, reivindicaram-no como se fosse um dos seus.
Ao se falar em comunismo, é preciso elogiar a vigilância da Igreja e, em especial, dos Papas do século XIX. Pio IX foi o primeiro a condenar repetidamente o comunismo, verberando-o, entre outros documentos, no Syllabus e na Quanta Cura de 1864, documento munido de todas as notas da infalibilidade. Note-se que, na ocasião, Karl Marx ainda era vivo, e não tinha cinqüenta anos sequer. Nas biografias consagradas ao Papa da Imaculada, lê-se que certa feita alguém lhe disse temer pelo desenvolvimento do comunismo na Inglaterra. Pio IX respondeu não acreditar que o comunismo despontaria lá, e sim no Leste. Foi o que de fato aconteceu, com a União Soviética.
Leão XIII foi ainda mais combativo. O papa inquietava-se tremendamente com o comunismo e socialismo, e guardou suas mais violentas palavras para condená-los. Em 1849 — O Manifesto Comunista acabara de ser publicado — o então Cardeal Pecci, bispo de Perúgia, numa pastoral redigida por ele, declarou estar disposto a arriscar a própria vida em defesa do direito de propriedade:
“Mas como, no século em que estamos, ataca-se com particular violência a unidade e a absoluta necessidade da Fé, a autoridade dos poderes legítimos e o direito de propriedade adquirido com justiça, queremos solenemente professar estas verdades e, quanto de nós depender, defendê-las com o risco da nossa própria vida.” (o destaque é nosso)
E por aqui já se vê que a condenação ao Comunismo por Leão XIII é de natureza muito mais profunda do que tudo o que fazem atualmente as nossas direitas. Ele não o condenou pelo rastro de sangue que o comunismo certamente produziu, pelos seus cem milhões de mortos, pela razão de que, no século XIX, a trajetória de crimes comunistas mal começara. Antes, Leão XIII condenou de modo implacável o socialismo e o comunismo pelo fato de estas ideologias perseguirem um fim mau em si mesmo. Por essa razão, e com compreensão e presciência admiráveis, já estavam elas inapelavelmente condenadas antes de reduzirem populações inteiras à miséria, antes de produzirem os mais graves crimes dos tempos modernos. Não foi por outra razão que outro papa haveria de fulminar a seita declarando que o comunismo é intrinsecamente perverso (Pio XI - Divini Redemptoris).
Para demonstrar a largueza de visão de Leão XIII, cito uma passagem quase profética da Rerum Novarum (1891) — a tal encíclica socializante — em que o Papa indica inequivocamente que a implantação do socialismo engendraria, além da perturbação de toda a sociedade, a escravidão e a miséria (grifos meus):
“Mas, além da injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas conseqüências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como conseqüência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria.”
Ora, não há nada de equivalente no tratamento dispensado ao capitalismo. Que se aponte uma menção sequer a ele no Syllabus de Pio IX. Não há! A Doutrina Social da Igreja não vai no sentido de uma condenação in toto do capitalismo, e é essa a razão de uma frase menos conhecida de Pio XI sobre ele, capaz por si só de resolver muitos equívocos: “É evidente que ele não é condenável de per si” (Quadragesimo Anno).
Mas nada seria capaz de provar melhor a intransigente oposição leonina ao socialismo e ao comunismo do que a encíclica Quod Apostolici Muneris, publicada nos primeiros meses de seu Pontificado. Eis aqui algo realmente digno de nota: eleito papa, Leão XIII não viu nada melhor a fazer nos primeiros meses do seu pontificado do que condenar de modo solene e cabal o comunismo e o socialismo. Insisto: a sua condenação ao comunismo, reiterada em dezenas de documentos posteriores do seu pontificado, não apenas antecede as suas condenações ao liberalismo e à maçonaria, mas até mesmo a promoção do tomismo.
As três ruínas
A encíclica abre com um discurso duríssimo:
“Obedecendo ao dever do Nosso cargo apostólico, não deixamos (...) de apontar esta peste mortal que se introduz como a Serpente por entre as articulações mais íntimas dos membros da sociedade humana, e a coloca num perigo extremo (...).
“Vós compreendereis facilmente que Nos referimos a essa seita de homens que, debaixo de nomes diversos e quase bárbaros, se chamam socialistas, comunistas ou niilistas, e que, espalhados sobre toda a superfície da terra (...) se esforçam por levar a cabo o desígnio (...) de destruir os alicerces da sociedade civil. É a eles, certamente, que se referem as sagradas letras quando dizem: ‘Eles mancham a carne, desprezam o poder e blasfemam da majestade’ (Jd 1,8).”
Sim, essa seita de “homens pérfidos” quer levar à ruína três ordens distintas da sociedade civil: a política, a economia e a organização social. E intentam contra elas, sempre segundo o papa, do seguinte modo:
Este último ponto, sobre o igualitarismo, pede uma explicação. Há certamente uma igualdade de natureza entre os homens, pois possuímos todos a mesma natureza humana, assim como existe uma igualdade de destinação, pois somos todos chamados “à mesma e eminente dignidade de filhos de Deus”. Porém, é igualmente verdadeiro que, como ensina o papa, “a desigualdade de direitos e de poder provém do próprio Autor da natureza”. Ora, assim como Deus quis que houvesse distinção e subordinação até mesmo entre os anjos do céu, ou nas diferentes partes do corpo humano, assim também a sociedade foi estabelecida com várias ordens distintas em dignidades, direitos e poderes, “a fim de que a sociedade fosse, como a Igreja, um só corpo, compreendendo um grande número de membros, uns mais nobres que os outros, mas todos reciprocamente necessários e preocupados com o bem comum”.
Aqui convém citar um belo trecho de Gustavo Corção, onde o grande escritor desenvolve com poesia a nossa radical oposição ao igualitarismo:
“A sociedade de nossos sonhos terá a medida de sua perfeição na riqueza das diferenciações enquadradas na mais forte e vitoriosa unidade moral. O mundo que nós desejamos não é o pesadelo de uniformidade desejado pelos marxistas. Ao contrário, é um mundo de diferenças exaltadas, em que a criança seja plenamente infantil, o homem plenamente varonil, e a mulher plenamente mulheril. O mundo que nós desejamos restaurar é, em poucas palavras, aquele em que a natureza das coisas seja esplendidamente afirmada, e em que tudo se valorize pelo que tem de genuíno. O pão será pão e não pedra. O leite será leite, e não um equívoco líquido esbranquiçado. A poesia será poesia, e não um pretexto de andar na vida sem regras morais. E tudo o mais será assim, verídico e autêntico.” 4
Do Liberalismo ao socialismo
A origem de tais doutrinas socialistas e comunistas não é outra que o naturalismo e o racionalismo, propugnado pelos filósofos iluministas do século XVIII. Pois foi recusando de antemão a revelação divina e toda a ordem sobrenatural que franquearam as portas a todos os delírios da razão. Daí também se originaram os Estados modernos, constituídos “sem fazer caso algum de Deus, nem da ordem por ele estabelecida”.
Em outra encíclica, Leão XIII apontara a mesma origem, a mesma paternidade para o liberalismo: “E, com efeito, o que são os partidários do naturalismo e do racionalismo em filosofia, os fautores do liberalismo o são na ordem moral e civil” 5. Donde resulta o estreito parentesco entre tais doutrinas, que desempenharão cada qual um papel na história: o liberalismo vem primeiro e, afastando de Deus as sociedades, prepara-as para a mais perversa das tiranias, o socialismo. Este parece ser o pensamento de Leão XIII:
“Daquela heresia [i. é, o protestantismo] nasceram no século passado uma filosofia falsa, o chamado direito novo, a soberania popular e uma descontrolada licença, que muitos consideram como a única liberdade. Daqui chegou-se a esses erros recentes que se chamam comunismo, socialismo e niilismo, peste vergonhosa e ameaça de morte para a sociedade civil” (Diuturnum Illud).
Compreende-se que não é possível combater eficazmente o socialismo a partir do liberalismo: seria como tentar esfriar uma chaleira sem tirá-la do fogo. Escreveu Gustavo Corção:
“Qualquer estudioso, que digo? qualquer distraído, se ainda souber ver alguma coisa, sabe que o liberalismo amolecedor, sendo uma perversão que relativiza a Verdade e o Bem em favor de uma categoria definida pela indefinição, só pode entregar o homem a suas fraquezas internas e a seus inimigos externos. A penetração do socialismo e do comunismo nos meios católicos seria impraticável sem a penetração do liberalismo (...)
“O liberalismo corre atrás do comunismo como a matéria corre atrás da forma, ou como, segundo Aristóteles, corre a fêmea atrás do macho. O mole ceticismo liberal tem a nostalgia das definições, tem a nostalgia dos dogmas, sem os quais a alma humana não respira. Se os não quer divinos, amolda-os com o barro humano, se não os suporta revelados por Deus, fabrica-os. Não podendo, na religião deles, voltar ao cristianismo, o liberalismo sonha amores com o comunismo, e tem desejo de se sentir coberto por algo que seja duro e definido.” 6
Ainda nesse ponto, escreveu Dom Marcel Lefebvre: “Guardemos então esta inegável verdade histórica e filosófica: o liberalismo leva, por inclinação natural, ao totalitarismo e à revolução comunista.” 7 E São Pio X escreveu sobre “os princípios subversivos do liberalismo e dos seus dignos filhos, o socialismo e a anarquia”.
É fácil ver como o liberalismo prepara a sociedade para as três ruínas apontadas na encíclica. Na ordem política, ao negar que seja Deus a origem e a fonte da autoridade política, subtrai desta última todo seu vigor e lhe atribui o mais débil dos fundamentos, a soberania popular. A liberdade de imprensa e de ensino coloca nas mãos dos maiores inimigos da sociedade, os comunistas, os instrumentos de que tanto precisavam para levar adiante os seus planos funestos. Na ordem econômica, se o Catolicismo defende a propriedade privada como um direito natural, se proíbe, com o décimo mandamento, a mera cobiça dos bens alheios, o liberalismo, ao fundar a propriedade privada no Estado, tido como a expressão da vontade geral, estatiza toda a propriedade no seu princípio mesmo. Na ordem social, o liberalismo promove o igualitarismo e destrói o mais doce dos cativeiros, a sociedade doméstica, ao erigir a liberdade como valor supremo. Assim, começa por reduzir o matrimônio a mero contrato civil, para em seguida instituir o divórcio e, finalmente, abrir as portas para toda sorte de perversões.
Se os mortos não ressuscitam...
Voltemos à Encíclica. O papa prossegue sua lúcida exposição e, depois de segregar as origens da pérfida filosofia comunista, analisa o componente psicológico, ou a motivação por trás daqueles que a abraçam: e aqui entramos num problema de importância capital. Ora, se não há Revelação, se não há sobrenatural, também não haverá céu nem vida eterna. Toda a felicidade estará circunscrita aos limites da vida presente, e terá de ser realizada aqui e agora. É como dizia o Apóstolo (1Cor 15, 32): se os mortos não ressuscitam, então “comamos e bebamos porque amanhã morreremos”. O problema pessoal da miséria reclama uma solução espiritual. Na ausência dela, o homem torna-se vítima de toda espécie de rancor, e já não haverá nada que impeça os desvalidos do mundo, que são sempre maioria, de se coligirem para avançar sobre os bens dos ricos. É o que ensina o papa: “não é para admirar que os homens de ínfima condição, cansados da pobreza de suas casas ou pequenas oficinas, tenham inveja de se elevarem até aos palácios e à fortuna dos ricos; não é para admirar que já não haja tranqüilidade na vida pública e particular, e que o gênero humano já tenha chegado quase à borda do abismo.”
A força do socialismo está na impossibilidade de uma sociedade descristianizada encontrar uma solução para o problema pessoal da pobreza. E se alguns economistas louvam a livre iniciativa, atribuindo-lhe o poder de extirpar a miséria, outros dão de ombros e declaram com cinismo que “no longo prazo, todos estaremos mortos”, antes de comunizar um pouco mais os bens de todos.
Continua o papa: “os sectários do socialismo, apresentando o direito de propriedade como uma invenção humana que repugna à igualdade natural dos homens, e reclamando o comunismo dos bens, declaram que é impossível suportar com paciência a pobreza e que as propriedades e regalias dos ricos podem ser violadas impunemente.” A solução para esse mal não poderá ser encontrada longe da Igreja, e terá de passar pela reconversão dos povos. É de espantar que, estando nossa Mãe e Mestra muda, as idéias socialistas não parem de crescer, mesmo após a queda do muro de Berlim? Citemos a Encíclica:
“E quando reconhecerem que, para afastar esta peste do socialismo, a Igreja possui uma força como nunca tiveram nem as leis humanas, nem as repressões dos magistrados, nem as armas dos soldados, tratarão de restituir logo à Igreja condição e liberdade tais, que possa exercer esta força tão salutar para o bem comum de toda a sociedade humana.”
Mas as classes operárias não seriam induzidas a abraçar os erros nefandos do socialismo, se não houvesse uma organização que se encarregasse de doutriná-las e de excitar os rancores: esse é o papel da maçonaria e demais associações secretas. Por isso recorda o Papa as numerosas advertências dos seus predecessores contra elas, advertências que jamais foram levadas em consideração. E afirma que tudo teria se passado de modo diferente, se tivessem agido de outro modo.
E conclui ordenando aos bispos combater o socialismo: “É necessário, além disto, que trabalheis para que os filhos da Igreja Católica não ousem, seja debaixo de que pretexto for, filiar-se na seita abominável, nem favorecê-la.” Infelizmente, aqui também podemos dizer que, se essas advertências tivessem sido levadas em consideração, tudo teria se dado de modo diferente!
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Pode-se compreender que alguém insuficientemente familiarizado com a doutrina da Igreja, ao ver a defesa de governos e idéias esquerdistas pela Conferência episcopal brasileira, venha a julgar que tudo isso guarde alguma relação com a doutrina santíssima da Igreja. Isso é evidentemente falso. O que ocorreu dentro da Igreja, na esteira da reviravolta antropocêntrica promovida pelo Segundo Concílio do Vaticano, foi uma terrível demissão do episcopado. Narra Corção:
“... desde o princípio deste século o surgimento dos socialismos e dos humanismos em meios cristãos tomou dimensões de intolerável insolência; mas ainda em 1936, o cardeal primaz da Espanha, no seu histórico apelo lançado ao mundo católico, teve o apoio de todos os bispos do mundo, e assim promoveu a mais numerosa unanimidade da hierarquia católica jamais registrada.
“Ora, menos do que trinta anos depois (trinta anos, um sopro!), nós, isto é, os mesmos espectadores da unanimidade de ontem viram, durante o Concílio, um espetáculo aterrador. Relendo um livro que fez sucesso na época, O Reno se lança no Tibre, ou o mais recente e importante Un Évêque Parle, de Dom Lefebvre, vemos que somente depois de uma árdua campanha puderam uns poucos bispos obter a assinatura de uma exígua minoria para a confirmação das condenações anteriormente formuladas por tantos papas (...)”8
Ora, depois de declarar que “... o Concílio dirige agora a atenção de todos [...] para algumas necessidades mais urgentes do nosso tempo, que profundamente afetam a humanidade (...)”9, o Vaticano II recusou-se vergonhosamente, escandalosamente, a renovar as condenações ao mais grave flagelo dos tempos modernos. Eis o contraste: o que Leão XIII fez quando o comunismo estava longe de possuir a organização doutrinal e prática que mais tarde viria a ter, o Concílio não fez quando já tinha meio mundo devorado. Esta omissão foi na verdade o resultado de uma tratativa, o chamado Acordo de Metz, como hoje se sabe10.