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Um papa sem Roma?

Pe. Jean-Michel Gleize, FSSPX

     1. Aldo Maria Valli é um dos vaticanistas mais conhecidos na Itália. Ele é também uma das figuras mais representativas dos fiéis católicos ligados à ortodoxia doutrinal, disciplinar e litúrgica, naquela que convencionou-se chamar de Igreja “oficial”. Sua voz, apesar de simpatizante com relação à Fraternidade São Pio X, não pode ser suspeita, a priori, de ser um eco de críticas provindas dos meios ditos tradicionalistas, ainda menos de pertencer a uma suposta "obediência lefebvrista". As reflexões preocupadas e indignadas que acaba de publicar, para exprimir sua reação diante da evolução atual do papado, são por isso mais dignas de nota1.

     2. “O papa”, ele escreve, “ainda que fisicamente presente, não está verdadeiramente lá, porque não age como papa. Ele está presente, mas não cumpre sua tarefa de sucessor de Pedro e vigário de Cristo. Jorge Mario Bergoglio está presente, mas Pedro não está.” E acrescenta: “Uma coisa é estar no mundo e uma outra tornar-se como o mundo. Falando como o mundo fala e pensando como o mundo pensa, Bergoglio fez Pedro evaporar-se e colocou-se em primeiro plano”.

     3. A formulação pode parecer chocante. Nós podemos apostar que os discípulos de Dom Lefebvre que se arriscassem a usá-la seriam seriamente admoestados, e que aí se veria o indício de um espírito cismático2, de uma tendência sedevacantista3 ou, ao menos, de uma tendência ao isolamento4. Os ditos discípulos incorreram em tais censuras por muito menos que isso, por causa de uma linguagem cuja modéstia repousava no espírito do fundador da Fraternidade São Pio X. “Nós não recusamos a autoridade do Papa, mas o que ele faz”, dizia esse último pouco tempo antes de ser chamado a Deus5. “Nós reconhecemos a autoridade do Papa, mas quando se vale dessa mesma autoridade para fazer o contrário daquilo para o qual essa autoridade lhe foi dada, é evidente que não podemos segui-lo” 6. Quatro anos antes7, ele já fazia o seguinte diagnóstico: “Existe todo um conjunto agora em Roma, que não existia outrora, e que não pode nos dar leis à maneira dos papas de antes, porque não mais possuem o espírito verdadeiramente católico nesse quesito”. E vinte e cinco anos após as sagrações do dia 30/06/1988, o segundo sucessor de Dom Lefebvre fazia em nome da Fraternidade essa declaração de princípio: “Nós somos obrigados a constatar que esse concílio atípico, que quis ser somente pastoral e não dogmático, inaugurou um novo tipo de magistério, desconhecido até há pouco na Igreja, sem raízes na tradição; um magistério resoluto em conciliar a doutrina católica com as idéias liberais; um magistério imbuído dos princípios modernistas do subjetivismo, do imanentismo e em perpétua evolução segundo o falso conceito de tradição viva, viciando a natureza, o conteúdo, o papel e o exercício do magistério eclesiástico” 8. Nesse sentido ele está certo em dizer, como o fez Aldo Maria Valli, que “Roma não possui Papa”.

     4. Mas, trinta anos após a morte de Dom Lefebvre, a autoridade do Papa está tão subvertida que seu uso quase diário resulta em afundar as almas numa confusão e numa desordem cada vez maior, fomentando um indiferentismo que não é mais apenas doutrinal e eclesiológico, mas que invade agora o campo da moral. O Papa Francisco prossegue sobre a via aberta pelo Concílio Vaticano II e já seguida por seus predecessores, desde João XXIII e Paulo VI. O papado da história atual, portanto, parece celebrar constantemente a destruição ou o enterro daquilo que é sua razão de ser, dissolvendo a fé e os costumes no seio da santa Igreja Católica. Aldo Maria Valli simplesmente assinala isso, como a Fraternidade São Pio X fez até agora antes dele:

“Mas hoje Pedro não pastoreia suas ovelhas e não as confirma na fé. Por quê? […] Bergoglio fala sobre Deus, mas de toda a sua pregação vem um Deus que não é o Deus da Bíblia, mas um Deus adulterado, um Deus, eu diria, desprovido de poder, ou melhor ainda, adaptado. A quê? Ao homem e à sua pretensão de se justificar vivendo como se não existisse pecado”.

     5. Roma sem Papa?… A energia da proposição reflete mais do que uma exasperação, uma angústia que toca agora as almas muito além do movimento dito “tradicionalista”. Nós podemos ver aí o sinal de que a observação de Dom Lefebvre estava certa. Mas nós veríamos de nossa parte também uma homenagem involuntária concedida não somente à temperança teológica mas ainda à sabedoria sobrenatural do fundador de Ecône. Não somente esse último sempre quis evitar a ambigüidade de linguagem, a qual poderia deixar margem para que se julgasse que aderira ao sedevacantismo, mas ele via sobretudo com clareza onde estava o drama: drama de abandono, pelo Papa, de todo o patrimônio da Tradição da Igreja, abandono daquilo que faz a Roma eterna, a “Roma de sempre”. E é o Papa de agora que não é mais romano: um Papa sem Roma, numa miragem de Roma, uma falsa Roma “neomodernista e neoprotestante”.

(Courrier de Rome, 638)

  1. 1. Cf. o artigo “Roma sem papa. Bergoglio está presente, mas não Pedro”, reproduzido na sua tradução francesa na página do dia 26/02/2021 no site oficial da Casa Geral da Fraternidade São Pio X: https://fsspx.news/fr/news-events/news/rome-sans-pape-bergoglioest-la-ma...
  2. 2. É a reprimenda lançada contra Dom Lefebvre pelo Papa João Paulo II no Motu próprio Ecclesia Dei afflicta do dia 02/07/1988, e incessantemente reiterada desde então, e ainda recentemente pelo Cardeal Burke numa conferência no dia 15/07/2017 em Medford, nos Estados Unidos. Cf. o artigo “O Cardeal Burke mata a FSSPX” no site da filial da APIC na Suiça: https://www.cath.ch/newsf/cardinal-burke-descend-fsspx
  3. 3. O Pe. Lucien criticava a Fraternidade São Pio X por uma “forma velada de afirmar formalmente que a sede apostólica está vaga” a partir do fato de que a Fraternidade negaria como um todo o valor magisterial do Concílio Vaticano II. Cf. Pe. Bernard Lucien, “A autoridade magisterial do Vaticano II” na revista Sedes sapientiae, n° 119 (março 2012), nota 17, p. 54.
  4. 4. Cf. por exemplo o que conta o jornal La Croix do dia 20/09/2020, o qual repercute as proposições de um antigo membro da Fraternidade São Pio X. https://www.la-croix.com/Religion/Fraternite-sacerdotale-Saint-Pie-X-acc...
  5. 5. Dom Lefebvre, “A visibilidade da Igreja e a situação atual” em Fideliter n° 66 (novembro-dezembro 1988), p. 28.
  6. 6. Ibidem.
  7. 7. “Conferência em Ecône do dia 12/06/1984”, Cospec n° 111.
  8. 8. Dom Fellay, “Declaração por ocasião do vigésimo quinto aniversário das sagrações episcopais”, 27/06/2013, n° 4, no Cor unum, n° 106, p. 36.
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