Skip to content

Não devemos nos render ao mundo, mas render todas as coisas a Cristo

Uma entrevista com o Superior Geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X sobre o pontificado do Papa Francisco

 

DICI: Reverendíssimo Padre, passaram-se oito anos desde que o Papa Francisco ascendeu ao trono de São Pedro, e, por ocasião desse aniversário, o sr., bondosamente, concedeu-nos essa entrevista, pela qual estamos verdadeiramente gratos.

Para alguns observadores do pontificado do Papa Francisco, particularmente para aqueles apegados à Tradição, parece que a batalha de ideias acabou. De acordo com eles, agora, há uma praxis que domina, a saber, a ação concreta, inspirada em um pragmatismo amplo. Qual sua opinião acerca disso?

Padre Pagliarani: Eu não tenho tanta certeza de que as ações e as ideias devam ser opostas dessa maneira. O Papa Francisco, definitivamente, é muito pragmático. Mas, sendo um homem de governo, ele sabe perfeitamente bem onde quer chegar. Uma ação de larga escala é sempre inspirada em princípios teóricos, em um conjunto de ideias, normalmente dominadas por uma ideia central, com a qual toda a praxis pode e deve estar relacionada.

Deve-se perceber que todas as tentativas de entender os princípios [por detrás] do pragmatismo do Papa Francisco ainda estão no âmbito da tentativa e erro. Por exemplo, algumas pessoas achavam que tinham encontrado os princípios norteadores de sua ação na teologia del pueblo, uma variação argentina da teologia da libertação – porém muito mais moderada. Parece-me, no entanto, que o Papa Francisco está além desse sistema, e mesmo além de qualquer sistema conhecido. Eu acredito que as ideias que direcionam suas ações não podem ser analisadas e interpretadas de maneira satisfatórias se nos limitarmos aos critérios teológicos tradicionais. Ele não apenas está além de qualquer sistema conhecido, está acima deles!

 

O que o Sr. quer dizer com isso?

Com o Papa João Paulo II, por exemplo -- apesar de tudo que pode ser deplorado em seu pontificado -- certos pontos da doutrina católica permaneciam incólumes. Com o Papa Bento XVI, lidávamos com um espírito apegado às raízes da Igreja. Seu esforço considerável de realizar a quadratura do círculo, ao tentar reconciliar a Tradição com os ensinamentos conciliares ou pós-conciliares, embora condenado ao fracasso, revelavam contudo uma preocupação com a fidelidade à Tradição. Mas, com o Papa Francisco, essa preocupação não existe mais. O pontificado sob o qual vivemos é um ponto de virada histórico para a Igreja Católica: bastiões que ainda existiam, foram agora demolidos para sempre – humanamente falando; e, ao mesmo tempo, a Igreja redefiniu, ao revolucioná-la, sua missão em relação às almas e ao mundo.

Ainda é muito cedo para analisar o escopo integral dessa sublevação, mas já podemos tentar analisá-la.

 

O Sr. disse que os bastiões que ainda existiam foram demolidos. Que bastiões são esses?

Estou me referindo, de maneira particular, aos fundamentos morais últimos sobre os quais não apenas a sociedade cristã, mas qualquer sociedade natural se estabelece. Estava fadado a acontecer mais cedo ou mais tarde, era uma questão de tempo. Até agora, embora sendo vaga às vezes, a Igreja ainda mantinha suas demandas morais de modo um tanto firme, por exemplo acerca do casamento católico. Ela ainda condenava todas as perversões sexuais… Mas essas demandas, infelizmente, eram baseadas em uma teologia dogmática que estava desviada de seu propósito e, portanto, tornada instável. Era inevitável que, um dia, tudo isso iria vacilar. Princípios sólidos de ação não podem se sustentar firmemente por muito tempo quando a ideia de seu Autor Divino é enfraquecida ou distorcida. Esses princípios morais poderiam sobreviver por algum tempo, até mesmo por algumas décadas, porém, privados de sua espinha dorsal, eles estavam condenados a, um dia, ser tachados de “ultrapassados” e negados na prática. É isso que estamos vendo com o pontificado do Papa Francisco, em particular com a exortação apostólica Amoris Laetitia, de 19 de março de 2016. Esse documento não apenas contém erros sérios: ele manifesta um approach novo, completamente historicista.

 

O que é esse novo approach? O que poderia ter determinado sua escolha?

O Papa Francisco tem uma visão geral muito precisa da sociedade contemporânea e da Igreja contemporânea – e mesmo da história como um todo. Ele me parece muito afetado por um tipo de hiperrealismo, uma espécie de hiperrealismo “pastoral”. De acordo com ele, a Igreja deve encarar a realidade: é impossível a ela continuar a pregar a doutrina moral como tem feito até hoje. Ela deve, portanto, render-se às demandas do homem moderno e, consequentemente, repensar seu papel como mãe.

É claro, a Igreja deve sempre ser mãe. Mas, ao invés de ser mãe ao transmitir a vida e ao educar os filhos, será mãe na medida em que saiba ouvir, compreender e acompanhar seus filhos… Essas preocupações, que não são más em si mesmas, devem ser compreendidas, aqui, em um novo e muito particular sentido: a Igreja Católica não pode mais – e, portanto, não deve mais – impor-se. Ela deve ser passiva e adaptar-se. É a vida eclesial, tal como é vivida atualmente, que condiciona e determina a missão da Igreja, e, até mesmo, sua raison d’être [propósito]. Por exemplo, como não pode impor as mesmas condições que impunha no passado para a recepção da Sagrada Comunhão, uma vez que o homem moderno as percebe como uma intolerância inaceitável, a única reação verdadeiramente cristã e realista, ao seguir essa lógica, consistiria em adaptar-se a essa situação e redefinir essas condições. Portanto, por força dos acontecimentos, a moral muda; as leis eternas, agora, estão sujeitas a uma evolução, que se torna necessária em razão de circunstâncias históricas e dos imperativos de uma falsa e mal-compreendida caridade.

 

Na sua opinião, o Papa se sente desconfortável com esse desenvolvimento? Sente necessidade de justificá-lo?

Sem a menor dúvida, o Papa devia estar ciente, desde o princípio, da reação que tal processo provocaria dentro da Igreja. Ele, provavelmente, também estava ciente do fato de que estava abrindo portas que, por mais de dois mil anos, haviam permanecido muito bem fechadas. Mas, para ele, as demandas dos tempos superam quaisquer outras considerações.

É nessa perspectiva que a ideia de “misericórdia” adquire seu valor e escopo completos. Essa ideia de “misericórdia” é onipresente em seus discursos. Ela não é mais a resposta de um Deus de amor, que acolhe o pecador arrependido com braços abertos, para o regenerar e dar-lhe a vida da graça de volta. Ela, agora, é uma misericórdia fatal, que se tornou necessária para satisfazer as necessidades urgentes da humanidade. Daqui em diante, considerados incapazes de respeitar até mesmo a lei natural, os homens têm o direito estrito de receber essa misericórdia, uma espécie de anistia condescendente de um Deus que também se adapta à história, sem dominá-la como antes.

Desse modo, não apenas a fé e a ordem sobrenaturais são abandonados, mas também os princípios morais indispensáveis a uma vida honesta e reta. Isso é assustador, porque significa a renúncia definitiva da cristianização da moral: ao contrário, os católicos, agora, devem adotar a moral do mundo, ou ao menos adaptar – de acordo com o caso concreto – a lei moral à moda atual, incluindo aquela dos casais divorciados “recasados” e mesmo dos casais de mesmo sexo.

Essa misericórdia, portanto, tornou-se uma espécie de panaceia, o fundamento de uma nova evangelização a ser proposta para um século que não pode mais ser convertido e a cristãos aos quais o jugo dos mandamentos não pode mais ser imposto. Dessa maneira, as almas em perigo, ao invés de serem encorajadas e fortalecidas em sua fé, são consoladas e confirmadas em sua situação pecaminosa. Ao agir assim, o guardião da fé revoga até mesmo a ordem natural, o que significa que mais nada sobrou.

O que subjaz esses erros é a ausência total de transcendência ou verticalidade. Não há mais nenhuma referência, mesmo implícita, ao sobrenatural, à nossa vida após esse mundo e, acima de tudo, à obra de Redenção de Nosso Senhor, que, de modo definitivo, deu a todos os homens os meios necessários para sua salvação. A eficácia perene desses meios não é mais pregada, nem mais reconhecida. Eles não acreditam mais neles! Consequentemente, tudo é reduzido a uma visão puramente horizontal e historicista, na qual as contingências prevalecem sobre os princípios, e na qual apenas o bem-estar terreno importa.

 

Esse "ponto de virada", que o Sr. mencionou, continua consistente com o Concílio Vaticano II, ou já pertence a um Concílio Vaticano III, que não aconteceu?

Há, ao mesmo tempo, continuidade com as premissas estabelecidas no Concílio e superação delas. Isso por uma razão muito simples: com o Concílio Vaticano II, a Igreja quis adaptar-se ao mundo, quis “atualizar-se” com o aggiornamento promovido pelos Papas João XXIII e Paulo VI. Agora, o Papa Francisco continua essa adaptação ao mundo, mas em um sentido novo e extremo: a Igreja, agora, deve adaptar-se aos pecados do mundo – ao menos quando o pecado for “politicamente correto”. O pecado, no entanto, é apresentado como uma expressão autêntica de amor, em todas as formas permitidas na sociedade contemporânea e, portanto, permitidas por um Deus misericordioso. São sempre analisados caso a caso, mas esses casos excepcionais estão destinados a se tornar a norma, como já podemos ver na Alemanha.

 

Paralelamente a essa aniquilação progressiva da moral tradicional, o Papa Francisco propõe valores a serem promovidos? Ou, para colocar de outra maneira, na sua opinião, sobre que fundamento ele quer construir?

Essa é uma pergunta muito pertinente, à qual o próprio Papa deu a resposta no dia 03 de outubro de 2020, na sua última encíclica Fratelli tutti, onde afirmou que “trata-se, sem dúvida, doutra lógica”; e ele continua, propondo que aceitemos “o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente […] Esse é o verdadeiro caminho da paz”. Isso é o que se chama de uma utopia, e é isso que acontece a todos que se separam de suas raízes. O Santo Padre, rompendo com a Tradição Divina, aspira a uma perfeição ideal e abstrata, totalmente desconectada da realidade.

Reconhecidamente, na mesma passagem, defende sua posição, admitindo que o que diz “parecerá um devaneio”. Ele também especifica a base na qual ele quer justificar sua posição:  “o grande princípio dos direitos que brotam do simples fato de possuir a inalienável dignidade humana”. Mas, de modo preciso, a Revelação Divina e a Tradição Católica nos ensinam que a natureza humana e a dignidade humana não são autossuficientes. Como Chesterton diz, “retire o sobrenatural, e o que resta é antinatural”. Sem Deus, a natureza tende a se tornar, na prática, antinatural. Ao chamar e elevar o homem à ordem sobrenatural, Deus ordenou a natureza humana à graça. Portanto, a natureza não pode remover a ordem sobrenatural sem introduzir uma desordem profunda nela mesma. O sonho do Papa Francisco – sua “outra lógica” é profundamente naturalista.

Outro sinal desse caráter utópico, seu sonho toma um escopo universalista: é uma questão de o impor a todos, de maneira autoritária e absoluta. Sendo concebidos de maneira artificial, os sonhos só podem ser impostos de uma maneira artificial...

 

Mas em que consiste a utopia do Papa Francisco?

Em osmose perfeita com as aspirações do homem moderno, imbuído dos direitos que ele reivindica e separado de suas raízes, ela pode ser resumida em duas ideias: a da ecologia integral e a da fraternidade universal. Não é coincidência que o Papa tenha dedicado suas duas encíclicas chave a esses temas, que, como ele mesmo defende, caracterizam as duas principais partes do seu pontificado.

A ecologia integral de Laudato si (24 de maio de 2015) não é nada mais que uma nova moral proposta para toda a humanidade, deixando de lado a Revelação Divina e, portanto, o Evangelho. Seus princípios são puramente arbitrários e naturalistas. Eles se harmonizam, sem a menor dificuldade, com as aspirações ateístas de uma humanidade que está apaixonada pelo mundo na qual vive, e atolada em preocupações puramente materiais.

E a fraternidade universal de Fratelli tutti, defendida pelo Papa de modo muito solente na Declaração de Abu Dhabi, coassinada pelo Grande Imam de Al-Azhar (04 de fevereiro de 2019), não é nada mais que uma caricatura naturalista da fraternidade cristã, fundada na paternidade divina comum a todos os homens, salvo por Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa fraternidade é, materialmente, idêntica à da Maçonaria, que, ao longo dos últimos dois séculos, não fez nada além de semear ódio, particularmente contra a Igreja Católica, em um desejo feroz de suplantar a única verdadeira fraternidade entre os homens possível.

Não é apenas a negação da ordem sobrenatural, reduzindo a Igreja Católica às dimensões de uma ONG filantrópica, mas também é uma falta de compreensão das feridas do pecado original e o esquecimento da necessidade da graça para restaurar a natureza decaída e para promover a paz entre os homens.

 

Nesse contexto, como pode o papel da Igreja ser distinguido do papel da sociedade civil?

Hoje, a Igreja Católica oferece a imagem de um poder sacerdotal a serviço do mundo contemporâneo e de suas necessidades sociopolíticas… Porém, esse sacerdócio não é mais dedicado à cristianização das instituições ou à reforma da moral, que se tornaram pagãos novamente. É um sacerdócio tragicamente humano, sem qualquer dimensão sobrenatural. Paradoxalmente, a sociedade civil e a Igreja, portanto, encontram-se, como no apogeu do Cristianismo, unidos, lutando lado a lado por objetivos comuns… Mas, dessa vez, é a sociedade secularizada que sugere e impõe suas visões e ideais à Igreja. Isso é verdadeiramente assustador: o humanitarismo secular tornou-se a luz da Igreja e o sal que lhe dá seu sabor. A debandada doutrinal e moral dos últimos anos é um bom exemplo do complexo de inferioridade que os homens da Igreja mantêm em relação ao mundo moderno.

E, ainda assim – esse é o mistério de nossa fé e, também, nossa esperança – a Igreja é Santa! Ela é Divina! Ela é Eterna! Apesar dos sofrimentos da hora presente, sua vida interior, em todas as suas dimensões mais elevadas, é, certamente, de uma beleza que delicia a Deus e aos anjos. Hoje, como em todos os tempos, a Igreja Católica dispõe completamente de todos os meios necessários para guiar e santificar as almas!

 

Na sua opinião, como a Igreja pode livrar-se desses erros e regenerar-se?

Primeiramente, devemos rejeitar todas as utopias e voltar à realidade, um retorno aos fundamentos da Igreja Católica. Podemos identificar três pontos chave que a Igreja deve recuperar e começar a pregar novamente, de maneira direta, sem qualquer concessão ou transigência: a existência do pecado original e de seus efeitos (que são a concupiscência tripla de que São João fala em sua primeira Epístola) – e isso é contrário a toda forma de ingenuidade naturalista; a necessidade da graça, fruto da Redenção, que é o único remédio – porém um remédio todo-poderoso – para triunfar sobre aqueles efeitos devastadores; e a transcendência dum fim último que não está nessa terra, mas no Céu.

Pregar isso novamente seria o princípio de “confirmar vossos irmãos”. A verdadeira fé católica seria, novamente, proclamada. É a condição necessária para qualquer vida sobrenatural. É, também, o guardião indispensável da lei natural, que também é divina, eterna e imutável em sua origem, o fundamento necessário para levar o homem à sua perfeição.

Esses três conceitos podem ser resumidos em um único ideal: o de Cristo Rei. Ele é a essência de nossa fé. Ele é o autor de toda a graça. Ele é o autor dessa lei natural que Ele insculpiu nos corações de todos os homens quando Ele os criou. O legislador divino não muda. Ele não renuncia a Sua autoridade. Assim como essa lei não pode ser alterada sem se alterar a própria fé, ela também não pode ser restaurada, sem restaurar ao divino legislador a honra que Lhe é devida.

Para colocar de maneira mais simples, não devemos nos render ao mundo, mas “render todas as coisas a Cristo”. É em Cristo Rei e através de Cristo Rei que a Igreja Católica tem todos os meios para vencer o mundo, cujo príncipe é o pai das mentiras. Através da Cruz, Ele já o venceu de uma vez por todas: “Eu venci o mundo”.

 

O Sr. acha que a Bem-Aventurada Virgem Maria terá um papel especial nessa vitória?

Como essa vitória é uma vitória de Cristo Rei, ela, necessariamente, também será de Sua Santa Mãe. Nossa Senhora é sistematicamente ligada a todas as batalhas e a todas as vitórias de seu Filho. Ela, certamente, estará ligada a essa de um modo muito especial, porque jamais antes houve um triunfo de erros tão sutis e perniciosos, que causaram uma devastação tão generalizada e profunda na vida concreta dos católicos. A prova disso é que, entre os títulos mais belos que a Igreja dá a Nossa Senhora, estão aqueles de “Destruidora de todas as heresias” - ela esmaga a cabeça daqueles que as concebem – e de “Auxílio dos cristãos”. Quanto mais a vitória de um erro parecer definitiva, mais gloriosa será a vitória da Bem-Aventurada Virgem Maria.

 

Essa entrevista ocorreu em Menzingen, no dia 12 de março de 2021,

Festa de São Gregório Magno, Papa

AdaptiveThemes