PERSEVERANÇA DO MISSIONÁRIO
E que ninguém se escuse (como escusam alguns) com a rudeza da gente, e com dizer, como acima dizíamos, que são pedras, que são troncos, que são brutos animais; porque, ainda que verdadeiramente alguns o sejam, ou o pareçam, a indústria e a graça tudo vence; e de brutos, e de troncos, e de pedras, os fará homens. Dizei-me qual é mais poderoso, a graça ou a natureza? A graça, ou a arte? Pois o que faz a arte a natureza, porque havemos de desconfiar que o faça a graça de Deus acompanhada da vossa indústria?
Concedo-vos que esse índio bárbaro e rude seja uma pedra: vede o que faz em uma pedra a arte. Arranca o estatutário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição até a mais miúda: ondea-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, tornea-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode por no altar. O mesmo será cá, se a vossa indústria não faltar à graça divina.
É uma pedra, como dizeis, esse índio rude? Pois trabalhai, e continuai com ele (que nada se faz sem trabalho e perseverança), aplicai o cinzel um dia e outro dia, daí uma martelada, e outra martelada; e vós vereis como dessa pedra tosca e informe fazeis não só um homem, senão um cristão, e pode ser que um santo.
(Sermões III, Lisboa, 1683, pp. 419-420)
Finalmente, a terceira e última petição é altíssima no juízo. E por quê? Porque entendemos, julgamos e declaramos que todo mal é o pecado, e que entre todos os que vulgarmente se chamam males só o pecado verdadeiramente é mal. E deste mal pedimos a Deus que nos livre, quando dizemos sed libera nos a malo. Oh! Se os homens acabassem de se persuadir e penetrassem inteiramente, ou se deixassem penetrar desta grande verdade! Com quão diferente afeto falariam de Deus esta petição, e desejariam o que nela se pede! Todas as infelicidades do mundo donde cuidais que têm a sua primeira raiz? Todas nascem da equivocação de dois nomes; todas nascem daquele engano e erro geral com que anda equivocado em todas as línguas o nome do mal e do bem. Por isso lamentava e bradava Isaías: Vae qui dicitis malum bonum et bonum malum (Is. 15, 20) “Ai de vós que chamais bem ao mal, e mal ao bem!” Não há outro bem neste mundo, que seja verdadeiramente bem, senão a graça de Deus; nem outro mal, que seja verdadeiramente mal, senão o pecado. Por este dois artigos de fé se ata o fim do Pai Nosso com o princípio da Ave Maria. Como começa a Ave Maria? Ave, gratia plena: Dominus tecum. Pois, anjo tão bem entendido como bem-aventurado, não tendes outro titulo mais alto, não tendes outro nome de maior majestade com que saudar a vossa Rainha? Não. Porque na graça de que está cheia se inclui todo o bem, assim como no pecado, a que nunca este sujeita, foi livre de todo o mal. A graça não pode estar junto com o pecado, e como Maria desde o instante de sua concepção sempre foi cheia de graça, nesta graça e nesta isenção de pecado consiste toda a soberania da sua grandeza, ainda maior que a de ser Mãe de Deus, que eu lhe venho anunciar. Tão grande bem é a graça, tão grande mal é o pecado.
E, para que ninguém duvide que este mal, de que pedimos a Deus nos livre, é todo o mal, e não há outro, ouçamos ao mesmo Mestre, que assim nos ensinou a pedir, e cerrou todas as outras petições com esta, como a chave e mais importante de todas. Naquela misteriosa oração que Cristo fez a seu Eterno Padre sobre a última ceia, recomendando muito debaixo de sua divina proteção os discípulos, de quem se apartava, a clausula com que rematou a recomendação foi esta: Non rogo ut tollas eos de mundo, sed serves eos a malo (Jo, 17, 15) — “Não vos peço, Pai meu, que os tireis do mundo, para cuja conversão são necessários, mas o que muito vos rogo é que os guardeis e livreis do mal”. Esta foi a oração, e parece verdadeiramente que não foi ouvida. Que pobrezas, que fomes, que sedes, que perseguições, que cárceres, que desterros, que afrontas, que desprezos, que ignomínias, que calunias, que acusações, que injustiças, que açoites, que tormentos, que martírios não padeceram aqueles mesmos apóstolos em todas as partes do mundo, e em todos os dias e horas da vida, até finalmente a perderem cruel e afrontosamente, uns crucificados, como Pedro, outros aspados, como André, outros esfolados, como Bartolomeu, e todos, sem exceção de um só, tão bárbara e desumanamente atormentados quanta era impiedade e ódio infernal dos tiranos? Pois, se todos os trabalhos, misérias, desgraças, aflições, pensa, desonras, enfim, se todos os males do mundo se uniram e conjuraram contra esses homens, e se empregaram e apuraram neles, sem que Deus o impedisse, nem os livrasse, deixando-os padecer e morrer — como se cumpriu (pois não podia deixar de ser ouvida) a verdade da oração de Cristo: ut serves eos a malo? Eles padeceram todos os males, e o Pai livrou-os do pecado, e todos os que o mundo chama males não são males: só o pecado é mal. Non dicit ut serves eos a tribulationibus, ab odiis, a persecutionibus, sed a malo, hoc est, a peccato, quod simpliciter est malum, diz o Cardeal Caetano, e não era necessário que nem ele nem outro algum o dissesse.
Este é o mal de que pedimos a Deus nos livre, e esta coroa em que Cristo rematou a sua oração, para que dissesse o fim do princípio.
No princípio disse Pater noster; no fim diz sed libera nos a malo: e este foi unicamente o mal de que o Eterno Pai, com Pai, livrou unicamente a seu Filho. Não o livrou das pobrezas, nem dos trabalhos, nem das perseguições, nem dos desterros, nem dos ódios, nem das injurias, nem dos açoites, nem da morte, e morte de Cruz; o de que só o livrou foi o pecado, dando à humanidade de Cristo a união hipostática, com que a fez impecável. E, como o altíssimo juízo desta última petição mete debaixo dos pés todo aquele mundo de horrores, a que o mesmo mundo chama males, e dizendo libera nos a malo, só reconhece por mal o pecado, por ser ofensa de Deus. Nem na terra, nem no céu, nem dentro do mesmo Deus pode haver conceito mais levantado que o deste juízo, nem voz mais alta que a desta petição.
(Sermões V, Lisboa, 1686, pp. 24-27)
Pregando em Carcassona, cidade de França, o glorioso S. Domingos e pregando, como sempre costumava, a devoção do Rosário, trouxeram-lhe um endemoniado furiosíssimo, o qual se despedaçava a si mesmo; e, posto que vinha atado com cadeias de ferro, não havia quem o pudesse domar, nem ter mão. Mas o santo tinha outra cadeia mais forte e mais poderosa, que era o Rosário. Lançou o seu Rosário ao pescoço do miserável homem, e o demônio, com grandes repugnâncias e visagens, em que mostrava a nova força de que se sentia oprimir, ficou domado. Agora entenderam os doutos uma boa interpretação daquele anjo do Apocalipse, sobre que os expositores antigos se dividem em tantas opiniões. Diz S. João que viu descer do céu um anjo, o qual trazia na mão uma grande cadeia e que com ela prendeu e atou aquela antiga serpente que enganou o gênero humano, o que por um nome se chama Demônio, e por outro Satanás: Vidi angelum descendentem de caelo habentem... catenam magnam in manu sua, et aprehendit Draconem, serpentem antiquum, qui est Diabolus, et Satanás, et ligavit eum. (Apoc. 20, 1-2). As outras palavras que acrescenta o texto pode ser que nos sirvam, e as expliquemos depois; o que só digo de presente é que este anjo descido do céu é o apóstolo da Virgem Maria, S. Domingos, varão por todas as virtudes angélicas, e que a grande cadeia, que do mesmo céu trouxe na mão e com que prendeu a serpente e atou o Demônio, é o Rosário. Das mesmas Crônicas de S. Domingos, que em semelhantes casos são os melhores expositores, o povo.
Em um povo [= povoado] da Ilha de Evisa exorcizava um filho do mesmo Santo uma mulher endemoniada, e era o Demônio tão protervo, tão rebelde e tão obstinado, que a nenhumas orações e esconjuros se rendia: rendeu-se, porém, finalmente à convicção do santíssimo nome de Maria e aos poderes insuperáveis do seu Rosário. Mas, com uma circunstancia muito notável, a qual eu só pondero em prova do que digo. Quando lançaram o rosário ao pescoço da aflita mulher, começou a gritar o Demônio: “Tirem-me essa cadeia, que me abrasa! Tirem-me essa cadeia, que me abrasa!”
Já temos que o Rosário é cadeia que ata o Demônio. Mas que seja cadeia que o abrasa, como pode ser? Assim como os anjos, quando estão na terra, trazem consigo a sua glória, assim os demônios trazem também consigo o seu inferno. Os anjos trazem consigo sua glória, porque em qualquer parte estão vendo a Deus; e os demônios trazem consigo o seu inferno, porque em qualquer parte estão ardendo naqueles incêndios eternos. Pois, se este Demônio estava ardendo em fogo, qual é o inferno, como diz que o abrasava a cadeia do Rosário? Pode haver fogo mais penetrante, mais forte e mais abrasador que o do inferno? Sim. E estas novas chamas e labaredas são para os demônios as orações dos cristãos. Assim o confessaram já antigamente os mesmos demônios, e o refere Minúcio Félix naquela sua famosa Antologia contra os Gentios: Haec omnia sciunt plerique vestrum, ipsos daemones de semetipsis confiteri, quoties a nobis, et meritis verborum, et orationem incendiis e corporibus exiguntur.
De sorte que mais queimam e mais abrasam aos demônios as orações do Rosário que o mesmo fogo do inferno, e a razão natural é porque do fogo do inferno vingam-se e aliviam-se com blasfemar de Deus: porém, nas orações do Rosário cresce-lhe outro fogo maior, porque ouvem nelas os louvores de Deus. No inferno ouvem dizer: “Maldito seja Cristo e sua Mãe!” No Rosário ouvem pelo contrario: Benedicta tu mulieribus, et benedictus fructus ventris tui: e este é o fogo sobre fogo e o incêndio sobre incêndio, que intoleravelmente os abrasa. Assim como São Miguel lançou no inferno aos demônios dizendo Qui sicut Deus? Assim São Gabriel acrescentou e acrescenta cada dia o inferno aos mesmos demônios, dizendo: Ave, gratia plena.
Estes são pois os fuzis de maior e mais penetrante fogo, de que se forma a cadeia do Rosário: e esta é a cadeia que S. Domingos trouxe do céu, e esta a com que domou o Demônio que lhe apresentaram, que rompia e desfazia todas as outras.
(Sermões VI, 1668, pp. 9-11)