Jean Creté
Nenhuma parte da Sagrada Escritura é mais empregada pela Igreja na liturgia do que o saltério, coleção de cento e cinqüenta salmos compostos por poetas inspirados do povo eleito, e em uso já no Antigo Testamento. Dizemos que os salmos e seus autores são inspirados. Eles são, realmente, no sentido corrente da palavra, isto é, os compositores dos salmos tinham um dom poético evidente. Mas a essa inspiração poética, que é um dom natural, acrescenta-se a inspiração propriamente dita, que é um dom do Espírito Santo. Não é inútil precisar o sentido dessa palavra. Deus, em sua sabedoria e sua bondade, concedeu, para o bem de todos, a certos homens escolhidos por Ele graças especiais chamadas pelo teólogo carismas ou graças “gratis datæ”. Um carisma ou “gratis datæ” é uma graça atual especial, concedida por Deus a um homem (ou à sua Igreja) não para sua santificação pessoal, mas para o bem comum.
Os teólogos distinguem cuidadosamente três espécies de carismas ou graças “gratis datæ”:
1°) a revelação, que é a manifestação, feita por Deus a um homem, de uma verdade desconhecida (exemplos: a Santíssima Trindade, a Encarnação) ou a manifestação mais completa e mais perfeita de uma verdade já conhecida ou passível de ser conhecida pela razão (exemplos: a existência de Deus, a lei natural);
2°) a inspiração é o dom concedido por Deus aos escritores sagrados, isto é, aos autores dos diferentes livros da Bíblia, para leva-los infalivelmente a escrever o que Deus quer e como Ele quer; este dom não suprime de modo algum a liberdade do escritor sagrado; não é um “ditado” milagroso daquilo que ele tem a escrever; as faculdades naturais do escritor: memória, imaginação, inteligência, vontade, são exercidas normalmente, mas são guiadas eficazmente por este dom sobrenatural, do qual o escritor pode ter ou não ter consciência. Os dons de revelação e de inspiração não foram mais concedidos depois da morte do último dos apóstolos; a revelação está irrevogavelmente terminada, nenhum texto posterior é inspirado.
3°) a assistência é o dom concedido por Deus à sua Igreja e aos chefes legítimos de sua Igreja para preserva-los do erro e guia-los em sua tarefa. A assistência infalível é concedida: a) ao papa, a título pessoal, e ao concílio ecumênico a título colegial, no caso preciso de uma definição “ex cathedra” em questão de fé ou de moral; b) à Igreja, tomada em sua continuidade, no ensino ordinário da fé e da moral e em tudo que tem relação com a validade dos sacramentos. Em todos os outros casos, a assistência é falível: o papa, os bispos, os padres têm graças de assistência no exercício de seu ministério, mas podem resistir a estas graças ou corresponder mal a elas e, portanto, enganar-se, mesmo em matéria de fé e de moral, e induzir ao erro os fiéis que lhe são confiados.
A afirmação constante da Igreja de que tal livro da Bíblia é inspirado, de que tal passagem tem um sentido messiânico, conta com a assistência infalível.
Os salmos são inspirados, já que fazem parte integrante da Bíblia. Além disso o costume constante de se fazer uso dos salmos na liturgia, dando-lhes um sentido cristão que não é forçosamente o sentido literal do salmo, nos garante infalivelmente que os salmos são, por excelência, a oração da Igreja, válida para todos os tempos e todos os lugares. Relembramos, um pouco longamente, essas verdades elementares, que são, infelizmente, mal sabidas por uma grande parte do clero. Há vinte ou trinta anos vimos padres substituírem os salmos por composições modernas que não são inspiradas em nenhum sentido da palavra. Lemos e já citamos essa frase delirante: “Seria necessário compor novos salmos, adaptados ao homem moderno. E além disso, os salmos não falam de Cristo” (1).
Os salmos não falam do Cristo? Toda a tradição judia e cristã está aí para afirmar o contrário. Os judeus consideram numerosos salmos como messiânicos e a Igreja sempre deu aos salmos um sentido cristão. Alguns sempre foram vistos como messiânicos no sentido literal. Assim o admirável Salmo 21 que Nosso Senhor mesmo, ao expirar, utilizou sobre a cruz: Eli, Eli, lamma sabacthani? — Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? Outros salmos, em maior número, são messiânicos no sentido típico. Com efeito, acontece freqüentemente que um texto inspirado tenha um sentido duplo: um sentido literal que exprime a primeira intenção do autor; e um sentido típico, mais profundo mas real e objetivamente contido no texto, ainda que segundo em relação ao sentido literal: sentido impresso no texto sagrado pelo Espírito Santo, sentido que o autor inspirado pôde querer ou não querer, compreender ou não compreender, de acordo com o caso; mas que a tradição judaica e cristã reconheceu e afirmou. Assim o salmo 109, Dixit Dominus, aplica-se sem dúvida, literalmente, a Davi, mas seu sentido típico messiânico é evidente; e pode ser que certos versículos desse salmo sejam messiânicos no sentido literal. Por outro lado, todos os salmos, mesmo os “imprecatórios”, desprezados pelos reformadores e excluídos do breviário de Paulo VI, são susceptíveis de uma interpretação cristã no sentido acomodatício. Diferente do sentido típico, que está objetivamente contido no contexto e garantido pela inspiração, o sentido acomodatício é uma interpretação encontrada somente depois de um esforço, que não poderia ser utilizada como argumento numa tese ou discussão exegética ou teológica, mas que pode legitimamente ser empregada na liturgia e na piedade pessoal; o exemplo clássico disso é a segunda metade do versículo 17 do salmo 138: exsurrexi et adhuc sum tecum (levantei-me e ainda estou contigo) que se tornou, no Intróito da Páscoa, resurrexi et adhuc tecum sum (ressuscitei e ainda estou contigo). A liturgia utiliza grandemente o sentido acomodatício: este sentido é freqüentemente sugerido pela antífona. Digamos que o mesmo salmo pode tomar colorações muito diferentes de acordo com as circunstâncias de sua utilização. Assim, o salmo 129 De profundis é utilizado nas Vésperas de Natal, do Sagrado Coração e dos mortos, e ainda como o salmo de penitência. No Natal, ele não tem nada de fúnebre; a antífona: Apud Dominum misericordia, et copiosa apud eum redemptio (junto ao Senhor está a misericórdia e a redenção n’Ele é abundante) faz uma meditação sobre o mistério da natividade que inaugura nossa redenção. Nas Vésperas do Sagrado Coração a Antífona é a mesma com exceção de uma palavra: propitiatio em lugar de misericordia, e o salmo tem um tom mais grave, exprimindo o caráter doloroso da obra redentora. Nas Vésperas dos mortos, com a antífona Si iniquitates, o salmo torna-se uma súplica dilacerante pelo morto; como salmo de penitência, ele implora a remissão de nossos próprios pecados. É assim com todos os salmos. Certamente, quem recita os salmos pode dar a eles um sentido acomodatício inspirado em seu próprio estado de alma.
Davi é visto, por toda a tradição, como o principal autor dos salmos; é certo que ele tenha composto um bom número deles. Seus salmos podem ter sido retocados depois. Toda a tradição atribui o salmo 50, Miserere, a Davi depois de seu pecado. Ora, no penúltimo versículo encontra-se uma alusão bastante clara à reconstrução dos muros de Jerusalém, após o retorno do exílio; esse versículo foi acrescentado nessa época.
Outros salmos, em compensação, foram compostos mais tarde; alguns no exílio: por exemplo os salmos 41 Quemadmodum cervus e o 42 Judica me; outros, na volta do exílio, por exemplo, os salmos graduais (119 a 133); os nove primeiros são utilizados para as pequenas horas do ofício monástico durante a semana e do pequeno ofício da Santíssima Virgem; alguns foram compostos no tempo dos Macabeus. Pouco importa o autor deste ou daquele salmo; todos são inspirados. Alguns têm título, cujo sentido nem sempre é bem claro; uma resposta da comissão bíblica esclareceu que os títulos não são incluídos na inspiração. Não se é então obrigado a atribuir a Davi todos os salmos intitulados de Davi; alguns são manifestamente posteriores.
Foi bem tarde que, no Antigo Testamento, os salmos foram colocados na ordem em que os conhecemos e divididos em cinco livros; isso não nos leva a nenhuma conclusão quanto à origem dos salmos.
Os salmos são de tamanho muito variável. O salmo 116 só tem dois versículos. O mais longo é o salmo 118, escrito no exílio ou na volta do exílio, para louvar a lei divina: salmo alfabético de vinte e duas estrofes, compostas cada uma de oito versículos, que começam todos com a mesma letra do alfabeto hebreu. Este salmo, dividido em 11, até 1912 era o salmo invariável das pequenas horas do breviário romano; desde 1913 ele está reservado aos domingos e festas. No ofício monástico, as 22 estrofes do salmo 118 são distribuídas entre as pequenas horas do domingo e da segunda-feira.
Compostos naturalmente em hebraico, os salmos foram traduzidos para o grego mais ou menos em 283 A.C a pedido do rei do Egito, Ptolomeu Filadelfo, por setenta ou setenta e dois escribas: este foi o início da célebre versão dos Setenta, mais tarde estendida a toda a Bíblia (foram necessárias dezenas de anos para realiza-la) e considerada por toda a tradição judaica e cristã como inspirada, a mesmo título que os originais hebreus. Essa venerável versão grega foi sempre empregada na liturgia oriental. A liturgia romana primitiva era grega. Entretanto os salmos foram logo traduzidos para o latim, porque eram utilizados como oração particular; os cristãos aprendiam certos salmos de cor e se serviam deles em sua vida de oração individual e familiar; e é provavelmente através dos salmos que o latim foi introduzido na liturgia desde o século II. A passagem do grego para o latim na liturgia romana não se fez bruscamente, nem por via de autoridade; aconteceu por uma evolução lenta e espontânea que durou ao menos dois séculos.
A antiga versão latina dos salmos era imperfeita, mas popular. Para não perturbar os hábitos, São Jerônimo, encarregado pelo Papa São Dâmaso (366-384) de “restituir o Antigo Testamento à verdade hebraica”, retocou o texto latino dos salmos com muita prudência. Sua primeira revisão, feita a partir da versão dos Setenta, constitui o que se chamou o saltério romano; usado em Roma até o século X, ainda é utilizado no salmo Venite exsultemos que inicia Matinas, e nos textos litúrgicos da missa, tirados do saltério. Uma segunda versão, feita a partir dos Hexaples de Orígenes (2) é chamada de saltério gálico; adotada primeiro na Gália, acabou por se impor a Roma; é esta segunda versão que figura na Vulgata e em todos os breviários latinos anteriores a 1946. Uma terceira versão dos salmos feita por São Jerônimo diretamente do hebraico e chamada psalterium juxta hebraeos nunca foi adotada para a liturgia porque ela se afastava demais do texto original. O saltério gálico guardou então seu lugar até os nossos dias, pelo menos no ofício cantado. A versão realizada em 1945 pelo Pe. Bea, jesuíta alemão, foi adotada para a recitação privada; ela é extremamente pesada e não convém para o canto. Ela foi abandonada desde a morte de seu autor. (...)
O Ofício Divino revestiu-se de diversas formas de acordo com os tempos e os lugares. Parece que Roma adotou, desde o século IV, a distribuição dos 150 salmos por toda a semana. A ordem dos salmos, fixada definitivamente durante a Idade Média, não havia sido modificada por São Pio V; mas foi radicalmente mudada por Pio X, com o duplo cuidado de encurtar o ofício e evitar as repetições. Os primeiros monges haviam adquirido o hábito de recitar o saltério inteiro diariamente. São Bento sabiamente repartiu os salmos pela semana, mas numa ordem diferente do esquema romano.
Os salmos são divididos em versículos e são normalmente alternados em dois coros. No Mesnil-Saint-Loup, o Pe. Emmanuel tinha estabelecido uma bela alternância entre vozes masculinas e femininas, e explicava os salmos a seus paroquianos.
Os salmos freqüentemente evocam os grandes acontecimentos da história sagrada, e exprimem admiravelmente os sentimentos da alma: adoração, temor de Deus, louvor, amor, esperança, súplica, ação de graças. Os salmos são feitos para serem cantados; seus títulos, às vezes, dão indicações, de interpretação difícil, acerca de seu canto primitivo em hebraico. Em latim, cantam-se com melodias simples, correspondentes aos oito modos gregorianos; um asterisco indica a mediante de cada versículo. O tom do salmo é determinado pela antífona. As antífonas são muito antigas; elas figuram no antifonário romano, hoje impossível de ser encontrado, e, numa forma mais pura, no antifonário monástico de 1934, devido a Dom Gajard. Os antifonários não contêm as Matinas. Encontram-se nos livros de canto gregoriano chamados “800”, também estes impossíveis de se achar, os trechos mais usuais do antifonário romano, assim como as matinas de Natal, da semana santa, de Páscoa, de Pentecostes, de Corpus-Christi e dos mortos. As paróquias e comunidades que possuem esses livros preciosos farão bem em cantar o máximo possível os ofícios que contêm e em transmitir aos moços os tesouros da liturgia. A salmodia sagrada será sempre o louvor mais agradável a Deus e o mais fecundo para nossas almas.
Notas:
Tradução de Maria Tereza Hernandes, de “Itineraires” n° 243.
Revista Permanência N° 146-147, Janeiro/Fevereiro de 1981.