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Einstein e o padre

 

Por Pe. Frank Riccomini FSSPX

Uma ironia ecoará através dos séculos: no início de sua carreira profissional (circa 1900), Albert Einstein, o brilhante físico teórico, estava desempregado e não conseguia encontrar um cargo de professor em nenhuma escola ou universidade da Suíça, nem mesmo para lecionar matemática no ensino médio. Dotado da fundada reputação de inconformista, algo imperdoável para a sociedade suíça e para a academia, foi prontamente barrado das salas de aula e da cátedra. Foi, portanto, na condição de gênio proscrito e menosprezado, que ele teve de se apertar em um escritório de examinador de patentes de terceiro escalão, no centro de Berna, onde dedicava oito tediosas horas do dia a inspecionar pedidos de patente, a maioria dos quais propunha maneiras de sincronizar os relógios da estação de trem. Talvez tenha sido nessa exígua parte do universo que concebeu o pensamento que tantas vezes lhe atribuem: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana; mas não tenho certeza sobre o universo.”

 

Um estado de espírito humilde

A condenação ao escritório de patentes foi na verdade uma ajuda preciosa. Além de lhe proporcionar comida para o seu prato e um teto para sua cabeça, duas necessidades vitais que corria o risco de perder, o trabalho colocava-o em um estado de espírito mais humilde, mais apto à concepção de grandes descobertas. Concretamente, fez com que adquirisse o hábito mental de contrastar objetos em movimento, como trens, com objetos estacionários, como relógios, no contexto de “experiências mentais” com o espaço-tempo. Isso, numa mente como a sua, eclodiu um desígnio muito mais impactante do que zelar pela pontualidade dos trens: inspirou sua teoria especial da relatividade, mais tarde expandida para uma teoria geral da relatividade, idéia tão brilhante e revolucionária que, sozinha, descarrilou o trem newtoniano, uma linha de raciocínio sobre o mundo físico que vinha correndo regularmente por quase três séculos, com grande número de passageiros. Esta mudança cósmica e revolucionária tornou-se tão popular que, antes que completasse seis anos, já mais de 600 livros e artigos tinham sido escritos. Muito antes que o Twitter e o YouTube revolucionassem ainda mais o universo, tornou-se “viral”, por assim dizer; tornou-se o assunto favorito da gente comum, como garçons e atrizes.

Após a publicação de sua teoria, junto com as elegantes equações matemáticas que a demostravam possível, seguiu-se um esforço frenético dos cientistas experimentais para reunir evidências que a provassem “factual”. Fora do turbilhão de convulsiva atividade científica, caracterizada pelos escritos, pela personalidade e, posteriormente, pelos cabelos de Albert Einstein, surgiu-lhe um complemento clerical, menos conhecido e mais apresentável que o gênio alemão: o padre de fala mansa e brilhante, belga de nascimento, Georges Lemaître. Sua própria formação acadêmica como matemático, astrofísico e cosmólogo teórico o levou a estudar e desenvolver algumas dessas equações einsteinianas, de modo a criar uma peça especial e distinta da história científica. Aplicando a lógica da teoria matemática, acompanhada de mudanças observáveis ​​no espectro de luz que circunda as galáxias muito distantes, ele calculou que o universo está num contínuo estado de expansão a partir de um único ponto, ou singularidade ― a “hipótese do átomo primordial”, como ele a chamou, mais tarde difundida sob o nome de “teoria do Big Bang”, como pejorativamente apelidaram os cientistas que a desprezavam (Einstein entre eles), e hoje popularizada por um programa televisivo homônimo que a glorifica, mas numa versão distorcida.

As origens profissionais de Lemaître eram mais auspiciosas que as de Einstein. Formou-se cedo no ensino médio, tendo diante de si a perspectiva do sacerdócio, e dentro de si um grave pendor para a ciência. Embora a Grande Guerra tenha adiado um e outro objetivo, o serviço militar o ajudou a desenvolver suas qualidades morais mais profundas. Servindo com grande coragem e distinção durante a resistência belga, recebeu três menções pessoais por ato de bravura e ganhou a honraria militar equivalente, em seu país, à “Silver Star” americana 1. Após a guerra, começou seus estudos para o sacerdócio sob a orientação do Cardeal Mercier, que, para todos os belgas, personificara a resistência nacional ao invasor alemão, e que, para o jovem ex-soldado, desempenhou o papel de diretor espiritual em um tipo diferente de guerra. É que o Cardeal Mercier, um gigante entre os educadores católicos, cuidou das aptidões tanto espirituais como intelectuais do seu talentoso aluno. Em 1923, Lemaître recebeu as Sagradas Ordens das próprias mãos de seu diretor e, graças ao seu apoio pessoal, ganhou uma bolsa de estudos para estudar astronomia no St. Edmund's College, Cambridge. Um ano depois, transferiu-se para Harvard e, no ano seguinte, para o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), onde em 1926 obteve seu doutorado. Finalmente, em 1927, publicou sua famosa teoria do universo em constante expansão. Infelizmente, não foi muito conhecida: o jornal em que foi impressa nunca ultrapassou as fronteiras da Bélgica, nem foi traduzida da língua francesa.

 

Uma importante reunião

Em outubro de 1927, o Pe. Georges Lemaître encontrou-se com o Dr. Albert Einstein pela primeira vez. Ambos, bem como Marie Curie, Niels Bohr, Max Born, Erwin Schrödinger e outros famosos físicos da época, foram convidados para o Quinto Congresso de Física de Solvay, em Bruxelas. Os organizadores provavelmente convidaram Lemaître por influência de Théophile de Donder, fundador da Université Libre de Bruxelles. Também fora graças a ele que, quatro anos antes, Lemaître recebera sua bolsa de estudos em Cambridge. Foi de Donder ou Arthur Eddington, professor de Lemaître em Cambridge e intérprete de Einstein, que fez com que Einstein lesse o engenhoso artigo de Lemaître. Isso, por sua vez, precipitou a primeira reunião do físico alemão e judeu não praticante com o cosmologista belga e ardoroso sacerdote católico, na famosa caminhada pelo Parc Léopold em Bruxelas, onde Einstein, com sua sumária franqueza, disse ao jovem padre que, apesar dos seus cálculos matemáticos estarem corretos, “do ponto de vista da física, essa teoria é abominável”.

Por mais violenta que fosse (alguns diriam rude e repreensível), essa reação manifestava um traço relevante e humano do caráter de Einstein: às vezes suas “crenças” eram ainda mais fortes que sua ciência. Ao que parece, embora fosse um pensador revolucionário, Einstein sempre lamentou a devastação causada à física newtoniana clássica2 por sua teoria da relatividade e por outras especulações no campo da física quântica. A concepção de universo estável foi uma das últimas características até então intocadas no familiar e tradicional mundo newtoniano, e Einstein não pôde suportar a idéia de vê-la desfigurada em conseqüência de seu próprio trabalho. Em seu livro Einstein, Sua Vida e Universo, Walter Isaacson revela que, de certa forma, o eminente físico sentiu-se isolado de alguns de seus discípulos mais fervorosos e até mesmo de significativa parcela do mundo científico, não apenas porque se elevou acima deles como uma celebridade no mundo científico, mas porque jamais poderia aprovar o entusiasmo com que desdenhavam da física clássica, entusiasmo esse que, reconhecia ele, suas próprias descobertas serviram para inflamar. De fato, para Newton, a quem Einstein tinha idolatrado desde a infância, o físico alemão emitiu um pedido público de desculpas durante uma palestra, e mais tarde, ao escrever suas memórias, dirigia-se a ele da mesma maneira: “Newton, me perdoe. Você encontrou o único caminho que, no seu tempo, era possível para um homem do mais alto pensamento e poder criativo.” Experimentou ele o desejo cheio de remorsos de expiar o desrespeito ao seu herói de toda a vida? Nesse caso, quem era esse jovem padre de 33 anos que se interpunha com sua teoria ridícula no caminho da sua expiação?

Se nenhuma dessas motivações — quer tradição, quer expiação — fosse convincente o bastante para Einstein, ele ainda tinha outra razão para rejeitar Lemaître… uma razão surpreendentemente teológica. É verdade que já fazia pelo menos dois séculos que sua ascendência judaico-germânica, não observante, de nada se enaltecia que tivesse o mais remoto traço de religião; e é também verdade que Einstein havia declarado convicta incredulidade em qualquer “Deus pessoal que se preocupa com o destino e ações dos seres humanos”. No entanto, foi só quando compreendeu o universo como expressão de Deus que Einstein pôde melhor admirá-lo. A Max Born, colega alemão obcecado na idéia de aleatoriedade essencial na física quântica e ausência de causalidade na natureza, ele retrucou piedosa e sensatamente: “Deus não joga dados!” Isaacson observa, além disso, que Einstein foi influenciado por Spinoza, um dos poucos filósofos que leu e apreciou, e por sua perspectiva da “vontade eternamente fixa de Deus”, uma noção fixa e estável, naturalmente refletida em um universo fixo e estável, ao contrário de um universo dinâmico e em expansão. Sendo esse o caso, quem era esse jovem sacerdote de 33 anos, dentre todas as pessoas do mundo, para desafiar suas convicções com uma teoria ridícula?

 

Firmeza sim,  desânimo não

Por sua parte, felizmente, o Pe. Lemaître não desanimou. Talvez sua experiência durante a Grande Guerra o tenha preparado para investidas teutônicas e irracionais. Talvez algum instinto mais sacerdotal o tenha advertido de um conflito moral dentro da alma do gênio alemão. Certamente, sabia melhor que Spinoza da beleza e dinamismo da vontade criativa de Deus. De todo modo, manteve-se firme e esperou ocasião mais oportuna para conquistar a “bênção” de Einstein.

Felizmente, alguns amigos organizaram uma nova conversa. Nesse segundo round, Lemaître ficou surpreso ao saber que Einstein não parecia muito bem informado sobre alguns dados astronômicos de certas galáxias, usados por Lemaître para dar peso à sua teoria. Não há registro exato de como a conversa transcorreu a partir daí: não sabemos se Einstein estava disposto a ceder naquele momento, se houve uma reconciliação intelectual em privado. O que é certo, e público, é que o encontro seguinte foi excepcionalmente dramático. Nesse terceiro encontro, alguns anos depois, o mundo inteiro veio a saber que Einstein mudara de opinião. Em um gesto simples, espontâneo e magnífico, Einstein, que nunca se esquivava de participar de momentos históricos, criou o “material das lendas” dos livros de história de ciência e da religião. 

Em janeiro de 1933, durante uma série de conferências organizada em Pasadena, na Califórnia, agraciada pela augusta presença do principal cientista do mundo, mais uma vez o Pe. Lemaître expôs seu conceito de universo em expansão. O autor Mark Midbom, em A Day without Yesterday, descreveu o que aconteceu em seguida: “Depois que o padre belga detalhou sua teoria na íntegra, Einstein levantou-se, aplaudiu e disse: ‘Esta é a mais bela e satisfatória explicação da criação que eu já ouvi’.”

Se postulássemos uma teoria, não científica, mas psicológica, para explicar a aceitação de Lemaître por Einstein, seria a seguinte: a teologia unidimensional de um cientista foi ajudada pela ciência perspicaz de um padre. Isso só mostra que a ironia não se mede em relação à sua posição ou à rapidez com que as coisas se movem. Einstein pode ter depositado considerável fé na estupidez da humanidade — quem poderia culpá-lo? — mas tinha sabedoria e humildade para não se colocar fora dela. Como freqüentemente declarava, “não tenho certeza sobre o universo”. De acordo com o amigo e colega físico George Gamow, Einstein qualificou suas antigas tentativas de rejeitar o universo em expansão como “o maior erro da minha vida”. Quanto ao Pe. Lemaître, ignora-se se ele deu novas conferências sobre o assunto.

 

(Tradutor: Fábio Almeida e Sousa. Exclusivo para Permanência)

  1. 1. A “Estrela de Prata” (em inglês,“Silver Star”) é uma das condecorações militares mais altas dos Estados Unidos da América. [N. da P.]
  2. 2. Aqui é preciso prudência. A “devastação” citada pelo autor deve-se à impulsividade de alguns cientistas de espírito iconoclasta e ao sensacionalismo da imprensa para com as Teorias da Relatividade de Einstein. A famosa “concupiscência por coisas novas”, que criou um falso embate Newton X Einstein. A física Newtoniana continua plenamente válida para aplicações convencionais em que não temos que lidar com velocidades, espaços e gravidades astronômicas. [N. do T.]