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4. O Dom do Conselho

  Santo Antonino 

 

A vida é luta para a prudência humana. Opõem-se os interesses dos homens: o bem deste é muitas vezes o mal daquele; e isto com mais clareza se percebe nos assuntos humanos, em que se descortinam mil obstáculos, emboscadas ou artimanhas quer mais quer menos confessáveis que, no lugar dos nossos melhores projetos, escondem os contra-projetos inspirados pelos interesses alheios.

O diplomata, o administrador ou o homem que é tão-somente sensato e prudente na conduta dos assuntos pessoais, parece ter de consentir por vezes com o mal alheio, resignar-se com o pessimismo no que se refere aos homens e seus sofrimentos.

Bem diferente é a Prudência inspirada por Deus. O Espírito Santo assiste ao Conselho inefável da Santíssima Trindade onde, desde a eternidade, se deslindam os interesses da humanidade e do mundo — e o nome desse espírito é Amor. Aquele que Isaías chamou de Conselheiro por excelência, Consiliarius, iniciou a vida pública aplicando sobre si as palavras do mesmo profeta inspirado: “O Espírito do Senhor repousou sobre mim; pelo que me ungiu para evangelizar os pobres, me enviou a sarar os contritos de coração, a anunciar aos cativos a redenção“1

Santo Tomás também, a exemplo de Santo Agostinho, teve a ousadia de relacionar a bem-aventurança dos misericordiosos com o Dom de Conselho, e de assinalar como marca distintiva desses prudentes, cuja diplomacia o Espírito Santo regra em pessoa, a piedade pelos desafortunados2.

Santo Antonino nos aparece como a encarnação dessa prudência segundo o Espírito Santo. Afirma-o a Igreja, ao reconhecê-lo nestas palavras de Jó, que compõem a primeira lição do ofício de Matinas a ele dedicado: 

“Quando eu saía até à porta da cidade, e me sentava numa cadeira na praça pública! Viam-me os jovens e retiravam-se; os velhos, levantando-se, punham-se de pé. Os príncipes cessavam de falar, e punham a mão sobre a sua boca. Os grandes continham a sua voz, e a sua língua ficava pegada ao céu da boca. O ouvido que me escutava, chamava-me bem-aventurado, e os olhos que me viam, davam (bom) testemunho de mim, porque eu livrara o aflito suplicante, e o órfão que não tinha quem o socorresse. A bênção do que estava a perecer vinha sobre mim, e eu consolava o coração da viúva. Revesti-me da justiça, e a equidade serviu-me como de vestido e de diadema. Fui o olho do cego, e o pé do coxo. Eu era o pai dos pobres”3.

Essa cena, narrada ao estilo próprio do Oriente, não exprime a aliança característica do Dom de Conselho, entre a Prudência que se impõe por si mesma aos ouvintes e a Misericórdia que arrebata bênçãos espontâneas?

Mas, acompanhemos de perto duas manifestações do mesmo Espírito na vida do nosso santo.

Ele nunca foi tão prudente, sensato e diplomático quanto no dia em que, ainda adolescente, bateu à porta do convento de Fiesole. Com uma dessas visões límpidas e serenas que a idade madura deixou de conhecer, aquele menino julgou o mundo e reconheceu a vaidade das seduções que o rodeavam na Cidade das Flores. Ele quer a Deus, e só a Deus. Como o mercador que, tendo encontrado uma pérola de grande preço, vai, vende tudo o que tem, e a compra 4, nosso precoce negociante está decidido a dar tudo para ser frade. O prior do convento, julgando despedir o jovem frágil e raquítico que tão inapropriado lhe parecera para o peso das observâncias da Ordem, disse-lhe: “Quando souberes de cor este grosso volume, nós te receberemos”. O volume a que aludia era o Decreto de Graciano, Código fundamental do Direito eclesiástico. Nada de mais desencorajador para a jovem inteligência do postulante. Contudo, a oferta entrou de imediato nos seus santos cálculos e, um ano mais tarde, retornou com o Decreto pedindo para ser sabatinado. Sua memória revelou-se infalível e foi admitido. 

Seu talento de doutor remonta, talvez, a esse primeiro esforço intelectual. “Antes de tudo é um moralista”, diz seu biógrafo 5. “Se, na Suma Teológica, ocupa-se de dogma, é para tirar daí os princípios da moral. Em quatro quadros sucessivos, que formam as quatro partes essenciais da sua obra, mostra em primeiro lugar a alma humana em sua nobreza primitiva, em seu destino imortal, com seus dons e potências. Na segunda parte, pinta em pinceladas cintilantes a sombra do pecado: suas causas, desordens e vergonha. Continuando o plano, apresenta o pecado em todas as suas ramificações, exibindo a feiura do vício em todas as circunstâncias possíveis ao homem, demarcando com mão segura a linha do dever para cada um, em relação a Deus, a si mesmo e aos demais; e termina indicando o único caminho capaz de reconduzir a alma extraviada e decaída à primitiva nobreza: a graça de Deus, os dons do Espírito Santo e a devoção à Santíssima Virgem”.

“Mesmo nas Crônicas, que são um dos primeiros ensaios de história universal, Santo Antonino ainda é um moralista; a idéia que lhe interessa na história dos povos, o que vê e assinala, é a ação soberana, diretora e benfazeja da Providência divina”.

Essa orientação prática do seu espírito o destinava naturalmente aos cargos administrativos. Como prior do convento de São Marcos, apôs em seu governo o selo da prudência superior. Provido de um conhecimento cabal da realidade, sempre considerava o fim sobrenatural como a realidade suprema. Eis um exemplo entre mil. Seu primeiro ato administrativo foi a reconstrução do convento. “Cosme de Médici foi o tesoureiro, Santo Antonino foi o arquiteto. Acostumado ao esplendor dos seus palácios, rico e dadivoso, Cosme queria construir um mosteiro amplo e confortável para o amigo santo. O Prior foi intransigente. Ele desenhou o projeto, deu as medidas e supervisionou a construção para evitar qualquer surpresa do seu tesoureiro” 6. O resultado foi esse claustro tão religioso de São Marcos, onde a elegância e simplicidade da fachada rivalizam com a doce harmonia dos espaços conventuais — jamais se insistirá o bastante na importância destes aspectos. Se as celas são demasiado estreitas, como dizem com justiça, não esqueçamos que, por ordem do santo, cada uma delas foi enriquecida com um fresco do Beato Angélico, que é como uma abertura luminosa para os horizontes infinitos do céu. 

Apressemo-nos. Santo Antonino tornou-se arcebispo de Florença. E agora, o que deveríamos louvar mais: a moderação habitual do seu governo ou a valentia dos seus verdadeiros golpes de Estado? Amigo dos Médici, soube proteger deles, republicano retíssimo que era, não apenas os direitos da Constituição e do povo, mas os da Igreja. Já antes, à sua célula do convento de São Marcos, Cosme vinha à noite tratar dos assuntos da República. Desde então, nomearam-no para missões oficiais, que cumpre com destreza. “A santidade não lhe tolhia a habilidade nesses assuntos, de modo que seus companheiros escreviam à Signoria que seu embaixador operava maravilhas, e conquistava a estima e a simpatia de todos” 7. Por essa razão a posteridade o reconheceu pelo nome de Antonino o Conselheiro, Antoninus Consiliorum. 

Nas diversas fases da vida, como postulante, professor, prior de São Marcos, arcebispo de Florença, conselheiro dos Médici ou embaixador da República, Santo Antonino nunca decepcionou: sua índole prática se desenvolvia e crescia com coerência e unidade impecáveis. Não é esse o estilo da atividade de uma alma aconselhada pelos Conselhos inefáveis do Altíssimo? Motio mentis consiliatae ab alio consiliante, ensina Santo Tomás 8. Deus move cada ser conforme a sua natureza própria: move o corpo no espaço e o anjo no tempo; por que não agiria também de acordo com o temperamento dos prudentes deste mundo que se confiam à sua direção? 9 É de admirar-se que a atividade dos santos, mesmo tomando de empréstimo as formas da prudência humana, mostre-se superior à diplomacia incerta dos homens, com toda a superioridade própria dos conselhos de Deus? Eis o segredo de Santo Antonino: em seu coração residia o Espírito Santo, era a Ele que consultava, de forma que poderia responder aos prudentes deste mundo como respondeu outra heroína, também inspirada do mesmo modo, ainda que tivesse uma vocação bem diferente: “Vós estivestes com vosso conselho, eu estive com o meu” 10.

Porém, o que Santo Antonino adquiriu do conselho de Deus foi sobretudo a misericórdia pelos desafortunados. De onde vem isso?

Dai-me um homem de prudência verdadeira, e não dessa prudência mesquinha que tropeça nos nadas da vida. Vá esse prudente de grande envergadura até ao fundo de si mesmo, e não tardará a perceber que há uma multidão de coisas que o ultrapassam. Cogitationes hominum timidae et incertae providentiae nostrae. Quando a prudência é sobrenatural e tem a pretensão de desarmar, por uma santa política, os ardis, as emboscadas e a incessante diplomacia do mal, que busca nos deter no caminho da eterna Beatitude, isso é ainda mais verdadeiro.

Em face de adversário tão poderoso, tão persistente e sutil, não serve de nada possuir um talento extraordinário ou mesmo genial. Para esquivar-se de tantos males, para assegurarmos a nós mesmos e àqueles que estão sob nossa responsabilidade o benefício de um caminho seguro rumo ao fim supremo, o homem não se basta: decididamente precisa de Deus 11.

Mas, como associar Deus a nossos planos? A mesma alta prudência que nos convence da necessidade de sujeitar-nos aos conselhos de Deus para que nos governemos de modo sobrenatural indica-nos o caminho. Se quiserdes ser perdoados, ensinou Jesus, perdoai; se quiserdes ser ajudados por Deus, ajudai vossos irmãos miseráveis. 

Essa bela doutrina, exposta por Santo Agostinho, opera a transição do dom do Conselho à bem-aventurança da misericórdia. Sem dúvida, a obrigação de ser misericordioso é, no fundo, um dever de caridade. Mas, de outro ponto de vista, que é o da prudência consumada, porque divina, aparece como que ditada pela preocupação elevada, pura, esclarecida, do nosso próprio interesses. Et ideo specialiter dono Consilii respondet beatitudo Misericordiae non sicut elicienti, sed sicut dirigenti 12

Em Deus não há oposição entre a inteligência e o coração. Amar os miseráveis é a inspiração de um coração movido pela caridade, mas também é a política mais acertada, pois a bem-aventurança dos misericordiosos consiste, como ensina Nosso Senhor, em alcançar a misericórdia. “Grande é a sabedoria", exclama Santo Agostinho, "daquele que, desejando ser ajudado por Deus, começa por ajudar os mais necessitados” 13

Que diferença entre o pessimismo insensível da política e essa prudência que se traduz, sem perder o seu caráter, no sentimento mais generoso, mais cordial! Que distância entre a benevolência indulgente e mole de um velho diplomata e essa compaixão ativa, inspirada pelo Conselho do Altíssimo! Eis a distância que vai do homem a Deus. Eis a diferença entre os Médici e Antonino!

Perto da Signoria de fortalezas intimidantes, onde apenas os grandes deste mundo penetravam, o Senado, o Salão dos quinhentos – ergue-se o Palácio do Arcebispo, desprovido de luxo por ordem sua, e de portas abertas para todos os desafortunados. Um bispo, vestido de roupas grosseiras como as dos pobres, acolhia-os. Havia sobre seu leito “uma colcha tão estreita, tão miserável, que um cavaleiro sentiu pena e comprou-lhe outra mais grossa e bonita” 14. Ele a vendeu em proveito dos seus pobres. Tornaram a comprá-la e a oferecê-la ao santo, mas ele a vendeu, e assim até a terceira vez. “Por vezes, mais de um personagem poderoso teve de aguardar até que o santo homem terminasse de consolar simples mendigos” 15. Graças a essa facilidade de acesso, um homem, cujos excesso ele repreendera, tentou assassiná-lo em sua habitação. O punhal felizmente ficou cravado no respaldo do assento 16. Tudo o que tem dá aos pobres, e sua caridade, a frente do seu tempo, inspira a fundação de uma obra para o socorro dos indigentes 17. In miseros misericors, plus quam mitis in humiles: compaixão e mansidão são os dois aspectos que resumem o santo arcebispo nas relações com os miseráveis, e resultam de sua inteligência prática, espiritual e diplomática. 

Ele nos é um exemplo precioso. Todos temos um governo exterior em miniatura a administrar, que são no mínimo as nossas relações com as pessoas que nos rodeiam, o cuidado de certos interesses, a direção de certas pessoas: o entendimento prático desempenha necessariamente um papel em nossas vidas. Se quisermos ser práticos até o fim, é preciso sê-lo de modo sobrenatural. Por isso, à imitação de Santo Antonino, devemos nos esforçar para conseguir a ajuda de Deus, perdoando os nossos irmãos que gemem como nós num infortúnio comum, e lhes oferecendo a mão quando possível18.  

Se fizermos isso, Deus nos inspirará o seu conselho, pois se obriga a ajudar quem socorre os desamparados. Nossa vida se desenrolará acima das preocupações mesquinhas, acima dos sentimentos pouco cristãos que o curso da vida quotidiana, ou o choque fatal das personalidades, ou a oposição de interesses e juízos (por vezes refletidos e sobrenaturais) engendram em nós. Pairaremos sobre isso. Os anjos, diz Santo Tomás, consultam a Deus incessantemente. Sua vida se resume nesse simples olhar para a vontade divina sempre que vão agir, e mesmo durante a ação19. Nossa vida também pode ser assim. Santo Antonino nos ensina com seu exemplo que também podemos dar à nossa vida a unidade, a prudência, a sabedoria das avaliações sobrenaturais, desde que não separemos os dois atos do Dom de Conselho, e que, aceitando para nossa utilidade a condução de Deus, cumpramos a condição que ela nos sugere: uma compaixão sincera, sobrenatural e efetiva para com nossos companheiros de desterro, condenados aos mesmos trabalhos e misérias que nós durante esta grande viagem rumo à eternidade.

(Tradução: Permanência)

  1. 1. Lc 4, 18.
  2. 2. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 4.
  3. 3. Jo 29, 7-16.
  4. 4. Mt 13, 45.
  5. 5. Saint Antonin, pelo R. P. Mortier, p. 27.
  6. 6. Ibid, p. 8.
  7. 7. Ibid, p. 21.
  8. 8. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 1.
  9. 9. Ibid.
  10. 10. Essa é a resposta de Santa Joana D’Arc aos chefes militares do reino que, por prudência demasiado humana, apresentavam argumentos para protelar a invasão de Turelles. [N. do T.]
  11. 11. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 1.
  12. 12. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 4
  13. 13. De Sermon. Dom., livro 1.
  14. 14. Saint Antonin, p. 16.
  15. 15. Ibid, p. 18.
  16. 16. Ibid., p. 19.
  17. 17. Ibid., p. 27.
  18. 18. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 4, ad 1.
  19. 19. S. T. IIa. IIae, q. 52, a. 3.