Luís Roldán
[Nota da Permanência - Em face da confusão generalizada que se espalha pela América do Sul, propomos o seguinte artigo sobre as táticas usadas pelos comunistas. A foto ao lado é da paróquia La Asuncíon, Chile, vandalizada ontem, 8/11/19]
Como é possível que, vinte anos depois da queda do comunismo, o marxismo continue a ser uma das ideologias políticas mais fortes? Para entender isso, temos de falar de um escritor muito próximo de nós: Antonio Gramsci, que tentou empreender uma reformulação completa do marxismo, especialmente do ponto de vista tático-político.
O Marxismo de Gramsci
Quem era Antonio Gramsci? Antonio Gramsci era um italiano nascido na Sardenha no final do século XIX. Ainda moço foi viver em Turim, cidade industrial do norte da Itália, onde se tornou professor de colégio primário, trabalhou também como operário, como jornalista, e tornou-se ativista político. Fundou, com Palmiro Tolgliatti e outros, o Partido Comunista Italiano, e teve seus segundos de glória quando o triunfo de Lênin na Rússia, em 1917, seguido pelo fim da Primeira Guerra Mundial e pelo redesenho do mapa europeu pelos tratados de Saint Germain e Versalhes, encorajou as tentativas de revolução comunista em quase todos os países da Europa. Na Alemanha, com a efêmera República Soviética da Baviera; na Espanha, com a chamada ‘Semana Trágica’; até mesmo a Argentina não ficou imune às repercussões. Entretanto, ao contrário do que aconteceu na Rússia, a tentativa de uma luta de classes na Itália levou não Gramsci, mas sim Mussolini ao poder. E uma das primeiras medidas de Mussolini foi banir o partido Comunista e prender todos os seus líderes, entre os quais estava Antonio Gramsci. Ele passou seus últimos oito anos de vida na cadeia, e lá morreu de pneumonia, em 1937. Foi durante esse tempo que ele escreveu a maior parte da sua obra política. A obra dele, Cadernos do Cárcere, não é tão sistemática quanto a de Marx. (Continue a ler)
O original foi escrito em diversos cadernos escolares que seus amigos puderam levar-lhe enquanto gozava as férias que Il Duce lhe dava. O que mais preocupava Gramsci era entender porque Lênin tivera sucesso e ele falhara. Isso o levou a rever algumas das opiniões de Marx. Entretanto, há um aspecto que não questiona em absoluto: Gramsci reivindica o marxismo como herdeiro da modernidade. O marxismo, para Gramsci, é o materialismo absoluto, o antropocentrismo absoluto. A Reforma, a Contrarreforma, a Revolução Protestante e a Revolução Francesa, todas apontam para o marxismo. Gramsci sustenta que o marxismo é o epítome, o fim da modernidade. Todos os elementos da modernidade convergem para esse humanismo absoluto, para esse antropocentrismo absoluto, e estão compreendidos no marxismo. E o primeiro elemento para se penetrar nessa ideia de materialismo dialético é o de que não existem essências.
Mas Gramsci reverá outras coisas, em particular as relações fundamentais entre infraestrutura e superestrutura. No marxismo clássico, essas relações eram compreendidas de modo rígido, até mecânico; quaisquer ações aplicadas à infraestrutura afetariam imediatamente a superestrutura. Marx também achava que o estudo da superestrutura não tinha importância. Nisso o italiano não estava sozinho, sendo acompanhado pela opinião de György Lukács e outros. Gramsci achava que a superestrutura tem uma certa autonomia em relação à infraestrutura. Concorda que a superestrutura depende da infraestrutura, mas tem algo de autônomo. Isto foi muito importante do ponto de vista das universidades, porque Gramsci permite que marxistas estudem direito, política, até teologia, e não somente o aspecto econômico das coisas. A quase totalidade dos escritos de Gramsci desse período se concentra no que ele chama de “a questão da superestrutura”. Ele nota que há dois elementos na superestrutura da sociedade. O primeiro elemento é o que ele chama de sociedade política, símbolo, elemento de compulsão. A influência de Maquiavel é palpável aqui – a política é mero instrumento de coerção. Os elementos principais da sociedade política seriam as forças armadas, a polícia e os tribunais. E o outro elemento ainda mais importante da superestrutura é o que Gramsci chama de sociedade civil.
Sociedade civil versus sociedade política
De que é feita a sociedade civil? A sociedade civil são os elementos que portam ou transmitem a cultura, sendo a família o primeiro deles. Depois da família, a escola, o teatro e a mídia, a Igreja. Gramsci dedica parágrafos interessantes à análise da Igreja. Qual é o papel da sociedade civil? A sociedade civil é o elemento que, em dado momento, representa a cosmovisão que o homem tem do mundo e da vida; que equilibra aquilo que Gramsci chama de “alto” e “baixo”. Intrigava Gramsci que na Itália daqueles tempos qualquer caipira analfabeto se achasse capaz de pensar como algum professor da Universidade Gregoriana. Isso acontece, dizia Gramsci, porque a Igreja, como parte da sociedade civil, soube manter unidos os estratos mais altos e mais baixos. Esse exemplo demonstra por que o elemento fundamental da sociedade civil é o que Gramsci chama de “intelectual orgânico”. Toda sociedade civil tem, em dado momento no tempo, uma certa quantidade de pessoas que estudam e disseminam uma concepção particular do homem, do mundo e da própria vida, e que mantém em unidade coesa os elementos da vida social. O fato de que numa igreja uma mulher velha e analfabeta reze o mesmo rosário que um teólogo ou um grande filósofo deve-se ao fato de que intelectuais souberam manter a unidade do que Gramsci chama de “bloco histórico hegemônico”.
E o que é o bloco histórico hegemônico? É bloco, em primeiro lugar, porque é a união de coisas que Gramsci, marxista que é, considera contraditórias: rico e pobre, sábio e iletrado, nortistas e sulistas, etc. Histórico porque é gerado num dado momento da história, e desaparece em outro. E hegemônico porque a realidade sob a aparência de unidade é o domínio de uma classe por outra.
Neste ponto Gramsci compara as sociedades russa e italiana e chega à conclusão de que a Rússia tinha uma sociedade política muito forte: o Czar tinha à sua disposição uma grande força militar, uma polícia secreta formidável e um sistema jurídico aterrorizante, porém a sociedade civil era muito fraca. Havia pouco contato entre as massas de camponeses e as classes altas. Na Itália, por outro lado, o Estado era fracamente organizado, tendo emergido de uma unificação recente (quando Gramsci escreveu, o estado italiano tinha pouco mais de 60 anos). Acrescente-se a isso a máfia, etc., etc. Quem quer que tenha conhecimento apenas superficial da Itália sabe que as forças armadas italianas não eram decerto as melhores da Europa; a polícia italiana tinha problemas, os tribunais eram um desastre. Então como é possível, perguntava-se Gramsci, que Lênin tenha vencido na Rússia e eu tenha perdido na Itália? A razão é que, na Rússia, a sociedade política era realmente muito forte, mas a sociedade civil era subnutrida. Na Itália, ao contrário, a sociedade política era fraca, mas os marxistas não se deram conta de que a sociedade civil era extremamente forte.
Que houve, então? Num caso em que a sociedade política, que é o poder coercitivo, é fraca, mas a sociedade civil é muito vigorosa, um punhado de marxistas datados que se empenhe em fazer greves e atirar coquetéis molotov terminará por fortalecer a superestrutura política. Mussolini tomou o poder porque soube como capturar o senso comum do bloco histórico hegemônico. Por isso Gramsci disse que uma mudança de tática era imperativa. Quando Gramsci escreveu, havia em curso uma discussão sobre táticas de guerra. De um lado estavam os que favoreciam as táticas da Primeira Guerra Mundial, ou seja, a guerra de posição: trincheiras, arame-farpado, etc. Do outro, havia os que, como Lukács, achavam a guerra de movimento muito mais eficaz: um ataque relâmpago contra a posição de um inimigo para romper a frente e mostrar força.
Gramsci fecha com os primeiros. Lênin, diz ele, usou a guerra de movimentos, tática perfeita quando não se enfrenta uma sociedade civil. Porém, quando se enfrenta o contrário, uma sociedade civil muito forte, e se utiliza a tática da guerra de movimento, o resultado é o entrincheiramento dos setores mais contrarrevolucionários. Em países como a Itália, o marxismo deveria se distanciar da guerra de movimento e adotar a guerra de posição. É uma guerra longa e árdua, de conquista de casa em casa, de trincheira em trincheira, de campo minado em campo minado. E quais são essas trincheiras e casas? As escolas, a mídia, as universidades. E como isso vai acontecer? Substituindo os intelectuais: o professor escolar, o jornalista, o padre no púlpito. Em outras palavras, os que mantêm o bloco histórico hegemônico. Todas essas figuras devem ser substituídas por intelectuais devotados ao marxismo, que Gramsci chama de intelectuais orgânicos. E isso deve ser feito lentamente, sem que ninguém perceba que está acontecendo.
Marxismo Cultural
Para que alvo Gramsci aponta essa estratégia? Eis uma ideia engenhosa – o objetivo de Gramsci é o senso comum, é a destruição do senso comum. Porque é o senso comum que carrega a mentalidade metafísica – a ideia de que existem essências, que há uma natureza nas coisas.
Gramsci morreu na cadeia, mas o que aconteceu na Itália depois de sua morte é interessante. A Itália terminou a Segunda Guerra Mundial com a estabilidade garantida pela sua diplomacia, figurando ao lado dos vencedores e não como país derrotado. Pouco tempo depois, a Assembleia Constituinte promulga a Constituição de 1947. E, rompendo com os linha-dura pró-soviéticos, o partido comunista italiano se declara respeitador das instituições democráticas, aceitando, a princípio, as ações políticas de partidos políticos diferentes. Tanto foi assim que, nos anos 50 e 60, o eurocomunismo era considerado uma versão domesticada – um comunismo que não tinha posições radicais nem atirava bombas. Os comunistas nunca chegaram a formar um governo na Itália, onde o principal partido político de 1947 até praticamente 1990 foi o Democrata Cristão. Mas enquanto os democratas cristãos brigavam por assentos no parlamento, os marxistas brigavam pelas cátedras universitárias e pelas posições jornalísticas nos meios de comunicação de massa, e é incrível como conseguiram destruir a sociedade italiana em apenas 50 anos. Nunca formaram um governo, mas, depois da queda do Muro de Berlim, há no poder uma coalizão de esquerda que é inegavelmente gramsciana.
Isso teve impacto especialmente na Argentina, porque, depois do período anti-subversivo dos anos 70, muitos ex-Montoneros foram para a Itália e, ao que parece, redescobriram Gramsci, e suas ideias foram aplicadas em 1983: a renúncia do uso da força, da violência, mas a mesma luta para a conquista do senso comum, para a destruição cultural. A reescrita da história é primordial, é uma das coisas que Gramsci considerava mais importantes. Por quê? Porque a história é uma referência permanente de todas as atitudes políticas. Não é novidade que desde o século XIX os liberais tratassem dessa questão. Mas na Argentina algumas pessoas já mudaram a história. Por exemplo, falar hoje nos 30.000 desaparecidos é fazer referência a um mito. É como se alguém encontrasse uma tribo de índios antes da chegada dos espanhóis e derrubasse o totem – ia dar problema. Nesta sociedade, em que dominam o pluralismo, o relativismo e o subjetivismo, os esquerdistas conseguiram fabricar um dogmatismo novo cheio de clichês em que basear todo o raciocínio; criaram uma inquisição secular, a inquisição do politicamente correto, e podemos falar até do eclesiasticamente correto. Some-se a isso a transformação das novas gerações pelos currículos escolares, etc., e acho até que no ano passado a Argentina aprovou o “casamento” entre pessoas de mesmo sexo com apoio popular.
E por que isso? Porque esse é o último bastião onde o homem ainda pode pensar que há uma natureza nas coisas, que há diferenças entre os sexos. Essa ideia, a de que posso construir a realidade, a de que posso fabricar as coisas, é o sumo do antropocentrismo moderno. Nada de novo aqui, estamos de volta à tentação do demônio aos nossos primeiros pais: no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal. Não entendo a língua hebraica, mas li ou ouvi em algum lugar que o verbo “conhecer” também pode ser compreendido como “conceber”. Por que seriam eles como deuses? Porque daí em diante poderiam decidir o que é bom e o que é mau. Mas, para que eu possa afinal decidir o que é bom e o que é mau, devo ser capaz de dizer o que é e o que não é. Quando chegamos a esse ponto, o senso comum está destruído.
E é por isso que o marxismo, independentemente de suas falhas políticas e econômicas, ainda vive. Lembro-me de ter perguntado a respeito disso a um velho professor, e ele me respondeu: “Filho, você não sabe o que é uma ideologia. Uma doutrina pode ser verdadeira ou falsa, mas o homem que segue uma doutrina tem uma atitude contemplativa em relação à realidade. Primeiro ele pergunta o que as coisas são, depois percebe que as coisas são de um jeito ou de outro, e chega à conclusão do que é preciso e do que não é preciso fazer. É por isso que, quando você encontra uma pessoa que segue uma doutrina errada, você consegue conversar com ela, consegue convencê-la do seu erro. E, se você a convence, ela muda de rumo. É o oposto no caso do ideólogo. O ideólogo é alguém que nutre uma afeição desordenada por alguma coisa, fabrica um mundo em torno disso, e não quer saber se esse mundo é verdadeiro ou falso; tudo o que importa é que oferece uma justificativa para o rumo que ele decide tomar. Aqui se cumpre o ditado que reza que aquele que não vive de acordo com o que crê, termina crendo conforme vive”.
E essa é uma característica da sociedade contemporânea. O marxismo não convence por ser verdadeiro. Ele convence porque satisfaz o desejo que já existia no pecado original do homem que quis alçar-se a Deus e se ressente de uma ordem objetiva, se ressente de que haja leis acerca do casamento; é o homem querendo se refazer. Essa é a razão por que essa ideologia antipolítica que é o marxismo sobreviveu às suas falhas políticas, militares e econômicas. Porque é menos doutrina do que ideologia.
Que isso nos inspire a crer que, se quisermos confrontar essa ideia, devemos recuperar o senso comum. Não nos deixemos vencer pela corrente do politicamente correto. Prudente e cuidadosamente, afirmemos que as coisas são o que são. Deus estabeleceu uma ordem objetiva nas coisas, e o homem não é a medida de tudo.
(Revista Permanência 294 - Tradução: Permanência)