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Gnoti Seauton

Fez Sócrates ponto de partida de sua doutrina a inscrição do templo de Apolo em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”.

Qual porém o adequado, o verdadeiro, conhecimento de “ti mesmo”?

Diz o Livro dos Diálogos de Santa Catarina de Siena: “... não se atinge o conhecimento da verdade senão pelo conhecimento do eu-mesmo. Não o eu-mesmo isolado, mas acompanhado do conhecimento de Mim-mesmo em ti” 1.

O adequado conhecimento será necessariamente bipolar: exige o — possível — conhecimento de Deus sustentando o do precário e dependente si-mesmo, ti-mesmo, eu. Deus e o eu.

Deus é o próprio Ser subsistente. Ipsum Esse subsistens. (S. Tomás, S.T. q 4.a. 2). Sou que Sou (Êxodo 3,14).

As criaturas todas do universo não são ser, têm o ser, recebido em composição com uma potência. Todos os entes são compostos de ser (ato) e essência (potência).

O ato de ser do anjo e do homem é espiritual. Só eles são propriamente entes. Tem intencionalidade o homem no conhecer, amar e agir. Homem e anjo são pessoas, são livres.

A consciência da intencionalidade fundamenta-se na consciência do eu, na auto-consciência, que é o núcleo do “conhecer-te a ti mesmo”, é a transparência do ser.

Porém ser não é Ser. O ser, o eu, a consciência de ser é necessariamente heterônoma. Há de se subpor incondicionalmente dependente do Outro. Nessa conformidade está a sábia adequação do “conhece-te a ti mesmo”.

Sócrates: “sei que nada sei”; inculca: “sou que não sou”.

Eis a bipolaridade: “Sou que Sou” e “sou que não sou”. Deus é Ser por Si-mesmo. O homem (e o anjo) é ser pelo Outro. Tem ser, mas não é ser; ser e não ser. Alguma semelhança à identidade-oposição da dialética de Hegel entre o ser e o não-ser.

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Entes espirituais, homem e anjo, são livres. Ao contemplarem a riqueza ontológica, a beleza de seu ser, podem seduzir-se, tornar-se vulneráveis a querer possuir sua própria e absoluta autonomia. Eis o fundamental orgulho, a raiz do pecado.

Em todo pecado há a negação de Deus, em “proveito” do eu, “a morte” de Deus”. Aí se instala a contrafação da “morte do pai”, do Édipo de Freud.

A satisfação irreprimida e plena do auto-erotismo corpóreo ou espiritual é a ilusória divinização da criatura. O anjo: “nom seviam”. O homem: “(...) que se tornou como um de nós (...)” (Genesis, 3, 22).

A fundamental mentira, a impossível igualdade: o ente igual ao Ser. Ser e não-ser.

O ser do homem, diante do Ser, é um nada. Nada muito proclamado por Santa Catarina de Siena. Nada, da mística de São João da Cruz. Eis o autêntico conhecimento de si-mesmo, eis o eu.

São Paulo: “não sou eu que vivo, mas o Cristo que vive em mim”. (Gálatas, 2.20).

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Nota — Desse conhecimento algumas conseqüências decorrem:

1. Só as pessoas divinas, só Deus tem direitos absolutos (simpliciter). O homem não tem direito nenhum em relação a Deus. Entre os homens não há também direitos absolutos (simpliciter), mas só relativos (secundo quid).

2. De nós mesmos temos intuição, consciência do eu. Percebemos os outros pelos sentidos diretamente, ou indiretamente pela memória e pela imaginação. De modo imediato conhecemo-nos como eu; os outros, como corpo.

Os sentidos apreendem os acidentes. O amor aos acidentes é o amor de concuspicência; o à substancia, o de benevolência.

Para amarmos os outros como a nós mesmos, devemos dedicar- lhes o amor de benevolência, amarmos seu eu substancial. Parece dever dar-se ao “nós mesmos” um primado do qualitativo sobre o quantitativo. Em vez de mesma quantidade, o mesmo tipo, o mesmo modo de amar. Amar um eu.

Como, porém, transpor a corporeidade? Como atingir o outro em seu indevassável eu?

Reconhecendo possuir o outro um eu, outro eu, isso nos inculca um amor natural; amor insuficiente, comparado com o de caridade efetivado pela graça.

No amor de caridade, na filiação divina, é possível o convívio adequado na comunhão dos santos. Realizam-se plenamente os mandamentos (Levi 19,18) e (Deuteronômio 6,5) no mandamento evangélico “que vos ameis como Eu vos amei” (Jo, 15,12).

  1. 1. Santa Catarina de Siena,”Le livre des dialogues”, Seuil, pg. 275.
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