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Estando neste porto a bela Armada
Tomando o necessário mantimento,
Para poder seguir sua jornada,
E dar terceira vez o tréu ao vento;
Sendo parte da noite já passada,
A Virgem lá no seu retraimento,
Quando estava dormindo toda a frota,
Ao Cristo orou assim, branda e devota:
— Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor que amando vou toda rendida;
Com quem não há na vida pena grave,
Sem quem glória real não há na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor sendo ferida,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que d’amor cheio e de brandura,
D’amor enches est’alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e formosura,
Não pode nunca haver cousa formosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Uma vida tão fraca e duvidosa,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que por amor te dispuseste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do céu desceste;
Amor, que por amor à Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida deste;
Amor, que por amor a glória abriste,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que mais e mais sempre te aumentas
No coração que lá contigo trazes;
Amor, que d’amor puro te sustentas
No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
Amor, que sem amor não te contentas,
De tudo com amor te satisfazes,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?
Amor, que com amor me cativaste;
(se livre pode ser quem não cativas)
Amor, qu’em tais prisões m’asseguraste
As esperanças d’antes fugitivas;
Amor, que suspirando m’ensinaste
A derramar por ti lágrimas vivas,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?