Certos clérigos inovadores tendem cada vez mais a se desviar da liturgia tradicional para abrir o futuro, cada vez mais, a uma religião loquaz, que pensam falar melhor, com mais resultado, à alma do povo.
Abandonam voluntariamente a prática dominical — vésperas, completas — para multiplicar, fora da Igreja, reuniões à base de conversas, sessões de pequeno parlamento piedoso e substituem, nos próprios ofícios, os misteriosos hinos sagrados, julgados ininteligíveis, pelo cântico em língua vulgar, cujo nome diz tudo o que significa: pouca coisa ou nada.
Nessa determinação de vulgarizar — e quanto! — o culto divino, desnudando-o de sua secular beleza santificante, como um Presente que é preciso enfim exterminar, um Passado que já é hora de empobrecer para colocar no baixo nível do maior número, esquecem-se de que a virtude mística, ao contrário, consiste em elevar o maior número ao nível supra cotidiano dos eleitos na eternidade.
Teria o fiel necessidade de compreender tudo?
Há várias palavras no verbo de Deus. Deus não fala ao homem somente por discursos que lhe sejam mais ou menos convincentes, mas também quando o homem se cala, por um atingimento interior que a palavra não conhece.
Para essa aproximação divina, a liturgia constitui uma via superior e quase sacramental, o coro secular da Comunhão dos Santos que une através dos tempos, pelas mesmas palavras carregadas da alma da mesma oração, o “Miserere” e o “Magnificat” de uma anciã iletrada, ao “Miserere” e ao “Magnificat” de Tomás de Aquino, o doutor, o de Joana de Lorena, que não sabia ler.
Esses reformadores — tanto quanto Calvino antigamente — jamais perceberam que é uma Dádiva feita às multidões a Liturgia Católica, pela qual a Igreja militante, no seu caminho de miséria na terra, ascende algumas vezes aos primeiros degraus iluminados da Igreja triunfante e por um instante experimenta o Céu?
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Quem mede a Dádiva da Igreja ao povo?
A múltipla riqueza litúrgica, o chamado entre terra e céus do “Rorate” do Advento, sua sublime aspiração desolada e consolada; o “Glória laus” da festa de Ramos, caminhante e verdejante; o “Exsultet” da noite Pascal; os grandes Aleluias da Páscoa, sob os sinos a toda força; a lamentação extraterrena do ofício dos Mortos, seu formidável e suplicante “Dies iræ”; o “Parce Domine” implorando contra as calamidades públicas; o “Te Deum” fulgurante, sobre-humano das ações de graças com seu caráter épico, toda essa magnificência cantada, a Igreja Católica dá ao povo na magnificência monumental das catedrais, sob a magnificência radiosa dos vitrais.
Jamais rei algum, na sua glória, ofereceu a si mesmo tamanho tesouro; nunca os chefes de repúblicas se reunirão de tal modo para o Fausto destinado a seus convidados de honra.
Mas a Igreja Católica, na inigualável igualdade de sua caridade universal, abriu e abrirá esse tesouro, de século em século, ao menor de seus pequenos, ao primeiro morto que entrar, ao primeiro mendigo que passar.
E se por infelicidade, um dia, não pudesse ela mais proporcionar essa magnificência ao homem, que restaria ao homem que padece sob o jugo do trabalho para alegrar seu dia de festa? Barulho de alto falantes, discursos de ministros... E os cavalos de parque de diversões.
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Perguntaram-me, recentemente, através de qual ordem religiosa teria eu bebido tão profundamente das fontes litúrgicas.
Até poucos anos, jamais havia falado nem a monge, nem a freira, jamais havia posto os pés num parlatório de convento.
Mas minha avó era uma dessas senhoras francesas, que cantavam Vésperas todos os domingos, Completas nos dias de festa e que seguiam minuciosamente, nos seus grossos livros de folhas amareladas, as Trevas da Semana Santa e as Grandes Matinas de Natal e do Dia dos Mortos.
Mal tinha eu nove anos, mas ela me fazia acompanha-la. Para mim, era como entrar num mundo sublime, fora do outro, onde Deus e o homem trocavam palavras estranhas que não tinham sentido nos outros países.
Na noite de Todos os Santos, às 6 horas, penetrávamos as duas na grande Noite da Catedral, que não tinha àquela hora, sob as abóbadas prodigiosas, nem começo nem fim.
Poucos fiéis pelas cadeiras. Da entrada até o altar, a Igreja estava revestida do negro dos grandes funerais que, do coro, algumas velas assustadas, tremeluzindo na penumbra, mal iluminavam.
Na torre, dobrava o carrilhão, esse admirável carrilhão da Catedral de Auxerre, grupo trágico de sinos profundos que soavam bruscamente, em soluços, cinco ou seis notas dilacerantes e recaiam no silêncio de onde, novamente, tornavam a sair após alguns minutos de angústia, com lágrimas tenebrosas que haviam recolhido em não se sabe que poços de dor e medo.
Eu esperava, arrepiada, cada volta desses hinos pungentes... Enquanto isso, cantávamos com os padres, os salmos de David, as lamentações de Jó. Lá ouvi — com nove anos — o inconsolável grito do homem, grito que entrou em mim, e não saiu mais.
Creio que esse Jó, esse David, foram meus verdadeiros, meus primeiros Pais entre todos aqueles que são para nós os Poetas, os Profetas e os Gênios.
Mesmo sendo ignorante (não sei mais latim do que minha mãe, minha avó e suas criadas), sou, de igual modo, tão apegada ao latim de nossos ofícios que sofro grande ausência quando a versão francesa — secularizada — dele nos priva.
Como saber o porquê dessa nostalgia espiritual? Talvez exista no nosso canto litúrgico que do fundo dos séculos tantas bocas bem-aventuradas nos transmitiram, um Dom quase sacramental do Espírito de Pentecostes, que falava misteriosamente às almas simples pelos vocábulos sagrados, os quais querem agora nos tirar porque, sendo nós insuficientemente instruídos, não saberíamos escuta-los bem.
Oh! claro, que não os entendíamos todos, apesar dos nossos livros de Missa, mas deixávamos que essas palavras passassem sobre nós como uma corrente de graça. As palavras muitas vezes repetidas, do “Veni Creator”, “Miserere”, “De Profundis”, “Magnificat”, “Te Deum” e de todos os outros cantos tinham se tornado em nós nossa riqueza familiar, pela grande magnificência aberta da Igreja Católica, cuja oração secular eleva os humildes sem que eles o saibam e os valoriza, melhor que lições e discursos de todos os tempos em todos os lugares do mundo.
(Traduzido por Afonso dos Santos de “Itineraires” n° 257, publicado na Revista Permanência, Maio-Junho de 1982).