Category: Pe. Félix Sardá y Salvany
Padre catalão, autor do opus magnum "O Liberalismo é pecado".
Se refletirmos sobre a essência do liberalismo chamado católico (comumente chamado “catolicismo liberal”), veremos que, provavelmente, ela consiste apenas num falso conceito do ato de fé. Os católicos liberais parecem fundamentar toda a razão de sua fé não na autoridade de Deus, infinitamente veraz e infalível, que Se dignou revelar-nos o caminho único que nos há de conduzir à bem-aventurança sobrenatural, mas na livre apreciação de um juízo individual, que dita ao homem ser melhor uma crença do que qualquer outra. Não querem reconhecer o magistério da Igreja como único autorizado por Deus a apresentar aos fiéis a doutrina revelada e a determinar-lhe o verdadeiro sentido. Ao contrário, fazendo-se a si mesmos juízes da doutrina, aceitam dela o que lhes agrada, reservando-se porém o direito de crer no contrário, sempre que supostas razões pareçam demonstrar como falso hoje o que parecia verdadeiro ontem.
Para refutar essa pretensão basta conhecer a doutrina fundamental de Fide, exposta sobre esta matéria pelo Santo Concílio Vaticano .
Ademais, os católicos liberais se intitulam católicos porque crêem firmemente que o catolicismo é a verdadeira revelação do Filho de Deus; mas se intitulam católicos liberais, ou católicos livres, porque julgam que uma crença não lhes pode ser imposta, a eles nem a ninguém, por nenhum motivo senão o da sua livre apreciação. De maneira que, sem perceberem, o diabo maliciosamente substituiu neles o princípio sobrenatural da fé pelo princípio naturalista do livre exame. Com isso, ainda que julguem ter a fé das verdades cristãs, não a têm verdadeiramente, mas possuem simples convicção humana, a qual é essencialmente distinta daquela.
Por conseguinte, julgam a sua inteligência livre para crer ou não crer, e igualmente livre a de todos os outros. Na incredulidade, pois, não vêem um vício, enfermidade, ou cegueira voluntária do entendimento e mais ainda do coração, mas um ato lícito do foro interno de cada um, tão senhor de si para crer em certa coisa, como para não crer em coisa alguma. O seu horror à toda pressão exterior moral ou física, que previna ou castigue a heresia decorre dessa doutrina, e produz entre eles o seu horror às legislações civis francamente católicas. Daí o profundo respeito com o qual querem sempre tratar as crenças alheias, mesmo as mais opostas à verdade revelada; porque, para eles, as mais falsas são tão sagradas quanto as verdadeiras, já que todas nascem de um mesmo princípio igualmente sagrado: a liberdade individual. É assim que se erige em dogma o que se chama tolerância, e que se impõe à apologética católica contra os hereges um novo código de leis, que nunca conheceram na antiguidade os grandes polemistas do catolicismo.
Sendo essencialmente naturalista seu conceito primário da fé, segue-se que é naturalista também todo seu desenvolvimento no indivíduo e na sociedade. Daí resulta que a apreciação primeira e, às vezes, exclusiva que os católicos liberais fazem da Igreja, se limita às vantagens culturais e civilizacionais que proporciona aos povos. Esquecem e quase nunca citam seu fim primário, sobrenatural, que é a glorificação de Deus e a salvação das almas. Diversas apologias católicas escritas na época presente estão repletas deste falso conceito. De modo que, para tais pessoas, se o catolicismo por infelicidade tivesse sido causa em algum tempo de atraso material para os povos, já não seria verdadeira nem louvável, em boa lógica, essa religião. E, com certeza, assim já se passou [na história], pois que, para alguns indivíduos e famílias, o ser fiéis à sua religião é ocasião de verdadeira ruína material; e nem por isso deixa ela de ser menos excelente e divina.
Este critério é o que dirige a pluma da maior parte dos periódicos liberais; se eles lamentam a demolição de um templo, só assinalam ao leitor a profanação da arte. Se advogam em favor das ordens religiosas, é apenas para ponderar os benefícios que prestaram às letras; se exaltam as Irmãs da Caridade, é tão-só em consideração aos serviços humanitários com que suavizam os horrores da guerra; se admiram o culto, não é senão por causa de seu brilho exterior e poesia; se na literatura católica respeitam as Sagradas Escrituras, é porque se fixam apenas em sua majestosa sublimidade.
Deste modo de louvar as coisas católicas apenas por sua grandeza, beleza, utilidade ou excelência material, resulta logicamente que o erro, quando reunir essas condições, merece iguais louvores, como sem dúvida as reúne, aparentemente e em certos momentos, algumas das falsas religiões.
A maléfica ação deste princípio naturalista chega até mesmo à piedade, e a converte em verdadeiro pietismo, quer dizer, em falsificação da piedade verdadeira. Vemos isto em tantas pessoas que não buscam nas práticas devotas senão a emoção, o que é puro sensualismo da alma e nada mais. Também vemos inteiramente enfraquecido hoje em muitas almas o ascetismo cristão, que é a purificação do coração por meio da repressão dos apetites, e desconhecido o misticismo cristão, que não é a emoção, nem a consolação interior, nem outra dessas delícias humanas, mas a união com Deus por meio da sujeição à sua santíssima vontade e do amor sobrenatural.
Por isso, o catolicismo de um grande número de pessoas em nosso tempo é um catolicismo liberal, ou, mais exatamente, um catolicismo falso. Não é catolicismo, mas um simples naturalismo, um racionalismo puro; é, numa palavra, se nos permitem a expressão, paganismo com linguagem e formas católicas.
De todas as inconseqüências e antinomias que se encontram nos graus médios do liberalismo, a mais repugnante e odiosa é a que pretende nada menos que unir o liberalismo com o catolicismo, para formar o que se conhece na história dos modernos desvarios pelo nome de “liberalismo católico” ou “catolicismo liberal”. E todavia ilustres inteligências e honradíssimos corações, que não podemos crer mal-intencionados, pagaram tributo a esta absurdidade! O liberalismo teve sua época de moda e prestígio que, graças ao céu, vai passando ou já passou.
Nasceu este funesto erro de um desejo exagerado de conciliar e pacificar a coexistência de doutrinas forçosamente inconciliáveis e inimigas por sua própria essência.
O liberalismo é o dogma da independência absoluta da razão individual e social. O catolicismo é o dogma da sujeição absoluta da razão individual e social à lei de Deus.
Como conciliar o sim e o não de doutrinas tão opostas?
Isto pareceu fácil aos fundadores do liberalismo católico. Alegaram uma razão individual, sujeita à lei do Evangelho, e inventaram uma razão pública ou social, coexistente com ela e livre de todo entrave. Disseram: “O Estado como tal não deve ter Religião, ou deve tê-la somente até certo ponto, que não disturbe os que não queiram tê-la”. Assim, o cidadão particular deve sujeitar-se à revelação de Jesus Cristo, mas por sua vez o homem público pode comportar-se como se a revelação não existisse. Deste modo compuseram a célebre fórmula: “Igreja livre no Estado livre”. Fórmula para cuja propagação e defesa se juramentaram na França vários católicos insignes, e entre eles um ilustre bispo .
Esta fórmula devia ser suspeita, desde que Cavour a tomou como divisa da revolução italiana contra o poder temporal da Santa Sé, porém nenhum de seus autores ainda se retratou formalmente, segundo sabemos, malgrado o seu evidente fracasso.
Esses ilustres sofistas não viram que, se a razão individual tem a obrigação de submeter-se à lei de Deus, a razão pública e social não pode dela se subtrair, sem cair num dualismo extravagante, que submete o homem à lei de dois critérios opostos e de duas consciências opostas. De modo que a distinção do homem privado e do homem público, o primeiro obrigado a ser cristão, e o segundo autorizado a ser ateu, cai imediatamente ao chão sob o peso esmagador da lógica integralmente católica. O Syllabus, do qual falaremos adiante, acabou de afundar esta tese, sem chance de remissão. Resta ainda desta brilhante mas funestíssima escola um e outro discípulo tardio, que já não se atreve a sustentar publicamente a teoria católico-liberal da qual foram em outros tempos fervorosos panegiristas, mas à qual ainda seguem obedecendo na prática; talvez, não se dão conta de que querem pescar com redes que, de tão conhecidas e usadas, o diabo já mandou recolher.
O liberalismo, como sistema de doutrinas, pode ser chamado de escola; como organização de adeptos para difundi-las e propagá-las, de seita; como agrupamento de homens dedicados a fazê-las prevalecer na esfera do direito público, de partido. Mas, quer se considere o liberalismo como escola, seita, ou partido, vê-se que ele oferece, dentro de sua unidade lógica e específica, diferentes graus ou matizes que o teólogo católico deve estudar e expor.
Antes de tudo, convém notar que o liberalismo é uno, isto é, constitui um organismo de erros perfeita e logicamente encadeados, motivo pelo qual o chamamos de sistema. Com efeito, se partirmos do seu princípio fundamental, a saber, que o homem e a sociedade são perfeitamente autônomos ou livres, com absoluta independência de qualquer outro critério natural ou sobrenatural que não seja o individual, chegaremos, por uma perfeita dedução de conseqüências, a tudo aquilo que a demagogia mais avançada proclama em seu nome.
A Revolução não tem nada de grande, a não ser sua inflexível lógica. Até os seus atos mais despóticos, executados em nome da liberdade, e que à primeira vista tachamos de inconseqüências monstruosas, obedecem a uma elevadíssima lógica. Porque se a sociedade reconhece como única lei social a opinião da maioria, não admitindo outro critério ou regulador, como se pode negar ao Estado o direito absoluto de cometer todo tipo de atropelo contra a Igreja, todas as vezes que, segundo seu único critério social, achar conveniente fazê-lo?
Admitindo-se que a maioria tem sempre razão, admite-se também que a única lei é a do mais forte, e assim, muito logicamente, se pode chegar até as últimas brutalidades.
Entretanto, apesar dessa unidade lógica do sistema, os homens não são sempre lógicos, e isto produz dentro dessa unidade a mais assombrosa variedade ou gradação de tintas. As doutrinas derivam necessariamente e por virtude própria umas das outras; mas os homens, ao aplicá-las, são em geral ilógicos e inconseqüentes.
Se os homens levassem até as últimas conseqüências seus princípios, eles seriam todos santos, quando os princípios fossem bons; e todos demônios do inferno, quando os princípios fossem maus.
É a inconseqüência que faz meio bons os homens bons, e meio maus os homens maus.
Aplicando essas observações ao presente assunto do liberalismo, nós diremos que, pela graça de Deus, encontram-se relativamente poucos liberais completos; o que não impede que a maioria, ainda que não tenha atingido o último limite da depravação liberal, seja composta de verdadeiros liberais, ou seja, verdadeiros discípulos, partidários ou sectários do liberalismo (conforme se considere o liberalismo uma escola, seita ou partido).
Examinemos estas variedades da família liberal.
Há liberais que aceitam os princípios, mas fogem das conseqüências, pelo menos das mais cruas e extremas.
Outros aceitam uma ou outra conseqüência ou aplicação que lhes agrada, enquanto são escrupulosos em aceitar radicalmente os princípios.
Quiseram alguns o liberalismo aplicado tão somente ao ensino; outros, à economia; outros tão só às formas políticas.
Só os mais avançados pregam sua aplicação em tudo e para tudo. As atenuações e mutilações do credo liberal são tão numerosas quanto numerosos são os favorecidos ou prejudicados por sua aplicação. Pois, geralmente, existe o erro de crer que o homem pensa com a inteligência, quando o usual é que pense com o coração, e muitas vezes ainda com o estômago.
Daí que os diferentes partidos liberais preguem o liberalismo em diversos graus, assim como o taberneiro serve aguardente em diversos graus, ao gosto do consumidor.
É por isso que não existe liberal para quem seu vizinho mais avançado não seja um brutal demagogo, ou seu vizinho menos avançado não seja um furioso reacionário. É questão de escala alcoólica e nada mais. Assim, tanto os que em Cádis batizaram hipocritamente em nome da Santíssima Trindade seu liberalismo, como os que, nestes últimos tempos, têm como lema o grito "Guerra a Deus!", ocupam degraus diferentes na escala liberal. E a prova disto é que todos aceitam e invocam o denominador comum de liberal.
O critério liberal ou independente é sempre o mesmo para todos, ainda que as aplicações sejam mais ou menos acentuadas de acordo com os indivíduos.
De que depende essa maior ou menor intensidade? Muitas vezes dos interesses; não poucas vezes do temperamento; de certos traços de educação que impedem alguns de darem os passos precipitados que outros dão; de respeitos humanos, talvez, ou de considerações de família; de relações e amizades etc., etc. Sem contar a tática satânica que às vezes aconselha o homem a não radicalizar uma idéia, a fim de não alarmar as pessoas, de torná-la mais viável e facilitar sua aplicação.
Essa maneira de proceder pode, sem juízo temerário, ser atribuída a certos liberais conservadores, entre os quais sob a máscara de conservadorismo se oculta, comumente, um franco demagogo.
Mas, nos “semi-liberais”, em geral, a caridade pode supor certa dose de candor e de natural bonhomie ou tolice, que, embora não os torne inimputáveis, como mostraremos depois, obriga, não obstante, que se tenha para com eles alguma compaixão.
Fica pois demonstrado, caro leitor, que o liberalismo é um só, ao passo que os liberais, assim como o mau vinho, têm diferentes cores e sabores.
Ensina a teologia católica que nem todos os pecados graves são igualmente graves, mesmo na condição essencial que os distingue dos pecados veniais.
Há graus no pecado, mesmo dentro da categoria dos pecados mortais, assim como há graus de boas obras dentro da categoria das boas obras e conformes à lei de Deus. A blasfêmia, por exemplo, que ataca diretamente a Deus, é um pecado mortal mais grave do que um pecado que ataca diretamente o homem, como o roubo.
Pois bem, à exceção do ódio formal contra Deus e da desesperação absoluta, que raríssimas vezes são cometidos pela criatura, a não ser no inferno, os pecados mais graves de todos são os pecados contra a fé. A razão é evidente. A fé é o fundamento de toda a ordem sobrenatural e o pecado é pecado enquanto ataca algum ponto dessa ordem sobrenatural; por conseguinte, o pecado máximo é aquele que ataca o fundamento primordial dessa ordem.
Um exemplo para aclarar: talha-se uma árvore, cortando-lhe algum de seus ramos. Quanto mais importante o ramo que se retira, maior será o dano. Se se cortar o tronco ou a raiz o dano será mais grave ou mortal. Santo Agostinho, citado por Santo Tomás, dá ao pecado contra a fé esta fórmula incontestável: Hoc est peccatum quo tenentur cuncta peccata — “Este é um pecado que contêm todos os pecados”.
O Doutor Angélico discorre sobre esse ponto com sua habitual clareza: “Tão mais grave é um pecado, quanto mais por ele o homem se separa de Deus. Pelo pecado contra a fé, o homem se separa o mais que pode de Deus, pois se priva de seu verdadeiro conhecimento; daí que, conclui o Santo Doutor, o pecado contra a fé é o maior que se conhece.”
Porém, o pecado contra a fé é ainda mais grave quando não é simplesmente uma ausência culpável dessa virtude e desse conhecimento de Deus, mas negação e ataque formal aos dogmas expressamente definidos pela revelação divina. Neste caso, o pecado contra a fé, em si gravíssimo, adquire uma gravidade ainda maior, que constitui o que se chama “heresia”. Ele inclui toda a malícia da infidelidade, além de um protesto expresso contra um ensinamento da fé que, sendo falso e errôneo, é condenado pela mesma fé. Esse pecado gravíssimo contra a fé é agravado pela obstinação e contumácia, e por uma preferência orgulhosa: a da razão própria à razão de Deus.
Portanto as doutrinas heréticas e as obras heréticas constituem o maior pecado de todos, à exceção do ódio formal a Deus, ódio de que são capazes, como já dissemos, apenas os demônios e os condenados.
Por conseguinte o liberalismo, que é uma heresia, e as obras liberais, que são obras heréticas, são os pecados máximos que conhece o código da fé cristã.
Desta maneira, salvo os casos de boa-fé, de ignorância e de indeliberação, o fato de ser liberal constitui um pecado maior do que ser blasfemo, ladrão, adúltero, homicida, ou qualquer outra coisa que proíba a lei de Deus e que castigue sua justiça infinita.
O moderno naturalismo não o entende assim, é verdade. Mas as leis dos Estados católicos sempre o creram assim, até o advento da presente era liberal. A lei da Igreja assim prossegue ensinando, e assim continua julgando o tribunal de Deus. Sim, a heresia e as obras heréticas são os piores pecados de todos, e, portanto, o liberalismo e os atos liberais são, ex genere suo, o mal acima de todo mal.
O liberalismo é pecado, seja considerado na ordem das doutrinas, seja na ordem dos fatos.
Na ordem das doutrinas, é pecado grave contra a fé, porque suas doutrinas são uma heresia.
Na ordem dos fatos, é pecado contra os mandamentos da lei de Deus e de sua Igreja, porque infringe a todos. Para esclarecer: na ordem das doutrinas, o liberalismo é a heresia radical e universal, porque compreende todas as heresias. Na ordem dos fatos, é a infração radical e universal da lei de Deus, porque autoriza e sanciona todas as outras infrações.
Procedamos por partes na demonstração.
Na ordem das doutrinas o liberalismo é uma heresia. Heresia é toda doutrina que nega formalmente e de maneira pertinaz um dogma da fé cristã. Ora, o liberalismo doutrinal começa por negar todos os dogmas do cristianismo em geral, e depois nega cada um deles em particular.
Ele os nega todos em geral quando afirma ou supõe a independência absoluta da razão individual no indivíduo, e da razão social ou critério público na sociedade.
Dizemos “afirma” ou “supõe", porque às vezes o princípio liberal não é afirmado nas conseqüências secundárias, mas tem-se já por suposto e admitido.
Ele nega a jurisdição absoluta de Cristo Deus sobre os indivíduos e as sociedades e, por conseqüência, nega a jurisdição delegada que o chefe visível da Igreja recebeu de Deus sobre todos e cada um dos fiéis, qualquer que seja sua condição e dignidade.
Nega a necessidade da revelação divina e a obrigação que tem o homem de admiti-la, se quer alcançar seu fim último.
Nega o motivo formal da fé, isto é, a autoridade de Deus que revela, admitindo da doutrina revelada apenas algumas verdades que seu curto entendimento alcança.
Nega o magistério infalível da Igreja e do Papa e, desta forma, nega todas as doutrinas definidas e ensinadas por eles.
E, depois dessa negação geral e em bloco, o liberalismo nega cada um dos dogmas, parcialmente ou por inteiro, à que medida que, segundo as circunstâncias, os encontra opostos ao seu juízo racionalista. Assim, por exemplo, ele nega a fé do batismo quando admite ou supõe a igualdade dos cultos; nega a santidade do matrimônio quando estabelece a doutrina do chamado matrimônio civil; nega a infalibilidade do Pontífice Romano quando recusa admitir como leis seus mandatos oficiais e seus ensinamentos, sujeitando-os ao seu exequatur, não para assegurar-se da autenticidade, como se praticava outrora, mas para julgar o seu conteúdo.
Na ordem dos fatos, o liberalismo é a imoralidade radical.
Ele o é porque destrói o princípio, ou regra fundamental de toda moral, que é a razão eterna de Deus impondo-se à razão humana; porque canoniza o absurdo princípio da moral independente, que é no fundo a moral sem lei, a moral livre, ou, o que é o mesmo, a moral que não é moral, pois a idéia de moral implica não só a idéia de direção, mas contém ainda essencialmente a idéia de refreio ou de limite. Ademais, o liberalismo é todo imoralidade, porque em seu processo histórico cometeu e sancionou como lícita a infração de todos os mandamentos, desde o que manda o culto de um só Deus, que é o primeiro do Decálogo, até o que prescreve o pagamento dos direitos temporais da Igreja e que é o último dos cinco que Ela promulgou.
Pode-se dizer então que o liberalismo, na ordem das idéias, é o erro absoluto, e que na ordem dos fatos é a desordem absoluta. Por conseguinte, nos dois casos, é pecado grave, ex genero suo, pecado gravíssimo, pecado mortal.
Ao estudar um objeto qualquer, depois da pergunta sobre sua existência, an sit?, faziam os antigos escolásticos a de sua natureza, quid sit? É desta que vamos nos ocupar no presente capítulo.
Que é o liberalismo?
Na ordem das idéias, é um conjunto de idéias falsas; na ordem dos fatos, é um conjunto de fatos criminosos, conseqüência prática daquelas idéias.
Na ordem das idéias, o liberalismo é o conjunto dos chamados princípios liberais, com as conseqüências lógicas que deles derivam. São princípios liberais: a absoluta soberania do indivíduo, com inteira independência de Deus e de sua autoridade; a soberania da sociedade, com absoluta independência do que não provenha dela mesma; a soberania popular, isto é, o direito do povo de legislar e governar com absoluta independência de todo critério que não seja o da sua própria vontade, expressa primeiro por sufrágio e depois pela maioria parlamentar; a liberdade de pensamento sem limites políticos, morais ou religiosos; a liberdade de imprensa, igualmente absoluta ou insuficientemente limitada; e a liberdade de associação também ilimitada.
São esses os princípios liberais em seu mais cru radicalismo.
O seu fundo comum é o racionalismo individual, o racionalismo político e o racionalismo social, de onde derivam: a liberdade de culto, mais ou menos restrita; a supremacia do Estado em suas relações com a Igreja; o ensino laico ou independente, sem laço algum com a religião; o matrimônio legislado e sancionado unicamente pela intervenção do Estado. Sua última palavra, que tudo abarca e sintetiza, é “secularização”, isto é, a não intervenção da religião em qualquer ato da vida pública, verdadeiro ateísmo social que é a conseqüência última do liberalismo.
Na ordem dos fatos, o liberalismo é um conjunto de obras inspiradas e reguladas por esses princípios; tais como as leis de desamortização[1]; a expulsão das ordens religiosas; os atentados de todo gênero — oficiais e extraoficiais — contra a liberdade da Igreja; a corrupção e o erro publicamente autorizados, seja na tribuna, na imprensa, nas diversões e nos costumes; a guerra sistemática contra o catolicismo e tudo o que é tachado de clericalismo, teocracia, ultramontanismo etc.
É impossível enumerar e classificar os atos que constituem a ação prática liberal, pois compreendem desde o ministro e o diplomata que legislam ou intrigam, até o demagogo que discursa no clube ou que assassina na rua; desde o tratado internacional ou a guerra iníqua, que usurpa do papa o seu principado temporal, até a mão que ambiciona o dote da monja ou que se apodera da candeia do altar; desde o livro pretensamente profundo e erudito que se passa como leitura na universidade, até a vil caricatura que faz a alegria dos bufões na taverna. O liberalismo prático é um mundo completo: tem suas máximas, modas, artes, literatura, diplomacia, leis, maquinações e atropelos. É o mundo de Lúcifer, disfarçado hoje sob o nome de liberalismo, e em oposição radical e guerra aberta com a sociedade dos filhos de Deus — a Igreja de Jesus Cristo.
Eis o liberalismo do ponto de vista da doutrina e da prática.
[1] Série de leis de confisco e desapropriação da propriedade visando, principalmente, à propriedade eclesiástica.
Sem dúvida alguma, e a não ser que todos os homens de todas as nações da Europa e da América, regiões principalmente infestadas desta epidemia, tenham concordado em nos enganar ou nos fazer de enganados, seria desnecessário ocuparmo-nos em demonstrar a seguinte assertiva: existe hoje no mundo uma escola, um sistema, um partido, uma seita, ou chame-se como quiser, conhecida por seus amigos e por seus inimigos com o nome de liberalismo.
Os seus jornais, associações e governos qualificam-se abertamente de liberais. Seus adversários lançam-lhes ao rosto este nome e eles não protestam, se desculpam nem atenuam a acusação.
Mais ainda: lê-se diariamente que existem correntes liberais, tendências, reformas, projetos, personagens, datas e recordações, idéias e programas liberais. Em contrapartida, dá-se o nome de anti-liberalismo, clericalismo, reacionarismo ou ultramontanismo a tudo o que se opõe ao sentido dado à palavra “liberal”.
É, portanto, incontestável que existe atualmente uma certa coisa que se chama liberalismo e uma certa outra coisa que se chama anti-liberalismo. Como muito acertadamente já se disse, liberalismo é uma palavra de divisão, pois tem dividido o mundo em dois campos opostos.
Mas não é só uma palavra, pois a toda palavra corresponde uma idéia; nem é só uma idéia, pois a uma idéia corresponde de fato toda uma ordem de acontecimentos exteriores. Existe então o liberalismo, isto é, existem doutrinas liberais, obras liberais e, conseqüentemente, existem homens que professam doutrinas e praticam obras liberais. Ora, esses homens não são indivíduos isolados; eles vivem e trabalham como um grupo organizado com um fim comum, unanimemente aceito, sob a direção de chefes nos quais reconhecem o poder e a autoridade. O liberalismo, pois, não é apenas uma idéia, uma doutrina, uma obra, mas é sobretudo uma seita.
Portanto é evidente que quando tratamos de liberalismo e de liberais, não estudamos seres imaginários, puros conceitos intelectuais, mas realidades verdadeiras e palpáveis do mundo exterior. Bastante verdadeiras e palpáveis, infelizmente!
Sem dúvida nossos leitores terão observado que, em tempos de epidemia, a primeira preocupação que se manifesta é sempre a de sustentar que ela não existe. Não há lembrança, nas diferentes epidemias que nos afligiram no século presente ou nos séculos passados, de que uma só vez tenha deixado de se passar este fenômeno:
A enfermidade já devorou em silêncio grande número de vítimas e dizimou a população, quando enfim se começa a reconhecer que ela existe. Os comunicados oficiais têm sido por vezes os mais entusiasmados propagadores da mentira, e há casos em que a própria autoridade impôs até penas aos que afirmaram a realidade da epidemia.
O que se produz na ordem moral de que estamos tratando é análogo. Depois de cinqüenta anos ou mais vivendo em pleno liberalismo, ainda ouvimos pessoas respeitáveis nos perguntarem com assombrosa candidez: “Ah! Levas a sério essa de liberalismo? Não serão talvez apenas exageros do rancor político? Não valeria mais esquecer essa palavra que nos divide e nos indispõe uns contra os outros?”
Quando a infecção se difunde na atmosfera a ponto de a maior parte dos que a respiram se habituarem à contaminação e já não sentirem mais a infecção no ar, é sinal de um gravíssimo sintoma!
Logo o liberalismo existe, caro leitor; é um fato, e disto não te permitas nunca duvidar.
Não te assustes, pio leitor, e não comeces desde o princípio a mostrar cara feia a este opúsculo. Não o rejeiteis com espanto ao folheá-lo, porque por mais abrasadas e candentes que sejam as questões que nele ventilamos, e iremos esclarecer nestas familiares e amistosas conferências, não queimarás teus dedos com elas, pois o fogo de que se trata aqui é metáfora e nada mais.
Já sei, e em tom de desculpa me dirás, que não és o único que sente invencível repulsa e profundo horror por essas matérias. Sei muito bem o quanto esta maneira de pensar e sentir tornou-se uma enfermidade, uma espécie de mania quase que geral. Mas, diz-me, em consciência: se fugimos das questões candentes, isto é, das questões vivas, palpitantes, contemporâneas e atuais, a que assuntos de verdadeiro interesse a controvérsia católica pode consagrar-se? A combater inimigos vencidos há séculos, e que como mortos e putrefatos, jazem esquecidos de todos no panteão da história? Ou a tratar a sério e com muita cortesia assuntos de hoje, é verdade, mas acerca dos quais não há nenhum desacordo na opinião pública, e nada de hostil aos direitos sagrados da verdade?
Por Deus! E será para isto que nós nos chamamos soldados, nós os católicos, e dizemos representar como exército a Igreja, e chamamos capitão a Nosso Senhor? É será essa a vida de luta a que somos sem cessar intimados, desde que pelo batismo e pela crisma fomos armados cavaleiros de tão gloriosa milícia? Será guerra de brincadeira em que se luta contra inimigos imaginários, com armas de festim e espadas sem ponta, a que somente se exige que brilhem e façam vão ruído, porém sem ferir nem causar nenhum prejuízo ao inimigo?
Claro que não; porque se o catolicismo é a verdade divina, como de fato é, verdade e dolorosa verdade são também seus inimigos; verdade e sangrenta verdade, os combates que contra eles trava. Reais, portanto, e não pura fantasia de teatro, seus ataques e defesas. Verdadeiramente devemos nos lançar nessas empresas, verdadeiramente levá-las a cabo. Reais e verdadeiras devem ser, por conseguinte, as armas que se usem, reais e verdadeiros os golpes e revezes que se deem, reais e verdadeiros as feridas que se causem ou recebam.
Se abro a história da Igreja, em todas as suas páginas encontro essa verdade escrita muitas vezes com letras de sangue. Jesus Cristo, nosso Deus, anatematizou com energia sem igual a corrupção judaica; e frente a frente com as mais delicadas preocupações nacionais e religiosas da sua época, hasteou a bandeira da sua pregação, pagando-a com a vida.
Os apóstolos, ao sair do Cenáculo em dia de Pentecostes, não hesitaram um só minuto em lançar em rosto dos príncipes e magistrados de Jerusalém o assassinato judicial do Salvador; e por ter ousado, naquele momento, tocar uma questão tão candente, foram de pronto açoitados, e depois mortos.
Desde então, todo herói de nosso glorioso exército tornou famosa a respectiva questão candente que lhe coube elucidar, a questão candente, a do dia e não a já fria e passada, que não interessa mais; nem a questão futura, que permanece nos segredos do porvir.
Os primeiros apologistas as elucidaram, no embate corpo a corpo com o paganismo coroado e sentado no trono imperial. Eram, portanto, questões candentes em que se arriscava a vida.
Atanásio, por exemplo, sofreu persecuções, desterros, fugas, ameaças de morte, excomunhões de falsos concílios, por causa da questão candentíssima do arianismo, que conturbou todo o mundo. E Agostinho, o grande campeão de todas as questões candentes do seu século, por acaso teve medo dos grandes problemas levantados pelos pelagianos, por que eram problemas de fogo?
Assim, de século em século, de época em época, a cada questão candente que o inimigo de Deus e do gênero humano traz incandescente das fornalhas infernais, a Providência suscita um homem, ou muitos homens que, como martelos de grande potência, batem fortemente nos erros candentes. Pois martelar sobre ferro candente é bom trabalho; e martelar sobre ferro frio é trabalhar em vão.
Martelo dos simoníacos e dos concubinários da Alemanha foi Gregório VII; Martelo de Averróis e dos falsos aristotélicos foi Tomás de Aquino; martelo de Abelardo foi Bernardo de Claraval; martelos dos albigenses foi Domingos de Gusmão, e assim até nossos dias. E se perderia muito tempo ao percorrer a história passo a passo para comprovar uma verdade que, de tão evidente, não merece discussão; mas, assim deve ser, por causa de tantos infelizes que, à força de levantar poeira, se empenham em obscurecer a própria evidência.
Basta pois deste assunto, amigo leitor; e dando um pequeno passo a mais, te direi, em segredo, para que ninguém nos ouça, que assim como cada século teve suas questões candentes, também o nosso deve necessariamente ter as suas. E uma delas, a questão das questões, a questão maior, tão incandescente que não se pode tocá-la sem que solte fagulhas por todos os lados, é a questão do liberalismo.
"São muitos os perigos que corre a fé do povo nestes tempos”, disseram há pouco os sábios e valentes prelados da província eclesiástica de Burgos, “mas se resumem num só: que é, digamos assim, seu grande denominador comum: o naturalismo... Chame-se racionalismo, socialismo, revolução ou liberalismo, por sua maneira de ser e sua própria essência será sempre a negação franca ou artificiosa, mas radical, da fé cristã, e por conseguinte importa evitá-lo com diligência, assim como importa salvar as almas".
A questão candente de nosso século está oficialmente formulada nesta grave declaração. E, com ainda maior autoridade e claridade, pronunciou-se no mesmo sentido e repetidamente, em centenas de documentos, o grande Pio IX. Pronunciou-se assim também ao mundo, não com menos afinco, nosso atual Pontífice Leão XIII, na Encíclica Humanus Genus. Encíclica que deu, dá e dará o que falar, e que talvez não seja ainda a última palavra da Igreja de Deus sobre essas matérias.
E por que o liberalismo haveria de ter, sobre todas as demais heresias que o precederam, um privilégio especial de respeito e quase de inviolabilidade? Seria porque na negação radical e absoluta da soberania divina ele as resume e compreende todas? Seria porque mais que qualquer outra, estendeu sua infecção e gangrena por todo o corpo social? Ou seria porque, como justo castigo de nossos pecados, realizou o que jamais havia realizado nenhuma heresia: ser erro oficial, legalizado, entronizado nos conselhos dos príncipes e todo-poderoso no governo dos povos? Não, porque esses motivos são precisamente os que devem mover e forçar todo bom católico a pregar e sustentar contra o liberalismo, custe o que custar, aberta e generosa cruzada.
A este inimigo, a este lobo, temos nós, que recebemos do céu a missão de cooperar para a saúde espiritual do povo cristão, temos de gritar a todas as horas, seguindo a ordem do Pastor Universal.
A campanha está aberta, e esta série de breves e familiares conferências começada. Não será antes, porém, que eu tenha declarado que todas e cada uma das minha afirmações, nos menores detalhes, ficam sujeitas ao inapelável juízo da Igreja, único oráculo seguro de infalível verdade.
Sabadell, mês do Santíssimo Rosário,1884.
I. Ponto de vista da questão.
Quando lamentamos a indiferença e a impiedade que crescem a cada dia no mundo atual; quando fixamos horrorizados os olhos no quadro tristíssimo que os costumes públicos hoje nos oferecem, rara é a vez em que, ao investigar as causas de espetáculo tão desolador, as procuramos em sua primeira origem, qual seja, a desordem que há anos vem se introduzindo na família. No entanto, é nessa sociedade menor, mais do que em qualquer outra parte, que se devem procurar os males da sociedade maior, e é a ela também que se devem aplicar os remédios. As teorias sociológicas retumbantes, como as atuais, não curarão o mundo, tampouco os debates sublimes ou os discursos mais ovacionados do parlamento e da academia. O saneamento deve começar por onde a gangrena começou, e é a família o organismo social mais atingido – mais atingido do que qualquer outra instituição.
Há anos se vem observando, dolorosamente, que a sociedade está se descristianizado. Sabem por quê? Porque se encontram pouquíssimas famílias cristãs. Essa afirmação parecerá ousada; contudo, não nos é difícil repeti-la, de novo e de novo. Sim, encontram-se pouquíssimas famílias cristãs no mundo atual.
Como! - diria alguém, alarmado: porventura não são batizados, graças a Deus, todos ou quase todos os filhos da Espanha? Não se sucedem as gerações sob as bênçãos de Cristo, que sanciona os matrimônios? Não se vive e morre em nossas casas à sombra da cruz?
Sim, tudo isso é verdade, o que não impede que também seja aquela minha afirmação, que tão ousada lhes pareceu. Encontram-se pouquíssimas famílias cristãs no mundo atual. Ouçam-me com alguma atenção, meus amigos, e talvez o assombro se desvaneça.
A família cristã, como a chamo, não é somente a família em que cada um de seus membros isoladamente seja cristão; não é somente a família que, para casar, nascer e morrer, cuida em conservar o uso do carimbo oficial da Igreja Católica, que intervém nesses atos da vida, em vez de recorrer à polícia ou ao registro civil. Para ser cristã, uma família deve professar algo para além dessa religião que se poderia apelidar de oficial e característica dos atos solenes, dessa religiosidade de meras práticas individuais, que cada um exerce por sua conta e razão, sem participação na vida coletiva da sociedade doméstica. Assim como não é católico o Estado cujas leis e cujos órgãos não estão inflamados de espírito católico, que não é obediente aos preceitos católicos e fundamentado nos princípios da verdadeira ortodoxia católica, por mais que delegue funcionários bem uniformizados para assistir a um cerimonioso Te Deum, ou mande celebrar exéquias pomposas, com orações fúnebres e tudo o mais; assim também, por mais que os filhos tenham nomes de santos, por mais que os defuntos descansem em túmulos consagrados e tenham os vivos uns laivos de obediência à Igreja, não se pode chamar de cristã a família que – no conteúdo, na trajetória e na vida do lar doméstico – não se harmonize com os documentos fundamentais da fé cristã, não se inspire neles e a eles não obedeça.
Digam-me, então: Quantas famílias hoje vivem assim?
A família moderna está perdendo aquele aroma puro que sempre vivificou a tradicional família espanhola: o aroma da piedade. Conheço muitas casas em que não é possível chamar a ninguém de incrédulo. Ninguém – nem o pai, nem a mãe, os filhos ou os sobrinhos – renegou a fé. Todos são vistos de vez em quando na Missa, e todos têm certidões de batismo, confirmação e casamento no arquivo paroquial. No entanto, essa fé, que sem dúvida se aninha em todos os corações, não se vê na casa, nem se reflete na vida doméstica: um protestante ou um ateu pode permanecer ali por dias sem que se sinta mortificado pela falta de crença ou a preocupação anticatólica. Os indivíduos são católicos, mas – oh, que pena! – a casa não é.
O tema “A piedade na família”, com o qual nos ocuparemos nas páginas seguintes, indica o aspecto da questão doméstico-religiosa que nos propomos a desenvolver. Nossos leitores podem ir refletindo desde já se esse tema é ou não é oportuno. Para nós, ele parece muito conveniente e apropriado ao apostolado benfazejo que todo propagandista católico deve procurar exercer nos lares espanhóis.
II. Por onde se começa com uma pergunta aparentemente ridícula, embora muito importante, no fundo.
Mas — perguntaria alguém — Deus tem o direito de reinar na família?
Por mais ridícula que seja a pergunta, não estranhem que comecemos o capítulo por ela. Hoje, tudo o que se refere aos direitos divinos é matéria de discussões. O homem se agarra tanto à própria vontade e soberania, que alimenta um temor perene de que elas sejam cerceadas por algum desmedido direito que se atribua a Deus. Este temor é a mania, ou melhor, a heresia do século, cujo nome é tão conhecido que não precisamos mencioná-lo aqui. Portanto, antes de começarmos a examinar se a família deve buscar o reinado de Deus pelo exercício da piedade, precisamos informar-nos de se Cristo-Deus tem ou não tem o direito de nela reinar.
Ainda que doa a quem doer, e se limite a liberdade indômita de quem quer que seja, afirmaremos que sim. Primeiro, porque Deus é Deus, e tem todos os direitos. Logo, não lhe pode faltar este. Segundo, porque Deus é rei em todos os lugares, e não há privilégio nem imunidade que eximam o domicílio do homem desta jurisdição real. Terceiro, porque, se Ele é o dono do homem, e tem direito absoluto a reinar sobre ele e seus costumes, tem, por conseguinte, direito a reinar, mais do que em qualquer outro lugar, no lar doméstico, onde se formam os homens, pois é nele sobretudo que se moldam os costumes.
Dessas três razões, as duas primeiras são evidentes por si mesmas, à guisa dos axiomas matemáticos, e é portanto ociosa a demonstração. E mais: de tão verdadeiras, são indemonstráveis. Passemo-las, pois, por alto, e finquemos pé na terceira, que oferece caráter mais prático e tem aspectos que se relacionam mais de perto com o nosso apostolado.
Com efeito, Deus instituiu desde o princípio a sociedade doméstica, para que fosse criadouro e viveiro das gerações humanas, não somente quanto ao aspecto material e físico, mas muito especialmente quanto ao aspecto moral. O varão e a mulher não se unem em matrimônio apenas para ter filhos, visto que essa finalidade única rebaixaria a nobilíssima instituição matrimonial a funções animais e rasteiras. Ambos se unem em matrimônio para ter filhos bons, o que, depois da revelação de Cristo-Deus, equivale a dizer: para ter filhos cristãos, ou seja, para constituir uma família cristã. Essa é uma verdade que nasce de outra, não menos fundamental e sólida: a de que os filhos são criados não para a terra, mas para o céu, e a de que os pais não são pais somente dos corpos, mas dos corpos unidos às almas. Portanto, a paternidade não deve almejar somente que os filhos saiam roliços e belos, nem muito instruídos e gentis, e nem mesmo muito ricos e ilustrados, e sim muito aptos ao fim último a que estão destinados, que é, segundo o sábio catecismo, “amar e servir a Deus nesta vida, para vê-lo e gozá-lo na outra”.
Essa é uma noção elevada demais para que a aceitem as gentes modernas, cujos ideais – até em matérias tão sublimes – conservam num nível baixo e rasteiro. Embora elevada demais, é a única noção que a boa filosofia cristã admite, e a única que se praticou durante os séculos em que a família se constituiu segundo os preceitos cristãos. Essa é a verdade, e o resto é absurdo naturalista e embuste mentiroso da Revolução. Os pais existem para dar os filhos ao céu antes de dá-los à terra. Não importa que precisem passar pela terra antes de ir ao céu, pois é preciso passar primeiro pelos meios antes de chegar ao fim, ainda que logicamente se prefira o fim aos meios. O certo é que sejam criados não para este mundo, porque a missão não termina aqui, mas sim para o outro, que é o destino definitivo.
Assentada essa verdade, depreende-se daí que o lar deve ter um caráter cristão para que os filhos saiam cristãos, assim como é preciso que o molde seja adequado à figura que se deseja extrair dele. A casa deve, pois, ser o caminho do céu, se quiserem que os indivíduos que morem nela e percorram os seus caminhos cheguem ao céu – a menos que se repute normal chegar a certo lugar percorrendo um caminho que dê em outro, diametralmente oposto. Deduz-se daí que o Cristo-Deus deve reinar no lar como reina em todas as partes, sendo este o princípio do seu glorioso reinado sobre a vida do homem, que é criatura sua.
Para ser mais claro e conciso: ou Deus não tem direito nenhum sobre o homem, e nesse caso não é Deus, ou Deus tem um direito muito especial sobre o lar e a família, porque é por aí que deve começar a exercer seus principais direitos sobre o homem.
Isso tudo talvez pareça muito metafísico a alguns leitores ingênuos dos nossos folhetos. Tenham paciência e esperem. Acabamos de apresentar o princípio e fundamento de todo o nosso plano; agora os senhores passarão a ver as consequências, simples e práticas, que decorrem desse princípio nos capítulos seguintes.
Conste desde já que, se alguém quiser pôr em dúvida o direito absoluto de Deus de reinar sobre a sociedade doméstica, visto que hoje infelizmente já se proclama que Ele não tem direito de reinar sobre a sociedade civil – esse alguém se limita a reafirmar um barbarismo liberal da pior espécie, oposto tanto à Religião quanto à sã filosofia e ao bom senso.
III. Do caráter prático que, acima de qualquer outra educação, possui a educação no lar doméstico.
Cristo-Deus tem direito de reinar sobre a família porque tem direito de reinar sobre o homem, e o homem, de ordinário, nasce e cresce na vida moral segundo o molde moral em que se enquadra os atos de sua vida – e a família ou lar doméstico é esse primeiro molde moral. Para falar de modo mais direto: para ser cristão, o homem deve ser formado segundo uma educação cristã, no seio de uma família constituída de maneira cristã; não há outro modo de se tornar cristão, a não ser por milagre especialíssimo de Deus, o que por si só é exceção, e não regra.
Deve, pois, ser cristã a família que se dedica a formar cristãos, e deve ser cristã na prática. Porque a família é uma escola, não de sistemas, mas de costumes; não de discussões, mas de hábitos; não de árduas e áridas especulações do entendimento, mas de singelas e suaves inclinações do coração. Na família não se instrui o homem raciocinando, ou argumentando, ou contrapondo razões, mas vivendo, aprendendo e imitando os bons exemplos. Por isso, vê-se muitas vezes que pais estimados por muito sábios se revelam educadores medíocres dos filhos, ao passo que outros, muito rudes e iletrados, os educam maravilhosamente. Assim é porque nessa escola ensina melhor quem melhor obra, não quem sabe mais; do mesmo modo, não aprende mais quem ouve as coisas mais belas, mas sim quem presencia as melhores ações. A Religião, mais que tudo, se aprende mais com a prática do que com discursos. Sobre o alicerce da boa e leal prática religiosa assentam-se as razões e argumentos que a ilustram e esclarecem, e que a confirmam cientificamente em sua divina verdade. Mas, primeiro, cumpre abraçá-la com coração amoroso, e somente depois lhe compreender os ensinamentos de modo correto e preciso, com todas as luzes da inteligência apoiadas na fé. Esse procedimento, que parece invertido, é aqui o único lógico e natural. Credo, ut intelligam, dizia um grande Doutor da Igreja: “Creio primeiro, para entender depois”. Com igual razão, poderia ter dito: Amo, ut credam et intelligam: “Começo por amar e praticar com fervor, para bem crer e entender”.
Dado o caráter prático que a educação cristã deve ter e, por conseguinte, o caráter de cristianismo prático que a família deve ter – família que precisa ser a principal escola desse gênero de educação –, já não parecerá estranho que tenhamos intitulado estas notas de “A piedade na família”, e não “A religião, ou o Cristianismo, ou o Catolicismo na família”. Escrevemos “A piedade”, e julgamos que escrevemos bem, e que contamos com um forte fundamento filosófico.
Com efeito: Que é a piedade? Essa palavra, que a tantos espanta, significa apenas “a Religião na prática”, ou “a prática fiel e amorosa da Religião”. Ambas as definições vêm a dar no mesmo, embora a segunda seja mais clara. Depois de muito prestar atenção na piedade e nas pessoas piedosas, concluímos logicamente que ninguém pode ser bom cristão se não for cristão na prática, com amor e fidelidade às práticas cristãs; em conseqüência, ninguém pode ser bom cristão se não for perfeitamente piedoso. De modo que a piedade, a tão aborrecida e difamada vida de piedade, não é uma coisa só de padres e monges, ou de alguma senhora desenganada do mundo, ou de algum homem enfadonho e mal-humorado... De jeito nenhum! A piedade é, simplesmente, o dever de todo homem e toda mulher – que não for judeu ou gentio –, do homem que não se resigna a abandonar a fé do batismo; a piedade pertence a todos os estados, a todas as carreiras, a todas as idades, porque é simplesmente a Religião na prática, e não há estado, nem carreira, nem idade que possa eximir-se da pratica da Religião.
Daí concluímos que a família deve ser cristã na prática e, para tanto, deve ser perfeitamente piedosa; portanto, a piedade na família não é uma coisa que se possa licitamente deixar de lado, como um grau de maior perfeição que se pudesse livremente renunciar. Antes, ela é o primeiro dever, o dever fundamental, o dever religioso e essencial, o dever que abrange e sustenta todos os demais deveres domésticos, o dever sem o qual desaba toda a trama desse delicadíssimo edifício privado e, em decorrência, de todo o edifício social.
Parece-nos que esse ponto já está provado o suficiente; por isso, podemos repousar antes de passar às aplicações consequentes.
Entretanto, cada um dos nossos estimados leitores pode começar a deduzi-las por si mesmo. E, sem dúvida, a primeira que lhes ocorrerá é que uma casa piedosa ou, o que dá no mesmo, uma casa cristã, se reconhece pelos mesmos sinais que distinguem um homem ou uma mulher cristã de um homem ou uma mulher não cristã. Como diz a máxima: “Dinheiro e amor ninguém consegue esconder”. O mesmo fenômeno acontece com o tesouro da Fé e o nobilíssimo amor pelas coisas da Fé: quando alguém os tem, é dificílimo ocultá-los; quando alguém de fato não os tem, é dificílimo fingi-los.
A pessoa ou a casa piedosa proclama a própria virtude, sem fazer o menor esforço, por meio do aparato e da fisionomia exterior. Enxerga-se o espírito de fé prática, que influi em todos os seus atos, a uma légua de distância. Esses atos trazem Deus consigo, e Deus, como lume vivíssimo, irradia-se com todo o ser no mais puro esplendor.
IV. Aplicações mais concretas da doutrina anterior.
Uma vez demonstrado que, no cristianismo, a família, (pois dela falamos e a ela nos dirigimos), deve ser piedosa, agora é possível averiguar como ela deve ser piedosa ou, o que dá no mesmo, quais devem ser as formas da piedade. Temos aqui um largo campo a percorrer, um vastíssimo horizonte ante o nosso olhar; uma selva frondosa de reflexões nos convida, por assim dizer, a escolher. Portanto, para dar alguma unidade ao que possamos dizer sobre o tema, comecemos por propor a divisão tão conhecida dos atos de Religião, que se referem uns diretamente a Deus, outros diretamente a nós mesmos. Assim a família cristã, para que de fato seja cristã, quer dizer, para que seja cristãmente cristã, por mais que pareça redundante a expressão, precisa fazer com que se cumpram com bondade e perfeição estes deveres: o dever para com Deus, e o dever para com os próprios membros.
Temos assim uma rota traçada e um plano delineado. Vamos desenvolvê-lo com brevidade e ligeiras indicações.
Dever para com Deus. Esse é o primeiro dever do homem, e é, por consequência, o primeiro de toda família de homens. Contém em si o reconhecimento formal e expresso de Deus, a adoração à sua majestade, a obediência à sua lei, o agradecimento por seus benefícios, o recurso a Ele nas necessidades. Não cumprem, pois, esse dever primário e fundamental as famílias que em sua vida coletiva prescindem por completo de Deus, embora não incorram, formal e expressamente, nas negações ímpias do ateísmo.
Deus, pois, deve ser visto em todas as partes do lar doméstico cristão. Nossos avós começavam por esculpir seu Nome Santíssimo e o de sua Santíssima Mãe no batente da porta, e coroavam com a cruz benta o cume das torres e claraboias. Esse era um bom sinal de Deus, que dizia com clareza a todos que aquela casa, que com tanto amor ostentava as divinas divisas, era sua. Hoje já não há nada disso – sinal de como estes tempos são péssimos, pois nos contentaríamos com menos, mesmo que trabalhemos e desejemos conseguir todo o resto. Resignar-nos-íamos de imediato se o interior da casa tivesse o selo e o caráter cristão, e se nela tudo fosse uma declaração franca e explícita da fé que os indivíduos que ali habitam dizem professar.
Por exemplo, não deveria haver ali nenhum adorno que se opusesse à moral de Cristo; nenhum que fosse grosseiro ou impudico, ainda que sob pretextos históricos ou artísticos; nenhum que se deva furtar ruborizado aos olhos do sacerdote, se ele por acaso ali puser os pés; nenhum que não possa figurar dignamente num templo. Por que o cristão deverá ter em sua casa quadros, estátuas e relevos que o horrorizariam se os visse colocados na coluna da Igreja, ou junto do altar? Será ele menos cristão em sua casa do que é na casa de Deus?
Que dizer dos livros e jornais? Será ridículo, será irracional exigir que uma casa cristã não permita a entrada senão de publicações cristãs? Se essa casa abre as portas ao que vem em nome de Deus e também ao que vem em nome do diabo, seu inimigo, a quem pertencerá ela, que reparte entre ambos, com tanta equidade, a amizade e a simpatia? De quem é essa casa? De Deus ou de Belial? De Deus é que não é, porque Deus não reina senão só, sem competição.
Fazem-se refeições em família, mas em família não se reza nem se lê? Então essa é uma família só de corpos, já que só convive em função do corpo? Aquele pai e aquela mãe, que tão pouco zelam por elas, também não se enxergam como pais de almas? Será o bastante que o pai ou a mãe se contentem de rezar sozinhos, sem saber se as outras pessoas da casa satisfizeram essa dívida sagrada para com o Criador? E se ela não for satisfeita, sobre quem recai a responsabilidade dessa insolvência? Por acaso a lei humana não deposita sobre os pais a responsabilidade pelas dívidas que os filhos contraem e não pagam? Pois a Lei divina lhes faz a mesma e terrível exigência.
Divertir-se é pecado? Não; mas procurar e permitir diversões pecaminosas é. E assim o são a maior parte das diversões de hoje em dia, como ninguém ignora, por mais que sobre isso, como sobre tantas outras coisas, haja muito empenho em manter a consciência adormecida. Pecam os pais e as mães que autorizam essa corrupção calculada do lar, embora eles pessoalmente não frequentem os ambientes perigosos: pecam se souberem a que lugares empesteados vão os filhos e filhas, e pecam também se não souberem, porque deveriam saber. Do salão de baile e do espetáculo imoral os filhos maiores trazem para casa, a cada noite ou domingo, miasmas pestíferos que, depois de tê-los envenenado, minam aos poucos tudo quanto lhes estiver próximo, e preparam para a família inteira os germes da corrupção inevitável. O mal se torna gravíssimo se os próprios pais se transformarem no veículo dessa influência malsã. E que dizer dos simplórios ou pusilânimes que, apesar de acreditarem que a consciência não lhes permite participarem da função, ainda assim autorizam que com ela se corrompam aqueles a quem, por mandato divino, estão encarregados de vigiar e proteger?
Mas esse tema tem maior proximidade com o dever da família para consigo mesma.
V. Dos deveres da família cristã para consigo mesma.
Além dos deveres gerais para com Deus, teria a família cristã deveres para consigo mesma?
E como não teria? Um desses deveres, de certa maneira, resume e compendia a todos: a educação. Nesse sentido, diremos que a piedade não é apenas o pagamento da dívida de respeito, gratidão e amor que temos para com Deus: é também o meio mais eficaz de aperfeiçoamento moral para nós mesmos, a pedra angular de todo sistema de educação verdadeira, a grande tutora da alma por excelência; por conseguinte, é a grande educadora da família.
Parece coisa velha e gasta repetir aqui que o temor de Deus é o princípio da sabedoria, e, portanto, de toda educação sólida e verdadeira. Mas, por velho que seja esse axioma, e por repisado que o vejamos em púlpitos e livros, é palavra do Espírito Santo, e isso nos dispensa de demonstrá-lo. Se, no entanto, quiséssemos demonstrá-lo ao leitor, bastaria a simples observação e experiência do que vemos todos os dias à nossa volta. A educação doméstica sem Deus tem produzido tantos e tais frutos envenenados, que esse fato é o suficiente para convencer de uma vez por todas sobre o caráter maligno e infernal do sistema que os produz. A expulsão de Deus da educação da família levou embora todos os germes de respeito, amor, concórdia e boa ventura, além de trazer a ruína eterna, que se prepara, quase inevitavelmente, para tais almas desventuradas.
E para nos cingirmos apenas ao presente, a cujos limites estreitos costuma reduzir-se o olhar do vulgo, declaramos que as virtudes domésticas não podem reinar, absolutamente, num lugar de onde se proscreveu, como ente inútil, o único inspirador de todas elas, que é o temor de Deus. Esse é o laço que a tudo une, o freio que a tudo sujeita, o contrapeso que a tudo equilibra, o norte que a tudo guia, o calor que a tudo vivifica, a esperança celestial a que tudo dulcifica. Na prosperidade nos faz sóbrios, na adversidade resignados, no gozo moderados, no mando discretos, na obediência humildes, na fidelidade constantes, no trabalho animosos. Para a infância é o mestre, para a adolescência o companheiro, para a maturidade o báculo e apoio, para a decrepitude a única esperança e consolo. “A piedade para tudo é útil”, disse o Apóstolo, pietas ad omnia utilis est, “tendo a promessa da vida presente e da futura”: promissionem habens vitæ quæ nunc est, et futuræ.
Por onde se vê que pouco trabalha para o bem dos seus o pai que não procura, antes de tudo, formá-los na piedade sólida e no temor de Deus, fazendo da casa a escola prática de tais virtudes. Pouco importa que tenha todo o resto em ordem: ao edifício que levanta falta o alicerce essencial, e portanto a mais ruína desastrosa é inevitável e certa. Essa ausência de solidez e coesão sobrenatural não se compensa com os procedimentos pedagógicos mais refinados que a brilhante França, a atilada Inglaterra ou a filosófica Alemanha trazem diariamente à nossa terra. Essas pedagogias humanas poderão dar formas à educação, mas não lhe darão fundo, porque para isso é preciso ter a chave do coração, e somente a Religião verdadeira é quem a tem. Os instintos poderosos e ferozes que prematuramente (sobretudo neste nosso século de precocidades) arrastam o jovem para o orgulho, a emancipação, o gozo de todas as liberdades, não podem ser vencidos; esses instintos poderosos e arrebatados não podem ser vencidos senão com algo que seja mais poderoso, e que tenha garras mais fortes que as suas para mantê-los cativos e acorrentados. E esse algo não existe abaixo de Deus; porque abaixo de Deus não há coisa que o homem não possa, num momento de orgulho, olhar como um igual. Assim vemos que, diante do furor das paixões desencadeadas na idade juvenil, cede como débeis arbustos arrastados por um rio impetuoso a fidelidade ao sangue, os olhares do interesse material, a lembrança dos benefícios recebidos, as máximas de moral universal tão pomposas quanto ocas e estéreis; numa palavra, tudo o que por si só oferece uma educação meramente humana e fundada em motivos meramente humanos. Só exerce alguma força sobre o homem aquilo que é superior ao homem; aquilo que flutua no naufrágio de todo o resto; aquilo que, ainda que por um instante pareça coberto pelas águas turvas, permanece ao menos como um penhor de arrependimento futuro.
Vejam, pois, como se perde miseravelmente o tempo e o trabalho de tantos pais desorientados, que pretendem que a família seja boa e morigerada sem contar com Deus para nada. A realidade quase sempre confirma neles aquela sábia sentença do salmista: “Se o Senhor não edificar a casa, é em vão que trabalham os que a edificam” (Sl 126, 1). Os pais que professam e praticam um sistema educacional tão ruim lavram a desventura temporal e eterna dos filhos, e com a deles a própria. Educam tão somente para a carne, portanto a carne prevalece e orgulha-se de todas as suas vilezas e ignomínias. Eles não cuidam da alma, imagem de Deus, de forma que os filhos costumam apresentar essa soberana imagem completamente obscurecida e desfigurada. Essa educação é uma horrenda calamidade dos nossos tempos, sem dúvida a pior entre todas as que tornam tão desastroso o nosso presente estado social.
VI. Do que poderíamos chamar de laicismo na família.
A última novidade revolucionária, a moda do dia em educação, é o laicismo, ou seja, a escola sem Deus e sem Religião. Mas o que mais espanta é ver que muitos pais e mães, que não podem ouvir falar na escola laica e dos professores laicos sem horror, tornam-se eles mesmos pais laicos e fazem laica a sua casa, sem sentir com isso escrúpulo no coração, nem vergonha no rosto. A menos que se tenha em conta uma estranha incoerência, tão comum ao homem, não se compreende como o laicismo da escola os horroriza tanto, se tão pouco os horroriza o laicismo na família, que é sem dúvida muito pior.
Advirta-se uma circunstância. A desculpa com que os pedagogos laicos pretendem abonar seu sistema funesto de prescindir na escola de toda idéia de Deus e de Religião é a de que essa idéia, dizem eles, diz respeito à missão especial do pai e da mãe de família, ou ao sacerdote no templo, não competindo aos mestres ingressar em outra esfera senão a puramente literária e científica. Por seu lado, os pais e mães que chamaremos de laicos dizem algo similar, porém em sentido inverso. Eles dizem que podem desencarregar-se da obrigação de ensinar a piedade aos filhos, pois para isso vão eles à escola e ao colégio, onde essas coisas lhes são ensinadas. De sorte que, conforme vão progredindo as idéias modernas sobre a questão, teremos o caso, certamente ridículo, dos mestres confiando a educação religiosa das crianças aos pais, e estes, por sua vez, confiando-a aos mestres, resultando inevitavelmente em menino e menina sem religião. Assim se vê o modo singular e engenhoso de Satanás urdir suas artimanhas, e como são ingênuos e simplórios muitos católicos da geração presente, que nunca as percebem.
Não, pais e mães descuidados, não existe desculpa para os senhores, mas sim grave, gravíssima responsabilidade. Se são más e abomináveis as escolas laicas, onde o mestre, que é uma espécie de assalariado a serviço do diabo, cuida de envenenar a infância inexperiente com uma educação naturalista e atéia, muito mais abominável e satânica é a família laica, onde a alma terna do menino ou da menina se vê privada do último refúgio de moralidade e crença que poderia ainda salvá-la da atmosfera corruptora da má educação escolar. O mundo lhe dá peçonha a mancheias em todas as partes; em casa, ao menos se poderia preparar um antídoto eficaz. Se essa atmosfera estiver também peçonhenta e adulterada, onde procurará socorro?
Por desgraça, há tanto desse laicismo doméstico na sociedade presente, que já ninguém se comove, de tão familiarizados que estamos com ele. Quem diria? São mestres e mestras laicos, sem perceber, uma infinidade de pais e mães que se têm talvez na conta de bons e honrados cristãos! E com isso servem à Revolução e à Maçonaria, como se para isso a seita lhes desse a paga de tantos ou quantos dinheiros por semana ou por mês como preço de seu ofício de corromper! E mansamente, eles que tanto dizem amar e vigiar os filhos, infundem-lhes nas almas o ateísmo prático que as paixões, os maus livros, as companhias perversas se encarregarão dia após dia de converter em doutrina! Pais! Mães! Os senhores já meditaram um minuto sequer, em toda a sua vida, no caráter gravíssimo de que se reveste a mera negligência em assunto tão vital? Pais! Mães! Se o maior perigo dos nossos dias é a escola teórica sem Deus, qual não será o imenso perigo dessa outra escola prática sem Deus que é a família sem piedade?
Dizíamos sem pensar muito, somente pela força do convencimento, que entre um laicismo e outro não sabíamos qual era o pior e de consequências mais espantosas. Olhando bem, porém, não há dúvidas de que podemos considerar mil vezes mais desastroso o laicismo da família que o da escola, porque a influência boa ou má daquela é mil vezes mais eficaz que a desta, e por muitíssimas razões. Primeiro, porque a criança experimenta a influência da família muito antes de experimentar a da escola, e sabe-se que, em matéria de impressões, as primeiras costumam ser mais decisivas ou, no mínimo, mais permanentes. Além disso, a criança vive quase sempre na atmosfera da família, e na da escola somente um pouco por dia. Além disso, porque a autoridade e a força moral que a criança geralmente reconhece no pai ou na mãe é infinitamente superior à que o mais fiel discípulo pode jamais reconhecer no mais respeitável dos mestres. E, finalmente, porque as noções religiosas que a piedade enraíza profundamente no coração da terna infância são de uma tal índole que, se a suavíssima e poderosíssima voz da autoridade familiar não as grava, somente a custo poderão ser infundidas.
Mas este último ponto oferece campo vasto a novas reflexões, que exigem um capítulo à parte.
VII. Por onde se demonstra o que foi dito anteriormente.
Por que uma casa sem práticas de piedade é uma casa sem Religião ou laica? Porque na casa a única forma cabível de ensinamento religioso é a prática piedosa.
Vejamos. Nem o caráter da Religião, nem o caráter dos pais, nem o caráter dos filhos consentem outro ensinamento religioso na família senão sob a forma do ensinamento prático, ou seja, das obras de piedade.
O caráter da Religião não o consente. A Religião como ciência é complicadíssima, vasta, profunda. Só consegue estudá-la em todo o conjunto uma vida inteira dedicada unicamente a isso; só consegue sondar além da superfície das suas profundezas o engenho perspicaz. Nada é tão grande e incomensurável quanto esse imenso saber que abarca todas as relações e mistérios de Deus, do homem e da eternidade. No entanto, a Religião deve ser patrimônio de todos, e todos devem possuí-la como o principal meio de felicidade presente e futura; todos, incluindo os mais rudes, dos mais alheios a toda investigação científica e até a mais vulgar alfabetização. Como se podem, pois, conciliar esses extremos? De um modo muito simples: ensinando-lhes bem a prática, até mesmo quem nem de longe é capaz de compreender a divina doutrina por trás dela; crendo, como também devemos crer todos, sob a fé de Deus e da Igreja, comunicada à sua débil inteligência por meio dos pais, que são o órgão de maior confiança que a criança pode ter neste mundo; e praticando e vendo a prática diária daquilo em que se crê. Esse é o meio mais seguro para que esses ensinamentos sobrenaturais desde cedo se identifiquem e se fundam com a vida natural num só hábito. E façamos uma observação. Essa mesma prática, que alguém talvez qualifique como inconsciente, traz consigo uma certa luz para a inteligência de quem amorosa e sinceramente a observa, até o ponto em que, iluminados por ela, muitos dos rudes e ignorantes chegam a entrever e a vislumbrar, em matéria de Religião, arcanos aos quais nunca chegou a ciência adquirida nos livros. A graça de Deus se compraz em dar-se aos pequeninos e aos pobres de espírito, e em fazer refletir seus esplendores principalmente sobre os limpos de coração, A prática fiel, humilde e amorosa da Religião é, pois, caminho para se saber muitas coisas a respeito dela, e é a única coisa indispensável tanto para o comum dos cristãos quanto para os que a estudam. Deve, pois, ser religiosa a família. Com maior clareza: uma vez que não deve ser laica nem atéia, o que dá no mesmo, deve ser piedosa. E deve ser piedosa pelo uso e pela repetição, até formar o hábito dos atos de piedade, o que o próprio caráter da Religião exige.
Mas o caráter dos pais também o exige. Os pais são os mestres natos da família. E quantos pais há que possam exercer esse delicado magistério, sem valer-se da eloquência e das razões do bom exemplo? Mesmo os pais mais instruídos não têm geralmente instrução nesse ramo da ciência religiosa, nem chegam a ser catedráticos medianos nela. Ou não serão, pois, mestres em sua casa, ou o serão do único modo que lhes é possível, ou seja, ensinando na prática aquilo que não podem ensinar de outro modo. E se afirmamos isso dos pais que têm conhecimentos regulares de letras e ciências humanas, que diremos então da imensa generalidade dos pais que nem isso têm, que mal sabem ler e escrever, ou que nem a isso chegam? E, no entanto, mestres devem ser, com responsabilidades e deveres iguais aos pais mais instruídos. Somente, pois, por meio da piedade, isto é, da prática fiel e constante dos atos de Religião em família, é que ela está capacitada a receber o ensinamento cristão de que necessita.
Finalmente, exige-o também o caráter dos próprios filhos. Eles devem receber esse ensinamento numa idade em que seja impossível adquiri-la de outro modo, senão por aquele que procede da impressão, e que se conserva e perpetua pelo hábito. Santo Agostinho ou Santo Tomás em pessoa, se estivessem encarregados de doutrinar na fé crianças de certa idade, dificilmente poderiam tirar outro fruto de suas inteligências insipientes. Não há ali força de abstração, não há ali destreza de raciocínio, não há olhar compreensivo e generalizador: só há terra disposta a receber as sementes que a seu tempo germinarão e crescerão. Essas sementes serão principalmente (além do hábito sobrenatural da fé infundido pelo Batismo) os hábitos criados pela autoridade do exemplo: hábito de crer, hábito de venerar, hábito de sujeitar-se, hábito de mortificar-se e outros semelhantes, eis aqui os cimentos da educação religiosa. Melhor: eis aqui quase toda a educação religiosa possível para a tenra idade. E como isso só é factível pelo exemplo constante da vida de piedade na família, eis aqui a necessidade da prática contínua dos atos piedosos em seu seio.
Mais brevemente, e resumindo:
Se a Religião deve ser ensinada para certa idade e classe de pessoas, só pode ser ensinamento prático. Se os pais devem ser mestres, só podem ser mestres práticos. Se os filhos devem ser discípulos, só podem ser discípulos ao modo prático.
Logo, não cabe outro ensinamento religioso na família senão o ensinamento por meio da piedade.
Logo, a piedade é a principal necessidade da família, e portanto é o primeiro dever dos indivíduos, especialmente dos chefes dela.
VIII. Acrescenta-se um exemplo a modo de conclusão.
Um correspondente, amigo nosso, residente numa das cidades mais belas e populosas da Andaluzia, levou tão a sério, segundo nos contou, essa piedade em família que vimos há tanto tempo pregando aos nossos leitores, que nos pareceu bem dar-lhes esse exemplo formoso como fim e coroa dos presentes capítulos.
O citado amigo, tão ilustrado quanto fervoroso, chegou a estabelecer em sua casa o que ele chama, com propriedade, de culto doméstico, o qual celebra com a exatidão e minúcia mais edificantes.
Começou por escolher um lugar especialmente dedicado a esses atos de piedade privada, e ali ergueu um oratório. Pôs nele as imagens dos santos padroeiros da família: a Imaculada Conceição, São José, São Roque e São Luís, presididos pelo Sagrado Coração de Jesus. Enfeitou-o com todo o gosto e primor que se pode permitir uma família sem muitas posses; gosto e primor que todos os lares poderiam mostrar para com Deus, já que os mostram tão facilmente no adorno de suas casas e pessoas, e até de seus cães e cavalos.
Todo dia aquele bom pai se reúne com sua família e criados naquele lugar para a prática da piedade. A oração do Santo Rosário e uma pequena leitura espiritual são as ações usuais de cada dia; nos dias de festa, se acrescenta alguma coisa a essa medida cotidiana. Os dias mais solenes do ano são festejados com iluminação mais esplêndida e com cantos que um dos próprios filhos acompanha ao harmônio. Uma tabela a modo de escala fixa na parede do oratório assinala os dias que poderíamos chamar de clássicos, e as diferentes funções com que devem ser celebrados os dias de preparação, as oitavas e novenas, os meses inteiros consagrados a São José, à Virgem de Maio, ao Sagrado Coração ou às almas benditas do Purgatório. O pai é, por direito natural, o oficiante dessa pequena Igreja doméstica, verdadeira filial da paroquial, da qual é obscuro e modesto satélite auxiliar.
Eis aqui o que é organizar a piedade na família de modo a nada deixar a desejar. Mas, sem precisar chegar a essa perfeição e primor de detalhes, não é certo que todo pai e mãe verdadeiramente cristãos podem providenciar em sua casa um culto doméstico análogo, senão igual, ao que acabamos de indicar? Que dificuldades apresenta, além da preguiça, a oração do Santo Rosário? Que custa ler por um quarto de hora a cada noite para a família reunida umas páginas de um livro apropriado, como As Vidas dos Santos, as obras do Padre Granada, que todo espanhol devia saber de memória, ou o popular e nunca assaz elogiado Exercício de Perfeição do Padre Rodríguez? Que perderiam os filhos e filhas se conhecessem, por meio da leitura do pai, todas ou quase todas as obras dos nossos admiráveis ascetas, o severo Nieremberg, a jovial Teresa de Jesus, o familiar e castiço Rivadeneira, alternadas com a leitura dos principais autores modernos, que a apologética católica dá à luz todos os dias?
Antigamente esse era o uso na Espanha, e era a esse uso sem dúvida que a antiga família espanhola devia a proverbial severidade e o caráter austero. São as idéias que dão a têmpera devida aos costumes, e as idéias, tanto na casa quanto na cidade, são as que formaram nossos atuais costumes civis ou domésticos, tão frouxos, tão desmazelados. Quem quiser restaurar a ambas e voltar à ordem primitiva deve começar a reformá-las sobre a base da piedade sólida, sem a qual edifica-se sobre a areia qualquer construção que se queira levar a cabo.