Category: Santo Tomás de Aquino
O segundo discute–se assim. – Parece que a soberba do primeiro homem não consistiu em ter desejado ser semelhante a Deus.
1. – Pois, ninguém peca desejando o que por natureza lhe cabe. Ora, assemelhar–se a Deus cabe ao homem pela sua natureza mesma conforme à Escritura: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Logo, não pecou desejando assemelhar–se a Deus.
2. Demais. – Parece que o primeiro homem desejava assemelhar–se a Deus, por alcançar a ciência do bem e do mal; pois, foi isso o que lhe sugeriu a serpente, quando disse: Sereis como uns deuses, conhecendo o bem e o mal. Ora, o desejo da ciência é natural ao homem, segundo aquilo do Filósofo: Todos os homens naturalmente desejam saber. Logo. não pecou desejando assemelhar–se com Deus.
3. Demais. – Nenhum homem sábio escolhe o impossível. Ora, o primeiro homem era dotado de sabedoria, segundo aquilo da Escritura: Encheu–os da luz da inteligência. Ora, todo pecado consistindo no apetite deliberado que é a eleição, parece que o primeiro homem não pecou por ter desejado algo de impossível. Ora, é impossível ao homem ser semelhante a Deus, conforme à Escritura: Quem dentre os heróis é semelhante a ti, Senhor? Logo, o primeiro homem não pecou por desejar assemelhar–se com Deus.
Mas, em contrário, aquilo da Escritura – Paguei então o que não tinha roubado – diz Agostinho: Adão e Eva quiseram arrebatar a divindade e perderam a felicidade.
SOLUÇÃO. – A semelhança pode ser de duas espécies. – Uma consiste numa completa equiparação. E essa semelhança com Deus os nossos primeiros pais não a desejaram; porque assemelhar–se com Deus desse modo não é objeto da apreensão, sobretudo do sábio. Mas há outra semelhança, a de imitação, possível à criatura de Deus e consistente numa certa participação da semelhança dele, ao modo da criatura. Pois, diz Dionísio: Os mesmos seres são semelhantes a Deus e dele dissemelhantes; semelhantes, pela imitação que lhes é possível; dissemelhantes, por não ter o efeito tudo quanto tem a causa. Ora, qualquer bem existente na criatura, é uma certa semelhança participada do primeiro bem. Por onde, quando o homem deseja um bem espiritual, fora da medida conveniente, como dissemos, por isso mesmo e por consequência deseja desordenadamente assemelhar–se com Deus.
Devemos, porém considerar, que o apetite tem propriamente por objeto um bem não possuído. Ora, o bem espiritual, pelo qual a criatura racional participa da semelhança divina, pode ser considerada a tríplice luz. – Primeiro, no ser mesmo natural dele. E tal semelhança foi, desde o princípio da criação, impressa no homem, do qual diz a Escritura, que Deus fez o homem à imagem e semelhança sua; e no anjo do qual também ela diz: Tu eras o selo da semelhança. – Segundo, quanto ao conhecimento. E também essa semelhança o anjo a recebeu quando foi criado; por isso, as palavras suprareferidas, depois de dizerem – Tu eras o selo da semelhança – imediatamente acrescentam Cheio de sabedoria. Mas, o primeiro homem, ao ser criado, ainda não tinha alcançado essa semelhança em ato, mas só em potência. – Terceiro, quanto ao poder de agir. E essa semelhança ainda não a tinham alcançado, nem o anjo nem o homem, no princípio mesmo da criação; porque ambos deviam ainda exercer a sua atividade, para chegarem à felicidade.
E portanto, tendo um e outro, isto é, o diabo e o primeiro homem, desejado desordenadamente a semelhança divina, nem um nem outro pecou desejando a semelhança de natureza. Mas, o primeiro homem pecou, principalmente, desejando assemelhar–se com Deus, pela ciência do bem e do mal, à sugestão da serpente. De modo que, por virtude da própria natureza, determinasse para si o que fosse bom e mau, no agir; ou ainda, que conhecesse por si mesmo o que houvesse de ser para si bom ou mau. E, secundariamente, pecou desejando assemelharse com Deus, pelo seu poder próprio de agir, de modo que em virtude da própria natureza, agisse para conseguir a felicidade. Donde o dizer Agostinho: No espirito da mulher habitava o amor do próprio poder. Mas, o diabo pecou desejando assemelhar–se com Deus pelo poder. Por isso diz Agostinho, que queria gozar antes do seu poder, do que do de Deus. Contudo do certo modo tanto um como outro desejava equiparar–se com Deus. isto é, enquanto que cada um queria depender de si mesmo, desprezada a ordem do preceito divino.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A objeção colhe, quanto à semelhança de natureza; pelo desejo da qual o homem não pecou, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Desejar assemelhar-se com Deus, absolutamente, pela ciência, não é pecado; mas, desejar essa semelhança desordenadamente, isto é, além da medida conveniente, é pecado. Por isso, àquilo da Escritura – ó Deus, quem é semelhante a ti? – diz Agostinho: Quem quer só depender de si, quer assemelhar–se perversamente a Deus, que de ninguém depende; tal o diabo, que não quis se lhe sujeitar; e o homem, que, sendo servo, não lhe quis obedecer ao preceito.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A objeção colhe quanto à semelhança de equiparação.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a soberba não foi o primeiro pecado do primeiro homem.
1. – Pois, diz o Apóstolo: Pela desobediência dum só homem foram muitos feitos pecadores. Ora, o primeiro pecado do primeiro foi o que constituiu todos os homens em pecado original. Logo, a desobediência foi o primeiro pecado do primeiro homem e não a soberba.
2. Demais. – Ambrósio diz, que o diabo tentou a Cristo na mesma ordem em que fez cair o primeiro homem. Ora, Cristo foi primeiramente tentado pela gula, quando o diabo lhe disse, conforme se lê no Evangelho: Se és filho de Deus, dize que estas pedras se convertam em pães. Logo, ri primeiro pecado do primeiro homem não foi a soberba, mas, a gula.
3. Demais. – O homem pecou por sugestão do diabo. Ora, o diabo, quando tentou o homem, prometeu–lhe a ciência, como se lê na Escritura. Logo, a primeira desordem do homem veio do desejo da ciência, causado pela curiosidade. Logo, o primeiro pecado do homem foi a curiosidade e não, a soberba.
4. Demais. – Aquilo do Apóstolo – A mulher foi enganada em prevaricação – diz a Glosa: O Apóstolo designou propriamente essa sedução, pela qual se reputou verdadeira a falsidade que se tinha persuadido, a. saber, que Deus os proibiu de tocar naquela árvore, por saber que se a tocassem seriam como deuses; como se, tendo–os feito homens, lhes invejasse a divindade. Ora, crê–lo constitui infidelidade. Logo, o primeiro pecado do homem foi o de infidelidade e não, o de soberba.
Mas, em contrário, a Escritura: O princípio de todo pecado é a soberba. Ora, o pecado do primeiro homem foi o princípio de todos os pecados, segundo aquilo do Apóstolo: Por um tomem entrou o pecado neste mundo. Logo, o primeiro pecado do homem foi o de soberba.
SOLUÇÃO. – Muitos movimentos podem concorrer para um mesmo pecado; entre os quais é por natureza o primeiro pecado aquele no qual primeiro se manifesta a desordem. Ora, é claro, que a desordem se manifesta primeiro no movimento interior da alma, que no ato exterior do corpo; pois, como diz Agostinho; não perde o corpo a sua santidade enquanto a alma conserva a sua. Ora, entre os movimentos íntertores, primeiro se move o apetite para o fim do que para os meios, buscados por causa do fim. Por onde, o homem praticou o seu primeiro pecado pelo primeiro desejo que pode ter de um fim desordenado. Ora, o homem estava posto num estado de inocência em que nenhuma rebelião havia da carne contra o espírito. Portanto, o seu primeiro desejo desordenado não podia ter tido por objeto um bem sensível, ao qual tendesse a concupiscência da carne, fora da ordem da razão. Donde se conclui, que o primeiro apetite humano desordenado consistiu no desejo desordenado de um bem espiritual. Ora, este não o teria ele desejado desordenadamente se o tivesse desejado na medida conveniente estabelecida pela lei divina. Donde resulta que o primeiro pecado do homem consistiu no deseja de um certo bem espiritual fora da medida conveniente. Ora, isto constitui a soberba. Por onde é manifesto, que o primeiro pecado do primeiro homem foi a soberba.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A desobediência à ordem divina o homem não a quis, em si mesma; pois, tal não podia dar–se senão pressuposta a desordem da vontade. Donde resulta, que ele a quis por causa de alguma outra coisa. Ora, a primeira vontade desordenada, que teve, foi a da sua excelência própria. Portanto, a desobediência foi nele causada pela soberba. E tal é a opinião de Agostinho, quando diz que o homem, exaltado pela soberba, obedecendo à persuasão da serpente, desprezou os preceitos de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. – No pecado dos nossos primeiro pais teve também lugar a gula. Assim, diz a Escritura: Viu a mulher, que a árvore era boa para comer e formosa aos olhos e deleitável à vista; e tirou do fruto dela e comeu. Contudo, não foi a bondade mesma e a formosura do fruto o primeiro motivo de pecar, mas antes, a persuasão da serpente, que disse – Os vossos olhos se abrirão e vós sereis como uns deuses: e, pelo desejar, a mulher incorreu em soberba. Por onde, o pecado da gula derivou do pecado da soberba.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O desejo, que os nossos primeiros pais tiveram da ciência, foi–lhes causado pelo desejo desordenado da excelência. Por isso, a serpente começou por lhes anunciar: Vós sereis como uns deuses; ao que acrescentou – Conhecendo o bem e o mal.
RESPOSTA À QUARTA. – Como diz Agostinho, a mulher não teria acreditado, fundada nas palavras da serpente, que Deus os privara, a Adão e a ela, de alguma causa boa e útil se já não existisse nela aquele amor do próprio poder e uma certa presunção de si. O que não se deve entender no sentido de uma soberba precedente à persuasão da serpente, mas, no de uma exaltação, que lhe invadiu a alma, logo depois da persuasão da serpente, donde lhe resultou a crença na verdade do que lhe dissera o demónio.
O oitavo discute–se assim. – Parece que a soberba deve ser considerada como vício capital.
1. – Pois, Isidoro e Cassiano enumeram a soberba entre os vícios capitais.
2. Demais. – Parece que a soberba é o mesmo que a vanglória, pois, ambas buscam a excelência. Ora, a vanglória é considerada como vício capital. Logo, também a soberba deve ser considerada como vício capital.
3. Demais. – Agostinho diz que a soberba gera a inveja e nunca existe sem essa companheira. Mas a inveja é considerada como vício capital, como se disse. Logo, com muito maior razão a soberba.
Mas, em contrário, Gregório não enumera a soberba entre os vícios capitais.
SOLUÇÃO. – Como do sobredito resulta, a soberba pode ser considerada a dupla luz: primeiro, em si mesma, isto é, como um determinado pecado especial; segundo, enquanto tem uma certa e universal influência sobre todos os pecados. Ora, vícios capitais consideram–se certos pecados especiais de que nascem muitos gêneros de pecados. Por isso alguns, considerando a soberba, enquanto um certo especial pecado, a enumeravam entre os outros vícios capitais. Mas, Gregório, levando em conta a influência universal que ela exerce sobre todos os vícios, como dissemos, não a enumera entre os vícios capitais, mas a considera como a mãe e a rainha de todos os vícios. Por isso diz: A soberba como rainha dos vícios, quando venceu e dominou plenamente o coração, logo o entrega, para o devastarem, aqueles sete vícios principais, que são como uns chefes seus, donde nasce a multidão dos pecados.
Donde se deduz clara a RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A soberba não é o 'mesmo que a vanglória, mas, é lhe a causa. Pois, a soberba deseja uma excelência desordenada; ao passo que a vangloria deseja a manifestação da excelência.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Do fato de a inveja, que é um vício capital, nascer da soberba, não se segue seja ela um vício capital; mas, que é mais principal que os vícios capitais.
O sétimo discute–se assim. – Parece que a soberba não é o primeiro de todos os pecados.
1. – Pois, o que é primeiro se manifesta em tudo o que se lhe segue. Ora, nem todos os pecados são acompanhados da soberba e nem dela nascem; assim, como diz Agostinho, fazemos muitos atos maus, sem os praticarmos por soberba. Logo, a soberba não é o primeiro de todos os pecados.
2. Demais. – A Escritura diz: O princípio da soberba do homem é o apostatar de Deus. Logo, a apostas ia de Deus é anterior à soberba.
3. Demais. – Parece ser a ordem dos pecados correlata à das virtudes. Ora, a primeira das virtudes não é a humildade, mas, a fé. Logo, a soberba não é o primeiro dos pecados.
4. Demais. – O Apóstolo diz: Os homens maus e impostores irão em pior; donde se vê que o princípio da malícia do homem não está no máximo dos pecados. Ora, a soberba é o máximo dos pecados, como se disse. Logo, não é o primeiro dos pecados.
5. Demais – O aparente e ficto é posterior à realidade verdadeira. Ora, como diz o Filósofo, o soberbo finge coragem e audácia. Logo, o vicio da audácia é anterior ao da soberba.
Mas, em contrário, a Escritura: O princípio de todo pecado é a soberba.
SOLUÇÃO. – O essencial é em todos os gêneros, o que vem em primeiro lugar. Ora, como dissemos a aversão de Deus, que formalmente torna o pecado essencialmente completo, implica, por essência, a soberba; ao passo que só por consequência, os outros pecados. – Donde vem que a soberba é por natureza o primeiro dos pecados e é também o princípio de todos, como dissemos quando tratamos das causas do pecado, quanto à aversão, elemento mais principal do pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. Diz–se que a soberba é o princípio de todo pecado, não porque cada pecado, singularmente, proceda da soberba, mas por ser natural a cada gênero de pecado nascer dela.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz–se que o apostar de Deus é o início da soberba humana, não por ser um determinado pecado, distinto da soberba, mas, por ser a primeira parte dela. Pois, como dissemos, a soberba diz respeito principalmente à sujeição divina, a qual ela despreza; e, por consequência, o soberbo despreza a sujeição à criatura, por causa de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os vícios e as virtudes não hão de necessariamente pertencer à mesma ordem. Pois, o vicio corrompe a virtude. Ora, o que vem em primeiro lugar, na ordem da geração, vem em último na da corrupção, Portanto, assim como a fé é a primeira das virtudes, assim, a infidelidade é o último dos pecados, à qual às vezes nos conduzem os outros pecados. Por isso, àquilo da Escritura – Arruinai, arruinai nela até aos fundamentos – diz a Glosa, que a infidelidade se infiltra pelo acúmulo dos pecados. E o Apóstolo diz: Alguns, repelindo a boa consciência, naufragaram na fé.
RESPOSTA À QUARTA. – Diz–se que a soberba é o gravíssimo dos pecados, considerando–se a essência mesma do pecado, por onde se lhe mede a gravidade. E por isso a soberba causa a gravidade dos outros pecados. Por onde, pode se dar que, em comparação com a soberba, outros pecados sejam mais leves que ela cometidos por ignorância ou fraqueza. Mas, dentre os pecados mais graves, o primeiro é a soberba, como a causa agravante dos outros. E como o que é primeiro, na causalidade dos pecados, é o que em último lugar desaparece, por isso, àquilo da Escritura – Serei purificado no delito máximo diz a Glosa: Isto é, do delito da soberba, o último dos que voltam para Deus e o primeiro, dos que dele se apartam.
RESPOSTA À QUINTA. – O Filósofo mostra a soberba simulando a força, não que ela só nisso consista; mas porque, quando nos mostramos corajosos, julgamos mais facilmente poder conseguir a excelência entre os homens.
O sexto discute–se assim. – Parece que a soberba não é o gravíssimo dos pecados.
1. – Pois, um pecado é considerado tanto mais leve quanto mais dificilmente o evitamos. Ora, dificilmente evitamos a soberba, porque, como diz Agostinho, os outros pecados consistem nas más obras praticadas, ao passo que a soberba é uma insídia às boas obras, para fazê–las perecer. Logo, a soberba não é o gravíssimo dos pecados.
2. Demais. – O maior mal se opõe ao maior bem, como diz o Filósofo. Ora, a humildade, a que se opõe a soberba, não é a máxima das virtudes, como se estabeleceu. Logo, os pecados, como a infidelidade, o desespero, o ódio de Deus, o homicídio e outros semelhantes, opostos às maiores virtudes, são mais graves que a soberba.
3. Demais. – Um mal maior não pode ser punido por um menor. Ora, às vezes, a soberba é punida por outros pecados, como está claro no Apóstolo, quando diz, que os filósofos, por causa do orgulho do coração, foram entregues a um sentimento depravado, para que fizessem coisas que não convêm. Logo, a soberba não é o gravíssimo dos pecados.
Mas, em contrário, àquilo da Escritura. – Os soberbos obravam sem cessar, iniquamente – diz a Glosa: O máximo pecado do homem é a soberba.
SOLUÇÃO. – No pecado devemos atender a dois elementos, a saber, a conversão para um bem efêmero, que constitui a matéria do pecado, e a versão de um bem eterno, que é a razão formal e completiva do pecado. Ora, quanto à conversão, a soberba nada tem que a constitua no máximo dos pecados, porque o enaltecimento, desordenadamente desejado pelo soberbo, não implica por natureza uma repugnância máxima ao bem da virtude. Mas, quanto à aversão, a soberba encerra a máxima gravidade. Porque, pelos outros pecados, o homem se aparta de Deus por ignorância, por fraqueza ou pelo desejo de qualquer outro bem; ao passo que a soberba implica a versão de Deus pelo fato mesmo de o homem não querer se lhe submeter e à sua lei. Por isso, Boécio diz, que todos os vícios nos afastam de Deus, mas só a soberba é a que se lhe opõe. Pelo que também em especial diz a Escritura – Deus resiste aos soberbos. Por onde, a aversão, de Deus e dos seus preceitos, que é como a consequência dos outros pecados, pertence, essencialmente, à soberba, cujo ato é o desprezo de Deus. Ora, como o essencial é anterior ao acidental, resulta por consequência ser a soberba o gravíssimo dos pecados, no seu gênero, porque excede a todos pela aversão, a qual formalmente completa o pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – De dois modos podemos afrontar a dificuldade de evitar um pecado. – Primeiro, pela veemência do ataque; assim, a ira, pelo seu ímpeto, nos ataca veementemente; e ainda é mais difícil resistir à concupiscência, pela sua conaturalidade, corno diz o Filósofo. E essa dificuldade de evitar o pecado diminui–lhe a gravidade, pois, quanto menor é o ímpeto da tentação a que sucumbimos, tanto mais gravemente pecamos, como diz Agostinho. – De outro modo, um pecado pode ser difícil de evitar por existir em estado latente. E, deste modo, é difícil evitar a soberba, pois, ela tira ocasião de se exercer mesmo do próprio bem. Donde o dizer Agostinho sinaladamente, que ela arma insídias às boas obras. E a Escritura: Neste caminho, por onde eu andava, os soberbos esconderam–me o laço. E portanto o movimento da soberba, infiltrando–se subrepticiamente, não tem a máxima gravidade, antes de percebido pelo juízo da razão. Mas, depois de percebido por este, então facilmente o evitamos, quer considerando a nossa fraqueza própria, conforme aquilo da Escritura – Porque se ensoberbece a terra e a cinza; quer também considerando a grandeza divina, segundo aquele outro lugar – Por que se incha o teu espírito contra Deus? Quer enfim considerando a imperfeição dos bens por que nos ensoberbecemos, segundo o passo: Toda a carne é feno e toda a sua glória é como a flor do campo; e, mais abaixo: Todas as nossas justiças são como o pano duma mulher menstruada.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A oposição entre o vício e a virtude se funda no objeto considerado relativamente à conversão. Ora, por aí, nada tem a soberba para ser o máximo dos pecados, como nada tem a humildade para ser a máxima das virtudes. Mas, considerada a aversão, é o máximo, como o que torna grandes os outros pecados. Pois, o pecado da infidelidade torna–se mais grave quando procede do desprezo da soberba, do que quando vem da ignorância ou da fraqueza. O mesmo devendo dizer–se do desespero e de outros semelhantes.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como os silogismos conducentes ao absurdo às vezes nos convencem por nos levarem a uma conclusão mais manifestamente inadmissível, assim também, para vencer a nossa soberba, Deus nos pune deixando–nos cair nos pecados carnais, que, embora menores, contudo encerram uma torpeza mais manifesta, Por isso diz Isidoro: A soberba é pior que todos os vícios; quer por ser praticada pelas pessoas mais elevadas e principais, quer por nascer das obras da justiça e da virtude em que menos lhe sentimos a culpa. Ao passo que a luxúria da carne é o primeiro de todos porque, imediatamente e em si mesma, é de todos o mais torpe. E contudo nos juízos de Deus, é menor que a soberba. Por isso o soberbo, que não sente a sua soberba, cal na luxúria da carne afim de levantar–se, humilhado pela confusão. Por onde fica também clara a gravidade mesma da soberba. Pois, assim como o médico experiente deixa, como remédio de um mal maior, o doente laborar num menor, assim também o pecado da soberba revela–se mais grave por isso mesmo que Deus, para lhe dar remédio, deixa–nos cair em outros pecados.
O quinto discute–se assim. – Parece que a soberba não é pecado mortal.
1. – Pois, àquilo da Escritura – Senhor meu Deus, se eu fiz isso – diz a Glosa: isto é, o pecado universal, que é a soberba. Se, portanto, a soberba fosse um pecado mortal, todo pecado seria mortal.
2. Demais. – Todo pecado contraria à caridade. Ora, parece que a soberba não contraria à caridade, nem quanto ao amor de Deus, nem quanto ao amor do próximo. Pois, a excelência, que desejamos desordenadamente, pela soberba, nem sempre contraria à glória de Deus ou a utilidade do próximo. Logo, a soberba não é pecado mortal.
3. Demais. – Todo pecado mortal contraria à virtude. Ora, a soberba não contraria a virtude, mas antes, nasce dela; pois, como Gregório diz, por vezes o homem se orgulha de virtudes excelsas e celestes. Logo, a soberba não é pecado mortal.
Mas, em contrário, Gregório diz ser a soberba o sinal evidentíssimo dos réprobos; e ao contrário, a humildade, dos eleitos. Ora, ninguém se torna réprobo por pecados veniais. Logo, a soberba não é pecado venial, mas, mortal.
SOLUÇÃO. – A soberba se opõe à humildade. Ora, o objeto próprio da humildade é tornarnos sujeitos a Deus, como dissemos. Por onde e ao contrário, pela soberba propriamente fugimos a essa sujeição, exaltando–nos mais do que no–lo permite a regra e a medida divina, contrariamente ao dito do Apóstolo: Nós, pois não nos gloriaremos fora de medida, mas segundo a medida da regra com que Deus nos mediu. E por isso diz a Escritura: O princípio da soberba do homem é o apostatar de Deus; isto é, porque a raiz da soberba está em, de certo modo, não nos submetermos a Deus e à sua regra. Ora, é manifesto, que o mesmo não nos submetermos a Deus constitui um pecado mortal, pois, implica em nos apartarmos de Deus. Por onde e consequentemente, a soberba é um pecado genericamente mortal. Porém, nos outros pecados genericamente mortais, como por exemplo, a fornicação e o adultério, há certos movimentos, que são pecados veniais, por causa da sua imperfeição, isto é, por prevenirem o juízo da razão e se consumarem sem o consentimento dela. Assim também o mesmo se dá com a soberba, em que certos movimentos são pecados veniais, por não ter a razão consentido neles.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como dissemos, a soberba não é um pecado universal pela sua essência, mas, por uma certa redundância, isto é, enquanto que dela podem nascer todos os pecados. Donde não se segue sejam mortais todos os pecados, senão só quando nascem da soberba completa, da qual dissemos ser pecado mortal.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A soberba sempre contraria ao amor divino, enquanto que o soberbo não se sujeita à regra divina, como deve. E às vezes também contraria o amor do próximo, quando nos preferimos a ele indevidamente, ou subtraímo–nos a nos submetermos ao mesmo. O que também derroga à regra divina, que institui uma ordem entre os homens, em virtude da qual uns devem sujeitar–se aos outros.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A soberba não nasce das virtudes como se fossem, por si, a causa dela; mas, como sendo elas a causa acidental; isto é, enquanto que podemos tirar, das virtudes, ocasião de soberba. Pois, nada impede um contrário ser causa acidental de outro, como diz Aristóteles. Por isso, certos se ensoberbecem pela sua mesma humildade.
O quarto discute–se assim. – Parece que Gregório assinala inconvenientemente quatro espécies de soberba, quando diz o seguinte: São quatro, pois, as espécies, que revelam todas as formas de auto–exaltação dos arrogantes: uma consiste em pensarem que tem de si mesmos os seus bens; ou, se creem que lhes foi dado do alto, julgam tê–los recebido em virtude dos seus próprios méritos; outra consiste em se jactarem de ter o que não têm e enfim, a última consiste em desprezarem os outros e desejarem que estes considerem singulares os dons, que possuem.
1. – Pois, a soberba é um vício distinto da infidelidade, assim como a humildade é virtude distinta da fé. Ora, é por infidelidade que pensamos não vir de Deus o bem que temos, ou que temos o bem da graça pelos nossos méritos próprios. Logo, esse procedimento não deve ser considerado como uma espécie de soberba.
2. Demais. – Uma mesma causa não deve ser considerada espécie de gêneros diversos. Ora, a jactância é considerada uma espécie de mentira, como já se estabeleceu. Logo, não deve ser tida como espécie de soberba.
3. Demais. – Parece que há outras espécies de soberba não incluídas na enumeração supra. Assim, Jerônimo diz, que nada manifesta tanto a soberba como o sermos ingrato. E Agostinho diz que é próprio da soberba escusarmo–nos do pecado cometido. E também a presunção, que nos leva a buscar o que nos excede a capacidade, pertence por excelência à soberba. Logo, a referida divisão não compreende suficientemente as espécies de soberba.
4. Demais. – Há outras divisões da soberba. Assim, Anselmo divide a exaltação da soberba, dizendo que uma pertence à vontade, outra à palavra, outra aos atos. E Bernardo também enumera doze graus de soberba, que são: a curiosidade, a leviandade de espírito, a alegria estulta, a jactância, a singularidade, a arrogância, a presunção, a desculpa dos pecados, a confissão simulada, a rebelião, a liberdade, o hábito de pecar. Ora, essas espécies não parece compreendidas nas assinaladas por Gregório. Logo, parece inconvenientemente feita a enumeração delas.
Em contrário, basta a autoridade de Gregório.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a soberba implica o desejo imoderado a própria excelência, isto é, em desacordo com a razão reta. Ora, devemos notar, que roda excelência resulta de algum bem possuído. O que de três modos pode dar–se.
Primeiro, quanto ao bem em si mesmo considerado. Pois, como é manifesto, quanto maior bem tivermos, tanto maior excelência conseguiremos. Por isso, se nos atribuímos um bem maior que o nosso, consequentemente o nosso apetite há de buscar a nossa excelência própria mais do que ela realmente nos compete. E essa é a terceira espécie de soberba, pela qual nos jactamos de ter o que não temos.
Segundo, quanto à causa do bem; isto é, enquanto é mais excelente o bem possuído, quando provém de nós mesmo que quando em nós provém de outrem. Por onde, quando consideramos como tendo por nós mesmo o que na realidade temos de outrem, o apetite é levado a buscar a nossa excelência própria, mais do que nos é conveniente. Ora, de dois modos, podemos ser a causa de um bem nosso: eficiente e meritoriamente. Donde resultam as duas primeiras espécies de soberba, consistindo uma em nos atribuirmos a nós mesmo o que recebemos de Deus; e a outra, em pensarmos que, pelos nossos méritos próprios é que recebemos do alto esse bem.
Terceiro, quanto ao modo de o possuirmos; assim, tanto mais excelente nos tornamos quanto mais excelente que o de outrem é o nosso bem. Donde resulta também, que o nosso apetite é levado a buscar desordenadamente a nossa excelência própria. E daí procede a quarta espécie de soberba, consistente em querermos nos considerar, com o desprezo dos outros, como possuidores de um bem singular.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. A verdadeira estima de nós mesmo pode corromper–se de dois modos. – Primeiro, universalmente. E então, em matéria de fé, a verdadeira estima de nós mesmo se corrompe pela infidelidade. – De outro modo, na eleição particular de um ato. Assim, quem fornica julga que, ao praticar esse ato, lhe é um bem a fornicação. E é também o que passa no caso proposto. Pois, constitui uma infidelidade dizer, em geral, haver bens não provenientes de Deus, ou que a graça é dada aos homens pelo mérito deles. Mas, constitui soberba e não infidelidade, propriamente falando, o nos gloriarmos, por um apetite desordenado da nossa excelência própria, dos nossos bens, como se de nós mesmo os tivéssemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A jactância é considerada como uma espécie de mentira, quanto ao ato exterior, pelo qual falsamente nos atribuímos o que não temos. Mas, pela arrogância interior do coração, Gregório a considera parte da soberba.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Ingrato é quem a si mesmo se atribui o que recebeu de outrem. Por isso, as duas primeiras espécies de soberba pertencem à ingratidão. – Quanto a nos escusarmos do pecado cometido, isso pertence à terceira espécie, pois, assim, nós nos atribuímos o bem da inocência, que não temos. – E o buscarmos presunçosamente o que está acima das nossas forças, isso sobretudo se inclui na quarta espécie, pela qual pretendemos ser superior aos outros.
RESPOSTA À QUARTA. – As três divisões de Anselmo se fundam no progresso do pecado que cometemos; o qual, primeiro, é concebido no coração; segundo, expresso por palavras; terceiro consumado por obras. – E quanto aos doze graus de Bernardo, eles se fundam na oposição, que tem com os doze graus de humildade, de que tratámos acima. – Pois, o primeiro grau de humildade consiste em mostrarmos sempre a humildade de coração e de corpo, tendo os olhos fixos no chão. Ao que se opõe a curiosidade, que nos faz olhar por toda parte, curiosa e desordenadamente. – O segundo grau de humildade está em falarmos pouco e sensatamente, com voz baixa. Ao que se opõe a leviandade de espírito, pelo qual falamos com palavras soberbas. – O terceiro grau de humildade é não sermos de riso fácil e pronto. Ao que se opõe a alegria estulta. – O quarto grau de humildade é conservarmo–nos calados enquanto não formos interrogados. Ao que se opõe a jactância. – O quinto grau de humildade é observar o determinado pelas regras comuns do mosteiro. Ao que se opõe a Singularidade, que nos leva a querermos aparecer aos outros mais santos do que somos. – O sexto grau de humildade é crermo–nos e nos proclamarmos como inferiores a todos. A que se opõe a arrogância, pela qual nós nos julgamos superior aos outros. – O sétimo grau de humildade é confessarmo–nos e crermo–nos inúteis para tudo e de tudo indigno. Ao que se opõe a presunção, pela qual nos julgamos capaz das maiores coisas. – O oitavo grau de humildade é a confissão dos pecados. A que se opõe a nos escusarmos deles. – O nono grau de humildade é sofrer com paciência as durezas e as asperidades. A que se põe a confissão simulada pela qual não queremos sofrer as penas pelos pecados simuladamente confessados. O décimo grau de humildade é a obediência. A que se opõe a revolta. – O undécimo grau de humildade consiste em não nos comprazermos em fazer a nossa vontade própria. A que se opõe a liberdade, pelo qual nos comprazemos em fazer livremente o que queremos. – O último grau de humildade é o temor de Deus. A que se opõe o hábito de pecar, que implica o desprezo de Deus. – Ora, nesses doze graus se incluem não somente as espécies de soberba, mas ainda certos antecedentes e consequentes delas; como também dissemos acima, quando tratámos da humildade.
O terceiro discute–se assim. – Parece que o sujeito da soberba não é o irascível.
1. – Pois, diz Gregório: O obstáculo à verdade é o orgulho do espírito, que, entumecendo–o, obnubila–o. Ora, conhecer a verdade não pertence ao irascível mas à potência racional. Logo, o sujeito da soberba não é o irascível.
2. Demais. – Gregório diz, que os soberbos não consideram a vida daqueles a quem se devem pospor, pela humildade, mas, a daqueles a quem se pretiram, por soberba; por onde se vê que a soberba resulta de uma consideração indevida. Ora, considerar não é próprio do irascível, mas antes, do racional.
3. Demais. A soberba não só busca a excelência, nas causas sensíveis, mas também, nas espirituais e inteligíveis. E também consiste principalmente no desprezo de Deus, segundo aquilo da Escritura: O princípio da soberba do homem é o apostatar de Deus. Ora, o irascível, fazendo parte do apetite sensitivo, não pode estender–se a Deus e ao inteligível. Logo, o sujeito da soberba não pode ser o irascível.
4. Demais. – Como diz Próspero, a soberba é o amor da excelência própria. Ora, o sujeito do amor não é o irascível, mas, o concupiscível. Logo, não é o irascível o sujeito da soberba.
Mas, em contrário, Gregório coloca contra a soberba o dom do temor. O temor, porém, pertence ao irascível. Logo, o sujeito a soberba é o irascível.
SOLUÇÃO. – Devemos indagar qual o sujeito de uma virtude ou de um vício, considerandolhe o objeto próprio. Pois, um hábito ou um ato não pode ter outro objeto senão o da potência, que serve de sujeito a um e outro. Ora, o objeto próprio da soberba implica uma dificuldade a vencer, pois, é o desejo da nossa própria excelência, como dissemos. Por onde, a soberba pertence necessariamente e de certo modo à potência irascível.
Ora, o irascível pode ser considerado a dupla luz. – Primeiro, no seu sentido próprio e então faz parte do apetite sensitivo, assim como a ira, propriamente considerada, é uma paixão do apetite sensitivo. – Numa segunda acepção o irascível é considerado em sentido mais lato, de modo a pertencer também ao apetite intelectivo, a que também às vezes atribuímos a ira, como quando a atribuímos a Deus e aos anjos, não como paixão, mas, como juízo da justiça judicativa. E contudo o irascível, nesse sentido geral, não é uma potência distinta do concupiscível, como ficou claro pelo que dissemos na Primeira Parte.
Por onde, se o difícil, que constitui o objeto da soberba, fosse só algo de sensível, a que pode tender o apetite sensitivo, a soberba teria necessariamente o seu sujeito no irascível, que faz parte do apetite sensitivo. Mas, como a dificuldade que a soberba deve vencer, geralmente existe tanto na ordem sensível como na espiritual, devemos forçosamente admitir, que o sujeito da soberba é o irascível, considerada não só em sentido próprio, como parte do apetite sensitivo, mas também em sentido geral, como se manifesta no apetite intelectivo. Por isso se atribui a soberba aos demónios.
DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Duplo é o conhecimento da verdade. – Um puramente especulativo; e este a soberba impede indiretamente, eliminando–lhe a causa. Pois, o soberbo nem sujeita a Deus a sua inteligência de modo a receber dele o conhecimento da verdade, segundo aquilo do Evangelho Escondeste estas causas aos sábios e aos entendidos – isto é, aos soberbos, que se consideram como sábios e prudentes; e as revelaste aos pequenos, isto é, aos humildes. Nem o soberbo se digna aprender dos homens; assim, diz a Escritura: Se aplicares o teu ouvido, isto é, ouvindo humildemente, serás sábio. – Outro é o conhecimento da verdade, chamado o afetivo. E esse conhecimento a soberba o impede diretamente. Porque aos soberbos, comprazendo–se com a excelência própria, repugna–lhes a excelência da verdade. E Gregório diz: Os soberbos, embora percebam intelectualmente certas e determinadas verdades, não lhes podem contudo experimentar a doçura; conhecendo–as como são, ignoram–lhes como sabem. Donde o dizer a Escritura: Onde há humildade, aí há igualmente sabedoria.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como dissemos, a humildade obedece à regra da razão reta, que nos leva a ter uma verdadeira estima fie nós mesmos. Ora, a essa regra da razão reta não obedece a soberba, que nos leva a nos estimarmos mais do que merecemos. O que se dá pelo apetite desordenado da nossa própria excelência, pois, o que veementemente desejamos facilmente o cremos. Donde também resulta que o nosso apetite busca o que excede a nossa capacidade. Portanto, tudo o que nos leva a nos estimarmos mais do que valemos, faz–nos cair na soberba. E dentre essas causas da soberba, uma é o notarmos os defeitos dos outros; assim como, ao contrário, Gregório diz, que os varões santos, atentando para as virtudes, mutuamente se preferem uns aos outros. E, portanto daqui não resulta seja o racional o sujeito da soberba; mas sim, que na razão há uma certa causa dela.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A soberba não existe só no irascível, enquanto ela faz parte do apetite sensitivo; mas, no sentido em que o irascível é tomado em acepção mais geral, como se disse.
RESPOSTA À QUARTA. – Como diz Agostinho, o amor precede todas as outras afeições da alma e é a causa delas. E por isso pode ser tomado por qualquer dessas afeições. E, assim sendo, diz–se que a soberba é o amor da nossa excelência própria, enquanto que esse amor causa a presunção desordenada de superar os outros, o que constitui propriamente a soberba.
O segundo discute–se assim. – Parece que a soberba não é um pecado especial.
1. – Pois, diz Agostinho, que nela há pecado ao qual não convenha a denominação de soberba. E Próspero afirma, que nenhum pecado pode, pôde, nem poderá existir, sem a soberba. Logo, a soberba é um pecado geral.
2. Demais. – Aquilo da Escritura – Para apartar o homem da iniquidade – diz a Glosa: que ensoberbecer–se contra o Criador é transgredir lhe os preceitos, pecando. Ora, segundo Ambrósio, todo pecado é uma transgressão da lei divina e desobediência aos preceitos celestes. Logo, todo pecado é soberba.
3. Demais. – Todo pecado especial se opõe a alguma espécie de virtude. Ora, a soberba opõe–se a todas as virtudes; pois, diz Gregório: não é, de nenhum modo, só uma a virtude destruída pela soberba, a qual ataca a alma na sua totalidade e, como pestífera doença, corrompe todo o corpo. E Isidoro diz ser ela a ruína de todas as virtudes. Logo, a soberba não é um pecado especial.
4. Demais. – Todo pecado especial tem matéria especial. Ora. a matéria da soberba é geral; pois, no dizer de Gregório, um se ensoberbece com o ouro; outro, com a palavra; outro, com causas ínfimas e 'terrenas; outro com virtudes excelsas e celestes. Logo, a soberba não é um pecado especial, mas geral.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Quem refletir verá, segundo a lei de Deus, quanto difere dos outros pecados o pecado da soberba. Ora, um gênero não se distingue das suas espécies. Logo, a soberba não é um pecado geral, mas, especial.
SOLUÇÃO. – O pecado da soberba, pode ser considerado a dupla luz. – Primeiro na sua espécie própria fundada essencialmente no seu objeto próprio. E, a esta luz, a soberba é um pecado especial, por ter objeto especial. Pois, é o apetite desordenado da excelência própria, como dissemos. – A outra luz, pode ser considerada quanto a uma certa redundância sua sobre os outros pecados. E, então, implica uma certa generalidade, porquanto, da soberba, podem nascer todos os pecados, por dupla razão. Primeiro, em si mesma considerada; isto é, enquanto os outros pecados se ordenam ao fim da soberba, que é a excelência própria, à qual pode ordenar–se tudo o que desejamos desordenadamente. De outro modo, indiretamente e quase por acidente, isto é, removendo o obstáculo, enquanto que, pela soberba, desprezamos a lei divina, que nos proíbe pecar, segundo aquilo da Escritura: Quebraste o meu jugo, rompeste os meus laços e disseste – não servirei.
Devemos porém saber, que nessa generalidade da soberba está o fundamento de todos os vícios poderem por vezes nascer dela; não porém o de todos nascerem dela sempre. Pois, embora todos os preceitos da lei possam ser transgredidos por qualquer pecado, por causa do desprezo, que implica – desprezo próprio da soberba; contudo, nem sempre se transgride os preceitos divinos por desprezo. Mas, às vezes fazemos por ignorância; outras, por fraqueza. Por isso, diz Agostinho, praticamos muitos atos maus, sem o fazermos por soberba.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Agostinho cita essas palavras, não como sendo sua opinião, mas, a daquele contra quem disputa. Por isso, a seguir as refuta, mostrando como nem sempre pecamos por soberba. – Pode–se porem dizer, que as autoridades citadas se entendem quanto ao efeito exterior da soberba, que é transgredir os preceitos, o que está incluído em qualquer pecado; mas não, quanto ao ato interior da soberba, que é o desprezo do preceito. Pois, nem sempre o pecado implica o desprezo; porque umas vezes pecamos por ignorância e outras, por fraqueza, como dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Às vezes cometemos um pecado, quanto ao seu efeito, mas não, por afeto; assim quem por ignorância mata o próprio pai, comete um parricídio, quanto ao efeito, mas não, por afeto, por não ter a intenção de praticar. E, assim dizemos que transgredir um preceito de Deus é o nos ensoberbecermos contra Deus – quanto ao efeito, sempre; mas, nem sempre, quanto ao afeto.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Um pecado pode destruir a virtude, de dois modos. –– Primeiro, contrariando–a diretamente. E, neste sentido, a soberba não destrói nenhuma virtude, senão só a humildade; assim como qualquer outro pecado especial destrói a virtude que lhe é especialmente oposta, causando o que lhe é contrário. – De outro modo, um pecado destrói uma virtude, abusando dela. E, assim, a soberba destrói quaisquer virtudes, enquanto que, delas mesmas tira a ocasião de se exercer, como de quaisquer outras cousas que implicam excelência. Donde não se segue seja um pecado geral.
RESPOSTA À QUARTA. – A soberba supõe a noção de um objeto especial, a qual, contudo, pode se aplicar a matérias diversas. Pois, é o amor desordenado da nossa própria excelência; ora a excelência podemos encontrá–la em coisas diversas.
O primeiro discute–se assim. – Parece que a soberba não é pecado.
1. – Pois, nenhum pecado pode constituir objeto de uma promessa de Deus, porque Deus promete o que fará, mas, não é autor de nenhum pecado. Ora, a soberba está enumerada entre as promessas divinas, na Escritura, quando diz: Eu te elevarei a ser a glória imortal (superbiam) dos séculos, a um gozo em geração e geração. Logo, a soberba não é pecado.
2. Demais. – Desejar imitar a Deus não é pecado; pois, isso todas as criaturas o desejam naturalmente, e isso constitui o que têm de melhor; mas, sobretudo é próprio da criatura racional, feita à imagem e semelhança de Deus. Ora, como alguém disse, a soberba é o amor da nossa própria excelência, por cuja excelência nos assemelhamos a Deus, que é excelentíssimo. Por isso diz Agostinho: A soberba imita a excelcitude, pois, tu, Senhor, és o único Deus excelso sobre todas as coisas.
3. Demais. – Um pecado contraria não só à virtude mas também ao pecado oposto, como está claro no Filósofo. Ora, não há nenhum vício oposto à soberba. Logo, a soberba não é pecado.
Mas, em contrário, a Escritura: Nunca permitas que a soberba domine nos teus pensamentos ou nas tuas palavras.
SOLUÇÃO. – A soberba é assim chamada por nos fazer voluntariamente buscar o que está acima de nós. Por isso, diz Isidoro: O soberbo é assim chamado por querer passar por mais do que é; pois, quem quer subir acima do que é soberbo. Ora, a razão reta, por essência, impõe à nossa vontade buscar o que lhe é proporcional. Por onde e manifestamente, a soberba implica oposição à razão reta. Ora, isto constitui a essência mesma do pecado; pois, segundo Dionísio, o mal da alma consiste em desobedecer aos ditames da razão. Portanto, é claro que a soberba é pecado.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. A soberba pode ser considerada em duplo sentido. – Num, implica desobediência à regra racional e, então, é considerada como pecado. Noutra, pode significar simplesmente um superexcesso; e então todo super–excesso pode chamar–se soberba. Neste sentido o Senhor promete a soberba como um superexcesso de honras. Por isso, a Glosa de Jerónimo a esse lugar diz haver uma boa soberba e outra, má. Embora também possamos admitir que a soberba, nesse lugar, é tomada em sentido material, significado a superabundância de coisas com as quais os homens podem se ensoberbecer.
RESPOSTA À SEGUNDA. – A razão é a ordenadora daquilo que o homem naturalmente deseja; portanto, será vicioso o apetite de quem se afasta mais ou menos, da regra racional; como o demonstra o apetite da comida, que é naturalmente desejada. Ora, a soberba deseja uma excelência excessiva à prescrição da razão reta. Donde o dizer Agostinho, que a soberba é o apetite de uma elevação pervertida. E daí também resulta, como ensina Agostinho, que a soberba imita a Deus, pervertidamente, pois, o soberbo odeia o se lhe submeter, na igualdade com os companheiros, querendo impor–lhes a sua dominação, em lugar de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A soberba opõe–se diretamente à virtude da humildade, que de certo modo convém no mesmo objeto com a magnanimidade, como dissemos. Por onde, o vício oposto à soberba, por deficiência, é próximo do da pusilanimidade, oposta à magnanimidade, por defeito. Pois, assim como é próprio da magnanimidade levar a alma à prática de atos grandiosos, contrariando a desesperança, assim, pertence à humildade coibir a alma do apetite do que é grande, contrariando a presunção. Ora, a pusilanimidade, se implicar a falta de atos pelos quais buscamos o que é grande, opõe–se propriamente à magnanimidade, por deficiência; mas, se importar na aplicação da nossa alma em buscar o que é mais vil do que aquilo que nos convém, opõe–se então à humildade, por defeito; pois, em ambos os casos, procede da pequenez de alma. Assim como, ao contrário, a soberba pode, por superexcesso, opor–se à magnanimidade e à humildade, por diversos aspectos. A humildade, quando despreza a sujeição; à magnanimidade, quando desordenadamente busca grandes coisas. Mas, como a soberba implica uma certa superioridade, ela se opõe mais diretamente à humildade; assim como a pusilanimidade, que implica a pequenez de alma, na busca do que é grande mais diretamente se opõe à magnanimidade.