Category: Santo Tomás de Aquino
O terceiro discute–se assim. – Parece que quem se obrigou por voto a entrar em religião não precisa cumpri–lo.
1. – Pois, diz uma decretal: Consaldo presbítero, sob o império da doença e da força do sofrimento, prometeu fazer–se monge; mas, não entrou no mosteiro, não se entregou entre as mãos do abade nem lançou por escrito a sua promessa, confiando a um advogado o seu benefício eclesiástico; e depois de restabelecido recusou fazer–se monge. E acrescenta: Julgamos e determinamos, que o referido sacerdote entre na posse do seu benefício e da sua igreja e não seja inquietado nessa posse. Ora, isto não poderia ser se estivesse obrigado a entrar em religião. Logo, parece que quem se obrigou por voto a entrar em religião não precisa cumpri–lo.
2. Demais. – Ninguém está obrigado ao que está além do poder. Ora, o entrar alguém em religião não está no seu poder; pois, para tal, deve ter o assentimento daqueles em cuja religião quer entrar. Logo, parece que não precisa cumprir o voto pelo qual se obrigou a entrar em religião.
3. Demais. – Por um voto menos útil não pode ser derrogado outro mais útil. Ora, o cumprimento do voto de entrar em religião impediria o voto de ser cruzado, na defesa da Terra Santa. O que é mais útil, pois quem fizer esse voto alcança a remissão dos pecados. Logo, parece que o voto que obriga a entrar em religião não deve ser necessariamente cumprido.
Mas, em contrário, a Escritura: Se fizeste algum voto a Deus, trata de o cumprir logo, porque lhe desagrada a promessa infiel e imprudente. E àquela passagem – Fazei votos ao Senhor vosso Deus e cumpri–os – diz a Glosa: Fazer voto é um ato da vontade; mas, feita a promessa do voto, há necessidade de cumpri–la.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, quando dele tratámos, o voto é uma promessa feita a Deus em matéria que lhe concerne. Ora: Gregório diz: Se entre homens de boa fé por nenhum motivo se podem romper os contratos, com maior razão a promessa, pela qual se fez um pacto com Deus, não pode ser rompida sem provocar um castigo. Por isso, quem fez um voto está obrigado a cumpri–lo necessariamente contanto que se trate de matéria concernente a Deus. Ora, como é manifesto, a entrada em religião incide por excelência em matéria divina, pois, quem assim procede totalmente se consagra ao serviço divino, como do sobredito resulta. Donde se conclui, que quem se obriga por voto a entrar em religião está obrigado a cumpri–lo, na medida em que pretendeu obrigar–se pelo voto. De modo que, se entendeu obrigar–se absolutamente, está obrigado a cumpri–lo logo que seja possível, cessado que for algum impedimento legítimo. Se porém se obrigou depois de um certo tempo e sob certa condição, está obrigado a entrar em religião quando chegar o tempo ou realizar–se a condição.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O referido presbítero não fez voto solene mas, simples. Por isso, não se tornou monge de modo a poder ser coagido pelo direito a permanecer no mosteiro e abandonar a sua igreja. Contudo, no foro da consciência, dever–se–ia lhe aconselhar a entrada em religião com o abandono de todos os seus bens. Por isso, o Papa aconselhou ao bispo de Grenoble, que assumira o episcopado depois de ter feito voto de entrar em religião e de não o ter cumprido, que se quisesse viver em paz com a sua consciência, resignasse o governo da igreja e cumprisse para com o Altíssimo os seus votos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Como dissemos, quando tratámos do voto, quem se obrigou por ele a entrar numa certa religião, deve fazer tudo o que pode para ser nela recebido. E se teve simplesmente a intenção de se obrigar a entrar em religião, e não for recebido numa, está obrigado a procurar outra. Mas, se se obrigou especialmente a entrar numa determinada religião, não está obrigado senão pelo modo por que o fez.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O voto de religião, sendo perpétuo, é maior que o de peregrinação à Terra Santa, que é temporal. E Alexandre III diz: Não pode ser considerado réu de ter quebrado o voto quem resolveu comutar o voto de um serviço temporal no voto de viver perpetuamente em religião. – E demais, pode–se racionalmente responder que quem fez o voto de entrar em religião também consegue a remissão de todos os pecados. Pois, por umas esmolas, que fez, pode um homem desde logo satisfazer pelos seus pecados, conforme aquilo da Escritura – rime os teus pecados com esmola – com muito maior razão, como satisfação por todos eles basta consagrar–se totalmente ao serviço divino, entrando numa religião, o que sobrepuja todos os géneros de satisfação, mesmo o da penitência pública, corno se lê numa decretal; assim como também o holocausto excede o sacrifício, no dizer de Gregório. Por isso se lê na Vida dos Padres do Deserto, que alcançam a mesma graça os que entram em religião, que os batizados. Se porém, não ficassem assim absolvidos de todo reato da pena, contudo o ingresso em religião seria mais útil que a peregrinação à Terra Santa, como meio de progredir no bem, que todavia prepondera sobre a absolvição da pena.
O segundo discute–se assim. – Parece que ninguém deve obrigar–se por voto a entrar em religião.
1. – Pois, a profissão liga, por voto, a uma religião. Ora, antes da profissão é dado um ano de provação, segundo a regra de S. Bento e segundo o estatuído por Inocêncio IV, que também proibiu o ligar–se alguém, pela profissão, a uma religião, antes de haver completado o ano de prova. Logo, parece que, com maior razão, os que ainda vivem no século não devem se obrigar por voto a entrar em religião.
2. Demais. – Gregório diz, que os Judeus devem ser persuadidos a se converterem, não pela força, mas por livre vontade. Ora, cumprir um voto é de necessidade. Logo, ninguém deve ser obrigado a entrar em religião.
3. Demais. – Ninguém deve dar a outrem ocasião de cair e por isso a Escritura diz: Se alguém abrir uma cisterna e nela cair um boi ou um jumento, o dono da cisterna pagará o valor das bestas. Ora, por se obrigarem por voto a entrar em religião, frequentemente muitos caem em desespero e em diversos pecados. Logo, parece que ninguém deve obrigar–se por voto a entrar em religião.
Mas, em contrário, àquilo da Escritura – Fazei votos ao Senhor vosso Deus e cumpri–os – diz a Glosa: Há votos concernentes a cada indivíduo em particular, como o de castidade, de virgindade e outros; e a faze–los é que a Escritura nos convida. Ora, a Sagrada Escritura não convida senão ao melhor. Logo, é melhor que certos se obriguem por voto a entrar em religião.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, quando tratamos do voto, uma mesma obra feita por voto é melhor do que a feita sem ele quer por ser o voto um ato de religião, a qual tem uma certa excelência entre as mais virtudes; quer ainda porque o voto confirma a vontade do homem na prática do bem. E assim como um pecado é mais grave quando procede da vontade obstinada no mal, assim a boa obra é mais meritória quando procede da vontade firmada do bem pelo voto. Por onde, o obrigar–se alguém por um voto a entrar em religião é, em si mesmo, louvável.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Há duas sortes de votos de religião – Uma é a do voto solene, que torna quem o faz monge, ou irmão noutra religião, e essa se chama profissão. – A outra é a do voto simples que não torna quem o faz monge ou religioso, mas só obrigado a entrar em religião. E essa não tem necessidade de ser precedida pelo ano de provação.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O lugar citado de Gregório se entende da violência absoluta. Mas, a necessidade oriunda da obrigação do voto não é uma necessidade absoluta, mas o é em função do fim; pois, feito o voto, não pode quem o pronunciou alcançar o fim da salvação, se não o cumprir. Ora, não devemos evitar essa necessidade; ao contrário, como diz Agostinho, feliz necessidade a que nos eleva a um melhor estado.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Fazer voto de entrar em religião é de certo modo confirmar a vontade na prática do melhor. E por isso, em si mesmo, não dá a quem o fez ocasião de queda, mas, ao contrário, livra dela. Nem derroga à bondade do voto a queda grave de quem o transgrediu; assim como não derroga à bondade do batismo o fato do batizado pecar, depois de tê–lo recebido, mais gravemente.
O primeiro discute–se assim. – Parece que não devem entrar em religião senão os exercitados na observância dos preceitos.
1. – Pois, o Senhor deu o conselho de perfeição ao adolescente que disse ter observado os preceitos desde a sua juventude. Ora, toda religião tira de Cristo o seu início. Logo parece não deverem ser admitidos em religião senão os exercitados na observância dos preceitos.
2. Demais. – Gregório diz: Ninguém chega de repente à sumidade; mas, no comum da vida, começa–se pelas pequenas coisas para se chegar às grandes. Ora, as grandes são os conselhos; as menores são os preceitos, destinados o regular a vida comum. Logo, parece não deve ninguém entrar em religião, para praticar os conselhos, que lá não estivesse antes exercitado na observância dos preceitos.
3. Demais. – Assim como as ordens sagradas têm uma certa excelência na Igreja, assim também o estado religioso. Ora, Gregório escreve ao bispo Siágrio e está nas decretais: A elevação às ordens obedece a uma certa ordem; pois, expõe–se à queda quem pretende subir abruptamente ao sumo fastígio, sem passar pelos degraus intermediários. Porque, como sabemos, quando se levantam as paredes de uma casa. deixa–se–lhes secar bem a humidade do material nelas empregado, antes de se lhe sobrepor o peso das traves; do contrário, se antes de solidificadas, receberem a carga da construção, ruirá simultaneamente toda a fábrica. Logo, parece que ninguém deve entrar em religião sem estar exercitado na observância dos preceitos.
4. Demais. – Aquilo da Escritura – Como o menino apartado já do peito da mãe – diz a Glosa: Somos concebidos no ventre da Igreja primeiro quando somos instruídos nos rudimentos da fé; depois, vimos à luz quando regenerados pelo batismo; em seguida somos quase levados pelas mãos da Igreja e amamentados com o seu leite, quando, após o batismo, somos informados pelas boas obras e alimentados com o leite da doutrina espiritual, progredindo assim até que, já crescidos, deixemos o leite materno pela mesa paterna, isto é, de doutrina simples, em que se ensina que o Verbo se fez carne, subamos ao Verbo existente desde o princípio em Deus. E em seguida acrescenta: Ainda há pouco batizados no Sábado Santo, quase levados pelas mãos da Igreja e amamentados com o seu leite, até o pentecostes, tempos em que nenhum dever penoso se nos impõe, não jejuamos, não devemos levantar à meia noite. Depois, confirmados pelo Espírito Santo, quase oblatados, começamos a jejuar e outras práticas difíceis. Mas, muitos pervertem esta ordem, como os heréticos e os cismáticos, que se privam do leite antes do tempo; e por isso perecem. Ora, parece perverterem essa ordem os que entram em religião ou induzem outros a fazê–lo, antes de exercitados na observância mais fácil dos preceitos.
5. Demais. – Devemos passar do anterior para o posterior. Ora, os preceitos vêm antes dos conselhos, como sendo mais gerais e não implicando os conselhos por via de consequência; pois, quem quer que observe os conselhos observa também os preceitos, mas não ao inverso. Ora, a ordem natural é passar do anterior para o posterior. Logo, ninguém deve passar à observância dos conselhos, em religião, antes de haver–se exercitado nos preceitos.
Mas, em contrário, o Senhor chamou à observância dos conselhos ao publicano Mateus, ainda não exercitado na observância dos preceitos. Assim, como lemos no Evangelho, ele, deixando tudo, o seguiu. Logo, não é necessário se exerça um na observância dos preceitos antes de passar à perfeição dos conselhos.
SOLUÇÃO. – Como do sobredito se colhe, o estado de religião é de certo modo um exercício espiritual para se alcançar a perfeição da caridade; e isso se consegue por meio das observâncias religiosas, que afastam os obstáculos opostos à perfeita caridade. E estes são constituídos por tudo o que prende o afeto do homem às coisas terrenas. Ora, o prender–se o afeto humano às coisas terrenas não só impede a perfeição da caridade mas, ás vezes, faz mesmo perdê–la, quando o homem, apegando–se desordenadamente aos bens temporais, afasta–se do bem eterno pelo pecado mortal. Por onde é claro que as observâncias da religião, assim como arredam os impedimentos à caridade perfeita, assim também nos livram da ocasião de pecar. Pois, é claro que o jejum, as vigílias, a obediência e práticas semelhantes nos livram dos pecados da gula, da luxúria e de muitos outros, Por onde, entrar em religião o podem não somente os exercitados na observância dos preceitos, para chegarem a uma perfeição maior, mas também os que não estão nela exercitados, para mais facilmente evitarem o pecado e alcançarem a perfeição.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Jerônimo diz: O adolescente mentiu quando afirmou – eu tenho guardado tudo isso desde a minha mocidade. Se, pois, a ordem do mandamento. – amarás ao teu próximo como a ti mesmo – ele a tivesse realmente cumprido, como se foi embora triste depois de ter ouvido – Vai, vende tudo o que tens e dá o aos pobres? Mas, devemos entender essas palavras como significando, que ele mentiu, relativamente à perfeita observância do referido preceito. Por isso, Orígenes diz: Está escrito o Evangelho segundo os Hebreus, que, quando o Senhor exortou vai, vende tudo o que tens – o rico começou a arrancar os cabelos. E o Senhor lhe tornou: Como dizes – cumpri a lei e os profetas – pois que está escrito na lei – amarás ao teu próximo como a ti mesmo? E eis que muitos dos teus irmãos, filhos de Abraão, estão metidos na cloaca da miséria, morrendo de fome, enquanto na tua casa nadas na abundância e nem sequer uma migalha lhes dás a eles. E por isso o Senhor, increpando–o, disse: Se queres ser perfeito, vai, etc. Pois, é impossível cumprir o mandamento que ordena – amarás ao teu próximo como a ti mesmo – e ser rico e sobretudo ser dono de tantas propriedades. – O que se deve entender do perfeito cumprimento desse preceito. Pois, de modo imperfeito e comum, é verdade que ele observava os preceitos. Mas, a perfeição consiste principalmente na observância dos preceitos da caridade, como se estabeleceu. – Por isso o. Senhor, para mostrar a perfeição dos conselhos como útil tanto a inocentes como a pecadores, não somente chamou o adolescente inocente, mas também o pecador Mateus. Porém Mateus seguiu a quem o chamava, não porém o adolescente; porque mais facilmente se convertem à religião, os pecadores, que os presumidos da sua inocência; e dos primeiros diz o senhor: os publicanos e as meretrizes vos levarão a dianteira para o reino de Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O sumo e o ínfimo são susceptíveis de tríplice acepção, – Primeiro, relativamente ao mesmo estado e ao mesmo homem, E então é claro que ninguém chega à sumidade, de repente; pois, cada um, vivendo retamente, progride durante toda a vida, até chegar à sumidade. – Segundo, relativamente aos diversos estados, E então, não é necessário que quem quer chegar ao estado superior comece pelo inferior; como não é necessário que quem quer ser clérigo primeiro se exerça na vida de leigo. – Terceiro, relativamente a pessoas diversas. E então, é claro que um imediatamente poderá começar não somente do estado mais alto, mas ainda do mais alto grau de santidade, e que constituirá o sumo grau a que outro chegará ao termo da vida. Por isso Gregório diz: Todos sabem com que eminente perfeição Bento começou a vida da graça.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Como dissemos as ordens sagradas preexigem a santidade; ao contrário, o estado da religião é um certo exercício para se alcançar a santidade. Por isso, o peso das ordens deve se apoiar em paredes já dessecadas pela santidade; ao passo que o peso da religião desseca as paredes, isto é, os homens, do humor dos vícios.
RESPOSTA À QUARTA. – Como resulta manifestamente das palavras da Glosa citada, elas sobretudo se referem à ordem da doutrina, na qual se deve passar do mais fácil para o mais difícil. Por isso, quando diz que os heréticos e os cismáticos pervertem essa ordem, as palavras seguintes mostram claramente que isso se refere à ordem da doutrina. Pois, estas palavras seguintes são: Este declara ter observado a referida ordem, e sob pena de maldição, como se dissesse – não somente fui humilde em todas as mais coisas, mas também na ciência. Porque meus sentimentos eram humildes: primeiro, fui nutrido com o leite, que é o Verbo feito carne; e assim cresci até poder comer o pão dos anjos, isto é, o Verbo que desde o começo estava em Deus. – Quanto ao exemplo aduzido no meio do texto, que aos batizados, de novo, não se impõe o jejum até Pentecostes, mostra que não devem por necessidade ser obrigados ao que é difícil, antes de receberem para tal a inspiração interior do Espírito Santo, afim de abraçarem as dificuldades por vontade própria. Por isso, depois de Pentecostes, após ter recebido o Espírito Santo, a Igreja celebra o jejum. Mas, o Espírito Santo, no dizer de Ambrósio, não é repelido pela idade, não acaba com a morte, não é excluído do ventre materno. E Gregório diz: O Espírito Santo enche de inspiração um pequeno citarista e dele faz um Salmista; enche de inspiração uma criança abstinente e fá–la juiz dos anciãos. Depois acrescenta: O tempo não é necessário para aprender, quando o mestre é o Espírito Santo; toca uma alma e logo ela fica iluminada. E, como diz a Escritura, não está na mão do homem impedir o espírito. E o Apóstolo: Não extingais o espírito. E enfim, a Escritura acusa certo: Vós sempre resistis ao Espírito Santo.
RESPOSTA À QUINTA. – Há uns preceitos principais, quase os fins dos preceitos e dos conselhos, a saber, os da caridade. Aos quais se ordenam os conselhos; não que sem os conselhos não se possam observar os preceitos, mas porque, por meio dos conselhos, são mais perfeitamente observados. Outros preceitos, porém, são secundários, ordenados que são aos preceitos da caridade, como os sem os quais de nenhum modo se podem observar estes últimos. – Assim, pois, a perfeita observância dos preceitos precede intencionalmente, os conselhos, mas às vezes se lhes seguem, na ordem do tempo. Pois, esta é a ordem dos meios relativamente ao fim. Mas os preceitos da caridade, enquanto observados de maneira comum e, semelhantemente, os outros preceitos estão para os conselhos como o comum, para o próprio; porque a observância dos preceitos pode existir sem a dos conselhos, mas não ao inverso. Por onde, a observância dos preceitos, comumente considerada, precede a dos conselhos na ordem de natureza; mas não é necessário também a preceda na ordem do tempo, pois, nada existe genericamente antes de existir especificamente. – Quanto à observância dos preceitos, sem os conselhos, ela se ordena à observância dos preceitos com os conselhos, como a espécie imperfeita, à perfeita; assim, o animal irracional, para o racional. Pois, o perfeito é naturalmente anterior ao imperfeito; porque a natureza, como ensina Boecío, começa pelo perfeito. Mas nem por isso é necessário observarem–se, antes, os preceitos sem os conselhos, depois, com os conselhos; assim como não é necessário ser alguém asno antes de ser homem, ou antes casado, que virgem. Semelhantemente, não é necessário observarem–se primeiro os preceitos no século para depois entrar em religião; tanto mais quanto a vida secular não dispõe para a perfeição da religião, mas ao contrário, a impede.
O oitavo discute–se assim. – Parece mais perfeita a religião dos que vivem em sociedade do que a dos que levam uma vida solitária.
1. – Pois, diz a Escritura: Melhor é estarem dois juntos do que estar um só, porque têm a conveniência da sua sociedade. Logo, parece mais perfeita a religião dos que vivem em sociedade.
2. Demais. – O Evangelho diz: Onde se acham dois ou três congregados em meu nome, aí estou eu no meio deles. Ora, não pode haver nada melhor que a sociedade de Cristo. Logo, parece que viver em congregação é melhor do que levar uma vida solitária.
3. Demais. – Dentre os votos de religião, o mais excelente é o da obediência; e sobretudo a humildade é agradável a Deus. Ora, a obediência e a humildade mais facilmente se praticam em sociedade que na solidão. Assim, diz Jerônimo: Na solidão subrepticiamente penetra em nós a soberba: dormimos quanto queremos, fazemos o que queremos. Ao contrário, eis o ensino que ele próprio ministra aos que vivem em sociedade: Não faças o que queres, come o que te mandarem, recebe o que te derem, obedece a quem não o quererias, serve aos teus irmãos, respeita o preposto do mosteiro como teu senhor, ama–o como pai. Logo, parece que a religião dos, que vivem em sociedade é mais perfeita que a dos que levam uma vida solitária.
4. Demais. – O Senhor diz: Ninguém acende uma candeia e a põe em lugar escondido nem debaixo de um alqueire. Ora, os que levam vida solitária, parece que vivem escondidos, não trazendo nenhuma utilidade aos homens. Logo, parece não ser mais perfeita a religião deles.
5. Demais. – A perfeição da virtude se funda no que é natural ao homem. Ora, o homem é um animal naturalmente social, como diz o Filósofo. Logo, parece não ser mais perfeito levar uma vida solitária do que viver em sociedade.
Mas, em contrário, Agostinho considera mais santos aqueles que, segregados do convívio humano, a todos se tornam inaccessíveis, entregues com grande contenção à oração.
SOLUÇÃO. – A solidão, como a pobreza, não constitui a essência mesma da perfeição, mas é apenas um instrumento dela. Por isso diz o Abade Moisés, para obter a pureza do coração devemos buscar a solidão como o jejum e práticas semelhantes. Ora, como é manifesto, não é a solidão um instrumento adaptado à ação, mas à contemplação, segundo aquilo da Escritura: Levá–la–ei à soledade e lhe falarei ao coração. Por isso, não convém às religiões ordenadas às obras da vida ativa, quer corporais, quer espirituais, senão talvez temporariamente, ao exemplo de Cristo, que, como diz o evangelista, saiu ao monte a orar e passou toda a noite em oração a Deus. Mas, convém às religiões ordenadas à contemplação.
Devemos porém considerar que o ser solitário deve se bastar a si mesmo. Pois, tal é aquele a que nada falta – o que realiza a ideia do perfeito. Por onde, a solidão é própria do contemplativo já chegado à perfeição. O que de dois modos pode dar–se. – Primeiro como um simples dom divino; talo caso de João Batista, que já desde o ventre de sua mãe foi cheio do Espírito Santo; e por isso, como se lê no Evangelho, desde menino habitava nos desertos. – De outro modo, pelo exercício dos atos virtuosos, segundo o Apóstolo: O mantimento sólido é dos perfeitos, daqueles que pelo costume têm os sentidos exercitados para discernir o bem e o mal. Ora, nesse exercício o homem é auxiliado pela sociedade dos seus semelhantes de duas maneiras. Primeiro, para instruir o intelecto no atinente ao objeto da contemplação. Por isso Jerônimo diz: Agrada–me ver–te viveres na companhia dos santos, sem te ensinares a ti mesmo. Segundo, quanto ao afeto, para se reprimirem, ao exemplo e pela correção dos outros, as afeições nocivas do coração. Pois, aquilo da Escritura A ele lhe dei casa no deserto – diz Gregório: De que serve a solidão do corpo se falta a do coração. Por onde, a vida social é necessária ao exercício da perfeição. Ao passo que a solidão convém aos já perfeitos. Donde o dizer Jerónimo: De nenhum modo condenamos a vida, solitária, que sempre elogiamos; mas, o que queremos é que dos exercícios de tais mosteiros safam soldados capazes de afrontar o duro tirocínio do ermo, depois de terem por muito tempo provas da sua vida religiosa.
Assim, pois, como o perfeito tem preeminência sobre o que se exerce para a perfeição, por isso a vida dos solitários, vivida como deve ser, tem preeminência sobre a vida em comum. Mas é perigosíssima a quem nela entra sem haver previamente se exercitado; salvo se a graça divina suprir o que de ordinário se adquire pelo exercício, como foi o caso dos santos Antão e Bento.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Salomão diz ser melhor viverem dois juntos do que um só isolado, por causa do auxílio que um presta ao outro, quer para se aliviarem nas suas penas, ou se animarem no trabalho ou para espiritualmente se aquecerem. Ora, desses auxílios já não precisam os alcandorados à perfeição.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O Evangelho diz: Aquele que, permanece na caridade permanece em Deus e Deus nele. Assim, pois, como Cristo está no meio dos associados por amor do próximo, assim também habita no coração daquele que por amor de Deus se entrega à contemplação das coisas divinas.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O ato de obedecer é necessário aos que precisam exercer–se sob a direção de outrem, para chegar à perfeição. Mas os já perfeitos suficientemente são levados pelo Espírito de Deus de modo a não precisarem de praticar a obediência a outrem. Mas, têm a alma preparada para a obediência.
RESPOSTA À QUARTA. – Como diz Agostinho, constitui um louvável emprego do tempo, e de que ninguém está proibido, aplicar–se ao conhecimento da verdade. – Quanto ao ser colocado um sobre o candelabro, isso não lhe pertence a eles, mas aos seus superiores. E se essa carga lhe não for imposta, acrescenta Agostinho, no mesmo lugar, vague nesse caso à contemplação da verdade, para o que muito ajuda a solidão. E contudo os que abraçaram a vida solitária são muito úteis ao género humano. E por isso diz Agostinho: Contentes com o só pão, que lhes é trazido em determinados intervalos de tempo, e com a água, cultivam terras desertíssimas, de todo absorvidos em colóquios com Deus, a quem se deram com o coração puro. A certos porém lhes parece que abandonaram, mais do que deviam, o comércio humano; mas esses tais não compreendem o quanto nos ajuda na oração o fervor deles e quão grande exemplos nos é a vida que levam, embora não os possamos ver corporalmente.
RESPOSTA À QUINTA. – O homem pode viver solitário de dois modos. – Primeiro quase não suportando a sociedade humana, por fereza de alma. O que é próprio de fera. – Segundo, por se ter totalmente dado às coisas divinas. O que é superior ao homem. – E por isso o Filósofo diz: Quem não convive com os seus semelhantes, ou é uma fera ou um deus, isto é, um varão divino.
O sétimo discute–se assim, – Parece que o terem os religiosos bens comuns diminui a perfeição de uma religião.
1. – Pois, diz o Senhor: Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá–o aos pobres; por onde é claro que privar–se das riquezas temporais é próprio da perfeição da vida cristã, Ora, os que têm bens comuns não se privam das riquezas temporais. Logo, parece que de nenhum modo atingem à perfeição da vida cristã.
2. Demais. – A perfeição dos conselhos exige a isenção dos cuidados temporais; por isso O Apóstolo nos seus conselhos concernentes à virgindade, diz: Quero que vós vivais sem inquietação. Ora, são inquietações da vida presente o reservarmo–nos certas coisas, para o futuro; inquietações essas que o Senhor proíbe aos seus discípulos, quando diz: Não andeis inquietos pelo dia de amanhã. Logo, parece que ter bens comuns diminui a perfeição da vida cristã.
3. Demais. – As riquezas comuns de algum modo pertencem a cada um dos membros da comunidade. Por isso, falando de certos, diz Jerónimo: São mais ricos, monges, do que o foram, seculares; possuem, discípulos de Cristo pobre, riquezas que não possuíam quando viviam usufruindo as riquezas do diabo; a Igreja se condói da riqueza desses, que eram mendigos quando viviam para o mundo. Ora, o ter um religioso riquezas próprias é contrário à perfeição religiosa. Logo, também lhe é contrário a ela o terem os religiosos bens em comum.
4. Demais. – Gregório narra, que um certo varão santíssimo, Isaac, como os discípulos humildemente lhe insinuavam aceitasse, para o uso do mosteiro, os bens que lhe ofereciam, solicito guarda da sua pobreza, respondeu–lhes com a maior firmeza: O monge que busca as riquezas da terra não é verdadeiro monge. E isso se entende dos bens comuns, que lhe eram oferecidos para o uso geral do mosteiro. Logo, parece que o terem os religiosos algum bem em comum é contrário à perfeição religiosa.
5. Demais. – Quando o Senhor ensinou aos discípulos a perfeição religiosa, disse–lhes: Não possuais ouro nem prata nem tragais dinheiro nas vossas cintas. Querendo com essas palavras, como adverte Jerônimo, condenar uns filósofos chamados vulgarmente bactroperitas, que, contemplores do século e tendo–lhe todos os bens em nenhuma conta, levavam consigo as suas provisões. Logo, parece que diminuem a perfeição da religião os religiosos que reservam quaisquer bens para si, em particular ou em comum.
Mas, em contrário, Próspero (Juliano Pomério) diz: Está bastante claramente indicado que o religioso não deve, como particular e por amor à perfeição religiosa, ter nada de próprio; mas que pode a Igreja sem nenhum impedimento para a perfeição, possuir bens, para uso, sem dúvida, da comunidade.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a perfeição não consiste essencialmente na pobreza, mas em seguir a Cristo, como o diz Jerônimo, comentando o Evangelho: Porque não basta abandonar tudo, Pedro acrescenta – e te seguimos – o que exprime a perfeição. Pois, a pobreza é como o instrumento ou exercício para chegar à perfeição. Donde o dizer o Abade Moisés: Os jejuns, as vigílias, a meditação nas Escrituras, a nudez e a privação de todos os bens não constituem a perfeição, sendo apenas os instrumentos dela.
Ora, a privação de todos os bens ou a pobreza é o instrumento da perfeição, porque, excluindo as riquezas, elimina certos obstáculos à caridade. E estes sobretudo são três. – O primeiro, os cuidados que acompanham as riquezas. Por isso o Senhor diz: O que recebeu a semente entre espinhos este é o que ouve a palavra; porém os cuidados dês te mundo e o engano das riquezas sufocam a palavra. – O segundo é o amor das riquezas, que aumenta com as riquezas já possuídas. Por isso diz Jerônimo, que por ser difícil de se desprezarem as riquezas possuídas, o Senhor não disse – é impossível os ricos entrarem no reino dos céus – mas – é difícil. – O terceiro é a vanglória ou a soberba, filha da riqueza, conforme aquilo da Escritura: Aos que confiam nas suas forças e se gloriam na multidão das suas riquezas.
Ora, desses três obstáculos, o primeiro não pode separar–se totalmente da riqueza, quer grande quer pequena. Pois, é forçoso seja o homem de certo modo solícito em adquirir ou conservar os bens externos. Mas, se esses bens forem buscados ou conservados só em pequena quantidade, o quanto bastem a uma vida simples, essa solicitude não é um grande obstáculo. E por isso não repugna à perfeição da vida cristã. Pois, não proíbe o Senhor toda solicitude, mas só a supérflua e a nociva. Por isso, àquilo do Evangelho – Não andeis cuidadosos da vida que comereis – observa Agostinho: Não diz que tais causas não se busquem, na medida em que o exige a necessidade, mas que não se faça delas o principal, de novo a se praticar, por amor delas, o que é ordenado, para pregar o Evangelho. Quanto à posse de abundantes riquezas, elas produzem maiores cuidados, que absorvem demasiado a alma do homem impedindo–a de se dar totalmente ao serviço de Deus. – Quanto aos outros dois obstáculos, a saber, o amor das riquezas e o orgulho e o vangloriar–se delas, só resultam eles das riquezas abundantes.
Mas, nesta matéria, há diferença entre o serem as riquezas abundantes ou moderadas possuídas em particular ou em comum. Pois, os cuidados empregados com as riquezas próprias derivam do amor de si, com que cada um temporalmente a si mesmo se ama; ao passo que os cuidados empregados com as coisas comuns resultam do amor da caridade, que não busca os seus próprios interesses, mas tem em vista o bem da comunidade. E como a religião se ordena à perfeição da caridade, aperfeiçoada pelo amor de Deus até o ponto de nos desprezarmos a nós mesmos, o ter o religioso bens próprios repugna à perfeição religiosa. Mas, cuidar aos bem da comunidade pode–o ele fazer, pela caridade; embora isso também possa impedir o ato de uma caridade mais elevada, a saber, a da contemplação divina ou da instrução do próximo.
Donde, é claro que ter em comuns riquezas superabundantes, quer em bens móveis, quer em imóveis; é um impedimento à perfeição, embora de todo não a exclua. Mas, ter bens exteriores em comum, quer móveis, quer imóveis, o quanto baste ao simples sustento da vida, não impede a perfeição religiosa, se considerarmos a pobreza relativamente ao fim comum das religiões, que é vacar ao serviço divino.
Mas, se a considerarmos relativamente aos fins especiais das religiões, então, pressuposto um desses fins, a pobreza se acomodará mais ou menos a uma determinada religião. E tanto mais perfeita será a pobreza de uma religião, quanto mais for aquela proporcionada ao fim desta. Pois, como é manifesto, para as obras externas e corporais da vida ativa, o homem precisa de muitos bens materiais; ao contrário, de pouco precisa a vida contemplativa. Por isso, o Filósofo diz, que uma vida ativa precisa de muitas causas, e de tanto mais quanto maiores e melhores forem os atos; ao contrário, o especulativo nenhuma necessidade tem de tais causas para a sua vida, mas só do necessário precisa, sendo tudo o mais obstáculo à especulação. Por onde, é claro que a religião ordenada às ações materiais da vida ativa, por exemplo, à milícia ou a dar hospitalidade, seria imperfeita desprovida das riquezas comuns. Mas, as religiões ordenadas à vida contemplativa tanto mais perfeitas são quanto, pela sua pobreza, têm menores solicitudes com as causas temporais. Pois, tanto mais a solicitude com as causas temporais é um obstáculo à religião, quanto maior é a solicitude com os bens espirituais, que a vida religiosa requer. Ora, é manifesto, que maior solicitude com os bens espirituais exige a religião instituída para a contemplação e para distribuir aos outros os frutos desta, pela doutrina e pela pregação, que a religião instituída só para a contemplação. Por onde, a primeira deve praticar uma pobreza tal que exija um mínimo de solicitude.
Ora, como é manifesto, causa um mínimo de solicitude conservar as causas necessárias ao uso humano, quando elas são procuradas em tempo oportuno. Por isso, aos três graus supra referidos de religiões corresponde um tríplice grau de pobreza. – Assim, as religiões ordenadas aos atos corporais da vida ativa devem ter abundância de riquezas comuns. – As ordenadas porém à contemplação devem ter, antes, bens em quantidade moderada; salvo se os seus religiosos, por si mesmos ou por meio de outrem, deverem simultaneamente com a vida contemplativa dar hospitalidade ou socorrer os pobres. – Quanto às religiões ordenadas a distribuir os frutos da contemplação, essas devem ter uma vida de todo isenta das solicitudes externas. E isso se lhes torna possível se os seus religiosos conservarem o necessário à vida, buscado em tempo oportuno. Tal o ensinou o Senhor, instituidor da pobreza, com o seu exemplo; pois, tinha uma bolsa confiada a Judas, na qual se guardava o que lhe ofereciam, como se lê no Evangelho. – Nem obsta o que diz Jerônimo: Quem quiser objetar – como Judas levava o dinheiro na bolsa, responderemos, porque reputava injusto o Senhor aplicar em seu proveito o bem dos pobres, isto é, pagando com ele o tributo. Porque entre esses pobres estavam sobretudo os seus discípulos, com as necessidades dos quais era gasto o dinheiro das bolsas de Cristo. Assim, diz o Evangelho: Os seus discípulos tinham ido à cidade a comprar mantimento. E noutro lugar, diz que os discípulos, como Judas era o que tinha a bolsa, cuidavam que lhes dissera Jesus: compra as coisas que havemos mister para o dia da festa; ou que desse alguma coisa aos pobres.
Por onde é claro, que guardar dinheiro ou quaisquer outras cousas comuns destinadas ao sustento dos religiosos de uma mesma congregação ou de quaisquer outros pobres, é conforme à perfeição que Cristo com o seu exemplo ensinou. E assim, também os discípulos, depois da Ressurreição, que foram a origem de todas as religiões, conservaram o preço por que venderam as suas terras e distribuíam–nos por todos segundo a necessidade que cada um tinha.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Como dissemos, pelas palavras citadas do Senhor não se entende seja a pobreza em si mesma uma perfeição, mas só o instrumento desta. E é mesmo, como mostrámos, o mínimo dos três instrumentos principais da perfeição; pois, o voto de continência tem preeminência sobre o da pobreza e o da obediência, sobre ambos. Ora, como um instrumento não é buscado como um fim, mas usado como um meio, não é o que com ele fazemos tanto melhor quanto maior ele for, mas, quanto mais proporcionado ao fim. Assim como não cura um médico tanto melhor quanto mais remédio dá, mas, quanto mais o remédio for proporcionado à doença. Por onde, não há de necessariamente ser tanto mais perfeita uma religião quanto maior pobreza exigir, mas, quanto _ mais essa pobreza for proporcionada ao fim comum e especial. E ainda concedido que o excesso de pobreza tornasse uma religião mais perfeita por isso mesmo que é mais pobre, nem por isso a tornaria mais perfeita absolutamente falando. Pois, outra religião poderia sobrepujá–la no atinente à continência e à obediência e, então, seria absolutamente mais perfeita, pois, o que excede pelo melhor é absolutamente melhor.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O dito do Senhor Não andeis inquietos pelo dia de amanhã – não significa que não se deve guardar nada, em vista do futuro. Pois, o perigo desse procedimento Santo Antão o denuncia quando diz: Aqueles que querem se despojar de todos os bens a ponto de não guardarem para si nem o sustento de um dia nem consentirem em conservar um dinheiro, que sobrou, e fazem coisas semelhantes, esses nós os vimos subitamente enganados a ponto de não terem podido levar a bom êxito a obra começada. E, como diz Agostinho, se as palavras do Senhor – não andeis inquietos pelo dia de amanhã – forem entendidas como significando que nada devemos guardar para o dia seguinte, elas não poderão ser observadas pelo que, durante longos dias, se conservam reclusos, longe da vista dos homens, entregues com grande contenção à oração. E logo acrescenta: Ou porventura, quanto mais santos forem tanto menos se assemelham aos pássaros? E depois ajunta: Se, pois, se exigir a eles que, conforme o Evangelho, nada guardem para o dia seguinte, responderão muito acertadamente – Então por que o próprio Senhor tinha bolsas onde se guardava o dinheiro recolhido? Por que, muito tempo antes, numa época de fome, se mandava comida aos Santos Patriarcas? Por que os Apóstolos ocorriam com o necessário à indigência dos santos? – Assim, pois, as palavras – não andei; inquietos pelo dia de amanhã Jerônimo comentando–as explica: Baste–nos pensar no tempo presente; deixemos nas mãos de Deus o futuro, que é incerto. – Ou, segundo Crisóstomo: Basta o trabalho que temos em buscar o necessário; não nos fatiguemos com o supérfluo. – E segundo Agostinho: Quando fizermos alguma boa obra, não pensemos nos bens temporais, significados pela expressão dia de amanhã, mas pensemos nos eternos.
RESPOSTA À TERCEIRA. – As palavras de Jerônimo se aplicam às riquezas superabundantes, possuídas como próprias; ou ao abuso delas, que torna soberbos e lascivos os membros da comunidade. Mas não se aplicam às riquezas moderadas, que a comunidade só conserva para o sustento da vida e, assim, como um meio de dar a cada um o necessário. Pois, a razão de cada um usar das coisas necessárias à vida é a mesma pela qual a comunidade as conserva.
RESPOSTA À QUARTA. – Isaac se recusava a aceitar propriedades porque temia, assim, viesse a ter riquezas supérfluas, cujo abuso impedisse a perfeição da religião. Por isso Gregório no mesmo lugar acrescenta: Pois, temia perder o tesouro da sua pobreza, como os ricos avarentos temem perder as suas riquezas perecíveis. Mas dele não se lê que recusasse receber e conservar o necessário ao sustento da comunidade.
RESPOSTA À QUINTA. – Como ensina o Filósofo, o pão, o vinho e produtos semelhantes são riquezas naturais; ao passo que o dinheiro é uma riqueza artificial. Por isso, certos filósofos não queriam usar deste, quase vivendo segundo a natureza. Por onde, Jerônimo, no mesmo lugar, mostra que pelas palavras do Senhor, proibitivas das duas referidas espécies de bens, vem a ser o mesmo ter dinheiro e as outras coisas necessárias à vida. E contudo, embora o Senhor tivesse ordenado que os mandados a pregar não levassem consigo nenhum desses bens, todavia não proibiu fossem conservados para o uso comum. – E em que sentido essas palavras do Senhor devam ser entendidas, já o mostrámos antes.
O sexto discute–se assim. – Parece que a religião; que vaca à vida contemplativa, não é superior à que exerce as obras da vida ativa.
1. – Pois, diz uma decretal: Assim como antepomos a um bem menor um maior, assim, a utilidade geral à particular, E, neste caso, é com razão que preferimos o ensino ao silêncio. a solicitude à contemplação e o trabalho ao repouso. Ora, a melhor religião é a ordenada ao maior bem. Logo, parece que as religiões ordenadas à vida ativa são superiores às ordenadas à vida contemplativa.
2. Demais. – Toda religião se ordena à perfeição da caridade, como se estabeleceu. Ora, àquilo do Apóstolo – Ainda não tendes resistido até derramar o sangue – diz a Glosa: Não há nesta vida amor mais perfeito que o dos santos mártires, que lutaram contra o pecado até a efusão do sangue. Ora, combater até derramar sangue é próprio das religiões ordenadas à vida militar, o que constitui porém vida ativa. Logo, parece que essas religiões são as mais perfeitas.
3. Demais. – Uma religião é tanto mais perfeita, quanto mais apertada. Ora, nada impede certas religiões ordenadas à vida ativa serem de uma observância mais apertada do que as ordenadas à vida contemplativa. Logo, são superiores.
Mas, em contrário, o Senhor diz: Maria escolheu a melhor parte, significando com isso a vida contemplativa.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a diferença entre uma religião e outra se funda principalmente no fim, e secundariamente, no exercício. Ora, corno não pode uma coisa ser dita superior a outra senão pelo que desta difere, por isso a excelência de uma religião sobre outra se funda principalmente no fim que visa; e secundariamente, no exercício. Mas, essa dupla comparação é susceptível de ser diversamente apreciada. Assim, a fundada no fim é absoluta, porque o fim é buscado em si mesmo. Mas, a fundada no exercício é relativa, pois o exercício não é buscado em si mesmo, mas enquanto conducente a um fim. Por onde, é aquela religião superior à outra, que se ordena a um fim absolutamente superior, o qual ou é um bem maior ou abrange mais numerosos bens. Mas, as religiões que tiverem o mesmo fim, secundariamente a preeminência de uma sobre outra se funda, não na multiplicidade dos exercícios, mas na proporção destes com o fim intencionado. E assim se diz, que S. Antão opinava como devendo ter preferência o discernimento – que nos dá a moderação em tudo sobre os jejuns, as vigílias e todas as observâncias semelhantes.
E portanto, devemos concluir que a obra da vida ativa é dupla. – Uma é derivada da plenitude da contemplação, como a doutrina e a pregação. Por isso, Gregório ensina que é dos varões perfeitos, que se diz, ao saírem da contemplação: Farão memória da abundância da tua suavidade. E isto é preferível à simples contemplação. Pois, assim como é mais o iluminar do que somente luzir, assim, é mais transmitir aos outros o fruto da contemplação que somente contemplar. – Mas há outra obra da vida ativa consistente totalmente nas ocupações exteriores; como dar esmolas, receber hóspedes e semelhantes, menores que a atividade contemplativa, salvo nalgum caso de necessidade, como do sobre dito se colhe.
Por onde, ocupam o sumo grau as religiões ordenadas ao ensino e à pregação. E são as mais próximas à perfeição dos bispos; pois, como nas outras coisas, o fim das primeiras se une ao princípio das segundas, conforme diz Dionísio. No segundo grau estão as religiões ordenadas à contemplação. E no terceiro, as que se ocupam com as obras externas.
Ora, em cada um desses graus, a preeminência de uma religião sobre outra depende do ato mais elevado, num mesmo gênero, a que se ela ordene. Assim, entre as obras da vida ativa, redimir cativos tem preeminência sobre dar hospitalidade e nas obras da vida contemplativa é mais importante a oração do que a lição. Pode também ter preeminência a que se ordena a mais atos que outra; ou se tiver regras mais adequadas à consecução do fim proposto.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A decretal citada se refere à vida ativa enquanto ordenada à salvação das almas.
RESPOSTA À SEGUNDA. – As religiões instituídas para o fim da vida militar se ordenam mais diretamente à efusão do sangue dos inimigos, que à do sangue dos seus religiosos – o que sobretudo é próprio dos mártires. Mas nada impede esses religiosos, num determinado caso, alcançarem o mérito do martírio e, então, ter preferência sobre os outros; assim como, às vezes, num determinado caso, as obras da vida ativa são preferíveis à contemplação.
RESPOSTA À TERCEIRA. – O rigor das observâncias não é sobretudo o que torna uma religião recomendável, como diz S. Antão. E a Escritura pergunta: Acaso o jejum que eu escolhi consiste em afligir um homem a sua alma por um dia? Mas, à religião é contudo necessário esse rigor para macerar a carne; o que, feito sem discernimento, traz consigo o perigo de ser contraproducente, como ensina S. Antão. Por isso, não é mais perfeita uma religião por serem as suas observâncias mais rigorosas, mas por se ordenarem, com mais discernimento, ao fim que tem em vista. Assim como à continência mais eficazmente se ordena a maceração da carne pela abstinência da comida e da bebida, que satisfazem a fome e a sede, que pela privação da roupa, que nos protege contra o frio e a humidade, e do que pelo trabalho corpóreo.
O quinto discute–se assim. – Parece que nenhuma religião deve ser instituída, cujo fim seja o estudo.
1. – Pois, diz a Escritura: Porque não conheci a literatura, me internarei nas obras; do poder do Senhor. Ao que diz a Glosa: isto é, na virtude cristã. Ora, a perfeição da virtude cristã é o fim principal do religioso. Logo, não é ocupar–se com o estudo das letras.
2. Demais. – O que é princípio de dissensão não deve existir entre religiosos, congregados na unidade da paz. Ora, o estudo produz dissensão e dele nasceu a diversidade de seitas entre os filósofos. Por isso Jerônimo diz: Antes de, por inspiração do diabo, ter–se introduzido o estudo na religião, de modo que viesse um a dizer ao povo – eu sou de Paulo, eu sou de Apolo, eu sou de Celas, etc. Logo, parece que nenhuma religião deva ser instituída com o fim de estudar.
3. Demais. – A profissão da religião cristã; deve diferir da profissão dos gentios. Ora, entre os gentios, certos professavam a filosofia. E ainda hoje certos seculares se dão como professores de certas ciências. Logo, não compete aos religiosos o estudo das letras.
Mas, em contrário, Jerônimo convida Paulino a aprender, no estado monástico: Aprendamos na terra uma ciência, do que perdura no céu. E mais adiante: Tudo o que buscares saber eu me esforçarei por saber contigo.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, a religião pode ordenar–se à vida ativa ou à contemplativa. Ora, dentre as obras da vida ativa as mais principais são as ordenadas diretamente à salvação das almas, como pregar e outras semelhantes. Logo, cabe aos religiosos estudar as letras, por três razões. – Primeiro, o estudo das letras ajuda a conseguir o objeto próprio da vida contemplativa e isso de dois modos. Primeiro, diretamente, auxiliando a contemplação pela iluminação do intelecto. Pois, a vida contemplativa, de que agora tratamos, principalmente se ordena à consideração do divino, como estabelecemos; pela qual o homem contempla as cousas divinas. Por isso, em louvor do varão justo, diz a Escritura: Na sua lei meditará de dia e de noite. E noutro lugar: O sábio investigará a sabedoria de todos os antigos e fará o seu estudo nos profetas. De outro modo o estudo das letras ajuda a vida contemplativa indiretamente, removendo os obstáculos à contemplação, isto é, os erros que, na contemplação das coisas divinas, frequentemente assaltam os ignorantes da Escritura. Assim, lemos que o Abade Serapião caiu, por simplicidade, no erro dos Antropomorfitas, isto é, daqueles que ensinavam ter Deus forma humana. Donde o dizer Gregório, que certos, buscando elevar–se na contemplação acima das suas forças, caem em doutrinas erradas e, desdenhando ser discípulos humildes da verdade, tornam–se mestres de erros. E por isso diz a Escritura: Pensei dentro no meu coração apartar do vinho a minha carne, afim de passar o meu ânimo à sabedoria e evitar a estultícia. – Segundo, o estudo das letras é necessário à religião instituída para o fim da pregação e o exercício de ministérios semelhantes. Donde o dizer o Apóstolo, do bispo, a cujo ofício pertence essa atividade: Que abrace a palavra da fé, que é segundo a doutrina, para que possa exortar conforme à sã doutrina e convencer aos que o contradizem. – Nem obsta o facto de os Apóstolos terem sido enviados a pregar, sem o estudo as letras. Pois, como diz Jerônimo, tudo o que o exercício e a quotidiana meditação na lei de Deus nos faz adquirir, isso o Espírito Santo lhes sugeria.
Terceiro, o estudo das letras convém à religião, pelo que todas as religiões tem de comum. – Pois, ajuda a evitar a lascívia da carne. Por isso diz Jerônimo: Ama o estudo das Escrituras e não amarás os vícios da carne. Pois, desvia o pensamento das coisas lascivas; e o trabalho do estudo macera a carne como o ensina a Escritura: A vigia que se tem para ajuntar bens definhará as carnes. – Também contribui para nos livrar da cobiça das riquezas. Donde o dizer a Escritura: Julguei que as riquezas nada valiam em sua comparação. E noutro lugar: Nós não tínhamos necessidade de nenhuma destas causas, isto é, do auxílio dos outros, tendo para nossa consolação os santos livros, que estão entre nossas mãos, – E também vale para ensinar a obediência. Por isso, pergunta Agostinho: Mas que desordem é essa de não se levarem em conta as leituras próprias, embora se queira vacar a elas? Por onde é manifesto que pode muito bem uma religião ser instituída para o estudo das letras.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A exposição citada da Glosa se aplica à letra da lei antiga, da qual diz o Apóstolo: A letra mata. Por onde, não conhecer a literatura é não aprovar a circuncisão, literalmente considerada, e as demais observâncias temporais.
RESPOSTA À SEGUNDA. – O estudo se ordena à ciência, que, sem a caridade, incha e por consequência causa dissensões, como o diz a Escritura: Entre os soberbos sempre há contendas; mas, com a caridade, edifica e gera a concórdia. Por isso, o Apóstolo, depois de ter dito – Sai; enriquecidos em toda a palavra e em toda a ciência – acrescenta: Todos digais uma mesma causa e não haja entre vós cismas. Mas, Jerônimo, no lugar citado, não se refere ao estudo das letras; senão ao zelo que causa dissensões, que os heréticos e os cismáticos introduziram na religião cristã.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Os filósofos professavam o estudo das letras, cultivando assim as ciências humanas. Mas os religiosos devem sobretudo se dedicar ao estudo das letras que conduz ao conhecimento que é segundo a piedade, no dizer do Apóstolo. Mas, dedicar–se ao estudo das demais doutrinas não é próprio dos religiosos, que consagraram toda a vida ao serviço de Deus – salvo na medida em que esse estudo se ordena à ciência sagrada. Por isso diz Agostinho: Quanto a nós, persuadidos que não devemos perder de vista aqueles que os heréticos seduzem pela promessa da instrução e de uma ciência falaz, nós avançamos lentamente neste caminho pelo cuidado mesmo que pomos em estudá–lo. O que contudo não ousaríamos fazer, se não tivéssemos diante dos olhos o exemplo de muitos piedosos filhos da Igreja, que assim procederam pela mesma necessidade de refutar os heréticos.
O quarto discute–se assim. – Parece que nenhuma religião pode ser instituída com o fim ela pregação ou de ouvir confissões.
1. – Pois, diz um cânone: A vida dos monges se caracteriza pela sujeição e pelo discipulato; e não por ensinar, governar ou dirigir os outros; e o mesmo se diga dos religiosos. Ora, pregar e ouvir confissões imporia em dirigir ou ensinar os outros. Logo, nenhuma religião pode ser instituída com esse fim.
2. Demais. – O fim para o qual uma religião é instituída é o que ela tem de mais próprio, como se disse. Ora, os referidos atos não são próprias dos religiosos, mas antes, dos prelados. Logo, nenhuma religião pode ser instituída cujo fim seja a prática desses atos.
3. Demais. – É inconveniente, parece que a autoridade de pregar e de ouvir confissões seja cometida a inúmeros homens. Ora, não é certo o número dos recebidos em cada religião. Logo, é inconveniente ser uma religião instituída para os referidos fins.
4. Demais. – Os fiéis devem sustentar os seus pregadores, como se lê no Apóstolo. Logo, se se comete o ofício da pregação a uma religião instituída para esse fim, segue–se que os fiéis de Cristo estão obrigados a dar sustento a inúmeras pessoas, o que redunda em grande gravame deles. Logo, nenhuma religião deve ser instituída com o fim de exercer as referidas atividades.
5. Demais. – A instituição da Igreja deve ser conforme à de Cristo. Ora, Cristo mandou a pregar, primeiro, os doze Apóstolos, como se lê no Evangelho; e depois mandou os setenta e dois discípulos, como também aí se lê. Ao que diz a Glosa: A função dos Apóstolos desempenham os bispos e a dos setenta discípulos, os presbíteros menores, isto é, os que têm curato. Logo, além dos bispos e dos presbíteros, que exercem o paroquiato, não deve ser instituída nenhuma religião cujo fim seja pregar ou ouvir confissões.
Mas, em contrário, o abade Nésteros, falando da diversidade das religiões, diz: Mas escolhem de preferência tratar dos doentes; outros se consagram ao socorro dos miseráveis e dali oprimidos; outros, ao ensino; outros, à distribuição de esmolas aos pobres. E todos esses foram varões grandes e de consumada virtude pelo seu afeto e pela sua piedade. Logo, assim como uma religião pode ser instituída com o fim de cuidar dos doentes, assim também outra o poderá com o de ensinar o povo pela pregação ou à prática de obras semelhantes.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, uma religião pode ser convenientemente instituída com o fim de exercer as obras da vida ativa, enquanto ordenada à utilidade dos próximos, ao serviço de Deus e à conservação do culto divino. Ora, mais obviamos à utilidade dos próximos trabalhando pela salvação espiritual da alma deles, do que lhes socorrendo às necessidades do corpo; e isso tanto mais quanto o espiritual é superior ao corpóreo. Por isso dissemos, que as esmolas espirituais são preferíveis às materiais. Pois, aquelas obram melhor o serviço de Deus, a quem nenhum sacrifício é mais agradável que o zelo das almas, como diz Gregório. Ora, é preferível, com armas espirituais, defender os fiéis contra os erros dos heréticos e as tentações dos demônios, a defender, com armas materiais, o povo fiel. Por onde, é convenientíssimo certas religiões serem instituídas com o fim da pregação e de outras práticas semelhantes aplicadas à salvação das almas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Quem obra por virtude de outrem obra como instrumento. Pois, o servo é um como instrumento animado, no dizer do Filósofo. Por onde, quem prega ou exerça um ministério semelhante, por ordem do seu prelado, não sai desse estado de discipulato ou de sujeição, próprio dos religiosos.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Certas religiões são instituídas para exercer a milícia; não que o façam por autoridade própria, mas, pela do príncipe ou da Igreja, a quem compete o dever de declarar a guerra, como se disse. Assim também, outras religiões são instituídas para pregar e ouvir confissões, não certo, por autoridade própria, mas, pela dos prelados superiores e inferiores, que têm o dever de fazê–la. Por onde servir aos prelados com esse ministério e o fim próprio dessas religiões.
RESPOSTA À TERCEIRA. – Não é a qualquer dos referidos religiosos, indiferentemente, que os prelados dão licença para pregar ou ouvir confissões; mas, isso depende do que estabelecerem os superiores das religiões a que eles pertencem ou da determinação dos próprios prelados.
RESPOSTA À QUARTA. – O povo fiel não está obrigado, por dever de direito, a dar sustento senão aos prelados ordinários, que por isso recebem dos fiéis dízimos, oblações e outros réditos eclesiásticos. Mas, os prelados que quiserem exercer gratuitamente as suas atividades em benefício dos fiéis, sem exigir deles, como o poderiam, o seu sustento, não obrigam os fiéis a sustentá–las; mas, poderão estes por liberalidade lhes dar uma recompensa temporal à qual, embora não estejam, de direito, obrigados, contudo o estão por um dever de caridade; mas não de modo que fiquem em aperto e os outros tenham alívio, como diz o Apóstolo. – Mas, se não houvesse quem quisesse prestar gratuitamente os referidos serviços, os prelados ordinários estariam obrigados, se por si sós não bastassem, a chamar auxiliares idóneos, cujo serviço deveriam pagar.
RESPOSTA A QUINTA. – Os setenta e dois discípulos os representam não só os presbíteros com curato, mas todos os de ordens menores, que servem ao bispo nas suas funções. Pois, não diz o Evangelho que aos setenta e dois discípulos o Senhor tivesse assinado nenhumas paróquias especiais, mas, que os mandava de dois em dois adiante de si por todas as cidades e lugares para onde ele tinha de ir. Mas, foi depois oportuno assumir, além dos prelados ordinários, outros, para os referidos ofícios, por causa da multidão do povo fiel e pela dificuldade de encontrar pessoas suficientes a se ocuparem com cada paróquia. Assim, também foi necessário instituir religiões destinadas à milícia, pela incapacidade de os chefes seculares resistirem aos infiéis em certas terras.
O terceiro discute–se assim. – Parece que nenhuma religião pode ordenar–se à vida militar.
1. – Pois, toda religião constitui o estado de perfeição. Ora, a perfeição da vida cristã o Senhor disse em que consiste: Eu vos digo que não resistais ao que vos fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece–lhe também a outra – o que repugna ao ofício militar. Logo, nenhuma religião pode ser instituída para a vida militar.
2. Demais. – A luta corpo a corpo nas batalhas é mais grave do que as disputas verbais dos advogados. Ora, aos religiosos é interdito o exercício da advocacia, como o determina a decretal citada. Logo, com maioria de razão, parece que nenhuma religião pode ser instituída com fins guerreiros.
3. Demais. – O estado de religião é um estado de penitência; como se disse. Ora, aos penitentes o direito proíbe a milícia, como o determina a decretal que dispõe: É absolutamente contrário às regras eclesiásticas a volta à milícia secular, depois do exercício da penitência. Logo, nenhuma religião pode ser licitamente instituída para militar.
4. Demais. – Nenhuma religião pode ser instituída para um fim injusto. Ora, como diz Isidoro, guerra justa é a declarada em virtude de um edito imperial. Ora, os religiosos sendo pessoas particulares, parece que não lhes é lícito declarar guerra. Logo, não pode nenhuma religião ser instituída para exercê–la.
Mas, em contrário, diz Agostinho: Não julguemos que possa deixar de agradar a Deus quem se dedica à vida das armas. Se Davi o fez, Senhor deu grande testemunho da santidade dele. Ora, as religiões foram instituídas para tornar os homens agradáveis a Deus. Logo, nada impede seja uma religião instituída com o fim de fazer a guerra.
SOLUÇÃO. – Como dissemos uma religião pode ser instituída não só para o fim da vida contemplativa, mas também para exercer a vida ativa, sob a forma do auxílio ao próximo e do serviço de Deus, mas não para o fim de qualquer negócio temporal. Ora, o ofício militar pode ordenar–se ao auxílio dos próximos, não só enquanto pessoas privadas, mas quanto à defesa de toda a república. Por isso a Escritura diz, que Judas Macabeu pelejava com alegria em defesa de Israel. Mas também pode ordenarse à manutenção do culto divino; por isso, no mesmo lugar se acrescenta o dito de Judas o nós havemos de pelejar pelas nossas vidas e pelas nossas leis. E mais abaixo, no mesmo livro, se diz: Vós sabeis quanto havemos pelejado eu e meus irmãos e a casa de meu pai, pelas nossas leis e pelo santo templo. Por onde, pode convenientemente uma religião ser instituída para fins militares; não, certo, para assim conseguir bens temporais, mas para a defesa do culto divino e para a salvação pública, ou ainda para a dos pobres e dos oprimidos, segundo aquilo da Escritura: Tirai ao pobre e livrai ao desvalido da mão do pecador.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – De dois modos podemos não resistir ao mal, Primeiro, perdoando a injúria que sofremos; e isto pode constituir a perfeição, quando a salvação dos outros exige de nós esse procedimento. De outro modo, sofrendo pacientemente as injúrias que os outros rios fazem. O que implica uma imperfeição ou mesmo um vício, se podemos eficazmente resistir a quem nos injuria. Donde o dizer Ambrósio: A coragem que, pela guerra, defende a pátria contra os bárbaros, ou defende os fracos, na casa, ou os companheiros contra os ladrões, é plena justiça. E no Evangelho o Senhor diz: O que é teu não tornes a pedir. E contudo quem tivesse o dever de repetir o que é dos outros e não o fizesse pecaria; pois, temos o poder de dar o nosso mas não, o alheio. E muito menos devemos descuidar o que é de Deus, pois, como diz Crisóstomo, é nimiamente ímpio não vingar as injúrias feitas a Deus.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Exercer o ofício de advogado com o fim de adquirir bens temporais repugna a toda religião; mas, como acrescenta a decretal citada, não o exerce assim quem o faz em benefício do seu mosteiro e por disposição do seu prelado; nem o que o exerce em defesa dos pobres ou das viúvas. Por isso, uma decretal estabelece: O santo sínodo decretou que nenhum clérigo poderá, para o futuro, administrar propriedades nem imiscuir–se com negócios seculares, senão em benefício dos órfãos e das viúvas, etc. E semelhante mente, a milícia, pelo que tem de temporal, repugna a toda religião; mas, não repugna quando tem em mira o serviço de Deus.
RESPOSTA À TERCEIRA. – A milícia secular é interdita aos penitentes; mas, a que tem por fim o serviço divino pode ser imposta a certos penitentes como àqueles que têm obrigação de a exercer em defesa da Terra Santa.
RESPOSTAS À QUARTA. – A religião não é instituída para fim; militares no sentido em que seja licito aos religiosos fazer guerra de própria autoridade: mas só, por ordem do príncipe da Igreja.
O segundo discute–se assim. – Parece que não deve ser instituída nenhuma religião cujo fim seja a vida ativa.
1. – Pois, toda religião constitui estado de perfeição, como do sobredito resulta. Ora, a perfeição do estado religioso está na contemplação das cousas divinas. Assim, como diz Dionísio, a religião deriva o seu nome do seu objeto, que é o puro serviço e obséquio de Deus, e dessa vida indivisível e especial que une os religiosos pela ocupação santa, com as coisas invisíveis, ou seja pela contemplação, que os conduz a uma espécie de transformação divina e a uma profunda união com as amáveis perfeições de Deus. Logo, parece que nenhuma religião pode ser instituída para praticar as obras da vida ativa.
2. Demais. – Devemos formar o mesmo juízo tanto dos monges como dos cônegos regrantes; pois, como está determinado, não se consideram alheios do estado monacal. E o mesmo se dá com todas as outras religiões. Ora, a religião dos monges foi instituída para a vida contemplativa. Por isso diz Jerônimo: Se desejas ser considerado como monge, isto é, só, que fazes na cidade? E a mesma disposição se encontra numa lei canônica. Logo, parece que toda religião se ordena à vida contemplativa e nenhuma, à ativa.
3. Demais. – A vida ativa se ocupa com as causas do século. Ora, religiosos se chamam os que abandonam o século, Donde o dizer Gregório: Quem abandona o século presente e faz o bem que pode como se estivesse abandonado no Egito, faz um sacrifício no ermo. Logo, parece que nenhuma religião pode ordenar–se para a vida ativa.
Mas, em contrário, a Escritura: A religião pura e sem mácula aos olhos de Deus e nosso Pai consiste nisto: Em visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições. Ora, isto constitui vida ativa. Logo, uma religião pode ordenar–se convenientemente para a vida ativa.
SOLUÇÃO. – Como dissemos, o estado religioso se ordena à perfeição da caridade, consistente no amor de Deus e do próximo. Ora, o amor de Deus constitui diretamente o objeto da vida contemplativa, que só a Deus deseja vacar; ao passo que o amor dos próximos é o objeto próprio da vida ativa, que procura obviar–lhes às necessidades. Ora, assim como pela caridade amamos o próximo por causa de Deus, assim também o obséquio prestado ao próximo redunda para Deus, conforme o Evangelho: O que vós fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim é que o fizestes. Por isso esses obséquios feitos ao próximo, enquanto referidos a Deus, chamam–se de certo modo sacrifícios, como o diz o Apóstolo: Não vos esqueçais de fazer bem e de repartir os vossos bens com os outros; porque com tais oferendas é que Deus se dá por obrigado. E sendo o fim próprio da religião oferecer sacrifício a Deus, como dissemos, é consequente e conveniente que certas religiões se ordenem à vida ativa. Por isso, o Abade Néstero, distinguindo as obrigações das diversas religiões, diz: Uns põem o sumo estudo em viver retirado nos recessos mais desertos e em conservar a pureza do coração; outros se desvelam em dar regras a irmãos que vivem nos cenóbios; e ainda há quem se compraz nos xenodóquios, isto é, à hospitalidade.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O serviço e o Obséquio a Deus se pode prestar também com as obras da vida ativa, pelas quais se serve ao próximo por amor de Deus, como dissemos. E nessas obras também se pode vi ver a vida isolada, não no sentido em que não haja convivência com os outros homens, mas pelo aplicar–se cada um por si ao que respeite o serviço divino. E se os religiosos, na prática da vida ativa, se aplicam à contemplação de Deus, há consequentemente a sua ação de derivar dessa contemplação das coisas divinas. Por isso não ficam absolutamente privados dos frutos da vida contemplativa.
RESPOSTA À SEGUNDA. – Os monges e todos os outros religiosos, quanto às prescrições comuns a todas as religiões, estão incluídos na mesma categoria. Por exemplo, no se dedicarem totalmente ao serviço divino, no observarem os votos essenciais de religião e no absterem–se dos negócios seculares. Mas não é forçoso se assemelhem quanto ao mais que é próprio da profissão monástica e se ordena especialmente à vida contemplativa. Por isso, a referida decretal não diz, em sentido absoluto, que devemos formar o mesmo juízo tanto dos cónegos regrantes; como elos monges; mas, no relativo ao que já foi dito, isto é, que não exerçam o alicio de advogado, nas causas forenses. E a decretal citada, depois de ha ver estabelecido que os cónegos regrantes não se consideram alheios ao estado monacal, acrescenta: Mas, obedecem a uma regra mais frouxa. Por onde é claro que não estão obrigados como os monges.
RESPOSTA À TERCEIRA. – De dois modos pode alguém viver no século: pela presença corporal e pelo afeto do coração. Por isso aos seus discípulos disse o Senhor: Eu vos escolhi do mundo; e contudo deles fala ao Pai, quando diz: Eles estão no mundo e eu vou para ti. Por isso, os religiosos entregues às obras da vida ativa, embora vivam no século pela sua presença corpórea, nele não vivem contudo pelo afeto do coração, pois, se se ocupam com as coisas temporais não é por buscarem nada do mundo, senão só por servirem a Deus. Assim, no dizer do Apóstolo, usam deste mundo como se deles não usassem. E a Escritura depois de ter dito – A religião pura e sem mácula aos olhos de Deus consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições – acrescenta: E em se conservar cada um a si isento da corrupção deste século, isto é em não por o afeto nas causas do século.