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Category: Santo Tomás de AquinoConteúdo sindicalizado

Art. 4 – Se a virgindade é mais excelente que o matrimônio.

O quarto discute–se assim. – Parece que a virgindade não é mais excelente que o matrimônio.

1. – Pois, diz Agostinho: Não é desigual o mérito da continência em João, que nunca contraiu núpcias, ao de Abraão, que gerou filhos. Ora, a maior virtude corresponde um maior mérito. Logo, a virgindade não é virtude superior à castidade conjugal.

2. Demais. – Da virtude depende o mérito do virtuoso. Se, pois, a virgindade fosse preferível à continência conjugal, parece consequente que qualquer virgem seria mais meritória que qualquer casada. Ora, isto é falso. Logo, a virgindade não é superior ao casamento.

3. Demais. – O bem comum é superior ao particular, como esta claro no Filósofo. Ora, o casamento é ordenado ao bem comum; assim, diz Agostinho: O que é a comida para a vida do homem é a união dos sexos para a vida do gênero humano. Mas, a virgindade se ordena ao bem especial de evitar as tribulações da carne, a que estão sujeitos os casados, como claramente o diz o Apóstolo. Logo, a virgindade não é superior à continência conjugal.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Por uma razão certa e apoiado na autoridade das santas Escrituras, achamos que nem o casamento é pecado nem o equiparamos à continência virginal nem mesmo à da viuvez.

SOLUÇÃO. – Como o demonstra Jerônimo, erro foi de Joviniano ensinar, que a virgindade não deve ser preferida ao matrimônio. E esse erro é principalmente eliminado tanto pelo exemplo de Cristo, que escolheu mãe virgem e conservou ele próprio a virgindade, como pela doutrina do Apóstolo, que aconselhou a virgindade como um bem melhor. E ainda pela razão; quer porque o bem divino é superior ao humano; quer porque o bem da vida contemplativa é superior ao da ativa, Ora, a virgindade se ordena ao bem da alma, segundo a vida contemplativa, que consiste em estarmos cuidadosos das causas que são de Deus. Ao passo que o casamento se ordena ao bem do corpo, que é a multiplicação corporal do gênero humano e pertence à vida ativa ; porque o homem e a mulher, vivendo em matrimônio hão de necessariamente cuidar das coisas que são do mundo, como está claro no Apóstolo. Por onde e indubitavelmente a virgindade é preferível à continência conjugal.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O mérito não se funda só no gênero do ato, mas sobretudo, no ânimo de quem age. Ora, Abraão tinha o ânimo disposto a conservar a virgindade, se o fosse em tempo conveniente; por isso, o mérito da continência conjugal nele se equipara ao da continência virginal em João, quanto ao prêmio essencial; mas não, quanto ao acidental. Por isso diz Agostinho, que S. João combateu por Cristo no celibato e Abraão, no casamento, conforme as diferenças de tempo; mas, ao passo que S. João tinha em ato a virtude da continência, Abraão só em hábito a possuía.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Embora a virgindade seja melhor que a continência conjugal, pode, contudo o casado ser melhor que o virgem por duas razões. – Primeiro, relativamente à castidade mesma; isto é, se o casado tiver o ânimo mais disposto a guardar a virgindade, se for necessário, do que o atualmente virgem. Por isso Agostinho instrui o virgem para que diga: Eu não sou melhor que Abraão, mas é melhor a castidade do solteiro que a do casado. E logo depois, dá a razão: O que eu agora faço ele melhor o faria se o tivesse de fazer; e o que eles fizeram também eu agora faria se o devesse. – Segundo, porque talvez o que não é virgem tenha uma virtude mais excelente. Donde o dizer Agostinho: Como sabe a virgem, embora cuidadosa das coisas de Deus, que está madura para o martírio e se não tem alguma fraqueza da alma que dele o afaste? Ao passo que a mulher a que se julgava preferível, talvez lá possa beber o cálice da paixão do Senhor.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O bem comum é superior ao bem privado, se forem do mesmo gênero; mas, o bem privado pode ser superior, no seu gênero. E, deste modo, a virgindade dedicada a Deus é preferível à fecundidade carnal. Por isso diz Agostinho, que a fecundidade da carne, mesmo a daquelas que, neste mundo, não têm outro fim, no casamento, senão o de dar filhos a Cristo, não pode compensar, segundo se deve crer a perda da virgindade.

Art. 3 - Se devemos pagar o dizimo aos sacerdotes.

O terceiro discute–se assim. – Parece que não devemos pagar o dizimo aos sacerdotes.

1. – Pois, na vigência do Antigo Testamento pagavam–se dízimos aos levitas porque não tinham nenhuma parte na posse da terra, como se lê na Escritura. Ora, os sacerdotes, no regime do Novo Testamento, têm propriedades patrimoniais e, as vezes eclesiásticas; e além disso recebem as primícias e as oblações, tanto pelos vivos como pelos mortos. Logo, é supérfluo que lhes paguemos o dizimo.

2. Demais. – Acontece às vezes que uma pessoa tem domicílio numa paróquia e cultiva campos em outra: ou que um pastor conduz o rebanho, durante uma parte do ano, pelos pastos ele uma paróquia, e, durante a outra parte, pelos ele outra; ou tem o redil numa paróquia e apascenta as ovelhas em outra. Ora, nesses casos e em outros semelhantes, parece que não se pode discernir a que sacerdote se eleve a solução do dizimo. Logo, parece que não se deve pagar o dizimo determinadamente a nenhum sacerdote.

3. Demais. – É costume geral em certas terras receberem os militares como feudo, da Igreja, os dízimos; e também os religiosos recebem certos dízimos. Logo, parece que nem só aos sacerdotes que têm cura d'almas, devem–se os dízimos.

Mas, em contrário, a Escritura: Aos filhos de Levi eu dei em  possessão todos os dízimos de Israel pelo ministério com que eles me servem no tabernáculo. Ora, aos filhos de Levi sucederam os sacerdotes do Novo Testamento. Logo, os dízimos são aos sacerdotes devidos.

SOLUÇÃO. – Duas coisas devemos considerar a respeito dos dízimos: o direito mesmo de recebê–los e as coisas dadas como dizimo. Ora, o direito de recebê–los é espiritual, pois, resulta do dever em que estamos para com os ministros do altar, que hão de viver do seu ministério, e porquanto aos semeadores das causas espirituais são devidas as temporais. O que se aplica só aos sacerdotes com cura d'almas. Portanto. só eles podem ter esse direito. Por outro lado, as causas dadas como dizimo são corporais e podem, portanto, servir ao uso de qualquer. E assim podem vir ter também às mãos dos leigos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A lei antiga, como dissemos, destinava certos dízimos especiais ao sustento dos pobres. Mas, na lei nova, dão–se dizimas aos sacerdotes, não só para a sustento deles, mas também para socorrerem aos pobres. Por isso, as propriedades eclesiásticas, as oblações e as primícias, ao mesmo tempo que os dizimas, não são supérfluos, mas necessários.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Os dízimos pessoais são devidos à igreja da paróquia que habitamos. – Mas, parece mais racional que os prediais o sejam àquela em cujo termo estão situados. Contudo, o direita determina que nesse ponto se observem os costumes ele longa data. ­ Quanto ao pastor que em tempos diversos apascentou os rebanhos em duas paróquias, deve pagar proporcionalmente os dízimos às duas igrejas; e como dos pastos é que provém o fruto dos rebanhos, o dizimo destes é devido, antes à igreja no termo da qual pastam, que no daquele onde está situado o redil.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Assim como a Igreja pode ceder aos leigos as coisas recebidas como dizimo, assim também pode lhes permitir recebê–las, reservado o direito dos seus ministros. E isto, quer pelas necessidades dela, como no caso de certos militares a quem os dízimos são devidos, como feudo, concedidos pela Igreja; quer também para a subvenção aos pobres, como quando, sob, a forma de esmola, concede determinados dízimos a certos religiosos leigos ou sem cura d'almas. Mas, outros sacerdotes têm direito de recebê–las por terem cura d'almas.

Art. 2 – Se devemos sempre fazer voto do nosso maior bem.

O segundo discute–se assim. – Parece que nem sempre devemos fazer voto do nosso maior bem.

1. – Pois, considera–se maior bem o que é superrogatório. Ora, fazemos voto não só de bens superrogatórios, mas ainda dos necessários a salvação. Assim, no batismo, fazemos voto de renunciar ao diabo e às suas pompas, e de conservar a fé, como explica a Glosa àquilo da Escritura – Fazei votos ao Senhor Vosso Deus e cumpri–os. E Jacó também fez votos que lhe seria o Senhor o seu Deus, como se lê ainda na Escritura, coisa absolutamente necessária à salvação. Logo, nem só de dar o nosso maior bem fazemos voto.

2. Demais. – Jefté está no catálogo dos santos, corno diz o Apóstolo. Ora, matou uma filha inocente, para cumprir um voto, conforme se lê na Escritura. Por onde não sendo a imolação de um inocente, ato em si mesmo ilícito, um maior bem, parece que podemos fazer voto, não só de nosso maior bem, mas ainda, de praticar atos ilícitos.

3. Demais. – O que redunda em nosso detrimento ou o que não tem nenhuma utilidade, não é por natureza um bem maior. Ora, às vezes fazemos voto de certas vigílias ou jejuns imoderados, que redundam em perigo nosso; e outras, o fazemos de coisas indiferentes e de todo inúteis. Logo, nem sempre fazemos voto de nosso maior bem.

Mas, em contrário, a Escritura: Se não quiseres prometer não pecarás.

SOLUÇÃO. – Como já dissemos, o voto é uma promessa feita a Deus. Ora, a promessa é um ato voluntário com que nos obrigamos para com outrem. Pois, não haveria promessa, mas ameaça, se nos determinássemos a agir contra outrem. Semelhantemente, seria vã a promessa, se prometêssemos a outrem o que este não aceitasse. Por onde, sendo todo pecado contra Deus, e Deus só aceitando as obras virtuosas, resulta que não devemos fazer voto de nada indiferente ou ilícito, mas só de atos de virtude. Mas, como o voto implica uma promessa voluntária e a vontade exclui a necessidade, de nenhum modo pode constituir objeto de voto o que absolutamente há–de ou não suceder. Pois, seria estulto quem fizesse voto de morrer ou de não voar. Pode, porém ser matéria de voto o que não constitui uma necessidade absoluta, mas, uma necessidade de fim, como condição imprescindível para a salvação; mas, enquanto o cumprimos voluntariamente e não pelo exigir a necessidade. O que, porém nem é exigido por uma necessidade absoluta nem por uma necessidade de fim é absolutamente voluntário. Por isso, constitui proprissimamente objeto de voto. E a isto se chama um maior bem, por comparação com o bem que comumente o é, por necessidade da salvação. Logo, propriamente falando, o voto tem por objeto o maior bem.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Pode constituir voto dos batizados a renúncia ao diabo e às suas pompas, e conservar a fé de Cristo, porque é um ato voluntário, embora de necessidade para a salvação. E o mesmo se pode dizer do voto de Jacó; embora também se possa entender que ele fez voto de ser o Senhor o seu Deus, para um culto especial, a que não estava obrigado; assim como, para a obtenção de dízimos e de outras causas a que também o não estava, e que no mesmo lugar se mencionam.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Certas causas há que sempre são boas, como as obras de virtude e outros bens, que podem constituir, absolutamente falando, objeto de voto. Outras são más em toda ocasião, como as que, em si mesmas consideradas, são pecados; e essas de nenhum modo podem ser matéria de voto. Mas, outras que, boas em si mesmas e, como tais, podendo ser matéria de voto, podem, contudo ter má aplicação, e nesse caso, o voto que recaiu sobre elas não deve ser cumprido. Tal o caso de Jefté, que, como refere a Escritura, fez um voto ao Senhor dizendo; se tu me entregares nas mãos os filhos d'Amon, a primeira pessoa, seja ela qual for, que sair da porta de minha casa e se encontrar comigo quando eu tornar vitorioso dos filhos d' Amon, eu a oferecerei ao Senhor em holocausto. Mas, este voto podia ser mal sucedido, se lhe viesse ao encontro um ser que não podia ser imolado, como um asno ou um homem; o que também aconteceu. Por isso, Jerónimo comenta: foi estulto ao fazer o voto, por não o ter feito com discernimento; e, ao cumpri–lo, foi ainda mais ímpio. Mas, no mesmo lugar a Escritura acrescenta: Entrou o espírito do Senhor em Jefté; porque a fé e a devoção que o levaram a fazer o voto fundavam–se no Espírito Santo; pelo que é considerado pelo número dos santos. E por causa da vitória que ganhou e por ser provável que se arrependeu do ato iníquo cometido, o qual contudo figurava uma causa boa.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A maceração do próprio corpo, por exemplo, por vigílias e jejuns, Deus não a aceita senão como obra de virtude. E o é quando praticada com a discrição devida, isto é, para refrear a concupiscência, sem gravame demasiado de natureza. E, com essa condição, pode ser matéria de voto. Por isso, o Apóstolo, depois de ter dito – Ofereçais os vossos corpos como uma hóstia viva, santa, agradável a Deus acrescenta: que é o culto racional que lhe deveis. Mas, como nós nos enganamos facilmente em julgar o que nos concerne, é mais conveniente que os referidos votos os observemos ou os emitamos conforme ao juízo do superior. De modo tal que se o cumprimento de tal voto nos acarretasse grande e manifesto, inconveniente e não tivéssemos a faculdade de recorrer a um superior, não deveríamos cumpri–lo. Quanto aos votos de fazermos causas vãs e inúteis, são antes para se desprezarem que para se cumprirem.

Art. 10 – Se é louvável que alguém entre em religião sem ouvir o conselho de muitos e sem diuturna deliberação.

O décimo discute–se assim. – Parece que não é louvável alguém entrar em religião sem ouvir o conselho de muitos e sem diuturna deliberação.

1. – Pois, diz a Escritura: Não creiais a todo espírito, mas provai se os espíritos são de Deus. Ora, às vezes, o propósito de entrar em religião não vem de Deus e por isso frequentemente desaparece com a saída da mesma. Assim, diz a Escritura, noutro lugar: Se vem de Deus este conselho ou esta obra não o podereis dissolver. Logo, parece que só depois de um maduro exame deve um entrar em religião.

2. Demais. – A Escritura diz: Trata do teu negócio com o teu amigo. Ora, segundo parece, o negócio mais importante do homem é o que implica a mudança de estado. Logo, parece que ninguém deve entrar em religião senão depois de deliberar com os amigos.

3. Demais. – O Evangelho traz a comparação de um homem que queria edificar uma torre e que põe primeiro muito do seu vagar a fazer conta dos gastos que são necessários, para ver se tem com que acabar, para não se expor a que façam zombaria dele dizendo: este homem principiou o edifício e não no pôde acabar. Ora, os gastos para edificar uma torre, como diz Agostinho, não são outra coisa senão a renúncia que cada um deve fazer de todos os seus bens. Ora, pode suceder às vezes que muitos não o possam fazer, bem como não poderão suportar outras observâncias religiosas. E isso está figurado na Escritura quando diz, que Davi não podia vestir as armas de Saul por não estar acostumado a elas. Logo, parece que ninguém deve entrar em religião senão depois de feita uma diuturna deliberação e pedido o conselho de muitos.

Mas, em contrário, diz o Evangelho que, ao chamado do Senhor, Pedro e André, sem mais detença, deixadas as redes, o seguiram. O que comenta Crisóstomo: Cristo exige de nós uma tão grande obediência, que não procrastinemos nem um instante do tempo.

SOLUÇÃO. – A diuturna deliberação e o ouvir os conselhos de muito são necessários em matéria importante e duvidosa, como diz o Filósofo. Mas, em matéria certa e determinada, não há necessidade de conselho. Ora, em se tratando da entrada em religião três pontos se podem considerar. – Primeiro, o ingresso em religião é o melhor bem; e quem disso duvidar vai diretamente contra a palavra de Cristo, que o aconselhou. Por isso diz Agostinho: Chama–te o Oriente, isto é, Cristo e tu olhas para o Ocidente, para o homem mortal e inquinado de erro. – De outro modo podemos considerar o ingresso em religião relativamente às forças de quem nela pretende entrar. E nesse caso, também não há lugar para dúvidas; pois, os que entram em religião não confiam nas suas forças para nela perseverarem, mas no auxílio do poder divino, segundo aquilo da Escritura: Os que esperam no Senhor terão sempre novas forças, tomarão asas como de águia, correrão e não se fatigarão, andarão e não desfalecerão. Mas se houver algum impedimento especial, por exemplo, fraqueza do corpo ou ônus de dívidas ou obstáculo semelhante, há então necessidade de deliberação e de conselhos com aqueles de que se espera ajuda e não obstáculo. Por isso diz a Escritura: Vai tratar de santidade com um homem sem religião e com um injusto sobre a justiça, quase se dissesse: Não. Donde se segue: "Não atendas a estes em nenhum dos mencionados conselhos, mas acha–te de contínuo com o varão santo. No que, porém, não há necessidade de diuturna deliberação. Donde o dizer Jerónimo: Apressa–te, eu topeço; e antes corta que desata a corda que te prende a nau à terra. – Em terceiro lugar, podemos considerar o modo de entrar em religião, e em que religião se deva entrar. E, nessa matéria, pode–se também tomar conselho com aqueles que não sejam um impedimento.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. –­ Quando a Escritura diz – provai se os espíritos são de Deus – essas palavras se referem ao caso de ser duvidoso se o espírito é de Deus. Assim como pode ser duvidoso aos que já vivem numa religião se aqueles que se oferecem a ela são levados pelo Espírito de Deus ou se o fazem simuladamente. Por isso, devem provar o recém–vindo, para saberem se é movido pelo espírito divino. Mas, aquele que entra em religião não pode ser duvidoso se o propósito de nela entrar, que traz no coração, vem do Espírito de Deus, a que é próprio conduzir o homem à terra da retidão. Mas nem por isso fica demonstrado que não seja por inspiração de Deus, que certos retrocedem. Pois, nem tudo o que vem de Deus é incorruptível; do contrário as criaturas corruptíveis não viriam de Deus, como dizem os Maniqueus; e nem aqueles que têm a graça de Deus poderiam perdê–la – o que também é herético. Mas, o conselho de Deus é indissolúvel, pelo qual faz também as cousas corruptíveis e mutáveis, segundo aquilo da Escritura: O meu conselho subsistirá e toda a minha vontade se fará. Portanto, o propósito de entrar em religião não precisa de ser provado para se saber se vem de Deus, porque as coisas certas não precisam de discussão, no dizer da Glosa a um texto do Apóstolo.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Assim como a carne deseja contra o espírito, no dizer do Apóstolo, assim também frequentemente os amigos carnais são um obstáculo ao progresso espiritual, segundo aquilo da Escritura: Os inimigos do homem são os seus mesmos domésticos. Por isso Cirilo, expondo aquilo do Evangelho ­ Permite–me que me despida dos de minha casa – diz: O querer despedir–se dos de casa mostra estar dividido de certo modo; pois, comunicar ainda com os próximos e consultar os que não querem pensar com sabedoria, indica que quem o faz ainda está vacilante e capaz de retroceder. E por isso ouça as palavras do Senhor: Nenhum que mete a sua mão ao arado e olha para trás é apto para o reino de Deus. Pois, olha para trás quem a pretexto de tornar à casa e consultar os parentes, busca uma dilação.

RESPOSTA À TERCEIRA. – A edificação da torre significa a perfeição da vida cristã. A renúncia aos bens próprios são os gastos com a edificação dela. Ora, ninguém duvida ou delibera se quer fazer os gastos, ou se, tendo meios, quer fazer a torre; mas, só é objeto de deliberação saber se se têm os meios. Semelhantemente, não pode constituir objeto de deliberação, o saber alguém se deve renunciar a tudo quanto possui ou se, assim agindo, poderá chegar à perfeição; mas pode ser objeto de deliberação o saber se o que faz é dar de mão a tudo o que possui; pois, se não der de mão, o que é o fazer gastos, não pode, como no mesmo lugar se diz, ser discípulo de Cristo, o que é o edificar a torre.

Quanto ao temor dos que duvidam se, entrando em religião, poderão chegar à perfeição, esse temor é irracional, como o prova o exemplo de muitos. E por isso diz Agostinho: Do lado para onde tinha dirigido os meus olhares e por onde tremia de passar, mostrava–se–me a doce majestade da continência, que com casto sorriso convidava–me a me aproximar sem temor; e estendia, para me receber e abraçar, suas piedosas mãos, cheias de sem número de bons exemplos. Aí, muitos jovens e donzelas, aí uma juventude numerosa e reunindo as mais diversas idades, graves viúvas e virgens encanecidas estimulavam–me com as suas doces exortações, como se dissessem: Não poderás tu o que estes e estas puderam? Porventura estes e estas o puderam pelas suas próprias forças ou pela graça do Senhor seu Deus? Por que te fechas em ti mesmo e de ti mesmo foges? Atira–te nos seus braços, não temas; não irá ele retirar–se para que tu caias; arroja–te a ele com confiança e ele te receberá e te salvará!

Quanto ao exemplo citado, de Davi, não vem a propósito. Porque as armas de Saul, como diz a Glosa, são os sacramentos da lei antiga, que eram um pesado fardo. Ora, a religião é o suave jugo de Cristo; pois, pergunta Gregório, que de pesado impõe à nossa alma aquele que nos manda evitar todo desejo que perturba e nos adverte a fugir todos os caminhos penosos deste mundo?

E esse suave jugo aos que o tomarem sobre os ombros o Senhor promete a felicidade de gozar a Deus e o sempiterno repouso da alma. A ela nos conduza o mesmo que nô–lo prometeu. NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, DEUS BENDITO SOBRE TODAS AS COISAS E POR TODOS OS SÉCULOS. AMÉM.

Art. 9 – Se se deve induzir outrem a entrar em religião.

O nono discute–se assim. – Parece que ninguém deve induzir outrem a entrar em religião.

1. – Pois, S. Bento manda que não se dê facilmente ingresso aos desejosos de entrar em religião; mas, é dever experimentar se tem espírito de Deus. E o mesmo ensina Cassiano. Logo, muito menos se deve induzir quem quer que seja a entrar em religião.

2. Demais. – O Senhor diz: Ai de vós, porque rodeais o mar e a terra por farzerdes um prosélito e, depois de o terdes feito, o fazeis em dobro mais digno do inferno do que de vós. Ora, é o que fazem os que induzem outros a entrar em religião. Logo, parece esse um procedimento censurável.

3. Demais. – Ninguém deve induzir outrem a praticar um ato que redunda em detrimento deste. Ora, os induzidos a entrar em religião às vezes se obrigam a fazê–lo numa religião maior. Logo, não parece louvável induzir alguém a entrar em religião.

Mas, em contrário, a Escritura: Uma cortina esteja enlaçada com outra. Logo, deve um levar o outro ao serviço de Deus.

SOLUÇÃO. – Os que induzem os outros a entrar em religião não só não pecam mas merecem um grande prêmio. Pois, diz a Escritura: Aquele que fizer converter a um pecador do erro do seu descaminho salvará a sua alma da morte e cobrirá a multidão dos pecados. E noutro lugar: Os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça, esses luzirão como as estrelas por toda a eternidade.

Pode porém haver, nesta matéria, uma tríplice desordem. – Primeiro se alguém obrigasse outrem com violência a entrar em religião, o que é proibido por uma decretal. – Segundo, se induzisse outrem a entrar em religião, por simonia, por meio de presentes que lhe fizesse. Mas este não é o caso de quem dê o necessário a um pobre, no século, destinando–o a entrar em religião; ou o de quem, sem qualquer pacto, fizesse pequenos presentes para captar a familiaridade. – Terceiro, se o aliciasse com mentiras; pois, o exporia ao perigo iminente de que voltasse quando se visse enganado, e então vem o último estado deste homem a ser pior que o primeiro, na expressão do Evangelho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ­ Aos induzidos a entrar em religião se lhes concede, contudo, um tempo de prova, durante o qual experimentem –as dificuldades dela. E desde logo, não se lhes dá facilmente o ingresso nela.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Segundo Hilário, as referidas palavras do Senhor eram uma condenação do esforço que faziam os Judeus, depois da pregação de Cristo, para, atraindo os gentios e mesmo os cristãos ao rito judaico, deles duplamente fazer filhos da guerra. Pois, além de não lhes serem perdoados no judaísmo, os pecados antigos, que cometeram, incorriam ainda no reato da perfídia judaica. E assim, esse texto não vem ao caso. – Segundo Jerônimo, porém, ele se refere aos Judeus, mesmo no tempo em que lhes era lícito observar as cerimônias da lei, e quando aquele que se convertia ao Judaísmo, por meio deles, se era gentio vivia pura e simplesmente no erro; mas depois, vendo os vícios dos seus mestres, revertia ao seu vómito e, tornado de novo gentio e quase prevaricador, fazia–se digno de uma pena maior. Por onde, é claro que induzir outrem ao culto de Deus ou da religião, não é censurável; mas censurável seria dar mau exemplo ao convertido, o que o tornaria pior.

RESPOSTA À TERCEIRA. – No maior inclui–se o menor. E portanto, quem se obrigou, por voto ou por juramento, a entrar numa religião menor, pode ser licitamente induzido a transferir–se para outra, maior; salvo se tiver algum impedimento especial, como doença, ou a esperança de maior progresso na religião menor. Quem se obrigou, porém, por voto ou por juramento a entrar numa religião maior não pode ser licitamente induzido a transferir–se para outra, menor, salvo por alguma causa evidente, e isso com dispensa do superior.

Art. 8 – Se é lícito o transferir–se de uma religião para outra que pelo menos seja mais rigorosa.

O oitavo discute–se assim. – Não parece lícito o transferir–se de uma religião para outra embora mais rigorosa.

1. – Pois, diz o Apóstolo: Não abandonando a nossa congregação, como é costume de alguns. Ao que diz a Glosa: Isto é os que cedem ao temor de perseguição ou que, por presunção própria, afastam–se do pecador, como imperfeito, afim de parecerem perfeitos. Ora, parece que isso fazem os que se transferem de uma religião para outra mais perfeita. Logo, parece que tal é ilícito.

2. Demais. – A profissão dos monges é mais rigorosa que a dos cónegos regulares. Ora, não é lícito a ninguém passar do estado dos cônegos regulares para o dos monges. Pois, diz uma Decretal: Mandamos e universalmente proibimos que nenhum cónego regularmente professo ­ salvo, o que não suceda se cair publicamente ­ se faça monge. Logo, parece que a ninguém é lícito transferir–se de uma religião para outra maior.

3. Demais. – Cada um está obrigado a cumprir o voto que fez, na medida em que o puder licitamente. Assim, quem fez o voto de continência, mesmo depois de ter pronunciado as palavras do contrato de matrimônio, mas antes da cópula carnal, está obrigado a cumprir o voto, porque pode fazê–lo entrando numa religião. Se, portanto, é lícito a alguém o transferir–se de uma religião para outra, estará obrigado a fazê–lo, se antes, quando vivia no século, emitiu esse voto. O que não é admissível, porque daí muitas vezes poderia nascer escândalo. Logo, nenhum religioso pode transferir–se de uma religião para outra, mesmo mais rigorosa.

Mas, em contrário, uma decretal determina: As virgens consagradas a Deus que, tendo em vista vantagens espirituais advindas de uma vida mais rigorosa, quiserem transferir–se para outro mosteiro e decidirem nele permanecer, o Sínodo o permite. Se o mesmo podem fazer quaisquer outros religiosos. Logo, pode um licitamente transferir–se de uma religião para outra.

SOLUÇÃO. – Não é louvável transferir–se um religioso para outra religião, salvo por grande utilidade ou necessidade. Quer por escandalizar muitas vezes um tal procedimento os que ficam; quer também porque mais facilmente progredirá o religioso na religião a que está habituado do que em outra com a qual não o está, em igualdade de condições. Por isso diz o Abade Nésteros: O bem de cada um está em marchar com perseverança no caminho que escolheu, em esforçar–se com todo o estudo e diligência para chegar à perfeição da vida que abraçou; e que de nenhum modo abandone a regra que elegeu no dia da sua profissão. E logo, dando a razão disso, acrescenta: Pois, é impossível um mesmo homem resplender simultaneamente em todas as virtudes. E quem quisesse tentá–lo viria por forca a não conseguir a perfeição em nenhuma virtude, por querer praticar todas na sua integridade. Ora, as diversas religiões fulgem, cada uma em obras virtuosas que lhes são próprias.

Mas, pode um religioso louvavelmente transferir–se para outra religião por três causas. – Primeiro, pelo desejo de uma religião mais perfeita. Ora, a excelência de uma religião como dissemos, não depende só do seu rigor; mas, principalmente, do fim a que ela se ordena; e secundariamente, pelo discernimento das observâncias proporcionadas ao fim proposto. – Segundo, pelo desviar–se a sua religião da perfeição devida. Por exemplo, quando numa religião mais rigorosa os religiosos começam a levar uma vida mais remissa, procede louvavelmente o religioso que passar para outra menos rigorosa, mas onde melhor se observam as regras. Por isso, o Abade João, diz de si mesmo que da vida solitária, que primeiro professara, passou para a vida menos rigorosa dos que vivem em comunidade, porque a vida eremitica começara a declinar e a tornar­se frouxa nas suas observâncias. – Terceiro, por doença ou fraqueza, donde muitas vezes procede que não pode o religioso obedecer às prescrições de uma religião mui rigorosa; ao passo que poderia obedecer às de outra que o fosse menos.

Mas, esses três casos comportam diferenças. Assim, no primeiro caso, o religioso deve, por humildade, pedir licença; a qual, porém, não lhe pode ser negada por ser mais rigorosa a religião a que se transfere. Mas, se nesse ponto houver dúvida provável, é necessário então a decisão do superior. – Semelhantemente, no segundo caso também requer o juízo do superior. – E enfim, no terceiro caso é, além disso, necessária a dispensa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÃO. – Os que se transferem para uma religião mais rigorosa não o fazem por presunção, para parecerem justos; mas por devoção, para mais se santificarem.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Ambas as religiões, a dos monges e a dos cónegos regrantes ordenam­se às obras da vida contemplativa. E dentre essas obras as principais são a celebração dos divinos mistérios, o que diretamente se ordena a ordem dos cónegos regrantes, que exercem as funções de clérigos religiosos. A religião dos monges, porém, não competem as funções de clérigos. Portanto, embora a ordem dos monges seja de uma observância mais estrita, se os monges fossem leigos lhes seria lícito transferirem­se da sua ordem para a dos cónegos regrantes, segundo o que diz Jerónimo – vive no mosteiro de modo a mereceres ser clérigo; mas não ao inverso. Mas, se os monges forem Clérigos com o exercício dos ministérios sagrados, vivem com maior rigor a vida dos cónegos regrantes. E portanto, será lícito passar da ordem dos cónegos regrantes para a dos monges: contanto que se peça licença ao superior.

RESPOSTA À TERCEIRA. – O voto solene pelo qual alguém se obriga a entrar numa religião menor, é mais forte que o voto–simples pelo qual se obriga a uma religião maior. Assim, quem contraísse matrimónio depois de um voto simples, não ficaria aquele dirimido, como o ficaria depois do voto solene. E portanto, quem já professou numa religião menor não está obrigado a cumprir o voto simples que fez de entrar numa religião maior.

Art. 7 – Se os presbíteros com curato podem licitamente entrar em religião.

O sétimo discute–se assim. – Parece que os presbíteros com curato não podem licitamente entrar em religião.

1. – Pois diz Gregório, que quem aceitou a cura de almas, e terrivelmente advertido com as palavras seguintes: Meu filho, se prometeste pelo teu amigo, e a tua mão que deste em penhor a um estranho. E acrescenta: Pois prometer pelo amigo e responder pela alma de outrem com o perigo da salvação própria. Ora, quem está preso a outrem por uma dívida não pode entrar em religião sem pagar o que deve, podendo–o. Ora, como o sacerdote pode exercer a cura de almas, a que se obrigou com o perigo da salvação da sua alma, parece não lhe ser licito abandonar a cura delas para entrar em religião.

2. Demais. – O que a um é lícito o é, pela mesma razão, a todos os que estão nas mesmas condições. Ora, se todos os presbíteros com cura de almas entrassem em religião, o povo ficaria sem pastores, o que é inconveniente. Logo, parece que os presbíteros com curato não podem licitamente entrar em religião.

3. Demais. – Entre os atos a que as religiões se ordenam estão sobretudo aqueles pelos quais se transmitem aos outros o fruto da contemplação. Ora, tais atos são próprios dos presbíteros com cura de almas e dos arquidiáconos, que têm o dever de pregar e ouvir confissões. Logo, parece não ser lícito ao presbítero com cura d'almas ou ao arquidiácono transferir–se para uma religião.

Mas, em contrário, uma decretal determina: O clérigo que, sob a autoridade do seu bispo, governa a sua igreja e vive como padre secular, quiser realizar a sua salvação, inspirado pelo Espírito Santo, nalgum mosteiro ou numa cânonia regular, mesmo contra a vontade do seu bispo, que esse, por nossa autoridade, possa seguir livremente a sua inspiração.

SOLUÇÃO. – Como dissemos, a obrigação de voto perpétuo sobrepuja a qualquer outra. Ora, propriamente só os bispos e os religiosos são os obrigados por voto perpétuo e solene a vacar ao serviço divino. Os presbíteros com curato e os arquidiáconos não estão obrigados por voto perpétuo e solene a exercer a cura de almas, como o estão os bispos. Por isso, os bispos não podem abandonar as suas funções em nenhuma ocasião, sem autoridade do Romano Pontífice. Ao contrário, os arquidiáconos e os presbíteros com cura de almas podem livremente depor nas mãos do bispo a cura que lhes foi cometida, sem licença especial do Papa, único que pode dispensar dos votos perpétuos. Por onde, é manifesto que aos arquidiáconos e aos presbíteros com curato é lícito transferirem–se para uma religião.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – Os presbíteros com curato e os arquidiáconos se obrigaram a exercer a cura de almas dos seus súditos, enquanto conservam o arquidiaconato ou a paróquia. Mas, não se obrigaram a conservar perpetuamente o arquidiaconato ou a paróquia.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Diz Jerónimo: Poderás tu com a tua língua viperina faze–los sofrer (aos religiosos) mordidas crudelíssimas, com tais argumentos – se todos se encerrassem na solidão, quem celebrará nas igrejas? Quem ganhará para Deus os homens do mundo? Quem poderá exortar os pecadores à virtude? – Mas, direi eu, por minha vez, se todos são fátuos contigo, quem poderá ser sábio? Pois, nem a virgindade, poderá ser recomendada: porque, se todos forem virgens, não haverá casamentos e desaparecerá o género humano. Mas, a virtude é rara e nem todos a praticam, Por onde é clara a estultícia desse temor; por exemplo se todos temessem tirar água de um rio de medo que ele secasse.      

Art. 6 – Se por submissão aos pais é dever desistir de entrar em religião.

O sexto discute–se assim. – Parece que por submissão aos pais deve–se desistir de entrar em religião.

1. – Pois, não é lícito omitir o necessário para fazer o que é de livre vontade. Ora, a submissão aos pais é de necessidade do preceito que manda honrá–las; e por isso o Apóstolo diz: Se alguma viúva tem filhos ou netos, aprenda primeiro a governar a sua casa e a corresponder a seus pais. Ora, entrar em religião é um ato de livre vontade. Logo, parece que ninguém deve deixar de submeter–se aos pais, para entrar em religião.

2. Demais. – A sujeição dos filhos aos pais é maior que a do servo ao senhor; porque a filiação é natural, ao passo que a servidão resulta da maldição do pecado. Ora, o servo não pode deixar de obedecer ao seu senhor para entrar em religião e receber as ordens sacras, como o determina uma decretal. Logo, muito menos pode o filho deixar de sujeitar–se ao pai, para entrar em religião.

3. Demais. – É maior a obrigação do filho para com o pai do que para com quem deve dinheiro. Ora, os devedores de dinheiro a outrem não podem entrar em religião. Pois, diz Gregório e está numa decretal: Os que têm compromissos públicos, se porventura quiserem entrar num mosteiro, não devem nele de nenhum modo ser recebidos, salvo depois que solverem esses negócios. Logo, parece que muito menos podem os filhos entrar em religião, furtando–se à sujeição paterna.

Mas, em contrário, o Evangelho diz que Jacó e João, deixando as redes e o pai foram em seguimento do Senhor. E isso nos ensina, como diz Hilário, que aqueles que querem seguir a Cristo, estão desatados dos cuidados da vida do século e da casa paterna.

SOLUÇÃO. – Como dissemos, quando tratámos da piedade filial, os pais como tais exercem a função de princípio; por isso devem cuidar dos seus filhos. E portanto, a ninguém que tenha filhos, é lícito entrar em religião, deixando de todo o cuidar deles, isto é, sem ter tomado providências sobre a educação deles. Donde vem dizer o Apóstolo: E se algum não tem cuidado dos seus, esse negou a fé e é pior que um infiel. Mas, por acidente, podem os pais precisar da assistência dos filhos, quando se encontrarem em alguma necessidade. Donde concluímos, que os filhos, cujos pais se encontrarem em necessidade tal que não possam ser socorridos comodamente senão pelo serviço deles, a esses não é lícito entrar em religião, abandonando a assistência devida aos pais. Mas, se estes não padecerem uma necessidade tal que precisem absolutamente do auxílio dos filhos, podem os últimos, pondo de parte a sujeição devida aos pais, entrar em religião contra a vontade deles. Pois, após a idade de puberdade, todo ingênuo tem a liberdade de dispor, no concernente ao seu estado, sobretudo quando se trata do serviço divino; e mais devemos obedecer ao Pai dos espíritos, para que vivamos, do que aos pais carnais, como diz o Apóstolo. Por isso o Senhor, como se lê no Evangelho, repreendeu o discípulo que não quis segui–lo imediatamente, a pretexto de dar sepultura ao pai; pois, havia outros pelos quais podia cumprir essa obrigação, como adverte Crisóstomo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – O preceito de honrar aos pais não abrange somente a assistência material mas também a espiritual e o respeito devido. Ora, também os que vivem em religião podem cumprir o preceito de honrar os pais, orando por eles, prestando–lhes reverência e auxílio, como é possível a religiosos. Porque também os filhos que vivem no século honram aos país diversamente, conforme a condição de cada um.

RESPOSTA À SEGUNDA. – A servidão foi introduzida como pena do pecado; por isso, priva o homem de um bem que, sem ela, ele teria, a saber, o de poder dispor livremente da sua pessoa: pois, o servo, o que é, do senhor o é. Mas, o filho não sofre nenhum detrimento por estar sujeito ao pai, de modo que não possa dispor livremente da sua pessoa consagrando–se ao serviço de Deus – o que é por excelência o bem do homem.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem contraiu uma obrigação certa não pode licitamente eximir–se a ela, se tem meios de cumpri–la. Quem, portanto, se obrigou a prestar contas a outrem ou a pagar uma certa dívida, não pode deixar licitamente de o fazer, para entrar em religião. Se, porém, deve uma soma de dinheiro e não tem com o que pagá–la, está obrigado a fazer o que puder, por exemplo, cedendo os seus bens aos credores. Pois, segundo o direito civil, por uma dívida não responde a pessoa do homem livre, mas só os seus bens; porque a pessoa do homem livre supera toda estimação pecuniária. Por onde, depois de entregues os seus bens, pode licitamente entrar em religião; nem está obrigado a ficar no século para ganhar o com que pague a dívida. – O filho, porém, não esta preso ao pai por nenhum débito especial, salvo em caso de necessidade, como dissemos.

Art. 5 – Se os menores devem ser recebidos na religião.

O quinto discute–se assim. – Parece que os menores não devem ser recebidos em religião.

1. – Pois, uma decretal diz: Ninguém seja tonsurado senão na idade legítima e de espontânea vontade. Ora, os menores não têm idade legítima nem espontânea vontade, por não terem o perfeito uso da razão. Logo, parece que não devem ser recebidos em religião.

2. Demais. – O estado de religião é um estado de penitência; por isso a religião deriva de religar, ou de reeleger, como diz Agostinho. Ora, os menores não precisam fazer penitência. Logo, parece que não devem entrar em religião.

3. Demais. – Como o juramento, também o voto nos obriga. Ora, os menores de quatorze anos não devem obrigar–se por juramento, como dispõe uma decretal. Logo, parece que também não podem obrigar–se por voto.

4. Demais. – Parece ilícito alguém obrigar–se, por tal obrigação que possa ser justamente anulada. Ora, o impúbere, que se obrigar a entrar em religião, pode ser proibido de o fazer pelo pai ou pelo tutor. Assim, uma decretal determina: A donzela que, antes dos doze anos, espontaneamente receber o véu de religiosa, pode ter o seu ato anulado imediatamente pelo pai ou pelo tutor, se o quiserem. Logo, é ilícito os menores, sobretudo antes da idade de puberdade, entrar em religião ou obrigarem–se a fazê–lo.

Mas, em contrário, o Senhor diz no Evangelho: Deixai os meninos e não embaraceis que eles venham a mim. Expondo o que, diz Orígenes: Os discípulos de Jesus, antes de terem aprendido o senso íntimo da justiça, repreendem os que querem oferecer os filhos a Cristo. Mas o Senhor exorta os seus discípulos a condescenderem com as necessidades dessas crianças. Devemos, pois, ter atenção para não desprezar, levados pela presunção de grandeza e uma sabedoria mais excelente, os pequenos na Igreja, proibindo–os de se achegarem a Jesus.

SOLUÇÃO. – Como dissemos, duas sortes há de votos religiosos. Uma é a do voto simples, consistente na só promessa feita a Deus, a qual procede da deliberação interior da alma. E esse voto tem eficácia por direito divino. O que porém pode ser impedido de dois modos. – Primeiro, por falta de deliberação, como se dá com os loucos, cujos votos não são obrigatórios. E o mesmo se dá com os menores, que ainda não tem o uso completo da razão, que os torna capazes de dolo; uso esse que os meninos começam a ter, no geral dos casos, cerca dos quatorze anos, e as meninas cerca dos doze, que são os chamados anos da puberdade. Em certos casos, porém, essas idades se antecipam e, em outros, retardam, conforme as disposições diversas da natureza. – De outro modo, a eficácia do voto simples fica impedida, quando quem fez o voto não é senhor da sua pessoa. Assim, o servo que, embora tendo o uso da razão, fez voto de entrar em religião ou de se ordenar, sem o seu senhor o saber; poderia este então anular o voto. Ora, como os impúberes e as impúberes estão naturalmente sob o pátrio poder, no concernente à disposição da sua vida, poderá o pai revogar–lhes o voto ou aceitá–lo, se lhe aprouver, como expressamente o diz a Escritura, da mulher.

Assim, pois, se um impúbere fizer um voto simples, antes de ter o uso pleno da razão, não fica obrigado por esse voto. Se porém já tiver o uso da razão, antes da puberdade, fica obrigado, pelo que de si depende, pelo seu voto; contudo essa obrigação pode ser dissolvida pela autoridade do pai, sob cujo poder ainda vive. Porque a disposição da lei, pela qual um homem está sujeito a outro, leva em conta aquilo que geralmente se dá. Se porém já tiverem passados os anos da puberdade, o voto não pode ser anulado pela autoridade paterna; se contudo ainda não tivesse o pleno uso da razão, sua obrigação seria nula perante Deus.

Outro é o voto solene, que torna quem o fez monge ou religioso. O que está sujeito à ordenação da Igreja, por causa da solenidade que o acompanha. E como a Igreja considera o que se dá comumente, a profissão feita antes da puberdade, embora quem a fez tenha o pleno uso da razão ou seja capaz de dolo, não produz o efeito de torná–lo desde logo religioso.

E contudo, embora não se possa professar antes da idade de puberdade, pode um, com a vontade dos pais, ser recebido numa religião para aí educar–se. Assim, o Evangelho diz, de João Batista, que o menino crescia e se fortificava nos desertos. Por isso, como diz Gregório, os nobres romanos começaram a entregar os filhos a S. Bento afim de serem educados para Deus onipotente. O que é muito sensato, segundo aquilo da Escritura: Bom é para o varão o ter levado o jugo desde a sua mocidade. Por onde, de acordo com o costume geral, os meninos vão se exercendo naqueles ofícios ou artes, que deverão praticar durante a vida.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – A idade legítima, para a tonsura, com o voto solene de religião é a idade de puberdade, em que a vontade do homem pode decidir–se espontaneamente. Mas, os anos anteriores à puberdade podem ser a idade legítima para a tonsura de quem quer ser educado numa religião.

RESPOSTA À SEGUNDA. – O estado da religião principalmente se ordena a alcançar a perfeição, como dissemos. E por isso nela podem entrar os menores, que facilmente se deixam instruir. Mas, por consequência, se diz ser um estado de penitência, porque a observância dos preceitos da religião elimina as ocasiões de pecado, como dissemos.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Os menores assim como não podem ser coagidos a jurar também não o podem a fazer voto. Contudo, se se obrigaram por voto ou por juramento a fazer alguma coisa, ficam obrigados perante Deus, se tiverem o uso da razão; embora não fiquem obrigados perante a Igreja, antes dos quatorze anos.

RESPOSTA À QUARTA. – A Escritura não censura a mulher quando, já donzela pela idade, por fazer voto sem o consentimento dos pais; mas esse voto eles poderão anular. Por onde, é claro que não peca fazendo um voto, mas entende–se que se obriga pelo voto, em si mesmo considerado, sem prejuízo da autoridade paterna.

Art. 4 – Se quem fez voto de entrar em religião está obrigado a nela permanecer perpetuamente.

O quarto discute–se assim. – Parece que quem fez voto de entrar em religião está obrigado a nela permanecer perpetuamente.

1. – Pois, é melhor não entrar em religião que, depois de ter entrado, sair, segundo aquilo da Escritura: Melhor lhes era não ter conhecido o caminho da verdade, do que, depois de o ter conhecido, tornar para trás. E, noutra parte: Nenhum que mete a sua mão ao arado e olha para trás é apto para o reino de Deus. Ora, quem se obrigou por voto a entrar em religião tem que nela entrar, como se disse. Logo, também tem que aí permanecer perpetuamente.

2. Demais. – Todos devem evitar aquilo de que resulta escândalo e serve de mau exemplo aos outros. Ora, quem sai da religião em que entrou e volta ao século dá mau exemplo e é causa de escândalo para os outros, que se dissuadem de entrar em religião e ficam animados a sair dela. Logo, parece que quem entrou em religião para cumprir um voto, que anteriormente fez, tem que ficar nela perpetuamente.

3. Demais. – O voto de entrar em religião é considerado um voto perpétuo e, portanto, tem preferência sobre os votos temporais, como se disse. Ora, Isto não seria se alguém, depois de ter feito o voto de entrar em religião, nela entrasse com o propósito de sair. Parece, pois, que quem fez o voto de entrar em religião também fica obrigado a permanecer nela perpetuamente.

Mas, em contrário, o voto de profissão, por obrigar quem o fez a permanecer perpetuamente na religião, preexige um ano de prova, a que não preexige o voto simples, pelo qual alguém se obriga a entrar em religião. Logo, parece que quem fez o voto de entrar em religião nem por isso está obrigado a permanecer nela perpetuamente.

SOLUÇÃO. – A obrigação que o voto supõe resulta da vontade. Pois, é a vontade que faz votos, diz Agostinho. Portanto, a obrigação imposta pelo voto não pode ter maior extensão que o ato da vontade e a intenção de quem o pronunciou. Se pois, quem fez o voto tinha a intenção de obrigar–se, não só a entrar em religião, mas também a nela permanecer perpetuamente, fica obrigado a perpetuamente permanecer. Mas, se tinha a intenção de se obrigar a entrar em religião a título de experiência, conservando a liberdade de nela permanecer ou não, é claro que não tem a obrigação de permanecer. Se porém, quando fez o voto, pensava simplesmente em entrar em religião, sem cogitar da liberdade de sair ou de nela ficar perpetuamente, então ficou obrigado a entrar na forma do direito comum, pelo qual se dá a quem entra em religião um ano de prova. E portanto, não está obrigado a nela permanecer perpetuamente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. – É melhor entrar em religião com o ânimo de experimentar, que não entrar de nenhum modo; pois do primeiro modo dispõe–se a nela ficar perpetuamente. Contudo, só se entende que alguém retrocedeu ou olhou para trás, quando deixou de cumprir aquilo a que se obrigou. Do contrário, todo aquele que, durante algum tempo praticou uma boa obra, se a deixasse de fazer já não seria capaz do reino de Deus, o que evidentemente é falso.

RESPOSTA À SEGUNDA. – Quem sair da religião em que entrou, sobretudo por uma causa justificada, não causa escândalo nem dá mau exemplo. E quem disso se escandalizar o seu escândalo será passivo, mas não ativo, por parte do que saiu. Pois; fez o que lhe era lícito fazer e o que convinha, pelo seu motivo justo, por exemplo, por doença, por fraqueza ou por qualquer outra causa semelhante.

RESPOSTA À TERCEIRA. – Quem entra numa religião e logo dela sai não cumpriu o seu voto, porque quando o fez não tinha a intenção de proceder dessa maneira. E, portanto, está obrigado a mudar de propósito, de modo que pelo menos se resolva a experimentar se deve nela permanecer. Porém, não está obrigado a aí permanecer perpetuamente.

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