Pe. Gregoire Célier, FSSPX
PRIMEIRA PARTE: O LIBERALISMO
O Liberalismo é o grande erro dos tempos modernos. Ele está na raiz das múltiplas correntes de pensamento e de ação que se denominam filosofia independente, progresso democrático, laicização da sociedade, defesa dos direitos humanos, advento do socialismo, e que se inclinam em direção ao horizonte intransponível do obscurantismo racionalista do comunismo e suas técnicas de escravização e, hoje em dia, da ditadura açucarada do globalismo e do american way of life.
Na base do liberalismo está a recusa do homem de reconhecer a validade de toda lei, de toda norma, de toda autoridade que não advenha dele mesmo. O liberalismo representa o desenvolvimento sistemático do principio de independência e autonomia da criatura em relação ao seu Criador, que outra coisa não é senão o pecado de Satã e dos nossos primeiros pais no Jardim do Éden.
Não é difícil entender que esse liberalismo vai de encontro à religião católica, que repousa sobre o reconhecimento por parte da criatura da soberania e do domínio absoluto de Deus em todas as coisas, e que se exprime em sua plenitude pelo sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz, oferecendo-se a seu Pai pelos homens em espírito de expiação e submissão: “Humilhou-se a si mesmo, feito obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2, 8).
Nascido durante a pretensa Reforma do século XVI, depois teorizado pelos “Filósofos das Luzes”, o liberalismo irrompeu brutalmente na sociedade católica em 1789 na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que em poucos anos levaria à completa laicização da sociedade1.
O presente trabalho tem por objetivo apresentar sucessivamente: 1) o liberalismo “puro” e original; 2) seu representante religioso, o “liberalismo católico”; finalmente, e sobretudo, 3) os autores que se opuseram a ele e que a História agrupa sob o nome de “Escola do Antiliberalismo Católico”.
O ERRO DO LIBERALISMO
Acabamos de nos referir ao liberalismo como o maior de todos os erros da sociedade moderna. Essa afirmação não é falsa, mas é preciso esclarecer desde logo que se trata de uma simplificação. Dom Paul Benoit, em sua obra-prima “A Cidade anticristã no século XIX (primeiro volume: os erros modernos)”, em que descreve e analisa tais erros, consagra ao liberalismo apenas um capítulo dentre os cinqüenta da obra. E o Syllabus, com suas oitenta proposições, refere-se explicitamente ao liberalismo em apenas quatro delas.
Porque, se a verdade é una, o erro é múltiplo. Não se pode, portanto, confiná-lo em uma só fórmula, uma só direção, uma só expressão. Ele se espalha, se dispersa, se multiplica, se contradiz. Por isso, dizer que o liberalismo representa o maior erro da sociedade moderna constitui uma esquematização.
Mesmo restrito aos erros especificamente modernos (nascidos de Lutero), que se caracterizam pela vontade de independência em relação a Deus, à fé e à Igreja, falar de liberalismo já é uma simplificação do discurso, pois, se nos detivermos nas relações entre a criatura espiritual e Deus, mediadas pela graça sobrenatural, deve-se falar de “naturalismo”; se nos interessarmos pelo exercício da razão humana em face da Revelação divina, deve-se falar de “racionalismo”; se considerarmos a situação da vontade em relação à obrigação religiosa, deve-se falar de “indiferentismo”; se examinarmos a ação da vontade em relação com os mandamentos de Deus, deve-se falar de “moral independente”.
De fato, somente quando falamos da vida política e social em sua relação com Deus e a Revelação podemos empregar com rigor o termo “liberalismo”. Mas prevaleceu o uso, apoiado na prática comum da linguagem humana (quando dizemos, por exemplo, “beber um copo d’agua” em vez de “beber o conteúdo de um copo d’água”), de agrupar naturalismo, racionalismo, indiferentismo, moral independente etc., sob o termo “liberalismo”, na medida em que o liberalismo, ao se voltar para o que tem caráter social e público, é mais fácil de perceber e caracterizar.
Assim é que de boa vontade resumimos o conjunto dos erros modernos com a palavra "liberalismo", enfatizando o aspecto social e político. É nesse sentido que se deve entender o título deste artigo.
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O liberalismo em matéria de fé e de religião é uma doutrina que pretende emancipar o homem, em maior ou menor grau, de Deus, da sua lei, da sua Revelação, da sua Igreja, não apenas no plano puramente individual (como pretenderia algum libertino do século XVII) mas também (e sobretudo, talvez) no plano social e político.
O liberalismo busca acima de tudo a emancipação diante de Deus como fim último do homem e da sociedade humana. E, para alcançá-la, estabelece como princípio fundamental que a liberdade é o primeiro e principal bem do homem, um bem sagrado e absolutamente inviolável, que não se pode ameaçar de forma alguma.
Em uma palavra: o liberal é um fanático da independência, a qual defende a todo momento e em todos domínios, mas em primeiro lugar no domínio político e social, em tudo que diz respeito às ações exteriores e às relações dos homens entre si. A liberdade sem limites deve ser, segundo ele, o eixo em torno do qual se organizam todas as relações humanas, a regra pela qual serão julgadas todas as coisas. Será equilibrado, justo e bom tudo o que tiver essa liberdade por fundamento; será insuportável e mau tudo que a combata ou entrave. Contra essa restrição da liberdade, a insurreição se torna, segundo a expressão consagrada, “o mais sagrado dos deveres”.
O liberalismo pretende portanto “liberar” o homem, não apenas da violência física, mas também do receio das leis e das penas, das dependências e necessidades sociais, da afirmação da verdade universal, estável e obrigatória, em suma, dos laços de toda natureza que, antes do liberalismo, impediam o homem de agir segundo sua inclinação natural. Essa liberdade individual de escolha, de expressão e de ação é o bem por excelência, o bem diante do qual tudo deve ceder, à exceção do que for estritamente necessário para a ordem material da sociedade: “Minha liberdade termina onde começa a liberdade alheia”.
A conseqüência imediata e evidente desse princípio (mesmo que essa conseqüência tenha levado anos para se traduzir em fatos e, ainda assim, de forma incompleta) é a separação entre a sociedade política e a religião. A religião, de fato, pelo seu caráter absoluto, é o laço mais forte que pode prender o homem. Uma das etimologias que classicamente se atribui à palavra “religião”, “religare”, do latim “religar”, alude a essa qualidade de vínculo.
Que o homem individual possa por si mesmo escolher uma religião na intimidade da consciência, que possa exprimir a fé e realizar práticas de culto (na medida em que não sejam contrárias à ordem pública), sem dúvida, faz parte de sua liberdade inviolável. Mas que uma religião possa se impor a todos como majoritária, tanto na intimidade da consciência individual quanto no domínio público e político, é a mais intolerável e inaceitável das opressões. Eis porque a expressão suprema do liberalismo é o “laicismo”, essa vontade de empurrar a religião para fora da esfera pública, de confiná-la ao domínio privado.
PERIODIZAÇÃO DA ESCOLA LIBERAL
O termo “liberalismo” é recente. Atribui-se a Madame de Staël (1766-1817). Todavia, o fundamento dessa ideologia é consubstancial ao próprio pecado e remonta, pois, à Queda de nossos primeiros pais, ou mesmo à revolta de Lúcifer. É entre esses dois limites (a longa história do fundo ideológico, e a história recente da idéia e da palavra propriamente dita) que deve se inserir nossa tentativa de periodização do liberalismo.
O Pai do liberalismo é naturalmente o primeiro revoltoso: Satã. Recusando com orgulho o dom sobrenatural da graça porque não mais queria depender de seu Criador e Benfeitor, decidido a alcançar a beatitude pelas próprias forças e em virtude das escolhas pessoais, comprazendo-se das qualidades de sua natureza esplêndida, lançou às infinitudes do Céu o grito de rebelião: Non serviam! “Não servirei, não obedecerei!”. A essa audácia sacrílega, São Miguel Arcanjo opôs vitoriosamente a afirmação do direito supremo de Deus à obediência de suas criaturas: Quis ut Deus? “Quem como Deus?”.
Essa origem primeva do liberalismo Leão XIII a indica e explicita na encíclica dedicada ao tema da liberdade, Libertas Praestantissimum, no momento em que o papa trata do liberalismo: “Mas há um grande número de homens que, a exemplo de Lúcifer, — de quem são estas palavras criminosas: Não obedecerei, — entendem pelo nome de liberdade o que não é senão pura e absurda licença. Tais são aqueles que pertencem à escola tão espalhada e tão poderosa desses homens que foram tirar o seu nome à palavra liberdade, querendo ser chamados Liberais".
Depois da revolta luciferina, veio aos nossos primeiros pais a tentação do demônio disfarçado sob a aparência de serpente. Eles cederam e corromperam assim a bela natureza humana recebida de Deus, a sua própria e a de seus descendentes, além de perder o dom supremo da graça santificante, que os fazia amigos de Deus. A infeliz humanidade, cujas potências inferiores passaram a sofrer a excitação da concupiscência, cuja razão ignorante e revoltada encontra enorme dificuldade de conhecer a Deus e servi-lo, segue desde então de pecado em pecado, de erro em erro, de paixão em paixão, enquanto as instituições, as leis e mesmo o sentimento religioso se vai corrompendo e dissolvendo.
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Nesse sentido, podemos dizer que o liberalismo sempre existiu como tendência, como prática, como realidade cotidiana. No entanto, é só no século XVI, com Lutero, que começou a existir como sistema intelectual e a se constituir como doutrina explícita.
O monge agostiniano sacudiu a autoridade doutrinal da Igreja e erigiu, no domínio religioso, a liberdade individual como princípio e norma suprema, sob o nome de “livre exame”. Certamente, de início, pretendeu restringir-se somente ao domínio religioso e nada mudar em matéria filosófica, política, econômica etc. Mas a lógica das idéias é sempre mais forte que as intenções ou desejos de quem as enuncia. Se o princípio do livre exame é verdadeiro em matéria religiosa (isto é, no domínio mais elevado e importante da vida humana) por que não poderia, ou até deveria, estender-se a todo o resto da vida humana?
A desordem começa sempre na inteligência. A filosofia de Aristóteles, corrigida e ampliada por Santo Tomás de Aquino graças ao tesouro dos ensinamentos das Escrituras e dos Pais da Igreja, apresentava-se como o desenvolvimento sistemático das intuições fundamentais do senso comum (ou bom senso) e, ao mesmo tempo, como a armadura conceitual perfeita que permitia acolher e organizar o dogma revelado. Sua grandeza estava em ser plenamente fiel às regras da razão e, ao mesmo tempo, estar rigorosamente de acordo com as verdades da fé.
Essa união fecunda rompeu-a Descartes, o pai da filosofia “moderna” ou “separada”. Ao se distanciar e romper com a tradição tomista e escolástica, pretendia reconstruir por si mesmo todo o edifício do pensamento, libertando-se da fé, da tradição e da natureza das coisas. Intelectualmente, Descartes é já o típico liberal, pois para ele a inteligência não é mais medida pelo real a que se submete humildemente, mas, ao contrário, é independente do real e o mensura.
Kant se limitará a extrair daí as conseqüências e operar o que chamou de “revolução copernicana da filosofia”. Doravante, não será mais o objeto, o real, que determinará o sujeito, o espírito cognoscente: ao contrário, será o sujeito, o espírito cognoscente, que imporá suas regras, suas vontades e mesmo seus caprichos ao objeto, ao real. Esse era o preço a pagar pela perfeita autonomia da inteligência humana e pela libertação da “servidão” à verdade objetiva e necessária.
Os pretensos filósofos do século XVIII, sobretudo Voltaire, substituídos pela Maçonaria, arremataram o trabalho de Lutero, rejeitando não apenas a Igreja, mas toda Revelação sobrenatural (quando vociferava “Écrasez l'Infâme!”, o patriarca de Ferney não se referia, ao contrário da opinião corrente, à Igreja católica, mas a Jesus Cristo) e mesmo, para alguns deles, a existência de Deus e a espiritualidade (e a fortiori, a imortalidade) da alma.
Finalmente, veio Rousseau, que libertou a força do sentimento do domínio da razão, abrindo caminho ao romantismo e, em seguida, a todos os surrealismos. Ao mesmo tempo, o genovês questionará o caráter natural da sociedade (Aristóteles, ao contrário, dizia que o homem é um animal político), liberando assim o homem de sua ligação necessária com seus semelhantes e as instituições sociais.
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No fim do século XVIII, os princípios estavam já todos assentados: liberdade em face da Igreja, da Revelação e do próprio Deus; liberdade em face da verdade objetiva; liberdade em face da ordem interior do homem; liberdade em face da sociedade. Bastava agora levá-los às últimas conseqüências e sobretudo mergulhá-los o mais fundo possível na vida dos homens e da sociedade, especialmente por um programa sistemático de “laicização”, isto é, descristianização, promoção do ateísmo e, finalmente, do materialismo. Esse foi obviamente o caso durante a Revolução dita francesa e, bem ou mal, de todos os regimes que vieram em seguida e nela se inspiraram.
Foi precisamente essa última etapa, a etapa da sistematização política e social dessas diversas “liberdades”, que no século XIX se denominou “liberalismo” e cujo nome ainda adotamos.
No século XX e em nossa época, os princípios liberais se difundiram de tal modo, penetraram os espíritos e as instituições a tal ponto, que é possível dizer que o liberalismo como movimento intelectual e político autônomo desapareceu para tornar-se consubstancial à sociedade moderna: todo mundo é, foi ou será liberal.
Resumindo esta periodização, diremos que o liberalismo foi o movimento intelectual e político que desabrochou no século XIX como a aplicação sistemática dos erros que despontaram entre os séculos XVI e XVIII, e cuja forma organizada como que desapareceu no século XX, “vítima” de seu sucesso e de sua vitória acachapante, para não dizer total.
CRÍTICA DO LIBERALISMO
O liberalismo foi refutado magistralmente numa encíclica fundamental de Leão XIII, Libertas Praestantissimum, dedicada à questão da liberdade e do liberalismo, e que todo católico deveria conhecer de cor. As duas primeiras frases desse texto merecem ser citadas na íntegra pela beleza, pela profundidade e pelo definitividade: “A liberdade, excelente bem da natureza e exclusivo apanágio dos seres dotados de inteligência ou de razão, confere ao homem uma dignidade em virtude da qual ele é colocado entre as mãos do seu conselho e se torna senhor de seus atos. E o que, todavia, é principalmente importante nesta prerrogativa é a maneira como ela se exerce, porque do uso da liberdade nascem os maiores males, assim como os maiores bens”.
O papa assinala que um grande número de homens crê que a Igreja é adversária da liberdade humana. A causa está, diz ele, na idéia defeituosa, e como que invertida, que eles têm da liberdade. A liberdade, sublinha Leão XIII, é um atributo que pertence apenas aos seres dotados de razão ou inteligência. De fato, os seres animados não-racionais (isto é, os animais) são pré-determinados pelos instintos, não apenas no que diz respeito aos fins (se proteger do frio, dormir, cuidar dos filhotes), mas também no que concerne aos meios de alcançar esses objetivos (eles sabem construir certo tipo de ninho com precisão, diferente dos ninhos de outras espécies). Santo Tomás nos diz que são determinados ad unum, a um só fim e a um só meio de alcançá-lo, ditado pelo instinto.
Os seres racionais, ao contrário, conhecendo pela razão a relação entre os meios e os fins, podem escolher o meio mais adequado para alcançar o fim que buscam. E é isso precisamente que chamamos de “liberdade”, que outra coisa não é senão a faculdade de escolher entre os meios que conduzem a um fim determinado.
No entanto, a liberdade está enraizada na vontade, a faculdade de procurar um bem, um fim, mas é também a faculdade que “se informa”, digamos assim, pela razão, que a guia e esclarece. Nesse sentido, deve-se dizer que a liberdade é a faculdade de escolher os meios que conduzem a um bem ou a um fim conforme a razão.
É portanto absolutamente falsa a pretensão de que a liberdade seria “a escolha entre o bem e o mal”, pois se temos em vista o fim de nossa ação, ele deve por força estar em conformidade com a razão, logo se exclui o mal moral; se temos em vista os meios de alcançar esse fim, eles estão intrinsicamente ligados ao fim e não podem ser maus se aquele for bom.
A liberdade seria ainda menos “fazer o que se quer”, no sentido de seguir os próprios caprichos, as fantasias e paixões. A vontade, apetite racional, tem de estar sob o completo domínio da razão. É portanto uma completa desordem querer algo contra a ordem verdadeira da razão. Sem dúvida (e nós sabemos muito bem por experiência) acontece de procurarmos um fim que de bem só tem a aparência, que nos produz a ilusão de um bem, mas que na realidade não está conforme a razão, não é razoável, é absurdo, ou seja, é um mal. Essa capacidade de buscar o mal não é, no entanto, uma qualidade em nós, mas antes o sinal da imperfeição de nossa natureza, de um defeito de nossa liberdade.
Nossa razão pode se enganar, podemos incorrer em erro (e de fato incorremos): mas ninguém jamais afirmou que enganar-se seja uma qualidade, um benefício, um prazer, uma graça. Pelo contrário, sentimo-nos humilhados tão logo percebemos o erro. Ora! Da mesma forma que o poder enganar-se, e enganar-se realmente, é um defeito de nossa inteligência, prender-se a um bem aparente, querer algo que é na realidade um mal, mesmo sendo um sinal de liberdade (como a doença é de certo modo um sinal de vida), é um defeito da liberdade. É por isso que Deus, sendo perfeição infinita, é soberanamente livre mas não pode de modo algum querer o mal.
Santo Tomás esclarece a questão da debilidade de nossa liberdade ao comentar as palavras do Evangelho segundo São João: “Aquele que peca é escravo do pecado” (Jo 7, 34). Inicialmente, pode-se objetar: “O escravo não se move por vontade própria , mas pela vontade do dono; ora, aquele que peca se move por sua própria liberdade, logo não é um escravo.”
E ele responde: “Todo ser é aquilo que lhe convém ser segundo sua natureza. Logo, quando ele é movido por um agente exterior, não age por si mesmo, mas pelo impulso de outro, o que é próprio do escravo. Ora, segundo sua natureza, o homem é racional: quando então se move segundo a razão, move-se por um movimento que lhe é próprio, e age por si mesmo, o que é o próprio da liberdade. Mas quando peca, age contra a razão, e então é como se tivesse sido posto em movimento por outro e estivesse ocupado por um dominador estrangeiro. É por isso que aquele que peca é escravo do pecado.”2
Foi o que compreendeu com precisão a filosofia antiga, nos diz Leão XIII, ao afirmar que ninguém é mais livre do que o sábio, isto é, aquele que vive sempre segundo as indicações da razão.
As indicações da razão prescrevem o bem a cumprir: é o que se chama “lei”. A lei é ao mesmo tempo interior e exterior. Interior, por que é a expressão da razão prática em nós, isto é, da parte da razão que trata das coisas a fazer; e exterior, pois sendo o homem criatura, a constituição de sua natureza, a ordem do mundo e o funcionamento de sua liberdade são definidas e reguladas por seu Criador.
É por isso que o homem, para orientar sua vontade em direção ao bem, dispõe: 1) da lei natural, que regula a Criação como tal; 2) da lei sobrenatural (Revelação e graça), que regula o destino proposto por Deus graciosamente ao homem para além de suas forças e exigências naturais; 3) da lei humana, notadamente da lei civil, que regula os mil detalhes da vida humana que não são determinados diretamente pela lei natural das coisas.
Leão XIII sublinha que, se nas discussões sobre a liberdade, se entendesse por “liberdade” a liberdade honesta que decorre da razão esclarecida pela lei, não haveria dificuldade. Mas os partidários do naturalismo e do racionalismo em matéria filosófica, e os partidários do liberalismo na ordem moral e civil, recusam toda lei superior à razão, que consideram absolutamente independente, e rejeitam toda regra que se imponha a essa razão. Segundo os liberais, não há nenhum poder divino a que se tenha de obedecer, e cada um será, para si mesmo, sua própria lei soberana. Portanto, a própria sociedade, que nesse caso seria apenas a união de indivíduos perfeitamente independentes, tem de se libertar de toda referência a uma autoridade superior a ela mesma e à sua livre vontade geral. Daí, uma vontade sistemática de laicização, cuja forma mais acabada é a separação de Igreja e Estado. E também a recusa a toda moral imposta e obrigatória, como “vestígio da ordem judaico-cristã”.
Certamente, nos diz o liberalismo, cada um pode, de modo livre e particular, respeitando as leis e a ordem pública, professar a religião e a crença que bem entenda, sozinho ou em grupo, em público ou em privado. Mas não pode impô-la aos outros, e ainda menos à sociedade como um todo. Considerada do ponto de vista dos grupos religiosos, chama-se “liberdade de culto”. Do ponto de vista dos indivíduos, chama-se “liberdade de consciência”.
Por outro lado, sempre respeitando as leis e as outras pessoas, cada um tem o direito de exprimir o pensamento por todos os meios, orais ou escritos, que considere adequados. Chama-se “liberdade de expressão”.
Laicidade, liberdade de culto, liberdade de consciência, liberdade de expressão: como é fácil constatar por suas próprias definições, tais supostas liberdades se desligaram de qualquer laço com a verdade objetiva, de toda ligação com uma lei transcendente, de toda relação com Deus. São elas as falsas liberdades do liberalismo, que na realidade destróem a verdadeira liberdade e transformam o homem em escravo de suas paixões e, portanto, alheio a sua condição de ser racional.
SEGUNDA PARTE: O LIBERALISMO CATÓLICO
O Liberalismo, rejeição direta da autoridade divina, foi o grande erro político e social do século XIX (com seus trágicos prolongamentos no século XX e XXI), e infelizmente não causou danos apenas fora da Igreja. No seio da Igreja, um erro paralelo o acompanhou, denominado “liberalismo católico”, um eloqüente oxímoro.
De fato, podemos definir o liberalismo católico como a vontade (muito estranha, por sinal) de juntar, num mesmo pensamento e numa mesma prática, o liberalismo como o definimos antes, e o catolicismo testemunhado por todos os séculos precedentes.
Ora, se definirmos o liberalismo como o equivalente a uma autonomia em face da lei divina, isto é, como outro nome para o pecado, o liberalismo católico torna-se coextensivo à História da Igreja, pois já os Apóstolos em suas Epístolas denunciavam as rebeliões contra a autoridade eclesiástica, os atos de orgulho e insubmissão, as heresias, as faltas contra a moral etc.
Contudo, diz o ditado "quem muito abraça, pouco aperta”. Se o liberalismo católico fosse qualquer pecado cometido por um católico, seria quase indefinível. É mais prudente e veraz definir o liberalismo católico em sentido estrito, como conseqüência do liberalismo definido anteriormente em seu sentido estrito, a saber, como a vontade de inscrever na ordem política e social a autonomia do homem em face de Deus, de sua Revelação e de sua Igreja.
PERIODIZAÇÃO DA ESCOLA CATÓLICA LIBERAL
Encontramos então — e aqui não há surpresa alguma — as premissas do catolicismo liberal no século XVI, antes mesmo de Lutero (e como um terreno favorável onde o luteranismo poderá nascer e crescer), em especial na Renascença semi-pagã, por exemplo num personagem como Erasmo, o “príncipe dos humanistas”, o monge e padre sem vocação que, mesmo permanecendo sempre oficialmente católico, ensinou uma teologia de sabor naturalista com um apelo permanente à “tolerância”.
Entre os que na França negligenciaram os protestantes — e que logo deixaram de ser católicos, por serem liberais — podemos assinalar os “Políticos” que, constituindo durante as guerras de religião um terceiro partido entre católicos (liga católica) e protestantes, pregavam que seria oportuno para o bem do reino colocar de lado a questão religiosa, uma atitude tipicamente católico-liberal.
Durante a Revolução dita “francesa”, não se pode deixar de mencionar o clero “constitucional” que, por sustentar as novas idéias políticas, não hesitou em provocar uma forma de cisma com a Igreja romana.
Mas esses personagens e movimentos, assim como outros semelhantes, não foram senão esboços do catolicismo liberal histórico. Pois, para que o liberalismo católico existisse em sentido próprio, era preciso que o liberalismo existisse também em sentido próprio. Ora, como vimos, o liberalismo em sua forma historicamente determinada só surgiria no século XIX. Portanto, o liberalismo católico só se constituiria de fato no século XIX. E isso por obra de um homem extraordinário que é, ao mesmo tempo, um dos criadores do… antiliberalismo católico. Esse homem, por sua estatura, dominará o catolicismo francês do século XIX, ainda que vá abandonar a Igreja e o sacerdócio numa apostasia retumbante, até ser enterrado numa vala comum, sem cerimônia religiosa, recusando até o último instante a visita de um padre. Trata-se do Pe. Félicité de Lamennais.
Inspirador de almas, Lamennais reuniu em torno de si uma impressionante plêiade de homens que marcariam o catolicismo do século XIX. Os nomes de Boré, Guéranger, Gerbet, Lacordaire, Montalembert, Morel, Rohrbacher, Salinis, Sainte-Foi bastam para mostrar essa irradiação. Essas futuras glórias da Igreja (o futuro Superior geral dos Lazaristas, o futuro restaurador do Beneditinos, dois futuros bispos, o futuro restaurador dos Dominicanos, o futuro historiador dos monges do Ocidente e de santa Isabel da Hungria, o futuro autor da História Universal da Igreja etc) foram por ele arrastados para uma ardente polêmica a princípio ultramontana, monarquista e contra-revolucionária. Depois, quando Lamennais desiludiu-se com os reis, envolverá seus discípulos numa ardente polêmica ultramontana e liberal. Enfim, quando decepcionou-se com os papas, tentou, felizmente sem sucesso, atrai-los para uma ardente polêmica naturalista e liberal, verdadeiramente socialista.
É nesse segundo período do jornal “L’Avenir”, em 1830, que Lamennais literalmente “inventará” o liberalismo católico. A divisa do jornal era aliás inequívoca: “Deus e liberdade”. Alguns de seus discípulos e colaboradores mantiveram-se presos às teses do primeiro período: por exemplo, Dom Guéranger, o Pe. Jules Morel ou o Pe. Rohrbacher. Eram os católicos antiliberais. Outros, como Lacordaire ou Montalembert, seguiram sobretudo as teses desse segundo período, sem no entanto acompanhá-lo no terceiro período. Eram os católicos liberais. O restaurador dos dominicanos (Lacordaire) descreveu numa frase precisa o que esses católicos liberais pretendiam ser: "Católicos penitentes e liberais impenitentes” 3.
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Essa experiência católica liberal de Lamennais teria sido sem dúvida simples fogo de palha (o jornal L’ Avenir não durou senão um ano) se ele não houvesse encontrado uma corrente de idéias que desejava conservar o catolicismo em sua moral e em seus dogmas e, ao mesmo tempo, aceitar plenamente os princípios da Revolução de 1789 e as instituições nascidas desse grande trauma. Com muita acuidade, Emile Poulat chamou essa corrente (que se tende a negligenciar, ou mesmo esquecer, apesar de sua importância capital para a compreensão da Igreja do século XIX) de “catolicismo burguês” 4. A fusão entre o liberalismo de alguns discípulos de Lamennais e o catolicismo burguês, sob a monarquia de Julho, constituirá o que chamamos de “catolicismo liberal”.
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Quando essa corrente de ideias se encerrou? É difícil dizer. Assim como se apresentou e se constituiu historicamente, a data de desaparecimento [do catolicismo liberal] deveria ser a mesma do antiliberalismo católico (como veremos mais adiante), a saber, o grande cataclisma de 1914. Depois dessa data, tudo muda radicalmente, a transmissão [dessas correntes] se torna incerta, os homens e as instituições (especialmente as revistas) desapareceram.
Mas se considerarmos apenas a doutrina, o que ela implicava, o que pretendia, o que esperava, então o fim do catolicismo liberal deve ser datado bem mais tarde, exatamente em 7 de dezembro de 1965, no dia em que o papa Paulo VI promulga a declaração conciliar sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanæ.
De fato, devemos nos lembrar da afirmação de Lamennais em L’Avenir: “Nós reivindicamos a liberdade de consciência ou a liberdade de religião, plena, universal, sem distinção e sem privilégio; e, por conseqüência, (…) a total separação de Igreja e Estado, separação consignada na Constituição, e que a Igreja e o Estado devem igualmente desejar. (…) Esta separação necessária, e sem qual não existirá para os católicos nenhuma liberdade religiosa, implica a supressão do orçamento eclesiástico” 5. Essa afirmação representava na verdade sua reivindicação central e a essência do catolicismo liberal. No prospecto de lançamento de L’Avenir, Lamennais já afirmara: “Todos os amigos da religião devem compreender que ela só precisa de uma coisa: a liberdade.” Ora, essa reivindicação foi plenamente satisfeita pela declaração Dignitatis humanæ. Como destaca o senador Marcel Prélot em seu livro “O Catolicismo Liberal”: “O catolicismo liberal (…) obteve vitórias: ele desponta com a circular de Eckstein em 1814; fulgura com o sucesso de L’Avenir, no outono de 1830; conhece vitórias e crises sucessivas; até que a mensagem do Concílio Vaticano II aos governantes marca seu fim: suas reivindicações fundamentais, aprovadas e depuradas, foram recebidas pelo próprio Concílio. De modo que hoje é possível considerar que o liberalismo católico se transformou para sempre. Ele escapou das confusões que obstruíram seu caminho e, em alguns momentos, por pouco não o liquidaram; por isso, ele parece não uma sequência de ilusões piedosas, professada por sombras diáfanas e anêmicas, mas um pensamento engajado, que ao longo de um século e meio se impôs aos espíritos e às leis, até receber o acolhimento benevolente de uma Igreja que ele tão bem serviu, mas por quem foi tantas vezes mal compreendido”6.
A mensagem do Vaticano II aos governantes foi de fato um resumo espetacular da vitória intelectual do catolicismo liberal nas altas esferas da Igreja e, ao mesmo tempo, o anúncio de seu desaparecimento como movimento particular:
“O que vos pede essa Igreja depois de dois mil anos de vicissitudes de todo tipo em sua relação convosco, os poderosos da Terra; o que ela vos pede hoje? Ela vos disse em um dos textos principais deste Concílio: ela não vos pede senão a Liberdade” 7.
CRÍTICA DO LIBERALISMO CATÓLICO
O liberalismo, negação radical dos princípios mais bem estabelecidos da religião e da razão, devia ter suscitado nos corações católicos uma reprovação universal. Mas, como já dissemos, encontrou no meio do povo fiel, mesmo depois dos excessos sacrílegos de 1793, homens que, mesmo se proclamando filhos da Igreja, aderiram publicamente8 “aos imortais princípios de 1789”.
Por meio deles, o cerne do edifício católico foi infiltrado com essa mistura de princípios9, essa incoerência doutrinal e prática10 que tanta confusão causou na Igreja, desorganizando sua resistência e minando suas energias. “O católico liberal não é católico nem liberal. Com isso quero dizer, sem duvidar de sua sinceridade, que ele não conhece a verdadeira noção nem de liberdade nem de Igreja, por mais católico liberal que seja! Seu caráter é bem conhecido, e nos seus traços, igualmente reconhecemos uma personagem antiquíssima e mui frequente na história da Igreja: o sectário. Eis seu nome verdadeiro” 11.
“A Revolução”, dizia Albert de Mun em 16 de novembro de 1878, “não é nem um ato, nem um fato: é uma doutrina social, uma doutrina política que pretende fundar a sociedade sobre a vontade do homem em vez de fundá-la sobre a vontade de Deus, que põe a soberania da razão humana no lugar da lei divina. Isso é a Revolução. O resto não é nada, ou melhor, todo resto decorre daí” 12. É por isso que a sociedade moderna, originada da Revolução, quer ser resolutamente laica, isto é, quer excluir positivamente qualquer intervenção da religião no curso das questões sociais e políticas. Se tolera a religião no santuário da consciência individual, se admite a Igreja a título de associação particular, rejeita os direitos da Igreja como sociedade perfeita e independente, e bane absolutamente a ingerência de qualquer poder religioso na vida da comunidade. É isso que o laicismo chama de ‘defender a liberdade de consciência contra as pretensões do clericalismo’” 13.
Essa recusa deliberada é um ataque direto à Realeza de Jesus Cristo, e um ultraje aos direitos de Deus como Criador da sociedade humana. Assim, a Igreja, investida da missão de pregar o Evangelho a toda criatura e de ensinar a todas as nações (Mt 28, 18-20 ; Mc 16, 15-16), não pode pactuar com tamanho erro e se sente ainda mais obrigada a afirmar a tempo e a contratempo (2Tm 4, 1-2) a necessidade absoluta do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo sobre as pessoas, as famílias e as sociedade: “É necessário que ele reine” (1Cor 15, 25). E na medida de seus meios, ela se esforça para promover esse Reino de justiça e amor14, e exprime seus princípios, especialmente naquilo que chamamos “direito público da Igreja” que regula suas relações com as sociedades civis.
A oposição entre esses dois princípios, o princípio do laicismo e o da Igreja de Jesus Cristo, há dois séculos provoca a incessante perseguição dos católicos pelo racionalismo triunfante, de uma forma ou de outra. Essa oposição deixa desolado o catolicismo liberal, que sonha operar a conciliação entre a Igreja e o século15. Mas ele vê com clareza que a sociedade laicista, emancipada de Jesus Cristo e da fé16, não está de modo algum disposta a voltar a esse caminho, nem pronta a conceder à Igreja católica o lugar que lhe pertence por direito. Além disso, os doutores do laicismo afirmam que a união de Igreja e Estado, de fé e razão, possível e mesmo desejável até certa época, já não é mais cabível por conta da evolução social, e o catolicismo liberal não está longe de subscrever essa proposta.
E assim se volta contra a Igreja, persuadido de que ela é o principal obstáculo à reconciliação necessária, volta-se especialmente contra os 'exageros' de seu “direito público”, inadequado à sociedade moderna. Na nossa época, afirmam, não é mais possível nem desejável que a religião católica se considere a única religião de Estado, à exclusão de todas as outras17. A Igreja deve compreender que a sociedade evoluiu e, rompendo as correntes que a prendiam à Idade Média, se estabeleceu resolutamente no mundo pluralista dos dias de hoje18. É necessário fazer concessões, relegar a intransigência caduca do direito público eclesiástico ao pó da tese19, a fim de retomar em bases mais sadias a evangelização da sociedade, que foi freada e quase paralisada por esse lamentável conflito20. Assim, segundo a observação precisa do padre Jules Morel, “o catolicismo liberal é o catolicismo que, para salvaguardar a Igreja, prefere o direito comum ao direito canônico” 21.
COMBATE AO CATOLICISMO LIBERAL
É claro que o magistério da Igreja não falhou em sua missão, apesar da difusão, no interior e no próprio cerne da Igreja22, de erros tão perniciosos sobre a Igreja e a sociedade. Longe de reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a sociedade moderna23 - como desejavam os inovadores - os pontífices romanos condenaram e reprovaram o catolicismo liberal ao longo de mais de 150 anos, por meio dos documentos mais explícitos e solenes24. Este foi o caso notório do imortal Syllabus de Pio IX, que explodiu com um trovão25, e cuja condenação direta e formal do erro do liberalismo dito católico o santo pontífice em 1876 recordava26.
Mas infelizmente essas condenações escorregavam das almas fugidias dos católicos liberais27. Por um momento até curvaram a cabeça, mas para reerguê-la em seguida28 e continuar, em segredo se preciso fosse29, a nutrir e propagar os germes funestos do erro30.
Que poderiam fazer os papas diante do contínuo crescimento do liberalismo, se estavam sozinhos para travar a luta? 31 Felizmente, bispos, padres, simples leigos animados de um verdadeiro zelo segundo o espírito de Deus, vieram ao socorro deles. Sabiam que, sem a graça, o homem nada pode na ordem da salvação; mas sabiam também que a fé é a raiz da graça. “Nada podemos sem a graça”, escrevia o cardeal Pie, “ora, a graça fez uma aliança indissolúvel com a doutrina” 32. E acrescentava: “A integridade de nossa ortodoxia, a delicadeza e virgindade de nossa fé, a inteira subordinação de nosso entendimento e de nossa vontade à autoridade de nossa mãe, a santa Igreja, compõem o mais belo atavio de nossa alma; e é também a mais forte muralha de nossa virtude. Quando a idéia cristã se verga, quando ela se deforma, logo a conduta já não é tão firme, nem tão reta. Já lhes disse: nada podemos sem a graça, e ninguém levará a graça a se divorciar da doutrina. Eis porque, se o senso cristão enfraquece em nós, nosso apostolado será irremediavelmente atingido” 33.
A caridade, a vida da graça, é enfim a verdade em ato, a fé viva, “para que eles também sejam santificados na verdade” (Jo 17, 19), não sendo possível separar uma da outra, e menos ainda opô-las34. Aos católicos liberais que pretendiam diminuir, falsificar ou pôr de lado a doutrina da salvação, os verdadeiros filhos da Igreja contestaram propagando, ilustrando e defendendo os ensinamentos emanados da Cátedra apostólica, sobretudo aqueles que condenavam os erros modernos.
Mas essa ação seria insuficiente por si mesma. As idéias não vivem no ar, mas apenas naqueles que fazem dela uma regra para os seus pensamentos e as ensinam. Se deixarmos os artífices do erro prosseguir em sua obra nefasta, repelir os erros, mesmo com energia, e disseminar a verdade, é condenar-se à esterilidade. Temos de atacar a fonte do mal, neutralizar os apóstolos do liberalismo. “Em circunstâncias críticas”, lembrava o cardeal Pie, “os mais fracos nunca estão prevenidos o suficiente contra os erros, senão na medida em que estão prevenidos contra os que erram” 35.
Se, como os papas, acreditamos que os católicos liberais são os piores inimigos da igreja36, porque lhe atacam as entranhas e as veias, e porque seus golpes são mais perigosos pois sabem onde bater37, torna-se claro que nosso primeiro dever de caridade é esclarecer as almas e preservá-las do erro, desmascarando seus propagadores38.
Combater ao lado dos papas contra os erros do liberalismo católico, contra seus fautores e propagadores - foi precisamente o programa da “escola católica antiliberal”.
TERCEIRA PARTE: A ESCOLA DO ANTILIBERALISMO CATÓLICO
Como acabamos de dizer, diante do flagelo do liberalismo católico, levantaram-se campeões da fé, chamados comumente de “católicos antiliberais”. Tentaremos agora apresentá-los.
Se entendermos o liberalismo de modo mais geral, como revolta contra Deus e busca de autonomia da criatura em relação ao Criador, podemos dizer que todo o patrimônio da doutrina católica e cristã é uma denúncia desse liberalismo e uma resposta a essas falsas afirmações.
Nessa primeira acepção, amplíssima, “a escola antiliberal” significaria o conjunto de concílios, papas, Padres da Igreja, teólogos e, em geral, de escritores católicos. Nesse grupo, evidentemente brilhariam de modo muito especial a magnífica síntese científica da fé cristã que é a Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, e a síntese popular e comum que é o catecismo (cujo modelo e exemplo é o Catecismo Romano, mais conhecido como o Catecismo do Concílio de Trento).
É evidente que esse conjunto da doutrina católica é o substrato, a base, a referência última da “escola antiliberal”, mas não se pode dizer, se quisermos ser precisos, que ele seja a escola antiliberal entendida como fenômeno histórico claramente identificado.
PERIODIZAÇÃO DA ESCOLA ANTILIBERAL
Se nos referirmos ao liberalismo historicamente definido, que, como dissemos, começa a se constituir com a Renascença e a pretendida Reforma luterana, somos tentados a definir a “escola antiliberal” como o conjunto de autores que combateram o liberalismo a partir do século XVI. Nesse grupo estariam polemistas antiprotestantes como São Roberto Belarmino ou Bossuet, os opositores do Iluminismo como Fréron ou o Pe. Nonotte (o corajoso e sábio adversário de Voltaire), os denunciadores das tramóias das sociedades secretas como o Pe. Barruel, os inimigos da Revolução Francesa como De Maistre ou De Bonald, etc.
Essa definição de “escola antiliberal” não seria inexata e faria sentido. De resto, esses escritos contra o liberalismo em sua acepção mais geral se tornaram a bibliografia básica dos antiliberais católicos: a doutrina ali exposta e os argumentos desenvolvido por eles foram integrados e assumidos pela “escola antiliberal”.
Mas a história e a prática comum atribuíram o termo “escola antiliberal católica” aos escritores que não só combateram o erro e o pecado em geral; não apenas combateram o liberalismo em sua acepção geral; mas que combaterem também o liberalismo especificamente católico. Podemos então definir a “escola antiliberal” como o conjunto de escritores que se opuseram especialmente aos católicos liberais e às suas falsas asserções. E doravante será nesse sentido que empregaremos o termo.
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Dissemos acima que o liberalismo católico fundou raízes na situação intelectual e social que sucedeu à Revolução Francesa, e teve por profeta o Lamennais do jornal l’Avenir, em 1830. Ora, não faltaram à época autores para contestar Lamennais e demonstrar seus erros e contradições. Poderíamos pensar, portanto, que a escola antiliberal começou com esses autores.
Na verdade, a situação é um pouco mais complicada. Os autores que lutaram contra Lamennais eram eles próprios ligados a certos erros, notadamente a resquícios de galicanismo. Se algumas de suas objeções eram pertinentes, outras são muito suspeitas, quando não francamente errôneas. Portanto, dificilmente eles poderiam ser lidos e usados hoje em dia.
Curiosamente, a evolução deste quadro veio de parte da escola mennaisiana que permaneceu globalmente fiel à Igreja enquanto o “profeta de La Chesnaie” fazia sua retumbante defecção. Guéranger, Rohrbacher, Gerbet, Montalembert, Salins, Gousset, Lacordaire lançaram, cada um a seu modo, duros golpes contra o velho galicanismo herdado do Antigo Regime durante todo o reino de Gregório XVI (1831-1846), o que preparará o caminho para a escola antiliberal propriamente dita (da qual, como já dissemos, vários mennaisianos participarão).
Embora, para um movimento histórico, uma data precisa seja em geral algo artificial (pois todo movimento se enraíza no passado e se desenvolve lentamente), pode-se de modo legítimo datar a constituição da escola antiliberal em 1846, isto é, na eleição de Pio IX ao soberano pontificado. Esse papa apoiou positivamente os antiliberais, não hesitando em declarar que os católicos liberais estavam entre os piores inimigos da Igreja. Por outro lado, o Syllabus promulgado em 1864 tornou-se sem dúvida o estatuto e a bandeira do antiliberalismo católico.
Sob Leão XIII (1878-1903), a escola antiliberal continuou a crescer e a prosperar, não obstante as circunstâncias tenham mudado. Do ponto de vista puramente doutrinal, o novo papa trouxe forte munição aos antiliberais, graças às suas encíclicas maiores sobre a filosofia cristã (Æterni Patris em 1879), o poder e o Estado (Diuturnum em 1881 e Immortale Dei em 1885), a maçonaria (Humanum genus em 1884), a liberdade (Libertas em 1888), etc. Em contrapartida, alguns atos práticos de seu governo (notadamente o Ralliement na França) contribuíram, provavelmente sem intenção positiva de sua parte, para um certo progresso do liberalismo.
A situação mudou de novo com a eleição de São Pio X (1903-1914). Ele favoreceu os antiliberais, que se tornaram também antimodernistas. Viu-se então uma geração recomeçar do zero a obra de seus predecessores e dar uma contribuição admirável à escola antiliberal.
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Do ponto de vista histórico, 1914 foi o fim da escola antiliberal em sentido próprio ou, se preferirem, o fim da “idade de ouro” dessa escola. Vários eventos explicam a interrupção tão brutal. No plano político, a mobilização geral, seguida da carnificina da Primeira Guerra Mundial, fizeram desaparecer literalmente as obras (especialmente as revistas) e os homens. No plano eclesiástico, nem o pontificado de Bento XV, nem o de Pio XI foram muito favoráveis para a escola antiliberal. No plano intelectual, uma vez que o essencial da argumentação fora exposto e explorado desde 1846 por uma plêiade de autores de primeira grandeza, necessitava-se retomar e adaptar essa argumentação, mais do que inová-la ou reinventá-la. Finalmente, o nascimento e depois o desenvolvimento da escola da Ação Francesa (uma obra certamente fundada em parte por agnósticos, mas sustentada em massa por católicos contra-revolucionários) contribuíram para alterar os dados do problema e baralhar as referências clássicas.
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Essa periodização da escola antiliberal entre 1846 e 1914 não significa que hoje em dia ninguém mais lhe reivindique a filiação nem se reconheça pertencente a essa escola. A presente obra, como tantas outras, o demonstra. Isso não significa portanto que depois de 1914 nada mais se tenha feito em matéria de antiliberalismo. Porque, em primeiro lugar, os sobreviventes da catástrofe de 14-18 legaram ainda algumas obras que não se pode negligenciar: a monumental Histoire du catholicisme liberal et du catholicisme social, verdadeira obra prima, foi editada pelo Pe. Barbier entre 1923 e 1924, usando materiais reunidos antes de 1914. Por outro lado, os discípulos dos grandes antiliberais produziram trabalhos à altura do espírito de seus mestres. Podemos assinalar por exemplo a equipe da Revue internationale des sociétés secrètes, reunida em torno do Pe. Ernest Jouin. Entretanto, como seu nome já indica, era mais especializada, mais histórica e factual que as obras do período 1846-1914.
Podemos e devemos falar também de uma escola ligada particulamente ao Seminário francês de Roma, dirigido pelo Pe. Le Floch, escola que se dedicou a sintetizar, entre as duas guerras, o essencial do corpus antiliberal. Com efeito, constituem resumos admiráveis, acessíveis e pedagógicos, dos temas essenciais do antiliberalismo, as obras seguintes: Le cardinal Billot lumière de la théologie, do próprio Pe. Le Floch; Libéralisme et catholicisme, do Pe. Roussel; L'Église catholique et le Droit commun, do Pe. Roul; Le catéchisme des droits divins dans l'ordre social (reeditado sob o título Le Christ roi des nations) e Le Christ vie des nations, do Pe. Philippe; La Royauté sociale de Notre Seigneur Jésus-Christ d'après le cardinal Pie et les plus récents documents pontificaux, do padre Théotime de Saint-Just.
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Esses prolongamentos da escola antiliberal depois de 1914 e até os dias de hoje não impedem de constatar o fato histórico da existência, entre 1846 e 1914, de uma família de pensamento que existiu e produziu uma obra específica no seio do catolicismo, opondo-se aos católicos liberais (que formam, eles também, uma família de pensamento claramente determinado), família de pensamento que o uso batizou de “escola do antiliberalismo católico”.
O corpus literário dessa escola antiliberal, apesar de não ser muito volumoso, não é negligenciável: em língua francesa, ele se situa em torno de uma ou duas centenas de livros. Em 1986, propusemos uma primeira aproximação39.
Esse corpus literário, é preciso lembrar, data de mais de um século, o que é suficiente para fazê-lo cair em grande parte no esquecimento. Além disso, não se pode dizer que essa escola, depois do fim do pontificado de São Pio X, tenha sido particularmente honrada pelo poder eclesiástico. Enfim, o estado calamitoso do mercado editorial católico contemporâneo, que não se pode separar do caos que se seguiu ao Concílio Vaticano II (notadamente a reforma litúrgica, que fez com que as principais editoras católicas desaparecessem), agravou a situação.
Tudo isso torna o acesso a esse corpus difícil e improvável. Difícil na medida em que não encontramos facilmente esses livros, seja nos sebos, em sua edição original, seja em reedições. Improvável porque as reedições são raras, quase sempre de qualidade medíocre (pela falta de recursos daqueles que tomam para si a tarefa de reeditá-las), com tiragens muito pequenas que logo se esgotam. O advento da edição de livros por demanda (que permite tiragens mínimas sem custo adicional) e da internet (que permite a difusão eletrônica quase gratuita) vem atenuar, esperamos, essa relativa inacessibilidade.
Por essas dificuldades de acesso, e também pelo fato das obras maiores dos autores antiliberais serem em geral sínteses, aconselha-se tentar adquirir e estudar as obras que estiverem ao alcance (sejam edições originais ou reedições), sem se preocupar em adquirir imediatamente todos os títulos.
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Por ser necessário encontrar um nome para toda escola de pensamento, a fim de poder situá-la na história das doutrinas, somos obrigados a aceitar o nome que o uso lhe conferiu: escola antiliberal católica. Efetivamente, o centro das reflexões daqueles que pertencem a ela é o liberalismo que combatem com vigor e clareza, como o principal e mais perigoso dos erros modernos.
Esse nome, no entanto, tem algo de redutor, pois toma a parte pelo todo. Os antiliberais não combateram exclusivamente o liberalismo, erro político e social. Eles também atacaram o mesmo erro fundamental no plano teológico (já vimos que, nesse caso, chamam-no de “naturalismo”) e no plano filosófico (em que se chama “racionalismo”).
Ele lutaram igualmente contra outros erros, antigos ou modernos. Sobretudo, ilustraram a verdade de várias maneiras magníficas. Eles foram teólogos, exegetas, filósofos, historiadores, sociólogos, moralistas, economistas, educadores, etc.
O fato de aparentemente sublinharmos apenas seu antiliberalismo, a fim de nos conservar fiéis ao nosso título e ao nosso tema, não deve levar o leitor a esquecer todas essas dimensões de sua obra — o que, de resto, ele descobrirá sem dificuldade ao conhecê-las.
OS REMÉDIOS PARA O LIBERALISMO CATÓLICO
Em razão da amplitude da obra da escola católica antiliberal, é difícil sintetizar em poucas páginas os princípios que animavam os antiliberais. A bem dizer, são os princípios da filosofia e da teologia católicas, magnificamente resumidos na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino — que abarca cerca de 3000 artigos, o que não é pouca coisa.
O que é possível, no entanto, é expor de forma sucinta os remédios propostos pelos católicos antiliberais para escapar da espiral mortífera do liberalismo.
Esses remédios têm dois aspectos: uma parte negativa, purificadora; uma parte positiva, reformadora. A parte negativa consiste em expulsar do interior de nós mesmos os miasmas mortais do liberalismo. É, na verdade, o preâmbulo necessário para que se possa em seguida (eis a parte positiva) restaurar os princípios verdadeiramente católicos.
No que concerne à inteligência, é preciso purificá-la dos erros que a atrapalham, confundem e enganam, insistindo especialmente nos erros modernos, que constituem o liberalismo e seus sucedâneos. É preciso voltar a eles diversas vezes, e com regularidade, pois esses erros são como a erva daninha, estendem as raízes às profundezas de nosso espírito. Estamos poluídos sem nos dar conta, contaminados sem saber, secretamente infiltrados. Esses princípios do liberalismo respiramo-los desde o nascimento, e eles parecem formar para nós a trama da realidade.
Indo mais longe: essa purificação não pode ser feita sem certa dor, pois o liberalismo tornou-se parte de nós mesmos, confunde-se com nossas melhores lembranças, nossos mais nobres impulsos e a atos certamente honestos e meritórios. Expulsá-lo de nós nos parecerá, de certo modo, uma mutilação, a amputação de parte de nossa personalidade.
No esforço de desembaraçar nossa inteligência dos erros liberais, não devemos negligenciar a purificação de nossa vontade dos pecados que a poluem. Se, como nos diz Santo Tomás (cf. por exemplo De Malo, q. 3, a. 7, c), “o erro tem manifestamente razão de pecado”, podemos afirmar inversamente que o pecado é o terreno mais favorável ao erro. Como diz o provérbio popular, tão profundo: “Quem não vive como pensa, acaba pensando como vive“. Os antiliberais foram, na sua maioria, homens profundamente espirituais, que, ao fazer a ligação entre o erro da inteligência e o pecado da vontade, trabalharam para purificar tanto uma como outra.
Mas não é tudo: porque somos homens, corpo e alma, o que se realiza em nós deve ter uma expressão exterior. Não se trata apenas de trabalhar em silêncio para a expulsão do nosso mal interior: é preciso agir pública e positivamente contra esse mal que se difunde. Tudo começa por uma guerra metódica e contínua contra as palavras sonoras e ambíguas que são o principal vetor do liberalismo, transportando clandestinamente em seu flanco o vírus desse mal: liberdade, democracia, tolerância, igualdade, direito dos homens, progresso, soberania do povo, laicidade, etc.
Em seguida, passa-se à denúncia metódica dos liberais, sobretudo dos católicos liberais, mais perigosos porque mais próximos e mais sedutores, trazendo à luz os erros que enchem suas afirmações.
Ao purificar assim nosso espírito dos erros, e nossa alma dos pecados, enquanto combatemos exteriormente o liberalismo em todas as suas formas, começaremos a ver a realidade como ela é: o gigantesco combate entre as duas Cidades de que falava Santo Agostinho: ”Dois amores fundaram duas cidades, o amor de si até o desprezo de Deus, e o amor de Deus até o desprezo de si. O primeiro fez a cidade do mal, da desordem, da confusão, a Babilônia infernal; a segunda, a da ordem, da paz, a Jerusalém eterna” 40.
No entanto, esse trabalho negativo de purificação, por necessário que seja, não é de modo algum suficiente: é preciso passar a uma ação positiva, que terá por objetivo nos transformar em homens de princípios, à imagem de nossos mestres antiliberais. Devemos evidentemente começar por restaurar a mais alta das faculdades humanas, isto é, a inteligência. O mestre a estudar, a assimilar, a seguir — como nos indicaram os papas, os antiliberais e toda a tradição da Igreja — é Santo Tomás. O Código de direito canônico, promulgado por Bento XV, mas preparado por São Pio X, nos diz claramente: é preciso estudar a filosofia e a teologia “segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico.” (cânone 166 § 2).
Mas uma coluna da verdade como Santo Tomás só nos oferece um caminho seguro porque a Igreja no-lo recomenda. Santo Agostinho não hesitava em dizer da própria Bíblia: “Eu não acreditaria nos Evangelhos se a autoridade da Igreja não me compelisse a isso.” 41 Santo Tomás deve ser estudado portanto à luz do Magistério da Igreja, e especialmente com a ajuda do extraordinário corpus doutrinal dos papas pós-revolucionários, de Pio VI a Pio XII, que projetaram verdadeiras torrentes de luz sobre a realidade presente.
Mas a doutrina especulativa e a filosofia realista têm de se converter numa ação prática e é principalmente através do direito que isso se faz. É por isso indispensável restaurar em nós os princípios verdadeiros do direito natural e do direito sobrenatural, e especialmente, no que diz respeito a esse último, o “direito público da Igreja”, que estuda o lugar da Igreja na sociedade. De fato, é nesse último ponto que os liberais envidam esforços a fim de arruinar os direitos políticos e sociais da Esposa de Cristo.
Ora, toda a realidade humana se inscreve na História, que com muita freqüência serviu de instrumento de subversão: é o pretenso “senso histórico” que autoriza todos os progressismos e todos os relativismos. Diante dessa impostura, é preciso ao contrário criar um “senso católico da História” sobre o qual o ilustre Dom Prosper Guéranger escreveu um livro definitivo. São Pio X insistiu nesse tema quando, em 16 de julho de 1912, enviou uma carta, escrita pelo cardeal de Lai, secretário da Congregação consistorial e eminente antiliberal, a todos os bispos da Itália a propósito da formação dos seminaristas, pedindo que, no ensino da História eclesiástica, “a narração dos fatos não seja distinta das altas considerações filosóficas de que Santo Agostinho e Bossuet foram os mestres.”
No entanto, a simples restauração da verdade integral em nossos espíritos não será suficiente se não for acompanhada, ou melhor, se não se desenvolver na direção de uma busca real da santidade cristã. Os antiliberais nos propõem sermos integralmente cristãos, integralmente católicos, tanto na fé como nos costumes, daí a alcunha de “integristas” que os adversários freqüentemente lhes atribuíam42.
Então, para sermos fieis aos nossos mestres antiliberais, devemos procurar a santificação e, mais ainda, a estabilidade das virtudes cristãs dentro de nós, a adesão sem reserva a Cristo, ao Evangelho e à Igreja.
Pensar segundo a fé, viver segundo a fé: se nos restringirmos aqui ao nível puramente pessoal, individual, trairemos os ensinamentos de Nosso Senhor, que nos lembra que o católico deve ser a luz do mundo e o sal da terra.
Devemos então, em virtude de um florescimento natural e necessário da retificação de nossa inteligência e de nossa vontade, agir segundo a fé. E, muito particularmente no que concerne ao liberalismo, nós devemos lutar duramente pela verdade política e social completa, sem medo de parecer importuno ou “imprudente” (no sentido liberal do termo).
O que devemos procurar, exigir, louvar, promover é o Reino de Cristo-Rei sobre os indivíduos, as famílias e as sociedades, único meio de salvação para muitos. Quanto a saber o que significa concretamente o Reino de Cristo-Rei é suficiente reler as estrofes do hino da festa instituída em sua honra, hino promulgado por Pio XI em 1925 e censurado, de modo muito peculiar, pela nova liturgia que se seguiu à Declaração sobre a liberdade religiosa.
Ei-las (e citamos apenas as estrofes suprimidas):
2 - La foule scélérate crie:
Nous ne voulons pas du Christ Roi!
Nous, joyeux, nous vous proclamons
Roi suprême de tous les hommes.
6 - Puissent les gouvernants des peuples
Vous offrir un culte public;
Maîtres, juges, vous honorer;
Arts et lois vous chanter gloire!
7 - Que les drapeaux se glorifient
De se voir consacrés à vous!
Soumettez à votre doux règne
La patrie et tous ses foyers.
Polêmica e caridade
Uma vez que as idéias não vivem no ar, mas apenas naqueles que as assumem como norma de pensamento e as ensinam, a escola antiliberal, como já dissemos, não hesitou em atacar os próprio católicos liberais.
Mas isso não é faltar com a caridade? A exposição serena da verdade não alcançaria esse objetivo com mais certeza? Essas polêmicas incessantes não seriam estéreis e funestas? 43
“A doutrina católica, responde São Pio X, nos ensina que o primeiro dever de caridade não é a tolerância diante das ideias erradas, por mais sinceras que sejam, nem a indiferença teórica ou prática com o erro e o vício em que vemos mergulhados nossos irmãos, mas o zelo pelo seu aprimoramento intelectual e moral, e também pelo bem-estar material. (…) Se Jesus foi bom para os pecadores e desgarrados, Ele não lhes respeitou as ideias erradas, por mais sinceras que parecessem; Ele os amou a todos para os instruir, converter e salvar.” 44
O manso São Francisco de Sales, falando da maledicência, escreveu palavras que podem nos abrir os olhos sobre a verdadeira caridade: [quando o assunto é evitar a publicidade do mal cometido pelo próximo] “excetuo somente os inimigos de Deus e da Igreja, porque a estes devemos combater quanto pudermos, como aos chefes de heresias, cismas etc. É uma caridade descobrir o lobo que se esconde entre as ovelhas, em qualquer parte onde o encontremos” 45.
De resto, é esse o exemplo que nos deram todos os Padres da Igreja e todos os escritores eclesiásticos; a esse propósito, convém ler os elogios de Bento XV a São Jerônimo, que entrou em veementes polêmicas contra os heréticos46.
O tribunal da Rota Romana chamava a atenção para esse ponto da doutrina em sua sentença de 27 de fevereiro de 1914 em favor de Monsenhor Delassus: “Quando os santos Padres se viram obrigados a clamar contra doutrinas falsas e perigosas, serviram-se de termos violentíssimos e de invectivas nada sutis, para denunciar os ardis dos homens que propagavam o erro entre o povo cristão. A despeito dessa veemência, ninguém ousou acusá-los de violar as leis da justiça e da caridade. A tática dos Santos Padres, a História o demonstra, preservou o povo da influência sutil das heresias e dos heréticos” 47.
O imortal bispo de Poitiers desenvolveu melhor essa consideração em uma página que projeta uma luz vivíssima sobre um debate que os liberais obscurecem com prazer:
“A tranqüila exposição de nossos dogmas é decerto preferível em si mesma à discussão, como muitas vezes nossos ilustres predecessores afirmaram — e fazer um apanhado das passagens de seus escritos em que exprimem tal juízo seria trivial. No entanto, a exigência dos tempos os precipitou muitas vezes na controvérsia. Quando lemos suas obras, percebemos que a polêmica ocupa uma grande parte. Evitemos de nos lamentar: vemos jorrar desses choques as mais brilhantes fagulhas do seu gênio, os traços mais luminosos de seus espíritos. Não sei se a tradição católica sofreria maior prejuízo com a perda dos livros apologéticos e tratados de controvérsia, ou com a perda das catequeses e homilias pastorais.
"Alguns objetam, bem sei, que a contestação pode atribuir importância ao agressor, e lhe conceder o favor popular, enquanto o silêncio desdenhoso os deixaria resmungando na obscuridade e no esquecimento. A isto respondo, dizendo, em primeiro lugar, que a Igreja, sem cometer o erro de superestimar e engrandecer deliberadamente seus adversários, tem por costume não menosprezar nenhum deles, e se alguém considera que ela os honra ao combatê-los, não há por que se defender de seu procedimento.
"Acrescento que a teoria do silêncio é, de modo geral, uma teoria muito cômoda para não ser suspeita, e constato que, do passado, ela não tem a seu favor nem a autoridade, nem o exemplo, nem o sucesso. E como alguns insistem particularmente na dificuldade de guardar a caridade nas discussões religiosas, respondo que os grandes doutores nos fornecem ainda a esse respeito a regra e o modelo. Numa multidão de textos bem conhecidos, e que não são novos senão para aqueles que não sabem nada, eles recomendam a medida, a moderação e a indulgência mesmo com os inimigos de Deus e da verdade.
“O que não os impediu, sem contradição para com seus próprios princípios, de empregarem eles mesmos a arma da indignação a todo instante, e às vezes a do ridículo, com uma vivacidade e uma liberdade de linguagem que assusta nossa delicadeza moderna. A caridade, de fato, implica antes de tudo o amor a Deus e à verdade; ela não teme desembainhar a espada no interesse da causa divina, sabendo que vários de seus inimigos só poderão ser convertidos ou curados com golpes ousados e incisões salutares” 48.
QUARTA PARTE: NÓS SOMOS OS FILHOS DOS SANTOS
Está breve, brevíssima, apresentação da escola católica antiliberal nos levou a conhecer alguns nomes, datas e temas. Já enxergamos com um pouco mais de clareza. Talvez tenhamos até tomado a vaga decisão de ler este ou aquele clássico do antiliberalismo, se por acaso vier a cair em nossas mãos em algum momento em que não tenhamos lá muito o que fazer.
Essas veleidades, essas boas intenções sem vigor nem real comprometimento são suficientes? Certamente não. Não é o que nos ensinam os antiliberais, que foram homens de verdade, coragem e decisão. Na realidade, se quisermos ser verdadeiros filhos da Igreja, temos o dever, cada um de nós, de honrar os antiliberais, de estudá-los e continuá-los.
Honrar os antiliberais
Essa é a primeira tarefa a fazer, o primeiro dever a cumprir: render homenagem aos eminentes servidores da Igreja que foram os antiliberais. Eles merecem de fato que lhes exaltemos as grandes virtudes e reparemos os indignos ultrajes de que foram vítimas.
Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum, “Eu me consumo de zelo pelo Senhor Deus dos exércitos” (1Rs 19, 10). Como não associar essa frase do profeta Elias aos homens que, em suas vidas, arderam pela honra e glória que se deve a Nosso Senhor? A sociedade estava em revolta aberta contra os direitos de Deus e da Igreja e se precipitava na apostasia pública. A laicização sistemática alcançava a plenitude, Jesus Cristo e seu Evangelho eram calcados aos pés, ridicularizados e blasfemados. Diante do assalto das forças do Inferno, os católicos liberais transigiram, negociaram, pactuaram com o erro e o ódio por meio das reticências e das escandalosas defecções. As verdades mais certas foram diminuídas ou silenciadas a fim de satisfazer o espírito moderno. Regateava-se, mesmo entre os batizados, quando não no seio do clero, a obediência devida à Palavra de Deus. Pretendia-se realizar a aliança adúltera entre a verdade e o erro, a aproximação entre a Igreja e a Revolução. As almas generosas desses que serão chamados de “antiliberais” se inflamaram pelo nome de Nosso Senhor, e eles se tornaram os campeões e os guardiães dos direitos de Deus e de sua Igreja.
Eles não queriam que fosse dito que, naquela hora, ninguém levantou-se para vingar a honra ultrajada do Criador. Se todos ou quase todos abandonavam a Deus, eles se mantinham fieis e, para compensar as deserções, deram voz às proclamações mais intrépidas do direito católico. Eles repeliram a traição e a blasfêmia confessando sem hesitação nem atenuantes a verdade integral. Enquanto os católicos liberais inventavam distinções sutis para conciliar o espírito de Cristo e o espírito do mundo, eles não queriam fazer distinções entre os direitos que o mundo moderno admite e os que pretende banir.
Sim, é o espírito da fé, o zelo pelo reino de Deus que lançou esses homens na arena e os fez combater sem disfarce nem fraqueza. Por isso, são merecedores de nossa admiração e nossos elogios.
Mas o segundo mandamento é semelhante ao primeiro: “Tu amarás ao teu próximo com a ti mesmo.” Ora, quem abandona o irmão nas trevas do erro pode ter a pretensão de amá-lo? Pior ainda, quem deixa espalhar-se impunemente o erro que o corromperá e o fará perecer como um miserável? A primeira das obras de misericórdia é esclarecer os desgarrados para conduzi-los ao caminho da salvação, e proteger os fracos contra a sutileza das doutrinas perversas.
Por isso, esses escritores corajosos proclamaram a tempo e contratempo a verdade, sobretudo a de que a força e a salvação das sociedades depende do reconhecimento dos direitos de Jesus Cristo, e também combateram com toda a energia os erros que poluíam e viciavam as inteligências. Eles desmascaravam sem piedade as teorias liberais, expondo à luz seus princípios errôneos e dissipando seus sofismas equivocados e dissimulados sob o nome enganoso de “liberdade”. Para tirar das almas esse alimento envenenado e não deixar espaço para subterfúgios, lembravam, a despeito da falsa prudência dos supostos moderados, que o liberalismo é um pecado, e não uma fantasia anódina.
Persuadidos em boa hora de que as idéias falsas só ganham força e nocividade pela ação dos que as propagam, eles não se escondiam em generalizações vagas e sem importância. Seu desejo de salvar almas os impulsionava, em continuidade com os Padres da Igrejas e os santos, a desacreditar e denunciar aos católicos esses homens que se obstinavam em obscurecer a clareza dos documentos do Magistério, e que, encobrindo suas perigosas teorias sob a aparência de uma vida honesta e piedosa, trabalhavam sem cessar para semear nos espíritos imprudentes o veneno do liberalismo. Privados, graças aos antiliberais, de uma usurpada reputação de ciência e virtude, os partidários do catolicismo liberal viram assim sua influência seriamente reduzida, para grande bem da ciência verdadeira e da virtude autêntica.
É portanto o zelo caridoso que os moveu a projetar sobre as oficinas tenebrosas do liberalismo, sobre sua produção subversiva, a pura luz da doutrina católica, e a perseguir, sem pena nem trégua, pela palavra e pela escrita, o erro e seus propagadores.
Mas a missão de denunciar as mentiras do liberalismo, aceita por amor de Deus e das almas, e que tanto os honra, foi também para eles uma pesada Cruz. Para levá-la a cabo, enfrentaram com bravura a impopularidade, as antipatias, as acusações caluniosas dos adversários e, o que é bem mais cruel, periculum ex falsis fratribus — a desaprovação de seus companheiros de armas ou o abandono daqueles que os deveriam encorajar. Nosso Senhor Jesus Cristo já os havia prevenido: “Se eles me perseguiram a mim, também vos hão-de perseguir a vós” (Jo 15, 20). “Aquele, porém, que perseverar até ao fim, será salvo” (Mt 10, 22). Devemos portanto admirar a força de alma que os fez suportar sem fraquejar essa dolorosa provação. Pois, por mais penosa que ela fosse ao seu coração, eles prefeririam ser tratados como importunos pelos homens do que como covardes pelos anjos e santos.
Essas grandes virtudes desenvolvidas na luta, além de muitas outras, não lhe valeram o reconhecimento público, mesmo depois da morte. Como disse Louis Veuillot, não há sectário mais pérfido do que o verdadeiro liberal, capaz de arrastar para a lama seu contestador católico em nome do amor e da tolerância. Ora, as páginas eloqüentes dos antiliberais, tão elogiadas pelos papas, perseguem ainda essa seita de mentirosos, desnudando a inanidade de suas pretensões.
É por isso que, até hoje, a simples evocação de seus nomes faz ranger os dentes dos impostores do liberalismo católico; segundo a descrição de São Pio X, na Pascendi: “Em vista disto, Veneráveis Irmãos, não é para admirar que os católicos, denodados defensores da Igreja, sejam alvo do ódio mais desapoderado dos modernistas. Não há injúria que lhes não atirem em rosto; mas de preferência os chamam ignorantes e obstinados” 49.
O zelo rancoroso dos liberais se abateu sobre esses valentes lutadores, lançou o anátema contra eles por terem ousado desafiar o erro. As obras dos antiliberais, tacitamente inscritas no index liberal, foram alvo de opróbrio e desacreditadas sem misericórdia. Seus nomes, suas reputações, que por tantos serviços prestados deveriam brilhar num vivo clarão, foram cobertas das injúrias que as iníquas mentiras dos historiadores da seita lhes infligiram.
Da nossa parte, devemos nos recusar a contribuir de qualquer modo com essa injustiça. Ao contrário, devemos louvar esses homens por suas virtudes e por suas obras, exatamente porque se expuseram à calúnia e à maledicência. Sem levar em conta a hipocrisia dos liberais, nem seu clamor interesseiro, celebramos esses homens gloriosos, a cuja descendência nos orgulhamos de pertencer: Laudemus viros gloriosos, et parentes nostros in generatione, “Louvemos os varões ilustres, nossos maiores, a cuja geração pertencemos” (Ecle 44, 1).
Honremos então com uma piedade agradecida esses heróis tão ultrajados, os combatentes valorosos do antiliberalismo católico, e com amor desfiemos a longa litania de seus nomes a fim de render homenagem à sua santa memória: São Pio X, acima de todos; o bem-aventurado Pio IX; o cardeal Billot; o cardeal Pie; o cardeal Pitra; o cardeal Tarquini; e também Monsenhor Freppel, Santo Ezequiel Moreno y Dias; Dom Charles-François Turinaz; e também o Pe. d’Alzon; o Pe. Barbier; o Pe. Barruel; Monsenhor Benigni; Dom Besse, o Pe. Boulin; Monsenhor Delassus; o Pe. Fontaine; Monsenhor Gaume; Dom Guéranger; Monsenhor Jouin; o Pe. Le Floch; o Pe. Liberatore; o Pe. Maignen; o Pe. Morel; o Pe. Pègues; o Pe. Pelletier; o Pe. Rohrbacher; o Pe. Sarda y Salvany; o Pe. Saubat; Monsenhor de Ségur; o Pe. Taparelli; sem esquecer de Louis de Bonald, Donoso Cortes, Jacques Crétineau-Joly, Émile Keller, Melchior du Lac, Joseph de Maistre, Henri Merlier, Garcia Moreno, Jacques Rocafort, Auguste Roussel, Paul Tailliez, Louis Veuillot, e tantos outros que seria longo demais nomear mas cuja lembrança há de durar para sempre em nossos corações.
Mas para honrá-los como eles merecem e desejariam, não basta vingar sua memória, é preciso seguir-lhes o exemplo. O conjunto de suas carreiras é de fato digno de servir de modelo aos que lutam pela Igreja e pela fé. E o que desejaram eles durante a vida, senão encontrar imitadores que prosseguissem com sua missão e, verdadeiros servidores de Jesus Cristo como eles, trabalhassem em defesa da sã doutrina? Acolhendo assim a preciosa herança que nos transmitiram, muito pesada para nossos ombros frágeis, teremos a honra de não deixar fenecer o modelo que nos ofertaram e de, como eles, perseverar, até nosso último suspiro, no bom combate pelos direitos imprescritíveis da verdade e da caridade autênticas, pela honra da Igreja e do Reino de Jesus Cristo. Marcharemos sobre seus passos, imitando seu zelo inteligente, seu amor pelas almas, sua magnanimidade, e suportando sem pestanejar a oposição e a fúria das paixões a que também eles se submeteram.
Sua voz não emudeceu nem sua lembrança há de se apagar. Da tumba, onde (os liberais) gostariam de vê-los esquecidos, eles ainda nos falam. Seguindo o exemplo de Santo Ezequiel Moreno y Diaz, bispo de Pasto, na Colômbia, continuam a pregar depois da morte o que ensinavam quando vivos. O santo quis que na catedral onde o enterraram e sobre sua sepultura, se inscrevesse de forma bem visível para a edificação da posteridade: “El liberalismo es pecado”. Do mesmo modo, esses intrépidos lutadores, do lugar onde tombaram, nos exortam por obras e por exemplo ao combate e nos confiam, como uma palavra de ordem e um sinal de união, o que deve ficar gravado para sempre em letras de fogo na fronte hipócrita do erro: “O liberalismo é pecado”.
Estudar os antiliberais
Honrar os antiliberais é o primeiro dos nossos deveres. Essa piedade em relação a quem jamais poderemos retribuir tudo o que eles nos legaram deve ser uma honra inteiramente católica. Mas ela não será suficiente. Pois, o que eles desejavam acima de tudo, era que nós encontrássemos em suas obras os verdadeiros princípios católicos para que deles vivêssemos. Devemos, portanto, não apenas honrar os antiliberais, mas sobretudo estudá-los, lendo as obras que nos deixaram.
Para guiar o leitor, propomos abaixo uma seleção de obras essenciais. Nós as dividimos em duas partes: em primeiro lugar, as sínteses simples e curtas; em segundo lugar, as obras mais amplas e completas. Para manter nossa periodização, assinalamos com um asterisco os autores que não fazem parte em sentido estrito da escola antiliberal (porque escreveram fora do período de 1846-1914), mas cuja obra nos permite chegar facilmente ao corpus antiliberal.
Como nosso objetivo é apresentar uma ideia sumária, preferimos indicar apenas um título por autor, mesmo quando várias obras do mesmo autor poderiam ser citadas. Pode-se recorrer ao nosso Essai bibliographique para saber mais. De modo geral, podemos dizer que não há como errar ao ler os autores citados.
Como toda escolha, a nossa tem uma dimensão subjetiva, por isso, contestável. Alguns estudiosos da escola antiliberal podem legitimamente preferir este autor ou esta obra a esta ou àquela apontada por nós. Mas como não é possível incluir tudo, nem conciliar opiniões às vezes contraditórias, propomos nossa seleção, incumbindo cada um de modificá-la à seu gosto, na medida de suas descobertas.
1) Sínteses simples e curtas50
Prosper Guéranger, Le sens chrétien de l'Histoire.
Henri Le Floch*, Le cardinal Billot lumière de la théologie.
Jean-Baptiste Lemius, Catéchisme sur le modernisme.
A. Philippe*, Jesus Cristo, Mestre e Rei das nações, Ed. Santa Cruz, 2017.
Jacques Ploncard d'Assac*, L'Église occupée.
Alphonse Roul*, L'Église catholique et le Droit commun.
A. Roussel*, Liberalismo e catolicismo, Edições do Mosteiro da Santa Cruz.
Félix Sarda y Salvany, O Liberalismo é pecado, in Revista Permanência 292.
Louis-Gaston de Ségur, A Revolução, Castela Editorial, 2017 .
Théotime de Saint-Just*, La Royauté sociale de Notre Seigneur Jésus-Christ d'après le cardinal Pie et les plus récents documents pontificaux.
Louis Veuillot, A ilusão liberal, Editora Permanência, 2010.
2) Obras mais amplas
Emmanuel Barbier, Histoire du catholicisme libéral et du catholicisme social (5 vol.).
Augustin Barruel*, Mémoires pour servir à l'histoire du Jacobinisme (diversos vols., cf. a edição).
Paul Benoît, La cité chrétienne au XIXe siècle (4 vol.).
Augustin Berthe, Garcia Moreno, président de l'Équateur (2 vol.).
Jean-Martial Besse, Le catholicisme libéral.
Pierre de Clorivière*, Pierre de Clorivière, contemporain et juge de la Révolution.
Donoso Cortes, Civilização católica e erros modernos 51.
Jacques Crétineau-Joly, L'Église romaine en face de la Révolution (diversos vols. cf. a edição).
Henri Delassus, A conjuração anti-cristã, Castela Editorial, 2015 (3 vol.).
Paul Delatte, Dom Guéranger, abbé de Solesmes (2 vol.).
Nicolas Deschamps e Claudio Jannet, Les sociétés secrètes et la société (3 vol.).
Julien Fontaine, Les infiltrations protestantes et le clergé français.
Charles-Émile Freppel, La Révolution française.
Bernard Gaudeau, Le péril intérieur de l'Église.
Jean-Joseph Gaume, La Révolution (12 vol.).
Charles Maignen, Nouveau catholicisme et nouveau clergé.
Bernard Maréchaux, Le père Emmanuel.
Jules Morel, Somme contre le catholicisme libéral (2 vol.).
Louis-Édouard Pie, Œuvres (10 vol.).
René-François Rohrbacher, Histoire universelle de l'Église catholique (diversos volumes, cf. a edição).
Eugène e François Veuillot, Louis Veuillot (4 vol.).
Esses textos do antiliberalismo, sobretudo se reunidos aos atos pontifícios de que são o desenvolvimento e a aplicação prática, constituem o mais magnífico e o mais sólido conjunto doutrinal.
O leitor neles encontrará o antídoto necessário para resistir ao vírus mórbido do liberalismo. E obterá munição eficaz para o combate que há dois séculos nunca cessa e só redobrou a violência. No contato com essas obras, adquirirá o vigor do espírito, a clareza das idéias, a precisão das noções indispensáveis para restaurar a verdade na inteligência, especialmente no direito público católico52.
Diante da complacência com o mal e o erro, encontrará nessas obras, como numa fonte de água pura, o verdadeiro espírito católico e a autêntica caridade apostólica, fundadas sobre a verdade integral da fé.
O recurso a esses mestres da verdade e da retidão parece ainda mais necessário nos dias de hoje, em que somos constrangidos a viver numa imensa anarquia doutrinal.
O leitor amará abrigar-se nos momentos de confusão e desencorajamento dentro da sólida biblioteca constituída pelos antiliberais. Saberá para onde se dirigir a fim de instruir-se e se esclarecer quando, diante de uma doutrina insólita e suspeita, não puder determinar de imediato seu erro e nocividade53.
Continuar os antiliberais
Honrar os antiliberais é um dever de piedade: nós lhes devemos muito mais do que poderíamos retribuir. Luz para a inteligência, força para a vontade, bons exemplos e conselhos judiciosos - ao lê-los recebemos os bens mais preciosos. Seria vergonhoso não lhes testemunhar publicamente nossa gratidão e estima.
Estudar os antiliberais é uma necessidade porque os erros que denunciam já se espalharam, e envenenam até o ar que respiramos. Para nos purificar, nos desintoxicar é preciso ler, reler e tresler seus escritos plenos de verdade e força intelectual.
No entanto, esses deveres de honra e estudo são, por assim dizer, os menores que lhes devemos. Pois a Providência nos fez vir ao mundo no momento presente e nos impõe, por isso mesmo, deveres específicos.
Seria um profundo erro ter os olhos fixados exclusivamente no passado, na História. Os antiliberais não estão lá para encher nossa biblioteca, ou mesmo somente para esclarecer nosso espírito. Não devemos apenas vibrar com suas lutas passadas. Pois o combate de hoje já não é contra Lamennais, Dupanloup ou Sangnier, que já estão mortos e enterrados há muito. O combate de hoje é contra os erros de nosso tempo: os erros do Concílio Vaticano II, os erros da falsa liberdade religiosa, os erros da missa nova.
Vivemos um período muito específico da História, tempo de uma grande crise da Igreja, talvez a mais grave de toda a sua história. O que devemos então pedir em especial aos antiliberais é que nos armem para o combate doutrinário atual; que nos ajudem a combater nas circunstâncias que nos são próprias. Porque os que combateram com pertinência a Lamennais, Dupanloup e Sangnier deixaram-nos um patrimônio de que devemos tirar proveito para o combate que a Providência nos propõe e impõe nos dias que correm.
O que convém fazer então não é apenas honrar platonicamente os papas e os grandes autores antiliberais; nem é simplesmente devorar seus escritos para obter uma formação puramente especulativa e histórica; é continuá-los de verdade, pedindo a eles que nos ajudem a ver com clareza a luta a empreender, sem deixar-nos enganar pelas mais diversas e prejudiciais ilusões .
Se lermos esses textos imbuídos do mesmo espírito com que foram escritos, encontraremos, para além das diferenças de circunstância e tempo, a estreita linha divisória que delimita a justa atitude católica na situação eclesiástica tão confusa que atravessamos.
Pode-se dizer sem medo de errar que os que leem os escritos dos autores antiliberais com o mesmo espírito que os inspirou (que, no fim das contas, é o próprio Espírito de Deus) não se perderão, mesmo em meio às piores incertezas, e permanecerão fieis à verdadeira fé.
Inversamente, pode-se dizer que os que leem os escritos antiliberais, e que reclamam para si (às vezes ruidosamente) o combate antiliberal, mas acabam por cair nos erros aparentemente opostos, mas muito próximos, na realidade, da adesão à Igreja conciliar ou do sedevacantismo, não leram essas obras segundo o espírito com que foram escritas, e fazem um uso medíocre desse tesouro.
Houve um homem… Houve um homem, católico, padre, um bispo que soube tirar o verdadeiro proveito da herança dos autores antiliberais, que descobrira quando era um jovem clérigo e que leu por toda a vida, para guardar e proteger a fé em meio à terrificante crise da Igreja: Dom Marcel Lefebvre.
Ele desconhecia essa herança quando começou sua formação sacerdotal: de fato, conta que ao chegar ao Seminário francês de Roma, estava convencido de que a separação entre Igreja e Estado era o melhor regime54, erro no entanto firmemente condenado pela proposição 55 do Syllabus. Foram seus mestres do Seminário francês, e sobretudo o “querido padre Le Foch55, que o ensinaram “a ver com clareza os acontecimentos da Igreja de então, comentando as encíclicas dos papas” e o iniciando nesse rico patrimônio do antiliberalismo católico.
Pode-se dizer que o que "fez" Dom Marcel Lefebvre, o “arcebispo de ferro”, como o chamavam os jornalistas, não foi senão haver-se mantido completa, invariável e obstinadamente fiel ao ensinamento recebido da Igreja, em Roma, sob os olhos do papa, tomando por base as encíclicas dos soberanos pontífices iluminadas pelos escritos de seus melhores e mais fieis comentadores.
Podem procurar, remexer, escavar: em Dom Marcel Lefebvre só encontrarão essa fidelidade inquebrantável à doutrina católica expressa em especial nos documentos pontifícios e nos escritos dos autores antiliberais, tantas e tantas vezes recomendados pelos papas.
É seguindo seu exemplo que devemos honrar os antiliberais e estudá-los: para continuá-los no nosso tempo pelo combate contra Vaticano II, combate que sem dúvida nenhuma empreenderiam se vivessem nos dias de hoje, sem se desviar nem para o congraçamento nem para o sedevacantismo.
“Nós somos os filhos dos santos”, respondia Tobias aos que desprezavam sua fé, sua esperança (Tb 2, 18). Devemos seguir corajosamente os passos dos antiliberais. Em meio às trevas do paganismo renascente, em meio às mentiras e armadilhas de uma falsa teologia, de um misticismo duvidoso, de uma moral depravada, pregadas, ai! por homens nos mais altos cargos da Igreja, devemos guardar, em continuidade com esse guias experientes que são os antiliberais, e como nos ensinou Dom Marcel Lefebvre, o caminho reto da tradição católica.
Num tempo em que os homens se desviam da verdade para aderir a fábulas, poderemos assim dar testemunho de Nosso Senhor Jesus Cristo, em comunhão com São Paulo e todos os nossos modelos: "Combati o bom combate, acabei a minha carreira, guardei a fé" (2Tm 4, 7).