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A beleza de Maria

D. José Pereira Alves

Conferência pronunciada no Seminário de Olinda

 

Dir-me-eis, senhores, a razão por que estou aqui? Como definir-me neste momento? Sonho ou realidade, toda essa visão de luz, de festa, de riso, e de paz?

Eu de nada quero saber; porque um fato de uma verdade crua é que eu estou aqui e é este fato que me acabrunha implacavelmente. Chamá-lo-ia um pesadelo e um duende, se outro que não a Boa Mãe, fosse o objeto deste festival do espírito. Amarrado por cadeias formadas de fibras de corações a esta tribuna, eu recebo a ordem indeclinável de ser o que não sou: “conferencista”! Seja! É preciso uma metamorfose? Não há dúvida. É preciso sê-lo ainda disfarçado? Pois não! Por que não a máscara e o disfarce?

Aceitemos, pois, o fato consumado! Na presente conferência não me haveis de achar, porque haveis de achar os outros, salvo em alguns dos recantos, escondido na obscuridade pessoal. Creio que nem mesmo me posso comparar à laboriosa e pequenina abelha que da matéria prima colhida entre as flores fabrica um delicioso e refinado mel.

Eu sou antes semelhante à garrula criança que, durante o formoso mês de maio, recolhe no avental azul lindas rosas dos canteiros floridos. E depois as entrelaça, dispõe e forma um belo ramalhete para oferecer à Virgem da ermida.

A minha conferência, pois, é um buquê, onde eu só tenho folhas, porque as flores são dos outros; e, por cima, a sua disposição, que é o meu trabalho quase todo, acusa bem a imperícia do seu autor. A eloquência do púlpito tem feito a sobejo o panegirico da fisionomia espiritual de Maria e mergulhado nesses abismos a luz, voltando à tona cega de tanta glória e esplendor. Eu, meus senhores, escolhi para tema desta minha conferência mariana a Beleza exterior e física de Maria Santíssima.

Não se trata de um estudo crítico e profundo da matéria: é apenas uma apologia simples desta formosura sem rival.

Não é também uma exposição à altura do objeto, porque nem tempo houve, nem “a tanto me pode ajudar engenho e arte”.

A Beleza externa de maria será considerada:

1° No conceito Bíblico.

2° No conceito Tradicional.

3° No conceito Litúrgico.

4° No conceito Teológico.

5° No conceito Artístico.

 

Conceito Bíblico

Tiremos agora as nossas sandálias, porque santa é a terra em que vamos entrar. Escutemos no silêncio da alma, porque penetramos no sancta sanctorum onde Jeová faz trovejar a sua divina voz. Como as grandes catedrais da nossa Santa Religião, vasta, grandiosa, resplandecente é, e o é, soberanamente, essa Catedral da Religião que se chama a Bíblia.

Nas nossas melhores e mais importantes igrejas há um simbolismo admirável que se espalha pelas magníficas pinturas, baixos relevos, pelas linhas duma estatuária rica e artísticas decorações. O mesmo se dá na Basílica da Fé — a Bíblia. Um simbolismo surpreendente vive e palpita naquelas páginas do Céu com um esplendor raro de imagens, de alegorias, de fatos, de painéis lindíssimos e de uma significação profunda.

O Divino Redentor, que foi realmente o negócio dos séculos, se acha prefigurado e vaticinado em toda a Escritura antiga. Lê-se no Talmud que todos os profetas não vaticinaram senão sobre os dias messiânicos. Em virtude das afinidades estreitíssimas entre a personalidade de Cristo e a personalidade de Maria, resultante do mistério da Encarnação, eu creio que não será uma frase atrevida afirmar que, à semelhança do seu Filho, Maria foi também o negócio dos séculos prefigurado e vaticinado nas Sagradas Escrituras. Negotium saeculorum. Novum Testamentum in vetere latet et vetus in novo patet.

O Novo Testamento se oculta no Velho e o Velho se revela no Novo, diz o grande Santo Agostinho. Eu classifico ao menos para o meu fim, em dois grupos distintos a escritura figurativa de Maria o grupo personativo e o grupo emblemático. O grupo personativo compreende um grande número de figuras da predestinada pelo Altíssimo no segredo dos seus conselhos. Destaquemos a esmo: Ester, Judite, Sara, Raquel, Noemi, Abigail, Betsabé, Rebeca, Eva, Esposa do Cântico dos Cânticos.

Analisemos esses tipos bíblicos da Virgem sem falar de outros muitos que apareçem nos Livros Sagrados. Que diz a Bíblia, meus senhores, não digo da fisionomia moral, mas do caráter estético, sensível destas personagens, espelhos presentes da Virgem futura? Que diz?[1]

De Ester, lê-se no seu livro que era muito formosa e de incrível beleza, incredibili pulchritudine. Judite é de elegantíssima presença. Sara em extremo bela — pulchra nimis. Raquel é delineada como uma virgem bela e de formoso semblante; não é Noemi que diz: não me chameis Noemi, isto é, formosa? Prudentíssima e formosíssima era Abigail de Nabul, refere o 1° Livro dos Reis; a formosura excepcional de Betsabé e de Rebeca é superlativamente reconhecida nos Reis e no Gênesis; e Eva a mãe dos viventes, a primeira mulher, não podia deixar de surgir das mãos do Criador com todas as graças da natureza. O poema sagrado nos seus idílios com tanta prodigalidade de pinturas, com tanta poesia de expressão descreve a Esposa! Abri de olhos fechados o Cântico dos Cânticos e em cada página de ouro cintila o mesmo fulgor descritivo do formoso objeto do esposo encantado. [2]Senhores, porque essa insistência do Espírito Santo em acentuar a beleza dessas figuras de Maria? Porque tendo elas caracteres tão diferentes, missões diversas, tem este ponto de contato, de afinidade: a Beleza? Essas considerações dos autores nos iniciam nos desígnios da Providência. O Eterno retratara de antemão a beleza daquela de quem cantou o poeta Florentino: “Ó Virgem, Mãe e Filha de teu Filho; Mais do que ente criado humilde e alta; foste ao divino intento alvo prefixo”.[3]

Eram os esboços da obra-prima. Sim, porque[4]:

 

Obra-prima do artista onipotente

Tu és, Maria, a joia mais fulgente

De toda a criação.

 

Não tem mais brilho o sol, candor a lua,

Nem há beleza que se iguale à tua

Na graça e perfeição”.

 

O argumento de Santo Antonio é o seguinte: todas as mulheres que são figuras de Maria na Lei Antiga foram célebres pela sua beleza; ora, a verdade é superior à figura e a realidade à sombra; logo a formosura de Maria é incomparavelmente mais deslumbrante do que a de suas figuras bíblicas. Essas figuras são sinais de Maria. Qual é a noção filosófica de sinal?

É aquilo cujo conhecimento prévio leva ao conhecimento da coisa significada. Porque não será a sua fiel representação em virtude de sua relação sobrenatural? Essa reflexão confirma o argumento do douto santo. A propósito escreve um autor: “Plínio, o velho, conta em sua História Natural que o famoso pintor Zêuxis devendo fazer um quadro que os habitantes d’Agrigento queriam consagrar a Juno, estudou as virgens desta cidade para reproduzir em sua obra todas as belezas que poderia descobrir nelas. Pois bem, de uma maneira muito mais admirável, Deus Criador de todo o universo, Deus, o mais sublime dos pintores, escolheu entre as criaturas tudo o que elas encerravam de grandeza e de beleza e como numa pintura sublime, o realizou por Sua sabedoria infinita na Virgem Maria”. Do outro grupo — o grupo dos emblemas — ressalta pelas razões aduzidas a beleza exterior da Virgem. Na Sagrada Escritura nossa boa Mãe do Céu possui uma preciosíssima flora e mesmo uma esplêndida fauna. No reino das coisas sem vida, de toda a fulguração dos céus, de todos os encantos da terra em uma palavra de tudo o que há de belo e de brilhante formou o Altíssimo a auréola dos símbolos de sua eleita — objetos de suas eternas e amorosas intuições. É a mesma semelhança ou proporção do representante e do representado, do sinal e da coisa significada, da ideia típica e do objeto que se impõe claramente. Uma outra reflexão, meus senhores. O emblema envolve em sua natureza um caráter formal de atribuição: é um atributo real; ora, a lei da atribuição exige uma adequada proporção possível entre o sujeito e o atributo, para que ela seja relativamente perfeita. Por que razão, pois, tão belos títulos, belos nas coisas que exprimem, hão de descrever apenas a fisionomia luminosa da alma de Maria? Porque não fotografarão também a surpreendente beleza de seu olhar, dos seus lábios, de sua peregrina face?

Não há razão plausível para essa exclusividade moral. Belas coisas exprimem os emblemas marianos. Sim!

Não é ela a gemedora pomba escondida entre os rochedos? Não é ela a águia real alcandorada sobre os montes?

Que beleza! Que flora figurativa!

“Eu me elevei como o cedro do Líbano: estendi os meus ramos como as palmeiras de Cades; ergui-me como o plátano plantado à beira das águas, eu espalhei um perfume como a canela e como o bálsamo mais precioso”[5]. Floresce como a rosa e perfuma como o lírio, segundo a interessante estrofe encontrada em um antigo pergaminho:

 

Ut rosa flores

Flagras ut lilium,

Ora pro nobis

Ad tuum Filium.

 

Irradia como o sol, formosa como a lua, radiante como a aurora.

Que multidão, que riqueza, que brilho de comparações! E sobretudo é a rutilante estrela:

 

Symbole déespérance á l’heure ou tout est sombre,

Astre celeste ou Dieu mit toute sa splendeur,

Vienne le crépuscule intense qui fait peur,

Vienne l’heure angoissante ou le salut se couche;

“Ave Stella”, dira, dans un soupir, ma bouche[6]

 

Da análise dos dois grupos figurativos da Virgem emerge, brilhante de formosura inigualável, o perfil hiperangélico de Maria. E não se apele para o silêncio dos Evangelhos, porque esse mesmo silêncio é o maior panegírico de sua beleza exterior. Tenha a palavra S. Antonino: “Tendo Maria em plenitude tudo que de bondade e de beleza houve nos outros, calando-se o Evangelho acerca de um privilégio particular como a beleza e outros, louvou-a mais supondo tacitamente do que manifestando.

Do mesmo modo que os Arcanjos por serem louvados pelos dons superiores, por isso não estão privados dos dons inferiores que neles estão mais perfeitamente do que nas ordens menos nobres. E eu digo que o Evangelho não emudece muito, ao contrário, ele proclama a beleza peregrina de Maria. Não é aquele Mater Jesu a raiz e a preconização virtual das prerrogativas ainda naturais da augusta Mãe de Deus? E por que não tomar em toda a sua extensão a graça de que Maria possui a plenitude? ”[7]

 

Conceito Tradicional

Os estudos feitos sobre as antiguidades pagãs não têm apenas contribuído para o progresso científico, mas também têm derramado luz no problema religioso.

Os sábios que têm aclarado com a lâmpada de suas pacientes investigações esses labirintos do mito, descobriram relações e harmonia entre o mundo lendário e o mundo cristão, apesar de sua natural antinomia. Os inimigos da Igreja julgavam encontrar nessas semelhanças de doutrina um argumento formidável para provar que o Cristianismo é um grande plágio das religiões, relíquias conservadas no museu do passado, como se a seiva pujante de nossa fé pudesse ter saído dessas múmias estratificadas no sarcófago dos tempos!

Toda essa afinidade se explica naturalmente pela difusão primitiva da Revelação entre os povos.

Não é a religião verdadeira que é o plágio, muito ao contrário, ela é o arquétipo divino que o paganismo copiou, deformando-o na abominável saturnal dos seus vícios e paixões. E é por isso que nós encontramos na Mitologia antiga sombra dos mistérios inefáveis do Cristianismo. A Mariologia lucrou com essa pesquisas crítico-religiosas nos cultos pagãos[8].

A Virgem parece desenhar-se no perfil de Íris, de Ceres e outras divindades do círculo místico. Pois bem, aí, nas tradições idólatras, podereis descobrir confirmações do que vos tenho afirmado na explanação do presente trabalho sobre a formosura externa de Maria. Como tenho em muita conta o vosso precioso tempo, eu apenas citarei um testemunho pagão. Mas não irei desentranhá-lo do politeísmo helênico nem dos carvalhos do druidismo gaulês nem do masdeísmo persa que Zoroastro reformou ou do Budismo índico.

Não! Aqui mesmo nas nossas virgens florestas continentais, sob a verde umbela da pujante vegetação da América do Sul, no Paraguai, os habitantes do grande lago Zaragas, os Macênicos contavam aos missionários que “outrora uma mulher belíssima, ficando sempre virgem, teve do mesmo modo, uma encantadora criança que, depois de homem, operando milagres insignes, um dia no meio de muitos discípulos subiu aos ares convertendo-se no sol”. Consultemos, porém, a tradição cristã, não a que está nos monumentos antigos, mas a que está no senso católico, nos escritos dos Santos Padres e escritores eclesiásticos. Nessa rica messe há apenas o trabalho de escolher. Poderei reclamar a vossa paciente e benévola atenção? Escutai. O pensamento tradicional revela-se em toda parte, absorvendo a insignificante minoria contrária. Ide por aí afora em nossa terra, pelos nossos mais atrasados lugarejos, interrogai o filho do povo, e vereis que o mais bronco dos nossos patrícios não poderá admitir que a Virgem da Conceição não exceda em formosura a mais prendada das filhas dos homens. O mesmo, a fortiori, se daria num meio culto. Se eu pedisse agora nesta luzida assembleia uma votação nominal, Maria Imaculada alcançaria decerto uma esplêndida vitória. É tempo de referir alguns eloquentes testemunhos da dinastia espiritual dos Padres da Igreja e escritores eclesiásticos. Santo André de Jerusalém afirma que “Maria em seu corpo é a mais pura joia da virgindade, um céu esplêndido, uma viva imagem da beleza suprema, uma estátua viva que Deus mesmo esculpiu”. Ela é o espelho da beleza por excelência, diz Santo Alberto Magno. São João Damasceno escreve que “Maria é ao mesmo tempo a obra-prima da natureza e da graça”. Para que multiplicar sem necessidade as citações? Non sunt multiplicanda, é o aforismo da filosofia[9]. Nós não temos a felicidade de possuir de nossa extremosa Mãe Celeste um autêntico retrato. Seria um bálsamo para nosso espírito embeber o nosso olhar naqueles olhares de doçura que tanto consolaram os apóstolos.

Não o temos; nem a imagem comumente atribuída a São Lucas, diz um ilustre jesuíta, nem as descrições minuciosas que os historiadores gregos de data mais recente nos deixaram, são de natureza a assegurar um juízo do que o exterior de Maria poderia ter sido. Jamar, apoiado nesses historiadores, nos dá o seguinte retrato de Maria:

“Ela era duma estatura mediana; seu rosto era oval, dum puro colorido; e notável pela delicadeza e graciosa regularidade das linhas; a fronte larga, sobrancelhas bem arqueadas e dum moreno ligeiramente escuro; olhos vivos; cuja pupila era matizada dum delicado azul.

O nariz e a boca eram perfeitamente proporcionados; lábios purpurinos, queixo de uma forma irrepreensível; cabelos louros; as suas mãos desembaraçadas e delicadas”[10].

Revesti, meus senhores, este belo perfil, de nobreza, de candura, de modéstia, de gravidade, de maneiras simpáticas e distintas, e tereis Maria, segundo as descrições antigas, na esplendente e encantadora expressão de sua beleza sempre jovem. Sempre jovem, sim. Dionísio Areopagita quase que a tomou por uma Divindade se não soubera pela Revelação que só há um Deus. E quando a visitou, a Virgem estava muito além da idade juvenil. Eu li que, quando Deus resolveu criar a rosa, convocou para este fim uma câmara de deputados do universo. Uns queriam-na sem espinhos, outros sem eles não lhe achariam graça; e foi tal a balbúrdia e desencontro de opiniões, que Deus, por um golpe de estado, dissolveu a câmara e criou a rosa por um decreto especial. Este apólogo traz à lembrança aquela piedosa alegoria de Gerson sobre a criação da formosíssima Rosa Mística do Céu, alegoria que será a chave destas considerações sobre a Beleza de Maria no conceito tradicional. Quando o Altíssimo se determinou a formar Maria diante do seu sólio aurifulgente apresentou-se uma formosa dama acompanhada de suas servas. E ela assim falou: “Ó Deus que eu adoro e canto, permiti que ofereça os meus humildes préstimos para a formação daquela que é a ansiedade dos povos; nada farei para embelezar a sua alma candíssima porque isto não está em meu poder, mas eu juro e comigo juram as minhas dedicadas servas que havemos de torná-la a rainha inigualável da formosura.

Eu derramarei no seu rosto o encanto duma simplicidade, duma majestade ternura tal como jamais se verá; hei de compor tão bem o seu olhar, as suas palavras, os seus gestos, que ela será um modelo perfeito e admirável; ao vê-la todos hão de exclamar: esta mulher merece em verdade ser a imperatriz do mundo, a rainha triunfante dos céus. Era a natureza que assim falava, cortejada pelas influências e causas naturais. Falava ainda a poderosa princesa, quando se adiantou uma outra dama que tinha o ar e o porte duma verdadeira rainha.

Deslumbrante séquito a rodeava. Era a Graça. Ela desejava rematar esplendidamente a obra-prima do Criador. Por ela falou a sua irmã — a Sabedoria — implorando ao Onipotente o favor da concessão. E foi assim que dos prodígios da natureza e da graça brotou a rosa branca e virginal que Deus criou para o enlevo do céu e êxtase da terra”.

A alegoria do religioso chanceler coroa magnificamente a prova testemunhal do conceito de tradição da beleza mariana. Diz Santo Agostinho, que as palavras são vasos de ouro que contém o licor do pensamento. O licor do pensamento tradicional é finíssimo, mas eu lamento profundamente que as minhas desluzidas palavras não tenham sido essas taças de ouro para a libação de tão precioso néctar.

 

Conceito Litúrgico

Não é infrutífero o labor de quem escava as entranhas ricas duma mina. Não é! Não é improfícuo o mourejar de sol a sol do nosso lavrador a abrir nos seios da terra virgem sulcos para o plantio. O seu suor não é como a gota de suor de Buda guardada num templo da Coréia, suor que esteriliza, diz a lenda, a vegetação circunjacente.

Não, o suor do trabalho fecundo é germe, é arbusto, é árvore, é fruto, é flor e, mais tarde, pão e vida. Eu também me fiz de mineiro e fui buscar lá nas antigas liturgias o ouro precioso de uma confirmação em favor do meu asserto; fiz-me de solerte lavrador e abri o sulco nesse terreno opulento do ritual cristão, não para plantar mas para descobrir entre os esplendidos tesouros joias de preço real para prestar homenagem à fascinante beleza externa de Maria. E podia dizer como Arquimedes: “Eu achei”. Na verdade, achei. Ouvi, senhores. Não há aqui lugar nem há tempo para uma dissertação profunda sobre tão importante estudo. Limitar-me-ei a uma singela exposição. As pinturas das catacumbas e as imagens são o que se chama a Liturgia muda.

Mas deixá-la-ei para algumas considerações que dizem respeito à arqueologia e à iconografia mariana. Agora apenas uma ligeira síntese dessas pérolas espalhadas na liturgia marial de todos os tempos porque o culto de Maria tem as suas origens na idade apostólica, para não dizer que é eterno como Deus. [11]A liturgia grega canta assim: “justos alegrai-vos; regozijai-vos, ó céus; exultai, ó montes; o Cristo nasceu; a Virgem está sentada semelhante a um querubim... E mais: Ó vós que sois o brilhante palácio do Senhor, como vindes num miserável estábulo dar ao mundo o Rei, o Senhor encarnado por nós, ó Virgem toda santa esposa do grande Deus? ” “Salve, Virgem Mãe de Deus, exclama a Liturgia Abissínia, Vós sois o turíbulo de ouro que trazeis o carvão de fogo, o verbo encarnado...”

O rito Moçárabe é deste modo que celebra a Virgem Santíssima. “É a lâmpada que o Espírito acendeu e em que fez aparecer a verdadeira Luz”. Ouvi algumas estrofes escolhidas desta encantadora sequência:

 

Salve, Mater Salvatoris,

Vas electum, vas honoris,

Vas caeleste gratiae.

 

E na décima e undécima estrofes:

 

Tu caelestis paradisus,

Libanusque non incisus,

Vaporans dulcedinem.

 

Tu candoris et decoris...

Tu dulcoris et odoris,

Habes plenitudinem.

 

Que encanto! Tu tens toda a beleza, a plenitude — habes plenitudinem.

A décima sexta nos pode dar um excelente coronal:

 

Sol, luna lucidior,

Et luna sideribus,

Sic Maria dignior

Creaturis ormnibus.[12]

 

E quantas vezes tendes repetido no Breviário ou no Ofício parvo aquela antiguíssima antífona:

 

Ave Regina coelurum,

Ave Domina angelorum.

 

Virgem gloriosa que a todos venceis em beleza — Super omnes speciosa. A Deus, ó Soberana da Beleza, reza a Cristo por nós:

 

Vale, o valde decora,

Et pro nobis Christum exora.

 

A hinologia, o antifonário, prosas e ladainhas, Missas e Ofícios, nos forneceriam as expressões mais poéticas da Beleza de Maria, num religioso lirismo de encantar.

Como podeis ver, é impossível a Liturgia mariana em todas as suas surpreendentes manifestações. Mas, para exemplo, tomai o Breviário ou o Missal.

Abri-os: 15 de agosto. Muito bem! É a festa de hoje — A Assunção de Maria.

Ofício vesperal. Cantaste-lo há pouco. Última antífona: tu es bela e formosa, ó filha de Jerusalém. Antífona ad magnificat: “Ó Virgem Prudentíssima para onde tu te elevas como uma aurora rutilante? ”

“Filha de Sião, toda formosa e meiga, tu és bela como a lua e brilhante como o sol”. Que quereis mais? Lede as lições do primeiro noturno: “Eu sou negra, mas sou formosa, ó filhas de Jerusalém, como os tabernáculos de Cedar... Tu és bela — os teus olhos são como os da pomba”.

E assim a Liturgia vai aplicando à figura angélica da Virgem todo o fulgor dos tropos bíblicos e das eloquentíssimas palavras dos Padres da Igreja, cujo testemunho em favor da Beleza exterior da Imperatriz Celeste é tão claro e peremptório. Aqui poderiam objetar dizendo que o senso litúrgico se refere à maravilha de sua alma sobrenatural e não à formosura corporal.

Bem que em muitas das citações vê-se claramente compreendida esta beleza e máxime na festividade da Assunção, em que se celebra a miraculosa subida de Maria ao Céu, corpo e alma, como se pode ainda responder dizendo que a Liturgia canta uma plenitude de Beleza, que não é estranha ao sentido bíblico, à tradição e ao bom senso que sobre tal ponto não hesita. E, para concluir essas modestíssimas reflexões sobre a Liturgia mariana, recordemos a bela e encantadora Ave-Maria em que está o completo panegírico de nossa celestial e carinhosa Mãe: cheia de graça.

No mês de maio entre todas as flores realça a Rosa — símbolo místico — Beleza sobre-humana que maio em flores saúda, como canta harmoniosamente a musa italiana na peregrina música do verso:

 

Te del Signore piccoletta ancella

Sorrisa de um gentil nimbo d’amore,

Saluta com l’angelica favelia

Il dolce maggio in fiore:

 

Saluta l’aria deliziosa e plena

Di profumi, di canti, d’armonia,

E la balza fiorita e la serena

Convalle: Ave Maria.

 

E il bosco fondo mormorante a’ venti,

E la collina aprica e solatia

Sprigionano d’omaggio umili accenti

A Te, dolce Maria.[13]

 

Conceito Teológico

Dizem, meus senhores, que o Nemrod apresentou, um dia, três urnas fechadas aos três filhos. Os escravos seguravam-nas.

Ao seu primogênito disse o rei: “Escolhe meu filho, a urna que te parece conter maior tesouro”. O príncipe escolheu uma que era de ouro, na qual havia a palavra — Império. Abriu-a e estava cheia de sangue. Nemrod dirigiu-se ao segundo filho e disse: “Toma também uma delas e abre-a”. O mancebo obedeceu e na sua urna de âmbar tinham gravado — Glória.

Nela estavam guardadas as cinzas dos grandes da terra. “Filho meu, falou o monarca ao terceiro, toma a urna de barro e abre tu também”. Ele abriu-a; estava vazia, mas no fundo se via escrita esta palavra: Deus.

Qual das urnas vale mais? perguntou o rei. Os ambiciosos disseram que era a de ouro; os poetas e conquistadores que era a de âmbar; os sábios responderam que era a de barro, vazia porque uma só letra do nome de Deus valia mais que o globo da terra.

Pois bem, meus senhores, por mais humilde que seja o barro humano, por mais frágil que seja a estátua de argila em cuja fronte o Eterno acendeu os lumes da razão, esse barro que vive, que sente e pensa, torna-se maior que a sua própria natureza, quando em seus misteriosos abismos, a Fé gravou indelével o nome sacrossanto da Divindade. O seu coração é o santuário de Deus, de conformidade com a palavra do Apóstolo: toda a edificação construída em Cristo cresce como um templo consagrado ao Senhor — sanctum in Domino.

Sobre os escombros dos ídolos antigos erguem-se os altares do Deus vivo, sobrenaturalmente iluminados. Pois bem, meus senhores, Maria é o tabernáculo por excelência do Altíssimo, tabernáculo debaixo de cujo pavilhão Deus habitaria não espiritualmente, mas ainda corporalmente.

Digo mais: o Corpo de Deus humanado, templo augusto, tiraria a sua matéria da preciosa matéria do corpo de Maria, santuário divino.

Senhores, os templos materiais dedicados à glória de Deus, ostentam e devem ostentar na sua fisionomia arquitetural uma beleza, uma feição estética admirável, eles que são destinados à suprema Beleza-Deus.

Que dizer da formosura da decoração externa do mais digno, do mais grandioso dos templos divinos?

O Artista excelso não se deixou vencer pelos artistas humanos e de Maria fez a sua obra-prima de sua divina Arte. As afirmações teológico-racionais ou melhor, a razão teológica robustece desse modo os dados fornecidos pela Bíblia, pela Tradição e pela Liturgia.

Eu quisera dispor de mais tempo e traria à tela desta modesta discussão muitos outros argumentos. Limitar-me-ei a apresentar mais um que não poderei desenvolver completamente.

Há uma lei fisiológica que determina a reprodução dos tipos: a lei chamada hereditariedade. A hereditariedade e a verificação da “lei pela qual, diz Mercier, o ser vivo possui um princípio de finalidade imanente, em virtude do qual tende naturalmente à formação, à conservação, à reprodução dum tipo determinado”. Em virtude desta lei herda-se não somente o caráter da espécie, mas ainda se transmite os caracteres individuais.

Baseados nessa lei, procuram certos filósofos destruir o livre arbítrio sustentando que o vício e a virtude são heranças.

Nada mais falso em psicologia, porque o vício e a virtude — não são produtos materiais. Em virtude do fenômeno hereditário dá-se algumas vezes retrocesso nos tipos dos avós, o que se chama atavismo.

A fortiori, o tipo imediato imprime os seus caracteres físicos. Daí a lei ordinária que os pais são semelhantes aos filhos e vice-versa. E ainda mais o sexo masculino, é o ensino dos autores e uma coisa vulgar, reproduz ordinariamente as feições maternais: filii matrizant.

Ora, meus senhores, Jesus Cristo é o mais belo dos homens — speciosus prae filiis hominum; é o filho de Maria. Logo Maria de quem Jesus, como Filho, reproduz as lindíssimas feições, foi ornada das galas de uma formosura sem rival.

A lei supramencionada admite exceções; aqui, porém, não se verificam, porque em Maria, segundo ensina um autor, a semelhança entre o Filho e a Mãe deve ser mais acabada em virtude da ação do Espírito Santo, que não podia ser perturbada pela causalidade de influências subalternas.

A razão teológica une, pois, a sua nota vibrante ao hino universal em honra da beleza daquela de quem cantou Leão XIII na inspirada poesia — Prece à Virgem:

 

Maria Dulce melos dicere mater ave:

Dicere Dulce melos, ó pia Mater ave,

Tu mihi delicia, spes bona, castus amor,

Rebus in adversis tu mihi praesidium.

 

Senhores, perdoai a tirania de minhas palavras e vinde contemplar comigo a Beleza de Maria no conceito artístico.

Sob este ponto de vista um novo horizonte de considerações descortina-se à visão de nossa alma embebida neste esplendor sobre-humano que nimba a figura doce, meiga, imaculada da Rainha do Céu.

 

Conceito Artístico

A arte, meus senhores, é a encarnação do ideal. Filho das visões do espírito, o ideal projeta sobre a obra de arte um raio de sublime concepção. Com razão disse Castelein: “A obra de arte deve ser original, harmoniosa, evocadora do ideal”.[14] O Belo criado, que a arte auxiliada pela ideia luminosa, genial e pelas formas concretas e sensíveis da imaginação, procura traduzir e encarna, é um reflexo do ideal Supremo.

É o que disse Kant: “O belo é um reflexo do infinito sobre o finito: é Deus entrevisto”

O Eterno fez as coisas como expressões do seu ser, de sua bondade, de sua beleza essencial, de suas perfeições; elas são o espelho da Divindade. Ora os seres exprimem as perfeições divinas segundo o grau de sua perfeição material; são espelhos mais ou menos luminosos e perfeitos.

Pois bem, meus senhores, os artistas cristãos conceberam um ideal grandioso e sublime da beleza de Maria, considerando-a como a obra prima das mãos do artista divino, feitura plástica, perfeitíssima do poder do Criador. E como o ideal se materializa na forma sensível, eles procuravam imprimir nos tipos de arte mariana — uma perfeição estética inigualável.

Não foi somente pelas prerrogativas espirituais, que a Fé lhes mostrou em Maria, que eles a esculpiram, a cantaram sobrenaturalmente bela. “A voz da tradição e da sua razão lhes revelaram também a Virgem em todo o fulgor de sua formosura sensível. Nas criptas das catacumbas a arte primitiva cristã deixou as suas pinturas de Maria; e séculos afora a Virgem tem recebido as homenagens dos eleitos do gênio artístico. Como não admitir essas magníficas Madonas de Rafael, de Vinci, em sua “Santa Família”, de Fra Angélico; a “Assunção” do Ticiano e a de Murilo? O gênio arrematado pela fascinação do ideal, sentiu-se muitas vezes apoucado diante do sublime.

Eu cito um laureado orador:[15]

“Como traduzir estas maravilhas?

Ah! A obra é difícil, porque, como muito bem disse Dante, “a forma não se harmoniza sempre com as instruções da arte; porque a matéria é surda para responder”.

“Angélico de Fiesole derramou mais de uma vez lágrimas; Leonardo de Vinci quebrou os pincéis; Miguelangelo criticou as suas obras; grandes artistas se sentiram invadidos pela tristeza todas as vezes que tentaram representar a divina realeza do Cristo e as graças celestes de sua Mãe; e sobre as obras primas que nós admiramos hoje eles ousavam apenas lançar os seus olhares desanimados”

Que vos direi, senhores, da iconografia Mariana? Seria uma lista infindável a enumeração desses primores da estatuária e escultura dos mestres cristãos.

Os dicionários iconográficos nos fornecem um compte rendu minucioso das belezas de mármore e de gesso, que sorriem na própria insensibilidade da matéria, que, mudas, são duma eloquência que admira, dum encanto que seduz e hipnotiza o olhar.[16]

Vede, meus senhores, esta esplendida imagem da Virgem da Assunção, dádiva preciosa da generosidade do nosso venerando Prelado[17]. Vêde-a nesse belo monumento enfeitado de garridas flores. Não há um que de celeste e de divino na expressão de seu olhar, na peregrina formosura de suas faces cor de rosa? O artista arregaçou-lhe delicadamente o manto azul-celeste sobre a túnica de ouro. É só assim, meus senhores, que a arte pode conceber a Maria.

A numismática também quis render o seu respeito à Virgem inefável. Na exposição marial realizada no Palácio de Latrão a 26 de novembro de 1904, havia uma soberba coleção de 12 mil medalhas, sinetes e moedas de Maria, enviadas pelo Padre Corbiére de Saint Louis des Français.[18]

Quantas harmonias o anjo da arte divina tem atirado aos pés de Maria? Porventura a alma musical não tem sofrido os tormentos da inspiração para saudar a Beleza da Mãe de Deus?

Senhores, eu sou constrangido a resumir para não fatigar a vossa benevolente atenção. Mas, como esquecer os surtos do gênio da poesia, celebrando as graças da Rainha dos Anjos?

As liras de todos os povos com a tristeza dos seus trenos o com a vivacidade dos seus júbilos celebraram os encantos da Senhora.

Permita-me o autor[19] algumas de suas lindas estrofes, feitas à beira do túmulo: — In hora mortis:

 

Maria, dulce Signora,

eletta como il sole,

per cui il cielo s’infiora

di rose e di viole;

 

Maria, Vergine pura,

aurora sempiterna

alta piú che criatura

sui ciecli ove s’eterna

 

La Somma Sapienza;

vedi quant’é l’errore

che incombe e la demenza

che ci ottenebra il cuore!

 

Assim a poesia toma parte no harmonioso e universal congresso das artes em louvor da Virgem a quem a humanidade implora um olhar que, como diz o poeta espanhol, é:

 

Bello fulgor que al sacro Eden nos guia

Dulce Maria!

 

Para citar poesia nossa, da terra brasileira, ouvi como no Caramuru, S. Rita Durão descreve a formosura de Maria:

 

“Todos suspendem em pasmo respeitoso

O amável formosíssimo semblante;

E mais nele se ostenta poderoso

O soberano autor do céu brilhante:

Quanto a angélica luz de rutilante,

Quanto dos serafins o ardente incêndio,

De tudo aquele rosto era um compendio”

 

Meus senhores, na solenidade inaugural da exposição mariana em Roma, o Cardeal Ferrata, num discurso admirável sobre o tema “Maria foi a sublime inspiradora da arte cristã”, enunciou entre outros estes belos pensamentos: “Maria é o gênio mais fecundo, o ideal mais puro da arte cristã, desta arte que tem por objeto a harmonia da fé e da razão, do natural e do divino das maravilhas deste mundo e dos esplendores revelados”. Maria é bela como o sorriso de Deus, nela se encontram o sublime, o verdadeiro, o belo e o bem.

Falando de Rafael, disse estas palavras: “Ele pode ser chamado o pintor por excelência da Rainha do Céu. Das belas tradições da Escola de Umbria, do estudo dos mestres precedentes, mas sobretudo do seu coração, de seu gênio, de sua natureza tão delicada, o jovem artista tirou a inspiração que deu à fisionomia de Maria esta forma tão pura e bela, esta pose majestosa e atraente, esta expressão suave e venerável de Virgem e de Mãe, que nos arrebata e nos enche de amor como uma visão do paraíso”[20]

A Virgem, meus senhores, que tem recebido em todos os séculos tão brilhante consagração de sua real beleza parece dizer aos marechais da arte, na frase de Monsabré, estas palavras que o grande dominicano põe nos lábios virginais de Maria:

“Amantes da verdadeira beleza que procurais o divino na Criação, contemplai-me, pedi-me inspiração e conselhos: Eu sou o Senhor das Artes”[21]

O ideal artístico de Maria abraça o conjunto de todas as suas belezas espirituais e naturais, que o Artista exprime nas formas mais resplandecentes da matéria, porque não pode conceber que uma alma tão peregrina e celeste fosse a inquilina eterna duma moradia vulgar.

Permiti, senhores, que eu termine esta última parte de minha humilde conferencia com chave de ouro: é a homenagem de um príncipe da arte, da inteligência eleita de um grande poeta à Beleza de Maria.

É o primoroso soneto de Luís de Camões, orgulho imortal das duas pátrias que falam a Língua Portuguesa:

 

Para se enamorar do que criou

Te fez Deus, sacra Phenix, Virgem Pura.

Vede que tal seria essa feitura

 

Que para si o seu Feitor guardou.

 

No seu alto conceito te formou

Primeiro que a primeira criatura,

Para que única fosse a compostura,

Que de tão longo tempo se estudou.

 

Não sei se diga eu tudo quanto baste

Para exprimir as raras qualidades

Que quis criar em ti quem tu criaste.

 

És filha, Mãe e Esposa: e se alcançaste

Uma só, três tão altas dignidades,

Foi porque a Três de Um só tanto agradaste.

 

Deo Gratias” é o grito que a vossa delicadeza acaba de sufocar.

Deo Gratias” também digo eu porque hei de levado até o Calvário a minha Cruz. Mas ainda, senhores, uma dose de paciência e eu desaparecerei daqui.

Não quero terminar sem levar os meus parabéns a essa mocidade levítica que tão filialmente festeja a subida gloriosa de sua Mãe ao país das eternas alegrias — O Céu.

Filhos de Maria, este vosso esforço vos honra em demasia e é uma segurança ao mesmo tempo que uma credencial junto ao trono da Mãe de Deus.

Nos prélios do vosso futuro apostolado, no campo aberto da batalha universal, haveis de recordar-vos, saudosos, destes momentos felizes, verdadeiros paraísos volantes na terra; haveis de recordar-vos, jovens (e com lágrimas nos olhos), e esta recordação por si só seria um bálsamo, porque, no vosso peito há de brotar a flor da esperança naquela que não se deixa vencer em amor, nem deixa homenagem sem recompensas!

Meus parabéns!

Eu li, senhores, que um saltimbanco assistia a uma grande festa em honra de Maria. Essa história que li numa revista francesa — Lectures pour tous, a encontrei mais[22] desenvolvida numa conferencia mariana do nosso ilustre e católico patrício o Sr. Conde de Afonso Celso. Diz ele que a imagem era da Virgem da Glória, das que tem o menino Jesus no braço.

Todos, ávidos de homenagear a Virgem, traziam, cada um a sua oferta. Este levava o lírio branco; esse o seu perfumoso incenso; aquele atirava flores; mais além na salva tiniam as moedas de ouro e de prata.

Só o nosso acrobata não se movia. Coitado! Era tão pobre o palhaço da feira! Mas ele se afligia muito.

 

Que poderei dar?

De súbito na sua alma de pobre e de simples, mas devoto de Maria, relampejou uma ideia. E ele disse com seus botões: “Eu sei fazer cabriolas, eu tenho os meus jogos. Quem sabe se ela não aceitará isto oferecendo-o de coração? É tão boa! ” E, rompendo o povo, aproximou-se do altar, estendeu um tapete no chão e começou a fazer toda a sorte de ginástica e de cambalhotas de sua arte diante do nicho.

Foi um escândalo. O povo gritava, quase o agarravam como um louco.

E ele, o bom saltimbanco, teimava. “Deixem-me, senhores. A intenção é que vale. Ao menos o menino há de gostar. As crianças gostam disso”

Consentiram, cheios de emoção. O pelotiqueiro, diz Afonso Celso, fez o que de mais fino contava o seu repertório.

E então, rezam as crônicas, houve um milagre. O Menino Jesus que estava nos braços da Virgem, sorriu, quase aplaudiu o acrobata.

O pelotiqueiro entusiasmado, oh! Se o tivésseis visto imaginai, senhores, fez prodígios de ginástica, empregando todas as forças possíveis.

Extenuado, esgotado, nadando em suor, ele rolou por terra. Coisa nunca vista!

O Menino sorria e a Mãe Celeste, sorrindo, desceu do altar, devagarinho, cheia de doçura, com nívea mão enxugou, com a ponta do manto cor do céu, a fronte suarenta do acrobata.

Senhores, eu sou como o saltimbanco da Virgem da Glória.

Não tinha vela, não tinha ouro, nem incenso, nem flores. Pobre como palhaço de feira, eu toquei a minha indigência.

Que oferenda lançar aos pés de minha Mãe?

Vi os meus irmãos com as mãos cheias de mimos e eu não os tinha.

Como o pelotiqueiro da lenda vim para aqui, ao pé do deslumbrante monumento, fazer o que sabia.

Não vos importuneis com as minhas peloticas sem arte e sem estilo, porque a intenção é que vale.

Se não mereço que a Virgem enxugue o meu suor, com a fimbria azul do marchetado véu, ao menos tenho a confiança de ir juntamente com os meus indulgentes ouvintes contemplar no Céu a Beleza deslumbrante de sua peregrina face.

 

Dom José Pereira Alves - Discursos e Conferências, Imprensa Nacional 1948.

 


[1] Cf. Terrien Jourdain.

[2] Cf. Terrieu Jourdain. Escrip.

[3] Divina Comédia.

[4] Apud. Rev. S. Cruz.

[5] Cântico dos Cânticos.

[6] Apud. Noél.

[7] Cf. Terrien – Nicolas.

[8] Apud, Nicolas.

[9] Vid. Terrien, Jourdain.

[10] Apud. Jordain.

[11] Vid. Nicolas.

[12] Adam de S. Vitor.

[13] Leonardo Mascello, Foglie al vento.

[14] Psichologie.

[15] Monsabré

[16] Vid. Dicc. Iconographique, Migne.

[17] D. Luiz de Britto, Arcebispo de Olinda.

[18] Rome, revue.

[19] Ver. P. Mascello

[20] Apud. Revue Rome.

[21] Discurs et Panegiriques.

[22] Apud. Rev. S. Cruz

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