Pe. Gabriel Billecocq, FSSPX
Com essas palavras — “Deus não castiga” — a mídia difunde os dizeres de muitos eclesiásticos, como Dom Éric de Moulins-Beaufort que, por exemplo, afirmou recentemente numa entrevista: “A coerência bíblica leva à convicção de que Deus, o Deus vivo, não age na história para punir.”1
No entanto, a questão está em todos os corações. Nos deparamos nas ruas com dois tipos de homens: de um lado, os que nos insultam e negam Deus, mas que terminam por acusa-lo dos castigos presentes; de outro, os que, considerando esse vírus como uma punição, pedem nossa intercessão a Deus. Deus castiga? Não procuramos aqui saber se o coronavírus é um castigo de Deus, e sim examinar se Deus pode ou não punir.
O Antigo Testamento
O primeiro reflexo que nos vêm, quando essa questão vêm a tona, é o de abrir o Antigo Testamento. Deparamo-nos então com a revolta de Coré, Datan e Abiron. Os dois últimos, da tribo de Rubem, apoiavam o levita Corá contra os privilégios de Moisés e Aarão (na verdade, sentiam ciúmes da posição hierárquica dos dois irmãos e fomentavam uma revolta). Apesar de Moisés exortar à humilhação diante de Deus, o orgulho desses homens foi punido ostensivamente. A terra se entreabriu e engoliu as famílias de Datan e Abiron. Quanto à Coré e aos duzentos e cinquenta homens que o apoiavam oferecendo incenso, foram devorados por um fogo que desceu do Céu. No dia seguinte, toda a multidão dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e Aarão de serem responsáveis pelas mortes dos das tribos de Rubem e de Levi. Um novo fogo celeste devastou o povo e foi preciso a intercessão do grande sacerdote para pôr fim a esse fogo2.
Encontramos também o episódio da translação solene da arca da aliança para Sião nos tempos de Davi. A arca estava sobre um carro novo puxada por bois quando, de repente, ao chegar em uma eira, os bois escorregaram. Oza estendeu a mão para a arca de Deus e susteve-a. O Senhor indignou-se e Oza caiu morto ali mesmo. A razão? Somente os levitas estavam autorizados a tocar neste objeto sagrado e Oza não era da tribo de Levi. Trata-se claramente de um castigo3.
Há muitos exemplos como esse no Antigo Testamento e não podemos citá-los todos. Mas a conclusão de impõe: Deus castiga! De resto, nosso contemporâneos fariam bem em se lembrar do episódio de Sodoma e Gomorra…
O Novo Testamento
Dir-se-á, talvez, que era assim na antiga aliança, quando Deus educava o seu povo; doravante, o castigo deu lugar à misericórdia. Com acerto, citarão o episódio da mulher adúltera: “vai, e não peques mais”, diz Jesus. O que apenas corrobora o que já dizia o Profeta Ezequiel: “Não quero a morte do ímpio, mas sim que se converta do seu mau proceder e viva” (Ez 33, 11).
Os numerosos milagres, as múltiplas remissões dos pecados (Maria Madalena, o bom ladrão etc) não devem ocultar outras páginas do Evangelho. Pense na figueira maldita por não carregar frutos. Releia parábolas como as do rico mau que está no inferno, ou a do homem que comparece às bodas sem a veste nupcial e é lançado no fogo eterno. Medite o capítulo 23 de São Mateus que relata as maldições de Jesus aos Fariseus. Que não se esqueça tampouco com que misericórdia Nosso Senhor expulsou do templo os vendilhões. O episódio de Ananias e Safira, nos Atos dos Apóstolos, também é eloquente!
Em resumo, é preciso dizer que a nova aliança é uma lei de amor, uma lei de misericórdia. Mas, seria compreender mal a misericórdia divina separá-la da justiça. Ocultar todos os atributos divinos para ficar apenas com a sua misericórdia seria, além de um erro teológico, tomar a Deus por um bonachão.
Justiça e misericórdia
Ser misericordioso significa inclinar-se sobre a miséria de outrem para aliviá-la. Ora, a verdadeira miséria do homem é o pecado. Deus, portanto, demonstra uma misericórdia eminente quando, inclinando-se sobre nossos pecados, nos desoprime e nos liberta deles. Mas, aí está: o pecado não é uma miséria como as demais. Não é apenas uma simples miséria do homem. É também uma ofensa feita a Deus. Há, portanto, esse duplo aspecto a ser considerado ao se falar da miséria moral do homem: o homem é miserável porque ofendeu a Deus.
Sendo assim, Deus não pode agir com misericórdia para com o homem sem que ele possua uma genuína vontade de pedir perdão e reparar a ofensa cometida. Ora, pedir perdão e reparar pelas ofensas são atos de justiça.
Só há misericórdia, portanto, se há justiça. E a justiça exige uma reparação à altura da falta. Esta reparação é, propriamente falando, um castigo, uma pena, ou ainda, uma penitência. Deus tem de castigar para fazer misericórdia.
Pode-se objetar que são muitas as almas que se beneficiaram da misericórdia divina sem que tivessem de sofrer um castigo. Mas isso seria esquecer que a obra de justiça por excelência é a Paixão de Jesus e a sua morte na Cruz. Trata-se de um castigo verdadeiro, de uma punição pelos nossos pecados. “Ele se fez pecado” diz São Paulo, e aplacou a ira divina com a sua morte.
A misericórdia de Deus com respeito ao homem decorre da Paixão e da Cruz de Nosso Senhor. Dito de outra maneira, decorre daquele ato de justiça pelo qual Deus tornou-se propício a nós. É a partir daí que Deus nos é misericordioso e alivia a nossa miséria, nos convida a segui-lo no caminho da Cruz.
São Paulo dizia ainda: “[Eu] completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Cl 1, 24) dando a compreender que a todo homem há um dever de viver na penitência em espírito de reparação. “Ou sofrer, ou morrer”, dizia ao seu modo a grande Santa Teresa.
Infeliz do homem que não quer se arrepender dos seus pecados. A esses corações endurecidos na sua miséria, é preciso temer a cólera divina. “Se isto se faz no lenho verde”, disse Jesus as mulheres de Jerusalém, “que se fará no seco?”
As vias insondáveis da Providência
Deus não quer a morte do pecador. Ele quer a sua conversão. Mas há pecadores que não querem se converter, que desejam a sua morte espiritual. A conversão de tais pecadores só se obtém — quando se obtém — pelo sofrimento do Justo e dos justos. É amiúde pelo castigo dos que lhe são agradáveis que Deus, vendo nos corações de tais santos uma generosidade de amor, inclina-se para a misericórdia para com as almas endurecidas.
O castigo dos justos aqui em baixo é muitas vezes o prelúdio de conversões extraordinárias. “O sangue dos mártires é sementeira de católicos”, já dizia em seu tempo Tertuliano. As almas religiosas e enclausuradas são muitas vezes almas reparadoras que atraem numerosas graças de conversão. Por onde se pode mensurar a loucura dos padres conciliares que abriram de par em par as clausuras monásticas.
Quanto aos que recusam a conversão, São Bernardo deplora muitas vezes a sua prosperidade material como sendo a justa recompensa da sua miséria moral: usufruem desde já da recompensa de que serão privados na eternidade. Sim, um dia serão castigados por seu pecado, mas nada impede que também o sejam aqui embaixo. Há, pois, um mistério, e é o mistério da unidade divina, na qual se encontram intimamente unidas a justiça e a misericórdia divina. Deus continua a castigar pois o pecado é para Ele uma ofensa incomensurável. Mas, esse castigo aceito pelos justos converte-se em misericórdia e perdão das ofensas.
Deus não castiga
Dizer que Deus não castiga é uma loucura de consequências portentosas. Equivale a tomar o nosso Bom Deus por um ser bonachão e fraco, voltado para o homem como para o seu fim; ao invés de tomá-lo como um Pai ávido pela nossa perfeição.
Dizer que Deus não castiga equivale a dizer o pecado não o atinge. É tornar supérflua a paixão e morte de Nosso Senhor sobre a Cruz, inútil o Santo Sacrifício da Missa, ociosa a vida religiosa, infecunda e fútil a penitência. Quem não reconhecerá nisso os frutos amargos da nova religião do homem? Como, então, se assombrar ao ver os próprios bispos ousando afirmar que Deus não castiga?
Sempre podemos responder-lhes que Deus não pune diretamente, mas se serve da estupidez e da perversidade dos ímpios para que se punam uns aos outros pelas descobertas científicas do seu incomensurável orgulho. A auto-destruição da Igreja engendrou a auto-destruição da humanidade…