O culto em geral é uma honra tributada com submissão e dependência a uma pessoa que nos é superior e por causa de sua excelência 1. Quer seja somente interior ou exterior ao mesmo tempo, o culto difere, portanto, segundo a excelência mesma da pessoa à qual é devido. A Deus, por causa de sua excelência infinita de primeiro princípio e soberano Senhor de todas as coisas, é devido o culto supremo de latria ou de adoração, o ato da virtude da religião. Este é devido também à Humanidade do Salvador enquanto esta pertence à pessoa incriada do Verbo e, de uma forma relativa, ao crucifixo e a outras imagens do Salvador, pelo fato de representá-lo.
Às pessoas criadas que têm certa excelência é devido um culto chamado de dulia ou de respeito, que é o ato da virtude de dulia subordinada à da religião. Já na ordem natural, deve-se respeito aos pais, aos reis, a um chefe do exército, a um professor, a um sábio e, na ordem sobrenatural, deve-se a veneração aos santos, por causa da excelência de suas virtudes cuja heroicidade é reconhecida pela Igreja. Esse culto prestado aos servos de Deus honra o próprio Deus, que se manifesta por meio deles e que nos atrai para Si por eles 2. O Concílio de Trento defende a veneração dos santos contra os protestantes, que querem ver nesse culto um ato de superstição3.
Ademais, ensina-se comumente na Igreja que à Santíssima Virgem é devido um culto de hiperdulia ou de dulia suprema, em virtude de sua eminente dignidade de Mãe de Deus 4.
Natureza e fundamento desse culto
Existem, em relação ao culto devido à Maria, dois desvios absolutamente contrários um ao outro. Segundo o testemunho de Santo Epifânio 5, os coliridianos quiseram render à Santíssima Virgem um culto propriamente divino e oferecer-lhe sacrifícios. Esse erro mereceu o nome de Mariolatria, mas teve pouca duração.
Os protestantes, ao contrário, têm declarado que o culto de hiperdulia rendido pelos católicos à Santíssima Virgem Maria é uma superstição.
É fácil responder que o culto de latria ou de adoração somente pode ser tributado a Deus; se a Humanidade de Jesus é adorada é porque está unida pessoalmente ao Verbo, e se é rendido um culto de adoração relativa ao crucifixo é porque este representa Nosso Senhor 6. É claro, com efeito, que o crucifixo ou as imagens do Salvador não têm outra excelência que a de O representar. Se esse culto de adoração fosse rendido relativamente à Santíssima Virgem por causa de sua relação com o Verbo feito carne, isso seria facilmente compreendido por muitos como uma adoração que se endereça a Maria por causa de sua própria excelência, e seria assim ocasião de erro grave de idolatria, como observou Santo Tomás 7.
O culto devido a Maria é, portanto, um culto de dulia. Esse ponto de doutrina é mesmo de fé, segundo o Magistério universal da Igreja; de onde a condenação de três proposições contrárias de Molinos8.
Ademais, é uma doutrina comum e certa que se deve a Maria um culto eminente de dulia, ou hiperdulia, que lhe é próprio, por ser ela a Mãe de Deus. Esse é o ensinamento tradicional que aparece cada vez mais explicitamente nos escritos de São Modesto9 no século VII e São João Damasceno 10 no século VIII. Posteriormente em Santo Tomás 11, São Boaventura 12, Scot 13, Suárez 14 e em quase todos os teólogos católicos 15. A Sagrada Congregação dos Ritos confirmou-o num decreto de 01 de junho de 188416 e a liturgia também, no Ofício da Santíssima Virgem 17.
Vê-se por aí que o culto de hiperdulia é devido formalmente à Virgem Maria pela razão de que ela é a Mãe de Deus, porque a Maternidade Divina é, por seu termo, de ordem hipostática, muitíssimo superior à ordem da graça e da glória. Se, então, a Santíssima Virgem tivesse recebido somente a plenitude de graça e de glória sem ser a Mãe de Deus, ou em outras palavras, se fosse superior aos santos somente pelo grau de glória final e consumada, esse culto especial de hiperdulia não lhe seria devido18.
Enfim, é uma doutrina muito provável e muito comum que esse culto de hiperdulia não é somente um grau superior do culto de dulia devido aos santos, senão que é especificamente distinto, como a Maternidade Divina é, por seu termo de ordem hipostática, especificamente distinta do grau da graça e da glória 19.
Esse culto de hiperdulia é rendido à Virgem formalmente porque ela é a Mãe de Deus, Mãe do Salvador; contudo, é porque tem esse título supremo que merece ser chamada de Mãe de todos os homens, de Medianeira Universal e de Corredentora.
Quais são os frutos desse culto?
É atraída sobre os que rendem esse culto à Mãe de Deus uma imensa benevolência da sua parte, e são levados a imitar suas virtudes; também são conduzidos eficazmente à salvação, porque Maria pode obter a graça da perseverança final aos que lhe imploram fielmente. Isso porque a verdadeira devoção à Santíssima Virgem é considerada comumente como um dos sinais de predestinação. Ainda que não dê uma certeza absoluta e infalível de se estar salvo 20, essa devoção nos dá a firme esperança de obter a salvação. Essa firme esperança baseia-se no grande poder de intercessão de Maria e em sua grande benevolência para aqueles que a invocam 21. Nesse sentido, Santo Afonso afirma 22 que é moralmente impossível que estes se percam se, ao desejo de emenda, acrescentam a fidelidade em honrar a Mãe de Deus e encomendam-se à sua proteção. Se houver apenas vagos desejos de romper com o pecado, não há, portanto, ainda, um sinal provável de predestinação. Mas se os pecadores se esforçam em abandonar o pecado em que estão, e se buscam para isso a ajuda de Maria, ela não deixará de socorrê-los e de devolvê-los à graça de Deus. Assim fala com Santo Afonso23 a generalidade dos teólogos mais recentes.
De um modo geral, na Igreja, esse culto rendido à Virgem Maria confirma os fundamentos da fé, pelo fato de que deriva da fé na Encarnação redentora e evita, portanto, as heresias; também se diz de Maria: “Cuncta haereses interemisti in mundo”. Essa devoção conduz à santidade pela imitação das virtudes da Santíssima Virgem e glorifica Nosso Senhor ao honrar a Sua Mãe.
Objeções
Os racionalistas objetaram que a origem primitiva do culto religioso à Virgem Maria parece dever ser atribuída à influência das concepções semipagãs introduzidas na Igreja pelas conversões em massa realizadas no século IV.
Essa teoria foi já mencionada e contestada por São Pedro Canísio em sua obra De Maria Deipara Virgine 24. Foi examinada recentemente no Dictionnaire Apologétique, artigo Mariolâtrie 25, e no Dictionnaire de Théologie catholique, artigo Marie 26, pelo Pe. Merkelbach 27 e pelos autores por ele citados.
É certíssimo que, do ponto de vista dogmático, o culto à Santíssima Virgem não veio do paganismo no século IV, mas está fundado na excelência mesma de Cristo. No Ocidente, pelo menos desde o século II, as palavras natus ex Maria Virgine estão inseridas no símbolo que era explicado aos catecúmenos. Desde a época de São Justino, Santo Irineu e Tertuliano, Maria, a Mãe do Salvador, é chamada a nova Eva, a Mãe espiritual dos cristãos. Esse culto nasceu espontaneamente nos fiéis em razão de sua fé no mistério da Encarnação redentora 28.
Do ponto de vista histórico, deve-se acrescentar que tanto a primeira representação da Virgem tendo o menino Jesus sobre seu peito como a pintura da Anunciação, encontradas no cemitério de Priscila, em Roma, segundo o juízo dos mais competentes, remontam ao século II; outras obras são do século III, isto é, anteriores à conversão em massa dos pagãos, ocorrida no século IV 29.
Ademais, o culto à Virgem Maria é totalmente diferente do culto a Ísis no Egito, a Ártemis em Éfeso e a Ishtar na Babilônia; essas deusas representavam realmente a vida e a fecundidade natural da terra, e em seu culto mesclavam-se ritos e práticas imorais, e não o amor à castidade e à virgindade.
Além disso, os pagãos consideravam o objeto desses cultos como deusas, enquanto que Maria sempre foi considerada como apenas uma criatura que deu ao Verbo feito carne sua natureza humana.
Se existem certas analogias, são puramente exteriores, pelo fato de que todo culto, verdadeiro ou falso, tem certa conformidade com algumas aspirações do coração e se exprime por meio de imagens; mas não há nenhuma imitação. Por fim, sendo a Igreja tão oposta à religião pagã, não se pode fazer uma tal suposição.
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A objeção dos protestantes, segundo a qual o culto a Maria prejudica o culto a Deus, carece de fundamento. A Igreja Católica sustenta com efeito que o culto de latria ou de adoração é rendido exclusivamente a Deus, e a devoção à Santíssima Virgem, longe de opor-se ao culto divino, favorece-o, pois reconhece que Deus é o autor de todos os dons que veneramos em Maria; a honra prestada à Mãe converte-se em honra ao seu Filho e a Medianeira universal permite-nos entender melhor que Deus é o autor de todas as graças.
A experiência mostra, além disso, que a fé na divindade de Cristo conserva-se entre os católicos que praticam o culto a Maria, enquanto que desaparece entre os protestantes. Todos os santos, por fim, têm unido o culto a Nosso Senhor ao de Sua Mãe.
A devoção a Maria, sendo mais sensível, é mais intensa em certas pessoas que a devoção a Deus, mas o culto divino lhe é superior, uma vez que Deus é amado sobre todas as coisas com um amor de estima, que tende a se tornar mais intenso e que o é na medida em que a alma vive mais da vida espiritual desprendida dos sentidos.
A confiança em Maria, Mãe de Misericórdia, e no poder de sua intercessão, longe de diminuir a confiança em Deus, a aumenta. Se a confiança que os peregrinos de Ars tinham em São Joao Maria Vianney, no lugar de diminuir sua confiança em Deus, a aumentava, com mais forte razão a aumentará aquela confiança que os fiéis têm em Maria. Essas objeções, portanto, não têm absolutamente nenhum fundamento.
O culto de hiperdulia, pelo contrário, baseia-se na fé na divindade de Cristo, a qual se expressa no título mais glorioso de Maria, o de Mãe de Deus.
Seria uma falta de humildade ― diz São Luís Grignion de Montfort ― desprezar os mediadores que Deus nos envia por causa da nossa fraqueza. Longe de prejudicar a nossa intimidade com Deus, dispõe-nos a ela. Como Jesus nada faz nas almas que não seja para conduzi-las a seu Pai, da mesma forma, Maria não exerce sua influência nas inteligências e nos corações que não seja para conduzi-los à intimidade de seu Filho. Deus quis servir-se de Maria constantemente para a santificação das almas.