Ofícios (93)
Gustavo Corção
No torvelinho das horas e dos dias convém considerar, vez por outra, os marcos imóveis, os sinais da eternidade. Vale a pena parar a carreira dos sucessos e, com voz da poesia, perguntas às árvores espantadas, às pedras retraídas, às casas que ficam para trás com portões de ferrugem e janelas estremunhadas, se porventura entendem a avidez que nos impele, que nos compele a perseguir um bem que logo perde o sabor quando alcançado; se entendem essa fome que se muda em fastio ou náusea à medida que morde o momento que passa e que continua a ser insaciável para os sonhos de fumaça impossível. A árvore permanece, posto que aos ventos ofereça uma mobilidade cantante e dançante; a pedra permanece; o velho portão, malgrado a ferrugem, permanece. São essências tranquilas e bem ritmadas. A seu modo humilde imitam e refletem o imutável. Sendo o que são, com simplicidade robusta, trazem a marca daquele que é o que é. Nós, ao contrário, vivemos a fugir do que somos. Essência mais alta, feita à imagem e semelhança de Deus, fugimos de Deus quando buscamos o absoluto impossível no torvelinho das coisas. Nós, que deveríamos ser mais imóveis que as árvores, as casas e as pedras, para melhor contemplarmos as realidades que resistem aos ventos e à ferrugem, nós vivemos a correr, a fugir do que temos, a buscar o que nunca teremos e, sobretudo, a assistir à rápida decomposição dos amores conseguidos. Marta, Marta, de muitas coisas te ocupas, mas uma só é necessária... Vale, pois, a pena parar a dança das horas e considerar os marcos de eternidade.
E essa sabatina de contemplação e de imobilidade que a Igreja nos propõe agora no Domingo da Ressurreição. Amanhã e depois os cuidados voltarão a empunhar as manivelas da engrenagem: hoje estamos diante da pedra de Pedro, da Casa de Deus, da árvore do Crucificado. Amanhã e depois voltaremos à lida de nossa peregrinação, aos problemas do tempo, ao petróleo de Nova Olinda, aos candidatos à presidência e à vice-presidência, aos livros escritos sobre Machado de Assis, a tudo isso que será apenas vaidade das vaidades e perseguição do vento se não soubermos trazer para esses problemas dispersos o critério fundamental que os transfigura em caminhos de Deus.
Hoje é dia de Páscoa, dia em que a Igreja, com sinais moldados nas coisas peregrinas, e com o memorial da Ressurreição testemunhada pelos Apóstolos, compõe o quadro da vitória de Cristo, e nos deixa entrever o país de maravilhas que se estende pelo outro lado do espelho — o país da divina Esperança. A obra de Cristo, espécie de usinagem operada sobre a dor e a morte e, por conseguinte sobre o que constitui o máximo espanto do mundo, abre-se agora num estuário de glória. Assistimos durante a semana, à representação do drama onde se vê passar um Deus apaixonado. O Homem das Dores de Isaías é o mesmo do Cântico dos Cânticos. É o mesmo coração vulnerado. Mas agora o círio pascal está aceso para dar o tom à nossa vida como um diapasão de luz. São Bento ensina que a vida do monge deveria ser uma contínua quaresma. A nossa também. E a quaresma deveria ser paixão; e a paixão deveria ser morte; e a morte deveria ser páscoa. A transmutação que Deus espera de nós é uma transfiguração que vá deixando o que menos somos em favor do que verdadeiramente somos por natureza e do que somos chamados a ser pelos favores da graça. De claridade em claridade, se formos dóceis, iremos caminhando, por atalhos de dores, para o país do amor perfeito que tem bandeira de fogo em mastro de cera.
Parece-vos ingênuo — ó leitores tristes — o quadro da Sião gloriosa que a Igreja põe hoje diante de vossos olhos? Parece-vos estampa infantil a santa liturgia? Ou quem sabe até se tudo isso não vos sabe a costumes obsoletos, a cerimoniais que os etnólogos explicam, a ritos que as ciências do século superaram? Por vós, e por mim, receio que a simplicidade do quadro seja chocante e não consiga atravessar a sebe de nossas complicações. Nós somos complicados; Deus é simples. Nós somos adultos, envelhecidos; Deus é mais moço do que nós. Nós somos espertos, sinuosos, ardilosos; Deus escolheu para Si as figuras do cordeiro e da pomba. Diz-nos a fé que ali, na outra margem do Mar Vermelho, onde brilha o círio da vitória, os desenganos e as tribulações terão desenlaces de prodígio; que receberemos, em medidas de alqueires calcados, recalcados e transbordantes, o que não tivemos a audácia de pedir; que serão consertadas as contradições de nossos tristes amores; que a lágrima vira joia; que a chaga vira flor. Diz-nos a fé que naquele país de maravilhas, que se estende lá do outro lado do espelho, teremos paz.
Parece-vos ingênua — ó homens tristes! — a linguagem da fé? Parece-vos insípida a comida da esperança? E quem pergunta poderá se gabar de melhor sentir e de melhor servir? Não é a descrença que mais espanta. A descrença, se me permitem os apologistas, tem certa lógica na sua retração, no seu encolhimento, no seu propósito de não levar longe demais as investigações que terminariam em incêndio. A descrença, sob esse especial ponto de vista, é mais razoável, mais compreensível do que a crença imperfeita que se detém, que se encolhe, que se retrai quando nela, na fé, tudo pede expansão e consequência. Não nos espantemos, pois, da cegueira dos descrentes porque muito mais espantosa é a meia cegueira de nossa inconsequência. Talvez fosse melhor mudar de tom. A segurança da fé e a certeza da esperança seriam mais edificantes do que os titubeios da perplexidade. Talvez fosse melhor, nessa máxima festa, procurar pífaros e cítaras para cantar o júbilo de alma cristã no dia da Páscoa do Senhor, em vez de permitir ao velho coração um gemido de cansaço... Deus há de permitir que essa tristeza se converta em alegria e que a alguém aproveite o que a nós nos pesa. É privilégio seu: é ofício de seu Filho transformar a dor em salvação e a morte em vida.
(Diário de Notícias, 10/04/1955)
O Verbo desde toda a eternidade gerado pelo Pai elevou à união pessoal com Ele o fruto bendito do seio virginal de Maria; quer dizer que a natureza humana e a natureza divina se ligaram em Jesus na unidade duma só pessoa que é a segunda da Santíssima Trindade e visto que quando se fala de filiação é a pessoa que se designa, deve dizer-se que Jesus é o Filho de Deus, porque a sua Pessoa é divina: É Verbo incarnado. Daqui se segue que Maria é com razão chamada Mãe de Deus, não porque ela tenha gerado o Verbo, mas porque gerou a humanidade que o Verbo uniu a Si no mistério da Incarnação. Compreendemos então que a Igreja cante na Missa o solene Intróito: “Tu és meu Filho, hoje Te gerei”.
Filho eterno do Pai, constantemente gerado por Ele na eternidade, Cristo continua a sê-lO no dia do seu nascimento sobre a Terra, revestido da nossa humanidade. É no meio da noite que Maria dá à luz o Filho divino e O coloca no presépio. Por isso celebra-se a Missa à meia noite, e a estação faz-se na Basílica de Santa Maria Maior, no altar onde se conservam as relíquias do presépio.
Este nascimento de Cristo em plena noite é simbólico: “Deus nascido de Deus, Luz nascido da Luz” (Credo), Cristo dissipa as trevas do pecado; “É a verdadeira luz” cujo esplendor ilumina os olhos da nossa alma, para que, enquanto conhecemos a Deus de uma maneira visível, por Ele sejamos arrebatados ao amor das coisas invisíveis. Veio arrancar-nos à impiedade e aos prazeres do mundo e ensinar-nos a merecer, pela dignidade da vida neste mundo, a feliz esperança que nos foi prometida. Será em plena luz que se realizará a vinda da glória de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo. Natal, é a aparição na noite do mundo da Luz divina, cujo fulgor, em nós, e em volta de nós, se estende até ao fim dos tempos.
Do Evangelho: Por que, pergunta São Gregório, esse recenseamento, no momento do nascimento do Senhor, senão para nos dar a entender que é a aparição na carne d’Aquele que, um dia, deve recensear na eternidade os seus eleitos? (Matinas). O aparecimento do Homem Deus durante a noite é a figura da sua vinda no fim do mundo. Di-lo o próprio Jesus: No meio da noite far-se-á ouvir um clamor. Eis que vem o Esposo, ide ao seu encontro e as almas que tiverem esperado por Ele entrarão para as bodas eternas, enquanto que às outras dirá: Não vos conheço (parábola das dez virgens).
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Evangelho).
Paramentos verdes
Os judeus, submetidos ao império romano, deviam pagar anualmente a César um tributo que lhes era tanto mais odioso quanto lhes feria diretamente o espírito de domínio universal de que Israel acreditava ter recebido a promessa. De maneira que, se Jesus respondesse à pergunta capciosa dos rabinos que deviam pagar o tributo, indispunha o povo contra Ele; se respondesse que não, seria condenado pela autoridade de Roma. Julgavam-se, portanto, de posse dum meio que lhes permitiria prender o Redentor. Jesus, porém, com infinita sabedoria, sem procurar de modo nenhum furtar-se ao astuto dilema, aproveitou a ocasião para nos dar uma lição magnífica dos nossos deveres cívicos e religiosos. De quem é esta imagem e inscrição? Perguntou Ele aos judeus. De César, responderam. À autoridade humana, que governa com o poder que lhe vem de Deus, devem-se os tributos materiais, o acatamento às suas leis justas. A Deus deve-se amor, serviço e adoração, tributados de corpo e alma. Deve-se, de justiça, o culto litúrgico. Somos moeda cunhada por Deus à Sua imagem. E Deus reclama essa moeda como César a sua.
Da Epístola: O dom da perseverança vem de Deus. E o Apóstolo pede-o a Deus para os Filipenses a quem dirigem esta carta, a fim de que, carregados de boas obras, deem glória a Deus e possam esperar confiadamente o Salvador quando pela noite e à maneira de ladrão os vier chamar.
Do Evangelho: Se ainda estamos presos aos bens de César, diz S. Hilário, não nos podemos lamentar da obrigação de lhe dar o que lhe pertence. Mas é necessário dar também a Deus o que Lhe pertence por inteiro, quer dizer, consagrar-Lhe o nosso corpo, a nossa alma e a nossa vontade.
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
“O seu senhor irritado o entregou aos executores” (Evangelho.)
Paramentos verdes
Continua a ler-se no Ofício Divino a história dos Macabeus que se bateram pela pátria e pelas suas tradições de povo eleito. A vida cristã é também um combate contínuo que se vai desenrolando através do tempo e em que estão igualmente em jogo a glória de Deus e a salvação do povo. E nesta luta, que todo o cristão deve travar, fica bem o ardor desinteressado do cavaleiro leal e sem mancha que se bate até cair exangue, gritando, num último arranco, o nome do seu Rei e Senhor. Lembremo-nos que nós como eles combatemos pela fé de nossos pais, pelo patrimônio sagrado de filhos de Deus, que devemos colocar acima de todos os títulos e grandezas da Terra. Todo este imenso tesouro espiritual, que guardamos em vasos de barro, é ameaçado constantemente pelas forças do mal em rebelião perpétua contra Deus. A luta não se trava com os homens, diz S. Paulo, mas com os espíritos das trevas, cuja ação é grandemente poderosa e deletéria. E o Apóstolo convida-nos a que nos armemos com as armas de Deus: com a Fé, com a verdade, com a justiça, com o Evangelho da paz e da caridade. O Intróito é um hino de confiança na vitória: “Todas as coisas dependem da Vossa vontade, Senhor, e nada há que lhe possa resistir”. O Gradual e a Comunhão exprimem os mesmos sentimentos de esperança invencível. Sentimos realmente dentro de nós uma força nova, ao erguermos a nossa voz débil a um Deus onipotente, que se compraz em ajudar os que O invocam. A Igreja, que sabe os rudes combates que temos de sustentar, coloca-nos assim nos lábios orações magníficas para nos infundir coragem e dobrar sobre nós a misericórdia divina. Não obstante, porém, o auxílio do Céu, a nossa fraqueza e inconstância não nos permitem aguentar por muito tempo o peso da peleja sem deixar terreno ao inimigo. É nestes momentos culminantes que devemos recorrer mais que nunca à misericórdia de Deus. E o Evangelho diz-nos que ela é infinita e que nunca nos poderá faltar, se nunca a negamos àqueles que no-la pedem também.
Da Epístola: O Apóstolo fala-nos da luta terrível que temos de travar com os espíritos invisíveis, e manda-nos armar com as armas de Deus.
Do Evangelho: Tornamo-nos duros e implacáveis por causa duma injúria que recebemos, e negarmos a reconciliação a quem nos ofendeu com uma simples palavra menos delicada, não será condenarmo-nos a nós mesmos?
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
“Vai, diz Nosso Senhor, teu filho vive” (Evangelho).
Paramentos verdes
As lições que estes dias se leem no Ofício são tiradas quase todas dos Livros dos Macabeus. Depois do cativeiro de Babilônia, o povo de Deus tinha voltado a Jerusalém e reconstruído o Templo. Os primeiros anos foram de paz. A Mão de Deus, porém, não tardou a pesar de novo sobre este povo de cerviz dura, em consequência de novas e lamentáveis infidelidades. Antíoco Epifanio, com efeito, apoderou-se de Jerusalém, saqueou a cidade e o Templo, e decretou a abolição do Judaísmo em toda a extensão do império. Ergueram-se altares aos ídolos e o número dos apóstatas cresceu tanto, que pareceu que ia desaparecer da face do globo a fé dos profetas e de Israel. Deus, porém, esperava o momento oportuno para mostrar mais uma vez a esse povo ingrato que, embora a mãe esqueça às vezes o próprio filho, Ele nunca o esqueceria. Com efeito, o sacerdote Matias reuniu um pequeno exército chefiado por seu filho Judas Macabeu, que iria desviar o rumo dos dias gloriosos. Esse punhado de homens decididos, rápidos como o abutre e implacáveis como o Espírito de Deus, derrotaram em breve o exército de Antíoco e restauraram nas terras de Israel o culto de Jeová.
Todas as partes da Missa exprimem sentimentos semelhantes. O Gradual, por exemplo: “todos os olhos se levantaram para Vós, Senhor, cheios de esperança”, traduz perfeitamente o sentido daquela oração tão bela: “O nosso olhar voltou-se para Vós, Senhor, não nos deixeis perecer”. O Ofertório, um dos versículos mais sentidos referentes ao cativeiro, revela-nos bem o estado de espírito dos Macabeus perante o Templo profanado. Finalmente, o Intróito, depois de nos dizer que o povo de Deus foi castigado por causa dos seus crimes, pede ao Senhor que mostre a sua misericórdia e glorifique o seu nome. Façamos nossos estes pensamentos. Reconheçamos que os males que sofremos são provenientes da nossa infidelidade à vontade divina, e roguemos também ao Senhor que se compadeça de nós, que nos perdoe e una, para que O sirvamos em paz e glorifiquemos o Seu nome.
Da Epístola: Erguei-vos do túmulo em que dormis, diz S. Paulo, e Cristo vos iluminará. Resgatados da morte por Jesus Cristo não nos demos mais às obras das trevas, mas vivamos como filhos da luz. Aproveitemos o tempo que nos é dado para fazer a vontade de Deus e Lhe dar graças pela vida divina a que se dignou chamar-nos.
Do Evangelho: Jesus salvou da morte o filho do régulo, para dar ao régulo e a toda a família dele o que é mais que a vida material, a fé. Este milagre deve aumentar em nós a fé em Jesus Cristo, que nos salvou da febre do pecado e da morte eterna, consequência dele.
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
“Como entraste aqui, não tendo a veste nupcial? ” (Evangelho)
Paramentos verdes
É por estes dias (no quinto domingo de setembro) que a Igreja lê no Ofício Divino a história de Ester. Julgamos, pois, que vem a propósito -- conforme a nossa intenção de rever com a Igreja as figuras do Antigo Testamento e de estudar, à luz do Breviário e do Missal, a liturgia destes domingos depois de Pentecostes -- falar hoje de Ester.
Assuero, Rei dos persas, tinha-se casado com uma donzela judia chamada Ester, sobrinha de Mardoqueu. Nomeara por outro lado intendente do palácio o amalecita Aman, muito conhecido pelo ódio que alimentava contra os judeus. Invejoso da preponderância que os judeus, por intermédio de Mardoqueu e de Ester, exerciam no ânimo do monarca, o amalecita convenceu o Rei de que os judeus conspiravam contra a paz do reino, e fez levantar em todo o país as forcas para as execuções. Ester, então, violando o decreto preventivo do tirano, de que ninguém se aproximasse dele naqueles dias, entrou à sua presença e lamentou que ela e o seu povo fossem entregues assim ao extermínio. Conhecendo Assuero por este meio que Ester era judia e sobrinha de Mardoqueu, perguntou irritado: “e quem ousa fazer isso? ” Ester respondeu: “O nosso inimigo, o cruel Aman” Então o rei, enfurecido contra o ministro, mandou revogar o decreto promulgado contra os judeus, e suspender Aman na mesma forca que ele preparara para Mardoqueu. Assim salvou Ester o seu povo. Isto mostra como Deus vigiava por aqueles que esperavam nele. E as coisas ainda não mudaram. “Eu sou a salvação do povo, diz o Senhor, e se ele chamar por Mim, ouvi-lo-ei”. “Quando a tribulação me oprimia, Vós, Senhor, dáveis-me coragem, e contra a cólera dos meus inimigos levantáveis a Vossa mão direita”.
Aman, que Assuero condenou tão severamente, é como aquele homem do Evangelho que entrou no banquete sem a veste nupcial, e que o rei condenou às trevas exteriores. Deus tratará assim também todos os que, pertencendo ao Corpo da Igreja pela fé do Batismo, entrarem na sala do banquete sem a veste das virtudes cristãs. Falta-lhe na alma a graça vivificante. São estranhos na assembleia dos vivos. E é aqui visado particularmente o grande preceito da Caridade: “Rejeitando a mentira, digam todos a verdade a respeito do seu próximo”. São membros uns dos outros. Que o sol não se ponha sobre a vossa cólera. Os que não cumprirem este preceito serão lançados pelo juiz soberano nas trevas do inferno, onde haverá pranto e ranger de dentes. Assuero encolerizado mandou prender Aman. “O rei, diz o Evangelho, encolerizou-se e enviou os seus exércitos para exterminar os assassinos e lhes queimar a cidade”. Mais dum milhão de judeus morreram no cerco de Jerusalém. A cidade foi destruída e o templo incendiado.
Aman foi substituído por Mardoqueu. Os convidados às núpcias foram substituídos pelos que se encontravam nas estradas e nas encruzilhadas dos caminhos. Os judeus foram substituídos pelos pagãos. Foi para estes últimos que os Apóstolos cheios do Espírito Santo se voltaram no dia de Pentecostes. E no Juízo Final, que estes domingos simbolizam, serão promulgadas as sentenças definitivas. Os justos tomarão parte no banquete das núpcias eternas, e os pecadores serão lançados nas trevas exteriores.
Da Epístola: Diz S. Paulo que é necessário pôr o velho homem de parte e revestirmo-nos de Cristo. Entre os antigos, “revestir, pegar num vestido” significava muitas vezes tomar um estado de que a veste era o símbolo exterior. “Revestir-se de Cristo” quer, pois, dizer, na linguagem do Apóstolo, renunciar às paixões e às obras da carne que trazemos conosco, como filhos de Adão, e viver doravante a vida plena de Cristo.
Do Evangelho: Deus, diz S. Gregório, celebrou as núpcias de Seu Filho quando O uniu no seio da Virgem à natureza humana, e quando O uniu, por meio da Incarnação, à Santa Igreja. E por duas vezes enviou os servos a convidar para as núpcias os seus amigos. Primeiramente, mandou os profetas que anunciaram a Incarnação do Filho de Deus que estava para chegar, e os Apóstolos que O apresentaram como fato consumado. Depois, à última hora, a Igreja, tendo de momento recebido todos os que vinham, fará a discriminação dos bons e dos maus.
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
“Meu filho, teus pecados te são perdoados” (Evangelho).
Paramentos verdes
Este domingo, que vem a seguir ao Sábado das Quatro Têmporas, era a princípio vacante. A liturgia da Vigília prolongava-se com efeito até de manhã, de maneira que não ficava tempo para os ofícios dominicais. As lições que se leem no Ofício são do Livro de Judite. Todos conhecem a história desta mulher famosa que salvou a Judéia, cortando a cabeça de Holofernes, general dos exércitos assírios. Holofernes, enviado por Nabucodonozor para conquistar a Palestina, tinha cercado Betúlia. Vencidos pela fome e pela sede, os sitiados tinham deliberado render-se, quando Judite apareceu a encorajá-los. Façamos penitência, dizia, e imploremos o perdão de Deus, porque estes flagelos com que nos castiga são para nos corrigir e não para nos perder. Depois, quando veio a tarde, vestiu-se com as suas melhores galas e fez-se introduzir no acampamento dos inimigos, sob pretexto de lhes entregar a cidade. E levada à presença de Holofernes, o general, seduzido pela sua beleza, recebeu-a com grande contentamento e ordenou que, em sua honra, se preparasse um banquete.
A Igreja, ao recordar as sete dores da Virgem Santíssima, aplica-lhe o canto que se ouviu em Israel, quando Judite livrou o povo eleito. Maria é com efeito a nova Judite que decepa a cabeça do general assírio, do dragão infernal. Nestes dias lê a Santa Igreja no Ofício divino estas páginas gloriosas da epopeia israelita, que são a figura do que mais tarde havia de acontecer numa ordem espiritual e mais elevada. A libertação do povo judeu da sujeição assíria, levada a efeito por Judite, representa a libertação da humanidade operada por Jesus. É muito oportuna esta Missa nesta época das Têmporas, que são tempo de perdão, por sê-lo de penitência em que Deus se deixa aplacar e vencer dos pobres mortais. Desse perdão e dessa paz consoladora, que se frui da Casa do Senhor, são legítimos despenseiros os sacerdotes a quem Jesus concedeu o poder sublime de dizerem: “Os teus pecados te são perdoados” Os novos ungidos do Senhor serão encarregados também de pregar a palavra de Deus, de celebrar o Santo Sacrifício e de preparar por este modo a humanidade para se apresentar confiadamente diante do Supremo Juiz. É por este motivo, precisamente, que a Igreja insistirá durante estes domingos no pensamento da vinda do Senhor.
A Epístola de hoje é também para meditar. Que contas tão estreitas não terá de prestar o cristão de tantas graças que recebe! E como dissipamos herança tão rica, como desprezamos tantas graças, os sacramentos, a pregação da palavra de Deus! Que contas serão as nossas[i]?
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
[i] - Para compreender a Missa deste domingo é preciso notar que antigamente não tinha Missa própria. O Ofício do Sábado das Quatro Têmporas, prolongado pelas cerimônias das ordenações, chegava até de manhã.
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Evangelho)
Paramentos verdes
A história de Tobias que se lê por esta altura no Ofício divino coincide frequentemente com este domingo. Julgamos, pois, conveniente estuda-la para estabelecer, conforme o nosso plano, a íntima união que existe e que muitas vezes não se nota entre o Breviário e o Missal.
Tobias terá vivido no tempo de Salmanasar pelos fins do século VIII antes de Cristo, ao tempo das deportações dos israelitas do Norte para a Síria. Foi homem pobre, observava todas as coisas conforme a Lei de Deus. Porém, depois que chegou à idade varonil casou-se com Ana, mulher da sua tribo, e teve dela um filho, a quem deu o seu nome e ensinou desde a infância a temer a Deus e a abster-se do pecado. Levado cativo para Nínive, Tobias não esqueceu o nome do Senhor e visitando os seus irmãos de exílio e de raça, dava-lhes salutares conselhos e distribuía com eles do seu pouco.
Dava de comer aos famintos, vestia os nus e sepultava com paternal solicitude os que morriam enfermos ou ao cutelo do tirano. “E Deus para acrescentar a sua coroa e dar aos homens um nobre exemplo de paciência e fidelidade, quis que ele cegasse já no fim dos seus dias”. E continua a Escritura: “tendo temido o Senhor desde a infância e andado sempre na sua Lei, não se contristou nem se revoltou contra Deus por causa da chaga com que o feriu, mas ficou imóvel no temor do Senhor, dando graças a Deus todos os dias da sua vida”
Somos filhos de santos, dizia, e esperamos a vida que Deus prometeu aos que põem N’Ele a sua esperança. E como a esposa o insultasse, Tobias gemeu dentro da sua alma e orou ao Senhor quase pelas palavras do Intróito de hoje: “Senhor, Vós sois justo e todos os vossos juízos são retos. Tratai o vosso servo segundo a vossa misericórdia”. Depois, voltando-se para o seu filho: “Meu filho, guarda no teu coração o nome do Senhor e foge de consentires no pecado. Dá esmola do que tens e não desvies a tua face do que tem fome. Faz todo o bem que puderes. O que não queres que te façam, livra-te de o fazeres a alguém”. Em resumo, o amor de Deus e do próximo, na sua realização magnífica, tal como a Epístola e o Evangelho de hoje no-lo aconselham. Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito e ao próximo como a ti mesmo (Evangelho). Praticai em tudo a humildade, a mansidão e a paciência. Sofrei-vos mutuamente e sede solícitos em vos conservar unidos nos vínculos da paz. Praticando estes sapientíssimos conselhos poderemos exclamar um dia com o velho Tobias ao recobrar a vista do corpo: “Ó Jerusalém, tu hás de brilhar como os astros e todas as nações virão adorar dentro dos teus muros o Deus de Israel. As tuas praças serão pavimentadas de pedras preciosas e nas tuas ruas ressoará para sempre o Aleluia eterno” Assim é a Jerusalém celeste e o reino de Deus na Terra, a Igreja Católica, Apostólica, Romana. “Quem a abençoar será bendito”. Todos são chamados a formar nela um só corpo, animado dum só espírito, que é o mesmo Espírito Santo que lhe foi infundido no dia de Pentecostes. “Todos temos a mesma Esperança, a mesma Fé e o mesmo Batismo”
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
“Tomando este homem pela mão, Ele o curou” (Evangelho)
Paramentos verdes
Costuma ler-se por esta altura no Ofício de Matinas, a história de Jó. Continuemos a nossa tarefa de estudo comparativo do texto do Missal e do Breviário.
Jó é o tipo do homem justo que o espírito do mal persegue e humilha para o excitar à revolta contra Deus. E assim acontece de fato deixar a Providência por um pouco a alma nas mãos de Satanás para confessar na dor e na desgraça a sabedoria de Deus e submeter-se incondicionalmente à sua vontade. Privado de todos os bens e abandonado só sobre o monturo, exposto às vaias dos maus e ao riso até dos seus amigos, o pobre Jó submetia-se confiadamente aos juízos insondáveis de Deus e implorava a sua misericórdia. O Salmo do Intróito pode considerar-se a expressão exata da sua angústia. Era assim realmente que Jó orava. Ele é o grito de todas as almas atribuladas. “Tende piedade de mim, Senhor. Tenho gritado por Vós durante todo o dia. Baixai o ouvido e escutai-me. Sou pobre e nada tenho de meu”.
O Ofertório e a Comunhão exprimem de maneira surpreendentemente exata os sentimentos do grande perseguido da desventura: “Deitai sobre mim o vosso olhar e vinde em meu auxílio. Confundi e humilhai diante de mim aqueles que querem tirar-me a vida. Senhor, não esqueci a vossa justiça. Vós conduzistes os meus passos desde a juventude. Agora que estou velho, não me abandoneis, Senhor”. Deus, diziam os amigos de Jó para encorajá-lo, exalta os humildes e levanta e cura os aflitos de coração. E o Evangelho da Missa de hoje repete: “Todo o que se exaltar será humilhado, e todo o que se humilhar, será exaltado”
Deus, com efeito, depois de provar Jó com as maiores humilhações, eleva-o de novo e dá-lhe o dobro de tudo quanto anteriormente possuía. Jó é figura de Cristo que, depois das humilhações do Gólgota, seria exaltado com a apoteose da ressurreição. É ainda figura de todo cristão, que terá lugar de honra no banquete de núpcias do Cordeiro se na terra praticar com amor e com fé a virtude da humildade. O orgulho, diz S. Tomás, é um vício pelo qual o homem se eleva contra a razão acima do que realmente é. O orgulho assenta consequentemente no erro e na ilusão. A humildade, pelo contrário, funda-se na mesma verdade. É uma virtude que modera os ímpetos da alma e a inibe de se elevar acima do que é. É por isso que o orgulho também se chama soberba — “superbia”. A alma verdadeiramente humilde aceita submissamente o lugar que lhe cabe e que Deus, verdade suprema e infalível, lhe consignou. Humildade nas palavras, na conversa, nos atos, nas provas, é a humildade genuína que Jó nos ensina e que o Senhor no Evangelho de hoje nos aconselha. Vendo como os fariseus escolhiam os primeiros lugares, quis fazer-lhes compreender o mal grave de que estavam tomados e levá-los por este modo a procurar a cura. Curou, com efeito, primeiramente um hidrópico inflado no mal e procurou depois, velando a lâmina do escalpelo na gaze sutil duma parábola, curar a hidropisia espiritual dessas pobres almas cegas e condutoras de cegos. O mundo só se encontra bem na exaltação e na enfatuação permanente do orgulho e esquece-se de que a humildade é condição indispensável para entrar no Reino de Deus. É esta virtude que a oração da Missa nos inculca e é-nos admiravelmente exposta na Epístola. Sem merecimento nenhum da nossa parte, explica o Apóstolo aos Efésios, mas unicamente para servirmos a glória de Deus, o Senhor escolheu-nos e fez de nós, de filhos da ira, que éramos, herdeiros do Seu Reino.
Do Evangelho: “Vai e põe-te no último lugar”; não quer dizer que o superior se deva colocar abaixo dos subordinados e expor à irrisão a autoridade; mas que se deve sempre lembrar da sentença que diz: “Quanto maior fores, mais humilde te mostra e encontrarás graça na presença de Deus”
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.
“Jovem, eu te ordeno, levanta-te” (Evangelho)
Paramentos verdes
As lições deste domingo são geralmente do livro de Jó, desse venerável patriarca da Idumeia, que Satanás quis experimentar com danada tenção de ver se realmente servia a Deus com desinteresse ou porque o tinha cumulado de bens e de riqueza. Um dia, diz o Livro sagrado, Satanás apresentou-se diante de Deus e disse-Lhe: Corri a Terra toda e encontrei o vosso servo Jó, que Vós tendes protegido e enriquecido de consideráveis riquezas. Estendei, no entanto, um pouco a Vossa mão e tocai-lhe, que sempre quero ver se ele não Vos bendiz só por diante. E o Senhor respondeu-lhe: Vai e faze-lhe quanto esteja no teu poder, mas não lhe tires a vida. Partiu Satanás e depois de o privar de todos os bens, feriu-o com uma chaga terrível e purulenta desde a planta dos pés até a cabeça. É pensando na malícia de Satanás que a Igreja pede hoje ao Senhor que nos defenda das insídias do espírito das trevas. Jó clamava: “Na casa dos mortos é a minha morada e o meu leito num lugar tenebroso. Disse ao pus, tu és o meu pai; e aos vermes, vós sois a minha mãe e a minha irmã. Consumiu-se a minha carne como um vestido roído pela traça e os ossos pegaram-se-me à pele. Tende compaixão de mim, vós ao menos que sois meus amigos, porque a mão do Senhor feriu-me”. Porém, ninguém atendia ao seu apelo, e, desiludido dos homens falsos e ingratos, voltou-se para Deus, entoando o mais belo cântico de esperança que jamais se ouviu sobre a Terra: “Eu sei que vive o meu Redentor, que me ressuscitará da terra no último dia. Então, serei revestido novamente da minha pele e verei o meu Deus. Eu mesmo O verei e contemplarei com os meus olhos. Esta esperança vive dentro de mim”.
A Santa Igreja, de que Jó é figura, tem a consciência dos ataques incessantes com que o demônio pretende destruí-la, e não cessa de pedir a Deus que a proteja, que a conduza e a defenda. A sua voz é ainda o eco da oração de Jó, a confissão humilde da sua impotência e a esperança invencível n’Aquele que é poderoso e cheio de entranhas de misericórdia com os que O invocam.
A Epístola é uma exortação fremente e ansiosa a que andemos nos caminhos do Senhor e sejamos fiéis às inspirações do Espírito. Se vivemos no Espírito, andemos também em conformidade com Ele, quer dizer, sejamos mais humildes, tenhamos mais caridade com os que saem do caminho da justiça e pensemos que somos fracos também e que havemos de prestar apertada conta dos nossos pecados e não dos pecados dos outros.
O Evangelho, segundo a interpretação unânime dos Padres, é um símbolo admirável da Igreja, deplorando os seus filhos que vivem em pecado mortal e pedindo Àquele que veio à Terra para perdoar, que se amercie deles e os ressuscite.
Do Evangelho: Se a ressurreição deste jovem, diz S. Agostinho, alegrou a viúva, sua mãe, também a Santa Igreja, que é mãe de todos os homens, se alegra com as ressurreições espirituais que se operam todos os dias nas almas de seus filhos. Choram-se as mortes que se veem, a morte que menos importa, a do corpo; e ninguém pensa nem pressente sequer essas mortes terríveis que se passam dentro da consciência de cada um. Todavia, Aquele que vê estes mortos, pensa neles.
Missal Quotidiano e Vesperal por Dom Gaspar Lefebvre, Beneditino da Abadia de S. André. Bruges, Bélgica: Desclée de Brouwer e Cie, 1952.