Espiritualidade (180)
Discorrer sobre a escola francesa de espiritualidade equivale obviamente a ordenar as coisas num contexto muito definido e, para usar o termo de Etienne Gilson, “individual”. Quando muito descreve a fecunda espiritualidade que se fundamentara em certas personagens francesas bem típicas. Quiçá as palavras dum francês como as do filósofo do séc. XX Etienne Gilson sejam uma boa maneira de introduzir este artigo. Ele faz uma observação importante, acerca dum tópico de espiritualidade mais amplo:
“O estudo da vida espiritual lida com a vida sobrenatural da alma cristã em relação à sociedade e à união de amizade com Deus. A indigência do fato singular e de sua história é o não serem científicos. Todavia, o fato singular torna-se grandioso porque existe, e a dignidade eminente da história, ainda que só como conhecimento duma notícia, deve-se a que ela abrange a existência individual. Demais, as vidas espirituais reais são sempre coisas individuais que existem na realidade concreta, ou, se as observarmos no correr da história, as coisas individuais sempre existiram de modo concreto. O objeto desse conhecimento não apenas existe mas tem um valor infinito, de forma que os problemas que ele suscita são importantíssimos”.
Chamada de “Escola Berulliana” por alguns, a Escola Francesa de Espiritualidade refere-se a uma corrente espiritual na França do séc. XVII que deixou marcas profundas até aos meados do séc. XX. Antes que adentremos no cerne do assunto (os principais chefes e os seus princípios espirituais) será de bom alvitre trazermos algum contexto para a espiritualidade do séc. XVII, apelidado de “le grand siècle”.
Contexto histórico e espiritual
Ao ingressar no ano de 1600, a França goza duma relativa paz, após o término da guerra civil e religiosa entre os católicos e os calvinistas franceses, chamados “huguenotes”. Com a exceção da região nordeste do país, que ainda padece os tormentos da Guerra dos Trinta Anos, a França vive em profunda paz, em meio a uma prosperidade e com uma população jamais vistas noutros países. Uma classe média instruída – a bourgeoisie –, juntamente com a nobreza, anseia por confrontar as questões intelectuais. O Alto Clero de ordinário ocupa-se demais em conservar a posição social, o clero regular sufoca-se com a administração de propriedades imensas, e os párocos são na maioria ignorantes e grosseiros. A situação oferece muitas oportunidades de melhoria que – veremos – os reformadores hão de aproveitar em todos os níveis, quer entre o clero católico, quer entre os leigos, de molde a levar a Reforma Tridentina a bom termo.
Decerto, o Concílio de Trento (1554-1563) promulgara alguns decretos que acarretaram a Reforma Católica, em oposição à Revolução Protestante, a pretensa “Reforma”. Embora levasse quarenta anos para que o Parlamento permitisse a implementação dos decretos tridentinos, a França experimenta – sobretudo nos primeiros sessenta anos após o Concílio – um período de fecundidade espiritual tão pujante quanto a dos gloriosos tempos da cristandade medieval. Crescendo em paralelo à escola francesa, as ordens tradicionais testemunham uma notável renovação do fervor. Os Capuchinhos e os Dominicanos rejuvenescem. Os escritos e as congregações de São Francisco de Sales popularizam as práticas espirituais. Outras congregações também florescem, como a dos Jesuítas.
Além dos contextos histórico e eclesiástico, podemos identificar as principais fontes da espiritualidade francesa nas influências em jogo no século anterior. A leitura dos livros bíblicos tornou-se uma prática comum, e os ávidos leitores nutriam preferências entre eles. Os discípulos de Bérulle insistiam em São Paulo e São João, já os moralistas se concentravam nos livros sapienciais. Ainda assim, todos se imbuíam do espírito dos salmos. Pseudo-Dionísio tem muita demanda entre os mestres espirituais, mas também os místicos do Reno, como Tauler, Ruysbroeck e Canfield. Igualmente, lê-se muito o clássico Imitação de Cristo.
Outra importante influência estrangeira vinha da Espanha. A Sra. Acarie, conhecida como Maria da Encarnação, entretém um “salão” frequentado por espirituais, dentre eles São Francisco de Sales e Olier. Ao lado de seu primo, Cardeal de Bérulle, ela promove o catolicismo barroco da Espanha e institui o Carmelo reformado na França, o que lhe vale o título de “Mãe do Carmelo em França”. Nesse século centralizado na devoção ao Verbo Encarnado, o espírito de Santa Teresa d’Ávila e de São João da Cruz exercem uma influência relevante.
Além da contribuição estrangeira, há uma abertura das mentes para a vida espiritual. À elite da sociedade atraem as mais diversas congregações: os Capuchinhos, o Carmelo, a Visitação recebem o patronato de rainhas e da alta nobreza, e chegam a influenciar o Parlamento de Paris. A Sra. de Saint-Beuve funda as Ursulinas, dedicadas ao ensino das meninas. Dom Mabillon e Claude Martin, filho da Sra. Acarie, exercem uma influência marcante desde a Abadia de Saint German de Prés. Os Cistercienses da Trapa recorrem a Bossuet, para que lhes faça retiros.
Os centros espirituais e as outras espiritualidades
Embora pertença ao séc. XVII, São Francisco de Sales (1567-1622) apresenta um movimento original e distinto do da Escola Francesa, que cede aos seus encantos. A espiritualidade do santo é sobretudo eclética e pragmática, de maneira que talvez a sua amplitude e falta de sistematização contribuem para a sua influência duradoura entre as gerações futuras. Essa influência sentir-se-á no decorrer do século e muito além, graças aos seus escritos e à fundação da Visitação junto com Santa Joana de Chantal. A Introdução à Vida Devota [ou Filoteia] oferece aos leigos o que costumava ser o privilégio da clausura. Da mesma forma, o complemento a essa obra, o Tratado do Amor de Deus, retrata a espiritualidade e a simplicidade da oração a partir de Santa Teresa d’Ávila. O trabalho sobre as consciências pessoais, a fim de que elas façam tudo por aprazer a Deus, demonstra o seu magistral papel como diretor espiritual, o primeiro duma longa série de diretores que deram à espiritualidade francesa o seu caráter psicológico e prático.
Outro importante movimento tem por capitão outra personalidade do início do séc. XVII, São Vicente de Paulo (1581-1660), que consegue acesso ao círculo íntimo de Luís XIV. Ele encarna as obras de “caridade” que, no séc. XVII, são entendidas como uma manifestação natural da fé. A sua caridade se exerce antes de tudo no cuidado dos pobres e dos doentes, que são legião na esteira dos trinta anos de guerras religiosas que arruínam a região da Lorena e que por tabela impelem os refugiados a se despejarem em Paris. Ao redor do santo criam-se múltiplas iniciativas: a fundação das Filhas da Caridade, das Filhas da Providência, da Associação das Damas de Caridade etc. Ele também presidiu a fundação dos Lazaristas, sacerdotes que se dedicam a áreas rurais, pregando aos leigos e reconfortando os párocos. Mesmo em Paris, ele se envolve na renovação do clero por meio das “Conférences du Mardi” [“Conferências da Terça-Feira”], que agem qual um fermento para a formação dum clero de elite.
São Luís de Montfort (1673-1716) também é um importante ator nas correntes de espiritualidade que convergem nesse século. Bretão de nascença, o futuro missionário apostólico do Poitou e da Vendeia estuda no São Sulpício de Jean-Jacques Olier, juntamente com seu confrade Claude Poulard de Places, fundador dos Padres do Espírito Santo [ou Espiritanos]. São Luís também cria congregações: ele é o fundador das Filhas da Sabedoria e dos Padres de Montfort, que se dedicam a pregar missões no interior do país. Talvez ele nos seja mais conhecido como o autor de vários livros marianos que ganharam renome apenas no séc. XIX.
A Escola Francesa
O que normalmente concordamos em chamar “Escola Francesa de Espiritualidade” refere-se ao movimento do Oratório de França, criado por Bérulle. Esse movimento inclui os “Quatro Grandes”, quais sejam, Cardeal Pierre de Bérulle, Charles Condren, Jean-Jacques Olier e São João Eudes. Devemos agora contar-lhes, mesmo que só de passagem, a história e o matiz específico que trouxeram à Escola.
Dirigido por São Francisco de Sales, que o pôs em contato com o Oratório de São Felipe Néri, e instado pelo futuro arcebispo de Paris, Henri de Gondi – Bérulle (1575-1629) forma uma pequena comunidade de padres na Rua Saint-Jacques no centro de Paris e próximo ao convento das Carmelitas, da qual o fizeram diretor espiritual. Junto a cinco companheiros que pronunciaram os votos de servidão a Jesus, ele ingressa no Oratório em 1615, ano em que se promulgam oficialmente os decretos de Trento. Os Oratorianos deram uma especial atenção à liturgia, de molde que os fiéis com benevolência apelidaram-nos de “os padres que cantam belos hinos”. O Oratório vai ser um instrumento basilar da Reforma Católica, pelo fomento às missões, pela formação de escolas e pela criação de seminários.
O Berullismo é uma doutrina que se concentra em Cristo enquanto Verbo Encarnado e rejeita qualquer espiritualidade que pretenda alcançar a essência divina à margem de Jesus Cristo. Fundado numa teologia sadia, a sua espiritualidade ensina que a união de Homem e Deus em Cristo é indissolúvel: enquanto Deus for Deus, Ele há de ser homem”. Nisto Deus Se revela a Si para nós. O mistério da Encarnação é Jesus que de Deus veio a nós e é o nosso caminho para Deus. Deus tornou-se homem, para que Deus permeasse todos os aspectos humanos. Viver a espiritualidade da Encarnação nos é “une humanité de surcroît” – um prolongamento da Sua humanidade. Precisamos assim “aderir” ao Cristo, conformar-nos a Ele em todos os “estados” – esse é um termo caro a Bérulle, que significa os vários estados que Cristo assumiu na vida, na morte, na glória e no Santíssimo Sacramento. Conclui ele que precisamos renunciar-nos em muitas coisas, para que enfim alcancemos o grau da servidão.
O bispo Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704) disseminará entre a massa a doutrina de Jesus Cristo com as clássicas Elevações aos Mistérios: Meditações acerca do Evangelho. E, a exemplo dos padres, o Oratório granjeia uma alta estima à hierarquia, que há de contribuir com grande valimento para a santificação do clero, com a criação dos seminários Sulpiciano e Eudista. Em suma, podemos dizer que a Escola Francesa ou Berullismo se caracteriza por uma aguda consciência da grandeza de Deus, da importância da Encarnação, do senso de Igreja e da necessidade do trabalho apostólico.
Juntamente com Bérulle, Charles de Condren (1588-1641) acresce ao mestre a mística da aniquilação. “O homem é capaz de todos os crimes”, se não lhe ajudar a graça. Ele e Bérulle criam escolas para a elite, ao passo que São João Batista de la Salle há de abrir escolas primárias para os destituídos.
Temos de inserir nessa mesma escola de pensamento Jean-Jacques Olier (1608-1657). Ele é menos abstrato e mais realista que Condren e, pela criação da Companhia de São Sulpício, torna-se um dos melhores instrumentos para a infusão duma elevada espiritualidade sacerdotal, provendo um ideal de vida e oração. Todas as grandes escolas de espiritualidade cristã são cristocêntricas; não obstante, o caráter próprio da Escola Francesa é o convite à alma, segundo Olier, para que ela conserve “a Jesus diante dos olhos, a Jesus no coração, a Jesus entre as mãos”.
São João Eudes (1601-1680), após vinte anos de Oratório, deixou-o em 1643. Assim como Bérulle, a fim de auxiliar a alma cristã a penetrar “no interior dos mistérios de Cristo”, ele a recorda das promessas do batismo e, sob forma litúrgica, das devoções medievais, quais sejam, o Coração de Maria e o Coração de Jesus. Para ele, precisamos permitir que o Espírito Santo “informe Jesus em nós, prolongue a Sua vida na terra”. A liturgia da festa do Sagrado Coração, que ele instituiu, diz: “Enquanto estivermos no mundo, dignai-vos que vivamos em Vós... e transformai-nos num outro Jesus na terra”.
Sem dúvida, no século anterior havia livros de oração e meditação, mas o séc. XVII testemunha um acúmulo crescente de métodos de oração, baseados na vida de Cristo, segundo o espírito de Santa Teresa d’Ávila e dos Oratorianos. Na esteira da Reforma Tridentina da Missa e do Breviário, Bérulle e os seus amigos desenvolvem muitíssimo o espírito litúrgico. Esse estímulo acarreta um renovo da devoção à Santíssima Eucaristia, em virtude da adoração recém introduzida à Real Presença, uma nova prática estimulada pela Companhia do Santíssimo Sacramento. A devoção ao Sacratíssimo Coração dissemina-se por toda parte, após as aparições a Santa Margarida Maria em Paray-le-Monial, com o auxílio de Jesuítas, como São Cláudio de la Colombière e Lallemant. Esse é um dos melhores meios de contrapor a influência incomoda e prejudicial dos jansenistas de Port-Royal.
Nessa devoção ao Sagrado Coração, encontramos um sumário da espiritualidade convergente à Encarnação; a insistência na devoção ao coração de carne de Nosso Senhor, nos sofrimentos que Ele revela e impõe aos Seus adoradores, na necessidade de reparação pelos nossos pecados, embora não fosse novidade, são objetos duma poderosa promoção. Assim sendo, juntamente com as duradouras instituições para o clero e as missões, estamos no pleno direito de afirmar que a Escola Francesa de Espiritualidade do séc. XVII imprimiu uma marca indelével até aos dias atuais na vida espiritual dos católicos, não apenas em França mas também na Europa e no novo mundo.
(The Angelus, Março de 2020)
Por um monge beneditino
Nossa vida espiritual é composta pela graça de Deus e nossa disposição para com sua graça. Tudo é dom de Deus, mas devemos fazer todo o possível para dispor nossa alma para recebê-Lo sem obstáculos em nossos corações. O maior obstáculo que se opõe à livre ação de Deus em nossas almas é uma má atitude, uma disposição que afaste nossos corações de Deus e de Sua vontade. São Bento em sua regra para monges define essa atitude como ociosidade. A ociosidade é uma inimiga para nossa alma porque é o primeiro passo para formar maus hábitos.
Ociosidade ou indolência é um tipo de negligência intencional em relação ao nosso dever de estado. A alma torna-se lenta para realizar a vontade de Deus por causa de uma crescente repugnância pelo esforço de vencer obstáculos que são difíceis de superar. Quando a alma foge do esforço, procura substituir o plano de Deus por uma opção mais fácil, recompensada por uma satisfação imediata. Todos os tipos de desordens e pecados rastejam para dentro da vida do homem indolente. A vida familiar se torna um fardo terrível; todos parecem ser um obstáculo à sua recém-descoberta "liberdade". Um tipo de aversão geral invade sua a vida e tudo o que antes era considerado sagrado por ele, agora é como uma pedra de moinho que o puxa para baixo. Um tipo problemático de ansiedade apodera-se lentamente de sua personalidade e aqueles que mais o amam se tornam seus piores inimigos. Ele começa a sentir que eles o acusam à luz dos bons exemplos deles. Sua vida de trevas não pode suportar a luz das virtudes.
Essa pobre alma pode cair em dois extremos opostos que se originam da mesma desordem da indolência. O primeiro é simplesmente desistir de qualquer esforço solicitado a ele. Uma consequência é procurar consolo através do sono contínuo. Numa parábola do Evangelho, Nosso Senhor diz que a erva daninha foi semeada no campo enquanto os homens dormiam. A erva daninha do vício entra na alma quando ela foge do esforço necessário para se corrigir, buscando o sono profundo da indolência negligente. O outro extremo que tenta escapar da vontade de Deus é a atividade excessiva. Foge-se da luta necessária para realizar a vontade de Deus em prol de um ativismo exagerado. Em vez de se cumprir o dever de estado, considerado muito trabalhoso, procura-se outra atividade para substitui-lo. Gasta-se muito tempo e esforço realizando algo, que não é essencial. Essa atividade pode, por si só, ser boa, mas é uma fuga do dever de estado. Os exemplos a seguir são frequentemente observados: Pode-se ficar tentado a fugir da família sob o pretexto de caridade para os outros e deixar as crianças sem os cuidados necessários. Uma mãe que não prepara as refeições para os filhos porque quer aperfeiçoar sua espiritualidade está fugindo das suas obrigações. O pai que passa todo o seu tempo livre no bar ou na academia está recusando seu dever paterno.
Esses meios de fuga lentamente se tornam habituais. Essa desordem habitual do pecado é conhecida como vício na vida espiritual e leva a vícios materiais. Muitos dos jovens de hoje lentamente tornam-se apegados à tecnologia, videogame, pornografia, álcool e drogas porque têm repulsa pelo seu dever de estado. A razão pela qual se encontram nessa posição geralmente é a de terem recebido muito pouco amor de seus pais ou do vício da indolência que toma o controle de sua alma. Muitos pais estragam as crianças, temendo o esforço que seria necessário para corrigi-las. Eles permitem o crescimento da paixão e do vício que destruirá a vida das crianças. As crianças imitando o exemplo de indolência dado pelos pais vão habitualmente se esquivar de seus deveres básicos como católicas.
Os vícios vêm de uma desordem espiritual e o verdadeiro remédio é uma reordenação espiritual. Quando escolhemos a dependência de uma criatura para satisfazer nosso desejo de bondade, que Deus sozinho pode satisfazer, nos encontramos escravos dessa criatura, seja a garrafa ou a Internet. A alma que tenta substituir Deus por alguma criatura se decepciona. O verdadeiro remédio é retornar pacientemente a Deus. Leitura espiritual, oração e prática de virtude são necessárias para superar o vício em pecar, mas devem ser postas em prática de maneira muito vigorosa e tenaz.
Santo Ambrósio, falando do cordeiro pascal do Antigo Testamento, explica como a refeição teve que ser tomada às pressas: “Não basta fazer o bem, devemos fazê-lo com avidez. A Lei dada a comer com rapidez o cordeiro Pascal é porque os frutos são muito mais abundantes quando nossa devoção é imediata.” O livro de Eclesiástico dá conselhos semelhantes: "Em todas as tuas obras seja solícito, e nenhuma enfermidade virá a ti." Se desejamos vencer os vícios, devemos mudar prontamente nossa má atitude e colocar em prática nossas boas resoluções. Com a graça de Deus, perseveraremos, correndo no caminho que leva ao Reino dos Céus. Devemos ter prontamente no coração as palavras de São Bento.
"A ociosidade é a inimiga da alma."
(The Angelus, novembro de 2019)
— Excelência da paciência
A paciência nos santos
Armai-vos do escudo das virtudes, da paciência que tantas maravilhas produz entre os santos e faz com que uma mocinha frágil seja capaz de vencer o mundo. Mais que isso: ainda antes do início da luta, garante o triunfo, pois a paciência vive das amarguras do mundo e tira as suas delícias das contrariedades. Porém eles saíam da presença do conselho, contentes por terem sido achados dignos de sofrer afrontas pelo nome de Jesus (At 5, 41).
Reflitamos por um minuto e veremos que os sofrimentos dessa vida não tem proporção com os sofrimentos de Cristo, com a gravidade dos nossos pecados, com o horror dos tormentos do inferno e com a recompensa celeste.
Nossos Pais regozijavam com os dias de humilhação e com os tempos de provação que o Senhor lhes enviava. É admirável o exemplo de São Domingos, que atravessava cantando alegremente os caminhos onde sabia que assassinos o espreitavam, ou que preferia pregar em Carcassone do que em Toulouse, pois sabia que nessa última seria honrado enquanto na primeira, insultado.
Jó também nos dá um exemplo de paciência: Não tenho paz, nem sossego, não tenho repouso, mas apenas perturbação (Jo 3, 26). No entanto, ele guardou a reserva a ponto de não deixar transparecer nenhum sinal de impaciência, ele se calava com o medo de que alguma palavra dura ou desordenada lhe escapasse, dominava as impressões de seu coração para guardar a sua alma na paz interior.
As obras da paciência
A paciência é um diamante: por meio dela, a alma resiste a toda adversidade; é um remédio que cura toda ferida; é um escudo que protege de todo ataque. Ninguém jamais poderá nos atingir se antes nos lançamos a um combate interior contra nós mesmos.
Como compreendia bem os frutos das provações, o monge que buscava recompensar àqueles que o insultavam!
As Sagradas Escrituras nos fazem entrever os frutos da paciência no episódio dos três jovens israelitas na fornalha ardente, cujo fogo consumia a tudo sem poder atingi-los.
Na construção de um edifício, golpeamos, retalhamos e esculpimos a pedra destinada a um lugar de destaque. Assim também ocorre com nós mesmos: somos oprimidos nesse mundo a fim de entrarmos no templo celeste, onde não escutaremos mais o som de um martelo. A alegria deverá vir após a tristeza necessária para o pagamento dos nossos erros passados, para nossa perfeição espiritual e para o acréscimo da nossa glória eterna. Ó, labor fecundo, ó dor preciosa, ó santas lágrimas que o Altíssimo secará dos olhos dos seus eleitos após a provação!
Jesus disse que o reino dos céus é o apanágio daqueles que sofrem perseguição pela justiça.
Mais vale ser vítima do que perseguidor, pois o perseguidor só fica com o seu crime, enquanto o mártir glorifica a Deus e recebe, após o tormento, a glória eterna.
É castigando aos que ama que Deus Todo-poderoso prova a verdade do seu amor. Ele consola os seus com a vergasta da correção. Muito só buscariam Deus pelos benefícios, e não por Ele mesmo, se remunerasse aos que ama com recompensas temporais.
As Escrituras narram (Jz 3, 15) que Aod servia-se de um punhal de dois gumes. Isso significa, ao que me parece, que sabia tirar partido tanto da prosperidade como da adversidade. E, para dizê-lo de modo melhor, é possível que sobrevenham males aos que sabem usar das adversidades como ocasiões de méritos, para os que sabem fazer delas um meio de chegar ao céu? O homem paciente sabe extrair mel do próprio fel; sabe mudar o mal em bem, saborear a amargura como se fosse um leite e dar aos que sofrem o gosto das alegrias eternas.
O homem paciente sofrerá até um certo tempo, e depois ser-lhe-á dada a alegria (Ecl 1, 29). Pecadores que somos, não podemos chegar ao céu sem passar pela torrente de tribulação aqui embaixo, ou pelo purgatório na outra vida. Mas a travessia dessa torrente é mais fácil do que a do fogo. Se compreendêssemos a utilidade das provações, nem cem anos bastariam para agradecer o Senhor de uma única doença. Era sábio o monge, narrado na Vida dos Padres, que se lamentava e chorava porque o Senhor o deixara um ano sem provações.
— A prática da paciência
Busquemos, pois, fazer o bem e suportar os males. Se queremos possuir a paz do coração, consideremos não o que estamos obrigados a suportar, mas o que infringimos aos outros; prefiramos suportar injúrias do que causá-las; aceitemos sem murmurações as provações enviadas por Deus e, sem amargor, os males que procedem do próximos; apliquemo-nos a apaziguar a cólera, mesmo irracional, que nosso irmão concebe contra nós. Tomemos Davi por exemplo, que apaziguou o espírito mau de Saul cantando com sua harpa.
Se merecemos o castigo, aceitemo-lo com contrição; se não o merecemos, rejubilemos, pois é ainda mais doce sofrer injustamente com Cristo do que ser justamente castigado com o ladrão, e é muito mais belo sofrer pela glória de Deus do que por seu próprio interesse.
Assim, sempre devemos render graças a Deus, pelas dores como pelas alegrias: imitemos o rouxinol, que canta não apenas o dia, mas também a noite.
Vivam sem querelas, caríssimos, e com harmonia. Não se queixem de ninguém nem dêem causa para que se queixem de vocês.
Que suas alegrias sejam servir a Cristo, e seu único sofrimento seja o de se verem afastados de Deus. Só a impaciência contra o pecado é permitida. Aos soldados de Cristo, a vitória está em perdoar aos que os perseguem.
Tormemo-nos semelhantes às plantas aromáticas, que difundem o seu perfume mais vigoroso quando moídas; ao ouro que a fornalha purifica sem poder consumi-lo; ao grão de trigo que a praga liberta da sua bainha; ao navio que a tempestade impulsiona mais rápido ao porto; à pérola que o cinzel do artista faz brilhar com mais intensidade.
Graus da paciência
Para alcançar a paciência perfeita, é preciso vencer os graus seguintes: Jamais devolver o mal com um mal; — não resistir aos maus; — suportar as adversidades; — apaziguar quem nos insulta; — amar nossos inimigos; — fazer o bem a quem nos fez mal; — aceitar alegremente as injúrias; — estar pronto para sofrer mais; — agradecer a Deus no meio das tribulações; — desejar provações, por amor de Deus.
Esqueçam a lei do talião e, sob as vagas da tempestade, permaneçam imóveis e silenciosos como o surdo-mudo que nada percebe nem compreende.
— Os efeitos funestos da impaciência
A impaciência é uma fonte de males: ela obscurece a inteligência, priva das delícias da paz, perturba na alma os efeitos da presença do Espírito Santo.
Costuma-se comparar a cólera a um dragão, porque suas palavras violentas brotam da boca do impaciente como as chamas da guela do monstro.
Compara-se ainda à febre, porque ela produz movimentos desordenados no corpo e na alma. Que digo? A cólera é pior, pois a febre não atormenta a sua vítima mais do que uma ou duas vezes ao dia, enquanto que a cólera o faz bem mais frequentemente.
O homem sob o jugo da provação é como o monge que, para a tonsura, coloca-se nas mãos de outro. É melhor que fique quietinho pois, se se mexer sob a lâmina, seus movimentos impacientes certamente farão com que se machuque.
Sempre saímos perdendo ao buscar nos vingar da pessoa de um caluniador: abandonamos a túnica da nossa inocência por quem cobiçava apenas os vestidos da nossa boa reputação. Ao contrário, ao confiar a Deus os cuidados da nossa defesa, encontramos a um tempo um juiz e um vingador.
Que poderei dizer ainda da cólera? Olhem o homem irritado: ele queima, seu coração palpita, profere gritos altos, não sabe mais o que diz, não reconhece seus amigos, seu rosto se abrasa, sua língua se embaralha e seu corpo mesmo treme.
— As contrafações da paciência
Há quem se torne paciente não por um esforço pessoal, mas graças à virtude das pessoas com que convive: essas pessoas consentem a se manter pacientes desde que não sejam contrariadas.
Outros parecem se esquecer das injúrias, mas guarda o rancor no seu coração; sua virtude é como o calçado cujo couro não foi amaciado pelo óleo: a rudeza protege bem contra objetos exteriores, mas fere o pé. Esses hipócritas parecem-se com os lobos que, como se diz, suportam facilmente os cortes e ferimentos recebidos à flor da pela, mas são muito sensíveis às consequências das lesões internas.
Outros são pacientes para suportar as injúrias que ofendem a Deus, mas são extremamente sensíveis às injúrias pessoais. Não se dão conta de que, se a cólera é na maioria das vezes um vício, ela pode por vezes um zelo louvável, ela é na maioria das vezes um vício. É zelo em nos inflamar de zelo pela defesa dos direitos divinos: uma santa cólera que assegura recompensas. É vício irritar-se pela defesa dos seus próprios direitos: explosão culpável merecedora de castigos.
É preciso ter cuidado: o espírito pode chegar a uma cegueira tal, que chama de zelo esclarecido o que não passa de um furor mau. Por vezes os vícios se tingem de aparências virtuosas e corrompem os atos que teriam sido meritórios. Assim, na correção fraterna, a cólera dá na caridade o tiro de misericórdia, enquanto que a caridade deveria tornar a cólera impossível.
Outros ainda, ao invés de se irritarem contra os vícios, irritam-se com as pessoas. No entanto, a ordem da caridade quer que amemos a natureza, obra de Deus, ao mesmo tempo em que detestamos os crimes, obra dos nossos instintos perversos e do espírito diabólico.
Contudo, é permitido, em alguns casos, desejar o mal ao próximo, não por ressentimento, mas em vistas de um bem superior. Por exemplo, se percebemos que um homem se deixa levar pelo orgulho porque goza de boa saúde ou porque é rico, é lícito e mesmo razoável, desejar o seu prejuízo para que se afaste dos maus sentimentos.
Para adquirir a paciência
A fim de suportar mais facilmente e com alegria as tribulações, esforcemo-nos de ter sempre presente no espírito a Paixão do Salvador, a lembrança das consolações que a amizade de Deus nos proporciona, as recompensas e os castigos eternos, as penas do purgatório que as provações diminuem, os pecados que ela faz perdoar, a vida interior que aperfeiçoa e a glória divina que procura.
É com coragem que devemos exercer a paciência, senão as provações, que são ocasiões de graças e de glória, arriscam se tornar ocasiões de castigos mais rigorosos. Com efeito, vemos que, sob a mesma brisa, o charco espalha o fedor e o tempero, o seu perfume; e que num mesmo braseiro, a palha queima e o ouro brilha.
Ao agitarem a nossa preguiça, as tribulações são como um aguilhão que nos excita ao fervor das boas obras, e como o vento propício que impulsiona nosso navio às margens eternas.
Quando somos injustamente atacados, nós rapidamente sufocaremos os germes do rancor se reprimirmos o menor sinal exterior de desagrado; a cólera, com efeito, se excita com as manifestações exteriores e se extingue quando nós as abafamos.
(in L'Acampado 158 - abril de 2020)
Por um monge beneditino
Assim como todo floco de neve que já caiu sobre a face da Terra é formado por um diferente padrão de cristais de gelo, toda alma nascida neste mundo, que sai da mão de Deus, é única. Em Sua divina Providência, Deus cria um lugar para cada alma santificar sua vida e entrar no Reino dos Céus. Mosteiros e conventos são lugares inventados por Deus para permitir que as almas O amem sem limites.
Todas as ordens religiosas têm um objetivo comum, mas elas são muito diferentes umas das outras. Os dominicanos, por exemplo, são chamados a contemplar a beleza da luz de Deus. Depois de contemplar as coisas de Deus, devem comunicar essas verdades ao próximo. Os franciscanos, atraídos pela alegria e liberdade de um filho de Deus, abraçam voluntariamente o caminho da pobreza material, da mortificação e da penitência. Eles se consideram os felizes esposos da Senhora Pobreza. Eles levam a simplicidade da mensagem do Evangelho aos pobres da Igreja. Os carmelitas, com sua bela vida de oração, habitam o castelo interior de suas almas na contínua presença de Deus. Sua comunidade celebra todo o ofício canônico e passa duas horas diariamente em silenciosa oração mental, conversando com o amado esposo de sua alma. Sua vida de sacrifício e oração enriquece a toda a Igreja. Os cartuxos sacrificam a maior parte de sua vida em silenciosa solidão, na adoração ao seu Criador, passando o dia a sós com Deus. Quando um monge cartuxo foi perguntado por que ele tinha um mapa do mundo na parede de sua cela, ele respondeu que considerava aquele o território de sua paróquia. Ele rezava continuamente pela salvação de todas as almas da Terra como se pertencessem à sua paróquia.
Durante os 2.000 anos de existência da Igreja, foram fundadas muitas ordens religiosas para cuidar de seus filhos. Alguns dos primeiros centros de educação gratuita, os primeiros hospitais e os primeiros orfanatos conhecidos pela humanidade foram criados por ordens monásticas, que procuravam cuidar dos menores e mais fracos membros da Igreja de Cristo.
Um dia, enquanto cantava a missa, Santa Matilde (uma mística beneditina do século XIII) recebeu uma revelação sobre o intróito da antífona "No centro da Igreja". Nosso Senhor disse-lhe: “O centro da Igreja é a Ordem de São Bento. Ela apoia a Igreja como o pilar sobre o qual repousa toda a casa, porque está em relação não apenas com a Igreja universal, mas também com as demais ordens religiosas. Está unida aos seus superiores, ou seja, ao papa e aos bispos, pelo respeito e obediência que lhes confere; e está unida às outras Ordens Religiosas pelo seu ensino, que fornece a estrutura para a perfeição de vida, já que todas as outras Ordens imitam a Ordem de São Bento em um ponto ou outro. Almas boas e justas encontram nesta Ordem conselho e ajuda; pecadores encontram compaixão e os meios para se corrigir e confessar seus pecados; as almas do purgatório encontram nesta Ordem o socorro das orações sagradas. Por fim, oferecem hospitalidade aos peregrinos, mantêm a vida dos pobres, aliviam os enfermos, nutrem os que têm fome e sede, consolam os aflitos, e rezam pela libertação das almas dos que partiram fielmente.”
Com seus 15 séculos de existência, e, segundo Dom Gaspar Lefebvre, com 57.000 santos beneditinos conhecidos, a Ordem de São Bento ocupa um lugar muito especial na Igreja precisamente porque não tem nenhuma especialidade. O carisma especial da vida beneditina é simplesmente tornar-se um bom católico rezando e trabalhando em um ambiente familiar e manter uma união perfeita com nosso Criador.
A simplicidade desta vida produziu grandes frutos para a Igreja, abraçando todos os aspectos da vida católica. São Bento conta mais de 20 de seus filhos como papas, um grande número de bispos, cinco doutores da Igreja e muitos missionários que levaram a fé a mais de 20 grandes países, como Inglaterra e Alemanha. E seria impossível contar o número de santos ocultos, conhecidos por Deus apenas, que passaram a vida no segredo dos claustros.
São Bento escreveu sua Regra durante as invasões bárbaras, quando a sociedade romana estava se desintegrando rapidamente, tanto política quanto moralmente. A sociedade naquele momento necessitava da estabilidade de uma vida espiritual.
São Bento descobriu a necessidade de uma vida interior estável pela própria vida que viveu. Quando era um jovem estudante em Roma, percebeu claramente a decadência da sociedade. Percebeu que se continuasse ali, sua alma estaria em perigo de condenação. Então escolheu fugir para Deus e viver uma vida isolada de oração e mortificação. Durante três anos de solidão, ele aprendeu muito sobre Deus e sobre si mesmo. A certa altura, foi fortemente tentado pela luxúria a deixar a vida religiosa.
Ele percebeu a desordem nas suas paixões e, unindo a mortificação à oração, passou por um longo tempo a esfregar-se em um canteiro de sarças, urtigas e espinhos. Mais tarde, reconheceu que essa mortificação o libertou de futuros ataques decorrentes de sua própria natureza decaída.
Sua santidade foi finalmente descoberta por outros e um mosteiro vizinho o convidou para ser seu superior. Enquanto tentavam reformar seus modos decadentes, os mesmos monges que o convidaram para o mosteiro quiseram envenená-lo. São Bento escapou da morte por um milagre e mais uma vez fugiu para Deus, abandonando o mosteiro. Ele acabara de descobrir do que até os religiosos são capazes quando seus deveres espirituais são negligenciados.
Foi asssim que pode estabelecer 12 mosteiros florescentes, intimamente unidos e vivendo em paz com Deus e o homem.
Mas, novamente, um padre inflamado pela inveja, de nome Florentius, tentou matá-lo em várias ocasiões. Cada tentativa foi frustrada pela intervenção de Deus, o que só fez aumentar a inveja de Florentius. O pobre padre decidiu então atacar a virtude dos jovens monges do mosteiro para assim destruir a reputação de São Bento. Enviou um grupo de mulheres decadentes para dançarem nuas na frente do mosteiro e atrair os noviços ao pecado da luxúria. São Bento, esperando assim apaziguar o ciúme de Florêncio, decidiu proteger seus filhos e deixar o mosteiro.
Quando consideramos todos esses exemplos de sua vida, parece que São Bento sempre foge de seus problemas. Na verdade, ele foge para Deus. Sua grande sabedoria é entender a natureza humana decaída e os meios de curá-la, voltando-se para Deus.
O impulso constante de sua vida é buscar a Deus e as coisas que O agradam, curando as feridas de nossa natureza corrupta. Ele encontrou essas feridas na sociedade romana quando jovem. Ele as encontrou novamente em sua própria alma, quando sozinho na gruta lutava contra a concupiscência. Ele as observou na alma dos religiosos que tentaram envenená-lo, bem como na alma do padre que tentou matá-lo e destruir as almas de seus noviços.
Sua vitória constante decorre da humilde e perseverante confiança de sua alma em Deus. Ele percebe a ferida do pecado e se afasta dele em direção à Deus.
Tendo aprendido essa arte, ele foi capaz de ensinar os outros a fazer o mesmo. Sua regra é como um roteiro que leva a alma humana para longe da miséria do pecado e à presença alegre de Deus que nos ama sem reservas. Ela dá coragem aos filhos para reconhecer seus pecados e assim, pela graça de Deus, mudar suas vidas.
São Elredo de Rievaulx compara São Bento a Moisés, o legislador do Antigo Testamento. Moisés levou o povo escolhido para fora da escravidão do Egito, onde o Faraó os obrigava a fazer tijolos de barro e palha. No deserto, Moisés ofereceu sacrifícios a Deus e construiu a Arca da Aliança. Ele lhes deu os Dez Mandamentos que Deus escrevera em tábuas de pedra para que eles seguissem um caminho seguro para o Reino do Céu.
São Bento conduz a alma ferida para fora da escravidão do pecado e da escravidão de concupiscência. Ele convida o monge a oferecer o sacrifício de sua vida a Deus e tornar-se Seu templo, em vez de fazer tijolos inúteis da lama dos prazeres passageiros desta vida. Ele dá a seus filhos uma regra de vida que os liberta do pecado e os conduz ao reino celestial de Nosso Senhor.
Um exemplo histórico desse tipo de conversão pode ser encontrado na grande abadia francesa de Cluny. Alguns críticos modernos acusaram a abadia de comprar escravos para explorá-los. De fato, eles compraram escravos, mas não para seu benefício pessoal. Eles educavam os escravos em sua fé e lhes davam também uma formação em agricultura e comércio. Depois que o escravo estava suficientemente instruído, a Abadia de Cluny lhe concedia a liberdade, bem como um pedaço de terra para ganhar a vida. Eles freqüentemente formavam confrarias e se tornavam oblatos do mosteiro. Desta forma, participavam dos benefícios materiais e espirituais do mosteiro.
Durante as diferentes invasões bárbaras que ameaçaram a existência de toda a sociedade civilizada, esses oblatos procuraram refúgio atrás dos muros dos mosteiros e ajudaram a defendê-los e às suas próprias posses.
A maneira como os monges evangelizavam um país era diferente dos meios modernos empregados pelas ordens mais recentes. Essas últimas enviavam apóstolos viajantes ao redor do mundo para pregar a fé. Estavam sempre em movimento, buscando almas. O modo beneditino de levar a Fé a um país era simplesmente instalar-se ali, convidando os habitantes a ir até eles. Pelo exemplo de sua vida, ensinaram as almas recém-convertidas não apenas como cultivar a terra, mas principalmente como praticar as Virtudes católicas.
São Bento introduziu o voto de estabilidade na vida monástica. Isto significa que o monge jura permanecer em seu mosteiro sob seu abade até a morte, o que dá grande longevidade à vida cristã e à prática da virtude, onde quer que o mosteiro se estabeleça. Ele também pede a seus monges que façam o voto de obediência e voto de conversão dos costumes, que é essencialmente o voto de praticar a virtude cristã. Mediante essa sabedoria, ele dá aos monges e oblatos das aldeias vizinhas um meio de longo prazo de afastar-se do pecado e ir ao encontro de Deus.
São Bento termina seu prólogo da regra com a visão do que ele espera que a ordem se torne e dos frutos a serem desenvolvidos dentro dos muros de seu mosteiro e nas aldeias ao redor.
“Nossos corações e nossos corpos devem, portanto, estar prontos para a batalha sob as ordens da santa obediência; e peçamos ao Senhor que Ele supra com a ajuda de Sua graça o que é impossível para nós por natureza. E se, voando das dores do inferno, desejamos alcançar a vida eterna, então, enquanto ainda há tempo, e ainda estamos na carne, e somos capazes durante a vida presente de cumprir todas essas coisas, devemos nos apressar a fazer agora o que nos beneficiará para sempre.
“Devemos, pois, constituir uma escola de serviço do Senhor. Nesta instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado. Mas, se aparecer alguma coisa um pouco mais rigorosa, ditada por motivo de eqüidade, para emenda dos vícios ou conservação da caridade, não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que nunca se abre senão por estreito início. Mas, com o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e com inenarrável doçura de amor é percorrido o caminho dos mandamentos de Deus. De modo que não nos separando jamais do seu magistério e perseverando no mosteiro, sob a sua doutrina, até a morte, participemos, pela paciência, dos sofrimentos do Cristo, a fim de também merecermos ser co-herdeiros de seu reino. Amém" (Prólogo da Regra)
(The Angelus, Março-Abril de 2020. Tradução: Permanência)
Pe. Manuel Bernardes
Perguntado S. Francisco de Assis porque se negava ao necessário para a sustentação da vida humana, respondeu:
— Dificultosa coisa é satisfazer à necessidade do corpo e não obedecer à lei dos apetites.
É muito dificultoso discernir quais são os precisos limites por onde confrontam estes dois vizinhos: necessidade e apetite; porque ambos se fundam na natureza, e o mesmo ramo que leva uns frutos bons ou indiferentes leva outros ruins e venenosos. Quem há de definir ao justo: “Até aqui é necessidade de comer, ou beber, ou dormir, ou conversar, daqui por diante já é vício”?
No Prado Espiritual se conta de um virtuoso monge a quem o seu abade mandou guardar os porcos do convento, que andavam pastando debaixo das azinheiras da mesma casa. Alguns vizinhos, cujas fazendas do mesmo gênero confinavam com aquela, instigados de inveja e malícia, se punham à espreita para, tanto que algum daqueles animais saísse fora dos seus limites, toma-lo por perdido e mata-lo.
Andando os dias, desejou o monge pastor subir ao seu convento para tomar alguma refeição de espírito com os santos exercícios que costumava. Não tendo, porém, quem por entretanto ficasse de guarda, e confiado na virtude divina, chamou a toda a grei e lhe intimou, da parte do Senhor, que até ele tornar nenhum deles passasse de tal marco, que era os das próprias terras.
Caso maravilhoso!
Tao pontuais obedeceram todos que, em chegando ali em busca da lande, nem um só pé punham fora, e logo voltavam para dentro. Até que os vizinhos, enfadados da espera, entraram, e às vergastadas os procuravam desencaminhar para fora; porém, por muita instância que nisto puseram, nunca puderam conseguir; porque, tanto que os perseguidos animais chegavam ao termo sinalado pelo monge, como se topassem com um muro de pedra e cal, tornavam a fugir para dentro. Reconhecida, enfim a maravilha, pediram aqueles homens perdão do seu depravado intento, contando o caso.
E, aplicando eu este ao nosso, digo que, se os brutos dos nossos apetites foram tais que lhes pudéramos impor semelhante preceito: “Até aqui chegai, até aqui não” — fácil fora largar à natureza o que lhe compete, sem perigo de se desmandar. Porém este mau gado anda solto à bolota, sem distinguir a que é sua da que é alheia; e, quanto mais engorda, mais grunhe. E não se divisam bem os marcos destes dois terrenos. Logo, é conveniente encurtar o da necessidade para que se não confunda com o do apetite.
A esta dificuldade de distinguir o necessário do supérfluo acresce outra, que é de negar o supérfluo e ilícito, se nos não negarmos também em parte no lícito e necessário. Usemos para o declarar de outros símiles:
Quero endireitar uma vara que está torcida. Bastará porventura trazê-la com moderada força até aquele ponto em que fique direita? Não, por certo; senão que é necessário repuxar para a parte contrária, como se a minha tenção fosse, não tirar-lhe o torcimento, senão trocá-lo por outro. Quero passar um rio caudaloso de ribeira a ribeira. Bastará meter a proa em direitura da paragem onde pretendo desembarcar? Não, por certo; senão que é necessário metê-la muito mais arriba, porque a força da corrente me fará insensivelmente vir descaindo.
Pois, assim também para uma pessoa endireitar as suas más inclinações, não basta que procure pôr a natureza em uma mediania razoável, senão que é necessário puxar para o extremo contrário; e, para vir sair com a mortificação ou negação do ilícito, é necessário emproar mais alto, abraçando a negação do lícito. Para que o apetite não peça o almoço que era supérfluo, é bem negar à natureza a ceia que era necessária. Por que o apetite não cobice o alheio, que é ilícito, é bem negar à natureza ajuntar e guarda o próprio, que é lícito.
De semelhante indústria usava São Pedro de Alcântara, que, quando o corpo lhe pedia mais roupa, porque estava frio, tirava o manto e ficava mais frio; e, quando depois lho restituía, já ficava satisfeito e contente com aquilo mesmo que dantes lhe não bastava...
(Nova Floresta, Apetites)
Exercícios espirituais preparatórios à consagração solene conforme o método de S. Luís Grignion de Monfort
I
DOZE DIAS PRELIMINARES
Empregados em desapegar-se do espírito do mundo
Reza-se:
- Veni, Creator Spiritus
- Ave, Maris Stella.
VENI, CREATOR SPIRITUS
Veni, Creátor Spíritus, Mentes tuórum visita, Imple supérna gratia, Quae tu creásti péctora.
Qui diceris Paráclitus, Altissimi donum Dei, Fons vivus, ignis, charitas Et spiritális únctio.
Tu septiformis múmere, Dígitus patérnae déxterae Tu rite promissum Patris, Sermone ditans gúttura.
Accénde lúmen sénsibus: Infunde amórem cordibus: Infirma nóstri córporis
Virtute firmans pérpeti.
Hostem repéllas longius, Pacémque dones prótinus; Ductóre sic te praevio, Vitémus omne nóxium.
Per te sciamus da Patrem Noscamus atque Fílium; Teque utriúsque Spíritum Credámus omni tempore.
Deo Patri sit gloria,
Et Filio, qui a mortuis Surrexit, ac Paráclito
In saeculorum saecula. Amen.
V: Emitte Spiritum tuun et creabuntur R: Et renovabis faciem terrae.
Oremus. Deus qui corda fidelium Sancti Spiritus illustratione docuitis, da nobis in eodem Spiritus recta sapere et de eius semper consolatione gaudere. Per Christum Dominum nostrum. Amen.
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Vem , ó criador Espírito, as almas dos teus visita; os corações que criastes, Enche de graça infinita.
Tu, Paráclito és chamado Dom do Pai celestial, Fogo, caridade, fonte viva unção espiritual.
Tu dás septiforme graça; Dedo és da destra paterna; Do Pai, solene promessa, dás força da voz suprema.
Nossa razão esclarece, Teu amor no peito acende, Do nosso corpoa fraqueza Com tua força defende.
De nós afasta o inimigo.
Dá que Deus Pai e seu Filho Por ti nós bem conheçamos, E em ti, Espíritto de ambos Em todo tempo creiamos.
A Deus Pai se dá a glória E ao Filho ressuscitado, Paráclito e a ti também
Com louvor perpetuado. Amém
V. Envia o vosso Espírito, e a tudo será criado. R. E renovareis a face da terra.
Oremos. Ó Deus, que intruíste os corações de vossos fiéis com a luz do espírito para que conheçamos o que é reto, e gozemos sempre as suas consolações. Por Cristo Nosso Senhor. Amém
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AVE, MARIS STELLA
Ave, maris stella, Dei Mater alma, Atque semper virgo, Felix caeli porta.
Sumens illud Ave, Gabrielis ore,
Funda nos in pace, Mutans Hevae nomen.
Solve vincla reis, Profer lumen caecis, Mala nostra pelle, Bona cuncta posce.
Monstra te esse matrem, Sumat per te precem Qui pro nobis natus Tulit esse tuus.
Virgo singuláris, Inter omnes mitis, Nos culpis solútos M.ites fac et castos.
Vitam praesta puram. Iter para tutum,
Ut vidéntes Iesum Semper collaetemur.
Sit laus Deo Patri, Summo Christo decus, Spritui Sancto
Tribus honor unus. Amen.
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Ave do mar Estrela,
De Deus Mae bela,
Sempre Virgem, da morada Celeste feliz entrada.
O’ tu que ouviste da boca Do anjo a saudação; Dá-nos paz e quietação; E o nome de Eva troca.
As prisões aos réus desata.
E a nós cegos alumia;
De tudo que nos maltrata
Nos livra, o bem nos granjeia.
Oatenta que és Mãe fazendo Que os rogos do povo seu Ouça aquele que, nascendo Por nós quis ser filho teu.
O’ Virgem especiosa, Tôda cheia de ternura, Extintos nossos pecados , Dá-nos pureza e brandura,
Dá-nos uma vida pura, Põe-nos em via segura, Para que a Jesus gozemos, E sempre nos alegremos.
A Deus Pai veremos;
A Jesus Cristo também.
E ao Espírito Santo demos Aos três um louvor. Amém.
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II
PRIMEIRA SEMANA
empregada em adquirir o conhecimento de si mesmo
Reza-se:
- Ladainha do Espírito Santo
- Ladainha de Nossa Senhora
LADAINHA DO ESPÍRITO SANTO
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Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Divino Espírito Santo, ouvi-nos.
Espírito Paráclito, atendei-nos.
Deus Pai dos céus, tende piedade de nós.
Deus Filho, redentor do mundo,
Deus Espírito Santo,
Santíssima Trindade, que sois um só Deus.
Espírito da verdade,
Espírito da sabedoria,
Espírito da inteligência,
Espírito da fortaleza,
Espírito da piedade,
Espírito do bom conselho,
Espírito da ciência,
Espírito do santo temor,
Espírito da caridade,
Espírito da alegria,
Espírito da paz,
Espírito das virtudes,
Espírito de toda graça,
Espírito da adoção dos filhos de Deus,
Purificador das nossas almas,
Santificador e guia da Igreja Católica,
Distribuidor dos dons celestes,
Conhecedor dos pensamentos e das intenções do coração, Doçura dos que começam a vos servir,
Coroa dos perfeitos,
Alegria dos anjos,
Luz dos patriarcas,
Inspiração dos profetas,
Palavra e sabedoria dos apóstolos,
Vitória doa mártires,
Ciência dos confessores,
Pureza das virgens,
Unção de todos os santos,
Sede-nos propício, perdoai-nos, Senhor.
Sede-nos propício, atendei-nos, Senhor.
De todo o pecado, livrai-nos, Senhor.
De todas as tentações e ciladas do demônio,
De toda a presunção e desesperação.
Do ataque à verdade conhecida,
Da inveja da graça fraterna,
De toda a obstinação e impenitência,
De toda a negligência e torpor do espírito,
De toda a impureza da mente e do corpo,
De todas as heresias e erros,
De todo o mau espírito,
Da morte má e eterna,
Pela vossa eterna procedência do Pai e do Filho,
Pela milagrosa conceição do Filho de Deus, Pela vossa descida sobre Jesus Cristo batizado,
Pela vossa santa aparição na transfiguração do Senhor, Pela vossa vinda sobre os discípulos do Senhor,
No dia do juízo,
Ainda que pecadores,nós vos rogamos, ouví-nos.
Para que nos perdoeis,
Para que vos digneis vivificar e santificar todos os membros da Igreja,
Para que vos digneis conceder-nos o dom da verdadeira piedade, devoção e oração,
Para que vos digneis inspirar-mos sinceros afetos de misericórdia e de caridade,
Para que vos digneis criar em nós um espírito novo e um coração puro,
Para que vos digneis conceder-nos verdadeira paz e tranqüilidade no coração,
Para que vos digneis fazer-nos dignos e fortes, para suportar as perseguições pela justiça, Para que vos digneis confirmar-nos em vossa graça,
Para que vos digneis receber-nos o número dos vossos eleitos,
Para que vos digneis ouvir-nos,
Espírito de Deus,
Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, envia-nos o Espírito Santo.
Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, mandai-nos o Espírito prometido do Pai. Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, dai-nos o Espírito bom.
Espírito Santo, ouví-nos.
Espírito Consolador, atendei-nos.
V. Enviai o vosso Espírito e tudo será criado.
R. E renovareis a face da terra.
Oremos: Deus, que instruístes o coração de vossos fiéis, com a luz do Espírito Santo, concedei-mos que, no mesmo Espírito, conheçamos o que é reto,
e gozemos sempre as suas consolações.
Por Cristo, Nosso Senhor. Amém.
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LADAINHA DE NOSSA SENHORA
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Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, ouvi-nos.
Jesus Cristo, atendei-nos.
Pai Celeste que sois Deus, tende piedade de nós.
Filho Redentor do mundo que sois Deus, tende piedade de nós. Espírito Santo que sois Deus, tende piedade de nós.
Santíssima Trindade que sois um só Deus, tende piedade de nós Santa Maria, rogai por nós.
Santa Mãe de Deus,
Santa Virgem das virgens,
Mãe de Jesus Cristo,
Mãe da divina graça,
Mãe puríssima,
Mãe castíssima,
Mãe Imaculada,
Mãe intemerata,
Mãe amável,
Mãe admirável,
Mãe do bom conselho,
Mãe do Criador,
Mãe do Salvador,
Virgem prudentíssima,
Virgem venerável,
Virgem louvável,
Virgem poderosa,
Virgem clemente,
Virgem fiel,
Espelho de justiça,
Sede da sabedoria,
Causa da nossa alegria,
Vaso espiritual,
Vaso digno de honra,
Vaso insigne de devoção,
Rosa mística,
Torre de David,
Torre de marfim,
Casa de ouro,
Arca da aliança,
Porta do Céu,
Estrela da manhã,
Saúde dos enfermos,
Refúgio dos pecadores,
Consoladora dos aflitos,
Auxílio dos cristãos,
Rainha dos Anjos,
Rainha dos Patriarcas,
Rainha dos Profetas,
Rainha dos Apóstolos,
Rainha dos Mártires,
Rainha dos Confessores,
Rainha das Virgens,
Rainha de todos os santos,
Rainha concebida sem pecado original, Rainha assunta ao Céu,
Rainha do sacratíssimo Rosário, Rainha da Paz,
Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, perdoai-nos Senhor. Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, ouvi-nos Senhor. Cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo, tende piedade de nós.
V/ Rogai por nós, santa Mãe de Deus.
R/ Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.
Oremos. Senhor Deus, nós Vos suplicamos que concedais aos Vossos servos perpétua saúde de alma e de corpo; e que, pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da tristeza do século e gozemos da eterna alegria. Por Cristo Nosso Senhor. Amém.
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III
SEGUNDA SEMANA Empregada em adquirir o conhecimento da Santíssima Virgem
Reza-se:
- Ladainha do Espírito Santo
- Ave, Maris Stella
- Um rosário ou ao menos um terço
IV
TERCEIRA SEMANA empregada em adquirir o conhecimento de Jesus Cristo
Reza-se:
- Ladainha do Espírito Santo
- Ave, Maris Stella
- Oração de Santo Agostinho
- Ladainha do Santíssimo Nome de Jesus
- Ladainha do Sagrado Coração de Jesus
Oração de Santo Agostinho
“Vós sois, ó Jesus, o Cristo, meu Pai santo, meu Deus misericordioso, meu Rei infinitamente grande; sois meu bom pastor, meu único mestre, meu auxílio cheio de bondade, meu pão vivo, meu sacerdote eterno, meu guia para a pátria, minha verdadeira luz, minha santa doçura, meu reto caminho, sapiência minha preclara, minha pura simplicidade, minha paz e concórdia; sois, enfim, toda a minha salvaguarda, minha herança preciosa, minha eterna salvação...
Ó Jesus Cristo, amável Senhor, por que, em toda a minha vida, amei, por que desejei outra coisa senão vós? Onde estava eu quando não pensava em vós? Ah! que, pelo menos, a partir deste momento meu coração só deseje a vós e por vós se abrase, Senhor Jesus! Desejos de minha alma, correi, que já bastante tardastes; apressai-vos para o fim a que aspirais; procurai em verdade aquele procurais. Ó Jesus anátema seja quem não vos ama. Aquele que não vos ama seja repleto de amarguras. Ó doce Jesus, sede o amor, as delícias, a admiração de todo coração dignamente consagrado à vossa glória. Deus de meu coração e minha partilha, Jesus Cristo, que em vós meu coração desfaleça, e sede vós mesmo a minha vida. Acenda-se em minha alma a brasa ardente de vosso amor e se converta num incêndio todo divino, a arder para sempre no altar de meu coração; que inflame o âmago de minha alma; para que no dia de minha morte eu apareça diante de vós inteiramente consumido em vosso amor... Amém”.
LADAINHA DO SANTÍSSIMO NOME DE JESUS
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Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, ouvi-nos.
Jesus Cristo, atendei-nos.
Pai Celeste que sois Deus, tende piedade de nós. Filho, redentor do mundo, que sois Deus. Espírito Santo, que sois Deus,
Santíssima Trindade, que sois um só Deus, Jesus Filho de Deus vivo,
Jesus, esplendor do Pai,
Jesus, pureza da luz eterna,
Jesus, Rei da glória,
Jesus, sol de justiça,
Jesus, Filho da Virgem Maria,
Jesus amável,
Jesus admirável,
Jesus, Deus forte,
Jesus, Pai do futuro século,
Jesus, Anjo do grande conselho,
Jesus poderosíssimo,
Jesus pacientíssimo,
Jesus obedientíssimo,
Jesus, brando e humilde de coração
Jesus, amante da castidade,
Jesus, amador nosso,
Jesus, Deus da paz,
Jesus, autor da vida,
Jesus, exemplar das virtudes,
Jesus, zelador das almas,
Jesus, nosso Deus,
Jesus, nosso refúgio,
Jesus, pai dos pobres,
Jesus, tesouro dos fiéis,
Jesus, bom Pastor,
Jesus, verdadeira luz,
Jesus, Sabedoria eterna,
Jesus, bondade infinita,
Jesus, nosso caminho e nossa vida,
Jesus, alegria dos Anjos,
Jesus, Rei dos Patriarcas,
Jesus, Mestre dos Apóstolos,
Jesus, Doutor dos evangelistas, Jesus, fortaleza dos Mártires, Jesus, luz dos Confessores Jesus, pureza das virgens, Jesus, coroa de todos os santos,
Sede-nos propício: perdoai-nos, Jesus. Sede-nos propício, ouví-nos, Jesus.
De todo o mal, livrai-nos Jesus.
De todo o pecado,
Da vossa ira,
Das cidades do demônio,
Do espírito da impureza,
Da morte eterna,
Do desprezo das vossas inspirações,
Pelo mistério da vossa santa Encarnação,
Pela vossa natividade,
Pela vossa infância,
Por toda a vossa santíssima vida,
Pelos vossos trabalhos,
Pela vossa agonia e pela vossa paixão,
Pela vossa cruz e pelo vosso desamparo,
Pelas nossas angústias,
Pela vossa morte e pela vossa sepultura,
Pela vossa ressurreição,
Pela vossa ascensão,
Pela vossa instituição da santíssima Eucaristia. Pelas vossas alegrias,
Pela vossa glória,
Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, perdoai-nos Jesus.
Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, ouvi-nos Jesus.
Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós, Jesus.
Jesus, ouvi-nos. Jesus, atendei-nos.
Oremos: Senhor Jesus Cristo que dissestes: Pedi e recebereis; buscais e achareis; batei e abrir-se-vos-á,nos vos suplicamos que concedas a nós, que vo-lo pedimos, os sentimentos afetivos de vosso divino amor, a fim de que nós de todo coração e que esse amor transcenda por nossas ações, sem que deixemos de vos amar. Permiti que tenhamos sempre, Senhor , um igual temor e amor pelo vosso santo nome; pois não deixais de governar aqueles que estabeleceis na firmeza do vosso amor.Vós que viveis e reinais pelos séculos dos séculos. Amem.
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LADAINHA DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS
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Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, ouvi-nos.
Jesus Cristo, atendei-nos.
Pai celeste que sois Deus,
tende piedade de nós.
Filho, Redentor do mundo, que sois Deus,
tende piedade de nós.
Espírito Santo, que sois Deus,
tende piedade de nós.
Santíssima Trindade, que sois um só Deus,
tende piedade de nós.
Coração de Jesus, Filho do Pai Eterno, tende piedade de nós.
Coração de Jesus, formado pelo Espírito Santo no seio da Virgem Mãe,
Coração de Jesus, unido substancialmente ao Verbo de Deus,
Coração de Jesus, de majestade infinita,
Coração de Jesus, templo santo de Deus,
Coração de Jesus, tabernáculo do Altíssimo,
Coração de Jesus, casa de Deus e porta do céu,
Coração de Jesus, fornalha ardente de caridade,
Coração de Jesus, receptáculo de justiça e de amor,
Coração de Jesus, cheio de bondade e de amor,
Coração de Jesus, abismo de todas as virtudes,
Coração de Jesus, digníssimo de todo o louvor,
Coração de Jesus, Rei e centro de todos os corações,
Coração de Jesus, no qual estão todos os tesouros da sabedoria e ciência,
Coração de Jesus, no qual habita toda a plenitude da divindade,
Coração de Jesus, no qual o Pai põe as suas complacências,
Coração de Jesus, de cuja plenitude nós todos participamos,
Coração de Jesus, desejo das colinas eternas,
Coração de Jesus, paciente e misericordioso,
Coração de Jesus, rico para todos os que vos invocam,
Coração de Jesus, fonte de vida e santidade,
Coração de Jesus, propiciação pelos nossos pecados,
Coração de Jesus, saturado de opróbrios,
Coração de Jesus, atribulado por causa de nossos crimes,
Coração de Jesus, feito obediente até à morte,
Coração de Jesus, atravessado pela lança,
Coração de Jesus, fonte de toda a consolação,
Coração de Jesus, nossa vida e ressurreição,
Coração de Jesus, nossa paz e reconciliação,
Coração de Jesus, vítima dos pecadores,
Coração de Jesus, salvação dos que esperam em vós,
Coração de Jesus, esperança dos que expiram em vós,
Coração de Jesus, delícia de todos os santos,
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
perdoai-nos Senhor.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
ouvi-nos Senhor.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
tende piedade de nós.
V. Jesus, manso e humilde de coração,
R. Fazei nosso coração semelhante ao vosso.
Oremos.
Deus onipotente e eterno, olhai para o Coração de vosso Filho diletíssimo e para os louvores e as satisfações que ele, em nome dos pecadores vos tributa; e aos que imploram a
vossa misericórdia concedei benigno o perdão em nome do vosso mesmo Filho Jesus Cristo, que convosco vive e reina por todos os séculos dos séculos.
Amém.
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CONSAGRAÇÃO DE SI MESMO A JESUS CRISTO, SABEDORIA ENCARNADA, PELAS MÃOS DE MARIA
( A consagração deve ser escrita de proprio punho e assinada no final)
Ó Sabedoria Eterna e Encarnada! Ó amabilíssimo e adorável Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, unigênito Filho do Eterno Pai e da sempre Virgem Maria, adoro-vos profundamente no seio e nos esplendores do vosso Pai, durante a eternidade, e no seio virginal de Maria, vossa Mãe digníssima, no tempo de vossa Encarnação.
Eu vos dou graças por vos terdes aniquilado a vós mesmo, tomando a forma de escravo, para livrar-me do cruel cativeiro do demônio. Eu vos louvo e glorifico por vos terdes querido submeter a Maria, vossa Mãe Santíssima, em todas as coisas, a fim de por Ela tornar-me vosso fiel escravo.
Mas, ai de mim, criatura ingrata e infiel! Não cumpri as promessas que vos fiz solenemente no Batismo. Não cumpri com minhas obrigações; não mereço ser chamado vosso filho nem vosso escravo, e, como nada há em mim que de vós não tenha merecido repulsa e cólera, não ouso aproximar-me por mim mesmo de vossa santíssima e augustíssima Majestade.
É por esta razão que recorro à intercessão de vossa Mãe Santíssima, que me deste por Medianeira junto a Vós, e é por este meio que espero obter de Vós a contrição e o perdão de meus pecados, a aquisição e conservação da Sabedoria.
Ave, pois, ó Maria Imaculada, Tabernáculo vivo da Divindade, onde a Eterna Sabedoria escondida quer ser adorada pelos anjos e pelos homens!
Ave, ó Rainha do céu e da terra, a cujo império está sujeito tudo o que está abaixo de Deus! Ave, ó refúgio seguro dos pecadores, cuja misericórdia jamais a ninguém falece! Atendei ao desejo que tenho da Divina Sabedoria, e recebei, para este fim, os votos e as oferendas, apresentadas pela minha baixeza.
Eu, N..., infiel pecador, renovo e ratifico hoje, em vossas mãos, os votos do Batismo. Renuncio para sempre a Satanás, suas pompas e suas obras, e dou-me inteiramente a Jesus Cristo, Sabedoria Encarnada, para segui-lo levando minha cruz, em todos os dias de minha vida. E, a fim de lhe ser mais fiel do que até agora tenho sido, escolho-vos neste dia, ó Maria Santíssima, em presença de toda a corte celeste, para minha Mãe e minha Senhora. Entrego-vos e consagro-vos, na qualidade de escravo, meu corpo e minha alma, meus bens interiores e exteriores, e até o valor de minhas boas obras passadas, presentes e futuras, deixando-Vos direito pleno e inteiro de dispor de mim e de tudo o que me pertence, sem exceção, a vosso gosto, para a maior glória de Deus, no tempo e na eternidade.
Recebei, ó benigníssima Virgem, esta pequena oferenda de minha escravidão, em união e honra à submissão que a Sabedoria Eterna quis ter à vossa Maternidade; em homenagem ao poder que tendes ambos sobre este vermezinho e miserável pecador; em ação de graças pelos privilégios com que Vos favoreceu a Santíssima Trindade.
Protesto que quero, de agora em diante, como vosso verdadeiro escravo, procurar vossa honra e obedecer-Vos em todas as coisas.
Ó Mãe admirável, apresentai-me a vosso amado Filho, na qualidade de escravo perpétuo, para que, tendo-me remido por Vós, por Vós também me receba favoravelmente.
Ó Mãe de misericórdia, concedei-me a graça de obter a verdadeira Sabedoria de Deus, e de colocar-me, para este fim, no número daqueles a quem amais, ensinais, guiais, sustentais e protegeis como a filhos e escravos vossos.
Ó Virgem fiel, tornai-me em todos os pontos um tão perfeito discípulo, imitador e escravo da Sabedora Encarnada, Jesus Cristo, vosso Filho, que eu chegue um dia, por vossa intercessão e a vosso exemplo à plenitude de sua idade na terra e de sua glória nos céus. Assim seja.
Nota: Todas as práticas de mortificação que reunimos aqui são recolhidas dos exemplos dos santos, especialmente Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Santa Teresa, São Francisco de Sales, São João Berchmans, ou são recomendadas por reconhecidos mestres da vida espiritual, como o Venerável Louis de Blois, Rodriguez, Scaramelli, Abade Allemand, Abade Hamon, Abade Dubois, etc.
Artigo 1 – Objeto da mortificação cristã
A mortificação cristã tem por fim neutralizar as influências malignas que o pecado original ainda exerce nas nossas almas, inclusive depois que o batismo as regenerou. Nossa regeneração em Cristo, ainda que tenha anulado completamente o pecado em nós, nos deixa sem embargo muito longe da retidão e da paz originais. O Concílio de Trento reconhece que a concupiscência, ou seja, o triplo apetite da carne, dos olhos e do orgulho, se deixa sentir em nós, mesmo depois do batismo, a fim de excitar-nos às gloriosas lutas da vida cristã (Conc. Trid., Sess. 5, Decretum de pecc. orig.).
A Escritura logo chama esta tripla concupiscência de “homem velho“, oposto ao “homem novo” que é Jesus que vive em nós e nós mesmos que vivemos em Jesus, como “carne” ou natureza caída, oposta ao “espírito” ou natureza regenerada pela graça sobrenatural. Este velho homem ou esta carne, ou seja, o homem inteiro com sua dupla vida moral e física, deve ser, não digo aniquilado, porque é coisa impossível enquanto dure a vida presente, mas sim mortificado, ou seja, reduzido praticamente à impotência, à inércia e à esterilidade de um morto; há que impedir-lhe que dê seu fruto, que é o pecado, e anular sua ação em toda a nossa vida moral.
A mortificação cristã deve, portanto, abraçar o homem inteiro, estender-se a todas as esferas de atividade nas quais a natureza é capaz de mover-se. Tal é o objeto da virtude de mortificação. Vamos indicar sua prática, recorrendo sucessivamente às manifestações múltiplas de atividade em que se traduz em nós:
I) A atividade orgânica ou a vida corporal;
II) A atividade sensível, que se exerce seja sob a forma do conhecimento sensível pelos sentidos exteriores ou pela imaginação, seja sob a forma de apetite sensível ou de paixão;
III) A atividade racional e livre, princípio dos pensamentos e dos juízos, e das determinações da nossa vontade;
IV) Consideraremos a manifestação exterior da vida da alma, ou as ações exteriores;
V) E, finalmente, o intercâmbio das relações com o próximo.
Artigo 2 – Exercício da mortificação cristã
A. Mortificação do corpo
1º Limite-se, tanto quanto possa, em matéria de alimentos, ao estritamente necessário. Medite estas palavras que Santo Agostinho dirigia a Deus: “Tu me ensinaste a considerar os alimentos como remédios. E quem é, Senhor, que não se deixa arrastar às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, é de fato grande, e deve engrandecer teu nome” (Confissões, liv. X, cap. 31);
2º Rogue a Deus com freqüência, rogue a cada dia que lhe impeça, com sua graça, de transpassar os limites da necessidade, ou deixar-se levar pelo atrativo do prazer;
3º Não coma nada entre as refeições, a menos que haja alguma necessidade ou razões de conveniência;
4º Pratique a abstinência e o jejum, mas os pratique somente sob obediência e com discrição;
5º Não é proibido experimentar satisfação corporal, mas o faça com intenção pura, bendizendo a Deus;
6º Regule o sono, evitando nisto toda relaxação ou moleza, sobretudo pela manhã. Se puder, fixe uma hora para se deitar e levantar, e se obrigue a ela energicamente;
7º Em geral, não descanse senão na medida do necessário; entregue-se generosamente ao trabalho, e não meça esforços e penas. Tenha cuidado para não extenuar o corpo, mas guarde-se também de agradá-lo: quando sentir que ele está disposto a rebelar-se, por pouco que seja, trate-o como a um escravo;
8º Se sente alguma ligeira indisposição, evite irritar-se com os demais por seu mau humor; deixe aos seus irmãos o cuidado de queixar-se; pelo que lhe cabe, seja paciente e mudo como o divino Cordeiro que levou verdadeiramente todas as nossas enfermidades;
9º Guarde-se de pedir uma dispensa ou revogação da ordem do dia pelo mínimo mal-estar. “Há de se fugir como da peste de toda dispensa em matéria de regras“, escrevia São João Berchmans;
10º Receba docilmente, e suporte com humildade, paciência e perseverança a penosa mortificação que se chama doença.
B. Mortificação dos sentidos, da imaginação e das paixões
1º Feche os olhos, diante de tudo e sempre, a todo espetáculo perigoso, e inclusive tenha a valentia de fechá-los a todo espetáculo vão e inútil. Veja sem olhar; não se fixe em ninguém para discernir a beleza ou a feiura;
2º Mantenha os ouvidos fechados às palavras bajuladoras, aos louvores, às seduções, aos maus conselhos, às maledicências, às zombarias que ferem, às indiscrições, à crítica malévola, às notícias sobre suspeitas, a toda palavra que possa causar o menor esfriamento entre duas almas;
3º Se o sentido do olfato tem de sofrer algo por consequência de certas doenças ou debilidades do próximo, longe de queixar-se disso, suporte-o com uma santa alegria;
4º No que concerne à qualidade dos alimentos, tenha muito respeito pelo conselho de Nosso Senhor: “Comei o que vos for apresentado”. “Comer o que é bom sem comprazer-se nisto, o que é mau sem mostrar aversão, e mostrar-se indiferente tanto em um como no outro, esta é a verdadeira mortificação”, dizia São Francisco de Sales;
5º Ofereça a Deus as refeições, imponha-se à mesa uma pequena privação: por exemplo, negue-se uma pitada de sal, um copo de vinho, uma guloseima, etc.; os demais não perceberão, mas Deus levará em conta;
6º Se o que lhe apresentam excita vivamente a atração, pense no fel e no vinagre que apresentaram a Nosso Senhor na cruz: isto não lhe impedirá de saborear o manjar, mas servirá de contrapeso ao prazer;
7º Há de se evitar todo contato sensual, toda carícia em que se poria certa paixão, em que se buscaria ou teria um gozo sobretudo sensível;
8º Prescinda de ir aquecer-se, a menos que lhe seja necessário para evitar uma indisposição;
9º Suporte tudo o que aflige naturalmente a carne; especialmente o frio do inverno, o calor do verão, a dureza da cama e todas as incomodidades do gênero. Faça boa cara em todos os tempos, sorria a todas as temperaturas. Diga com o profeta: “Frio, calor, chuva, bendizei ao Senhor”. Felizes somos se podemos chegar a dizer com gosto esta frase tão familiar a São Francisco de Sales: “Nunca estou melhor do que quando não estou bem”;
10º Mortifique a imaginação quando ela lhe seduz com a isca de um cargo relevante, quando se entristece com a perspectiva de um futuro sombrio, quando se irrita com a recordação de uma palavra ou de um ato que o ofendeu;
11º Se sente em você a necessidade de sonhar, mortifique-a sem piedade;
12º Mortifique-se com o maior cuidado sobre o que se refere à impaciência, à irritação ou à ira;
13º Examine a fundo os desejos, e submeta-os ao controle da razão e da fé: Você não deseja antes uma vida longa a uma vida santa? Prazer e bem-estar sem tristeza nem dores, vitórias sem combates, êxitos sem contrariedades, aplausos sem críticas, uma vida cômoda e tranquila sem cruzes de nenhum tipo, ou seja, uma vida completamente oposta à de nosso Divino Salvador?
14º Tenha cuidado de não contrair certos costumes que, sem ser positivamente maus, podem chegar a ser funestos, tais como o costume de leituras frívolas, dos jogos de azar, etc.;
15º Trate de conhecer seu defeito dominante, e quando o tiver conhecido, persiga-o até os últimos recantos. Por isso, submeta-se de boa vontade ao que poderia haver de monótono e de aborrecido na prática do exame particular;
16º Não é proibido ter um bom coração e mostrá-lo, mas fique atento ao perigo de exceder o justo meio. Combata energicamente os afetos demasiado naturais, as amizades particulares, e todas as sensibilidades moles do coração.
C. Mortificação do espírito e da vontade
1º Mortifique o espírito proibindo-lhe todas as imaginações vãs, todos os pensamentos inúteis ou alheios que fazem perder o tempo, dissipam a alma, e provocam o desgosto do trabalho e das coisas sérias;
2º Distancie do espírito todo pensamento de tristeza e inquietude. O pensamento do que poderá suceder no futuro não deve preocupá-lo. Quanto aos maus pensamentos que o molestam, deve fazer deles, distanciando-os, matéria para exercer a paciência. Se são involuntários, serão para você uma ocasião de méritos;
3º Evite a teimosia das ideias, e a obstinação dos sentimentos. Deixe prevalecer de boa vontade o juízo dos demais, salvo quando se trate de matérias em que você tem o dever de se pronunciar e falar;
4º Mortifique o órgão natural do espírito, ou seja, a língua. Exercite de boa vontade o silêncio, seja porque a Regra o prescreve, seja porque você o impõe espontaneamente;
5º Prefira escutar os demais do que falar você mesmo; mas, sem embargo, fale quando convenha, evitando tanto o excesso de falar demais, que impede os outros de expressar os pensamentos, como o de falar de menos, que denota indiferença ofensiva pelo que as outras pessoas dizem;
6º Não interrompa nunca quem fala, e não corte com uma resposta precipitada quem lhe pergunta;
7º Tenha um tom de voz sempre moderado, nunca brusco nem cortante. Evite os “muito”, os “extremamente”, os “horrivelmente”, etc.: não seja exagerado ao falar;
8º Ame a simplicidade e a retidão. A simulação, os rodeios, os equívocos calculados, que certas pessoas piedosas se permitem sem escrúpulo, desacreditam muito a piedade;
9º Abstenha-se cuidadosamente de toda palavra grosseira, trivial ou inclusive ociosa, pois Nosso Senhor nos adverte que nos pedirá conta delas no dia do Juízo;
10º Acima de tudo, mortifique a vontade; é o ponto decisivo. Sujeite-a constantemente ao que sabe ser do beneplácito divino e da ordem da Providência, sem ter em nenhuma conta os próprios gostos e aversões. Submeta-se até a seus inferiores nas coisas que não interessam para a glória de Deus e os deveres de estado;
11º Considere a menor desobediência às ordens, inclusive aos desejos de seus superiores, como dirigida a Deus;
12º Lembre-se de que praticará a maior de todas as mortificações quando amar ser humilhado e quando tiver a mais perfeita obediência àqueles a quem Deus quer que se submeta;
13º Ame ser esquecido e tido por nada: é o conselho de São João da Cruz, é o conselho da Imitação: não fale apenas de si mesmo nem para bem nem para mal, mas busque pelo silêncio fazer-se esquecer;
14º Diante de uma humilhação ou repreensão, sente-se tentado a murmurar? Diga como Davi: “Melhor assim! É-me bom ser humilhado!”;
15º Não alimente desejos frívolos: “Desejo poucas coisas, e o pouco que desejo, o desejo pouco”, dizia São Francisco;
16º Aceite com a mais perfeita resignação as mortificações ditas da Providência, as cruzes e os trabalhos ligados ao estado em que a Providência o pôs. “Quanto menos há de nossa eleição, mais há de beneplácito divino”, dizia São Francisco de Sales. Queríamos escolher nossas cruzes, ter outra diferente da nossa, levar uma cruz pesada que tivesse ao menos algum brilho, antes que uma cruz leve que cansa pela continuidade: ilusão! Devemos levar a nossa cruz, e não outra, e o mérito disto não se encontra na qualidade dela, mas na perfeição com que a levamos;
17º Não se deixe turbar pelas tentações, pelos escrúpulos, pelas securas espirituais: “O que se faz durante a aridez é mais meritório diante de Deus do que o que se faz durante a consolação”, dizia o santo bispo de Genebra;
18º Não devemos entristecer-nos demais pelas nossas misérias, mas nos humilhar bastante. Humilhar-se é uma coisa boa, que poucas pessoas compreendem; inquietar-se e impacientar-se é uma coisa que todo o mundo conhece e que é má, porque nesta espécie de inquietude e de despeito, a maior parte pertence ao amor próprio;
19º Desconfiemos igualmente da timidez e do desânimo, que despendem as energias, e da presunção, que nada mais é do que o orgulho em ação. Trabalhemos como se tudo dependesse dos nossos esforços, mas permaneçamos humildes como se nosso trabalho fosse inútil.
D. Mortificações que deve praticar nas ações exteriores
1º Deve observar a maior exatidão em todos os pontos da sua regra de vida, e obedecer sem demora, lembrando-se de São João Berchmans, que dizia: “Minha maior penitência é seguir a vida comum”; “Fazer o maior caso das menores coisas, esse é o meu lema”; “Antes morrer que violar uma só de minhas regras!”;
2º No exercício de seus deveres de estado, trate de estar muito contente com tudo o que parece feito de propósito para desagradá-lo e molestá-lo, lembrando-se também aqui da frase de São Francisco de Sales: “Nunca estou melhor do que quando não estou bem”;
3º Não conceda jamais um momento à preguiça; da manhã à noite, esteja ocupado sem descanso;
4º Se dedica a sua vida, ao menos em parte, ao estudo, pratique os seguintes conselhos de Santo Tomás de Aquino aos seus alunos: “Não se contentem em receber superficialmente o que lêem ou escutam, mas tratem de penetrar e aprofundar o sentido. – Não fiquem nunca com dúvidas sobre o que podem saber com certeza. – Trabalhem com uma santa avidez em enriquecer o espírito; classifiquem com ordem na memória todos os conhecimentos que possam adquirir. – Sem embargo, não tratem de penetrar os mistérios que estão acima de sua inteligência”;
5º Ocupe-se unicamente da ação presente, sem voltar-se ao que precedeu nem adiantar-se pelo pensamento ao que vem a seguir; diga com São Francisco: “Enquanto faço isto, não estou obrigado a fazer outra coisa”; “Apressemo-nos com bondade: será tão logo tanto quanto esteja bom”;
6º Seja modesto na compostura. Nenhum porte era tão perfeito como o de São Francisco; tinha sempre a cabeça direita, evitando igualmente a ligeireza que a gira em todos os sentidos, a negligência que a dobra adiante e o humor orgulhoso e altivo que a inclina para trás. Seu rosto estava sempre tranqüilo, livre de toda preocupação, sempre alegre, sereno e aberto, sem ter, todavia, uma jovialidade indiscreta, sem risadas ruidosas, imoderadas ou demasiado freqüentes. Quando se encontrava só mantinha-se em tão boa compostura como diante de uma grande assembleia. Não cruzava as pernas, não apoiava a cabeça no encosto. Quando rezava, ficava imóvel como uma coluna. Quando a natureza lhe sugeria gostos, não a escutava em absoluto;
7º Considere a limpeza e a ordem como uma virtude, e a sujeira e a desordem como um vício: evite os vestidos sujos, manchados ou rasgados. Por outra parte, considere como um vício ainda maior o luxo e o mundanismo. Faça de modo que ao lhe verem a vestimenta e adereços, ninguém diga: está desarrumado; nem: está elegante; mas que todo o mundo possa dizer: está decente.
E. Mortificações para praticar nas relações com o próximo
1º Aguente os defeitos do próximo: faltas de educação, de espírito, de caráter. Aguente tudo o que nele lhe desagrada: o modo de andar, a atitude, o tom de voz, o sotaque, e todo o resto;
2º Aguente tudo de todos e aguente até o fim e cristãmente. Não se deixe levar jamais por essas impaciências tão orgulhosas que fazem dizer: Que posso fazer de tal ou qual? Em que me interessa o que diz? Para que preciso do afeto, da benevolência ou da cortesia de uma criatura qualquer, e desta em particular? Nada é mais distante de Deus que esses desprendimentos altaneiros e essas indiferenças depreciativas; melhor seria, certamente, uma impaciência;
3º Encontra-se tentado a irar-se? Por amor de Jesus, seja manso. De vingar-se? Devolva bem ao mal. Diz-se que o segredo de chegar ao coração de Santa Teresa, era fazer-lhe algum mal. De mostrar a alguém uma cara má? Sorria com bondade. De evitar seu encontro? Busque-o por virtude. De falar mal dele? Fale bem. De falar-lhe com dureza? Fale doce e cordialmente;
4º Ame elogiar os irmãos, sobretudo aqueles a quem a sua inveja se dirige mais naturalmente;
5º Não diga acuidades em detrimento da caridade;
6º Se alguém se permite na sua presença palavras pouco convenientes, ou mantém conversações próprias a danificar a reputação do próximo, poderá às vezes repreender com doçura a quem fala, mas antes será melhor distanciar-se habilmente da conversação ou manifestar por um gesto de descontentamento ou desatenção proposital que o assunto o desagrada;
7º Quando lhe custar fazer um favor, ofereça-se a fazê-lo: terá duplo mérito;
8º Tenha horror de apresentar-se diante de si mesmo ou dos demais como uma vítima. Longe de exagerar suas cargas, esforce-se em considera-las leves. Em realidade, elas são leves, muito mais vezes do que parece, e o seriam sempre se você tivesse um pouco mais de virtude.
Conclusão
Em geral, negue à natureza o que ela pede sem necessidade. Saiba fazê-la dar o que nega sem razão. Seus progressos na virtude, disse o autor da Imitação de Cristo, serão proporcionais à violência que cometa contra si.
Dizia o santo Bispo de Genebra: “Há de se morrer a fim de que Deus viva em nós: porque é impossível chegar à união da alma com Deus por outro caminho, senão o da mortificação. Estas palavras: Há de se morrer! são duras, mas serão seguidas de uma grande doçura, porque não se morre a si mesmo sem se unir a Deus por essa morte”.
Quisera Deus que pudéssemos referir a nós com pleno direito as seguintes palavras de São Paulo: “Em todas as coisas sofremos a tribulação… Trazemos sempre em nosso corpo a morte de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste também em nossos corpos” (2Cor 4, 10).
Uma das missões do Padre Pio foi “tornar a Cruz de Jesus Cristo visível”. Cristo assumiu forma humana para tornar o invisível visível. Essa revelação de Deus não terminou com Sua Ascensão, pois, quando retornou a Seu Pai, Nosso Senhor enviou o Espírito de Santidade. Desde então, cada século teve seus santos, cujas vidas perfeitas, em imitação de Cristo, parecem renovar sua Encarnação. A vida exterior de alguns Santos, às vezes, conforma-se a de Cristo com tamanha perfeição que eles revivem sua Paixão no seu próprio corpo.
São Francisco de Assis é o mais conhecido de todos eles, e vários artistas ilustraram o Poverello recebendo os estigmas. Outros Santos também experimentaram esse fenômeno extraordinário: Santa Catarina de Sena, ou a Madame Acarie (Beata Maria da Encarnação), cujos estigmas eram invisíveis.
O Sacrifício da Cruz tornado visível
Mas, até 20 de setembro de 1918, nenhum Padre, apesar de sua união sacramental com Cristo, o Sumo Sacerdote, havia sido escolhido ainda para renovar na sua carne o mistério do Sacrifício da Cruz.
No dia 20 de setembro de 1918, enquanto ele rezava em frente a um crucifixo pendurado em frente ao coro dos monges, raios de luz vindos do crucifixo perfuraram suas mãos, pés e seu lado como flechas. O jovem Capuchinho de 31 anos não sabia ainda, mas, pelos próximos 50 anos, até o dai 20 de setembro de 1968, ele traria visíveis as marcas da Paixão de Cristo, que ele revivia todos os dias.
Uma das missões do Padre Pio havia começado: a de tornar a Cruz de Jesus Cristo visível, de iluminar as almas para a realidade do sacrifício renovado no altar e de relembrar Padres e fiéis da vocação do Padre como vítima: “Se o grão de mostarda não morrer, não dará fruto.” “Fazei como me vistes fazer”
Virtudes heróicas
Nascido em 25 de maio de 1887, numa família camponesa, o pequeno Francesco Forgione era o quarto de sete filhos. Seus pais levavam uma vida muito simples e viviam numa casa pobre em Pietrelcina. Eles eram bons cristãos e trabalhavam duro.
A Igreja paroquial é dedicada a São Pio I, Papa e mártir, e foi em sua honra que o jovem Capuchinho escolheu o nome de Frei Pio.
Quando garoto, Francesco já era favorecido com visões e fenômenos extraordinários. Desde seus primeiros anos até o fim de sua vida, Padre Pio estava acostumado a receber visitas de anjos, aparições marianas e… via-se sujeito a violência diabólica. No início, o garoto pensava que todos as crianças da sua idade experimentavam as mesmas coisas.
Cuidado, caro leitor, pois é aqui que a devoção ao Padre Pio pode se desviar [do reto caminho]. Como os autores espirituais explicam, fenômenos extraordinários não são santidade; esses fenômenos, às vezes, e mesmo com frequência, costumam vir de mãos dadas com a santidade; mas eles podem, porém, acontecer sem a santidade e devem ser cautelosamente distinguidos dela. Se o Padre Pio é um santo, não é por causa de sua bilocação ou de outros fenômenos extraordinários, mas por causa de suas virtudes heróicas.
E o pequeno Francesco praticou a virtude heróica desde o começo. Sua mãe não o encontrava dormindo no chão, com sua cabeça numa pedra? Sua piedade era sólida, sua obediência absoluta, sua diligência nos estudos e deveres mais que admirável, e sua amizade, exemplar.
Aos 15 anos, uma estranha visão implicitamente revelou a ele seu futuro: um anjo o convidou a lutar contra um gigante muito mais forte que ele. Relutando, o jovem adolescente lutou e venceu. Com essa comemoração divina de Davi e Golias, a Providência anunciou a Francesco a violência das batalhas que estavam por vir.
Algumas semanas mais tarde, no dia 22 de janeiro de 1903, aos 15 anos, ingressou no noviciado capuchinho de Morcone e tomou o nome Frei Pio de Pietrelcina.
Sua mãe estava lá, mas seu pai estava nos Estados Unidos, trabalhando para pagar os estudos de seus filhos. Por sete anos no total (3 e, depois, 4), esse pai admirável esteve separado de sua não menos admirável esposa e de seus filhos queridos para lhes prover.
Os estudos do jovem noviço continuaram até 1909. O jovem monge se mostrou sério e estudioso, seus resultados eram satisfatórios, mas não brilhantes. No fim de seus estudos, ele rapidamente ascendeu os passos do santuário: após receber as primeiras ordens menores em 1908, foi ordenado diácono no ano seguinte, em julho de 1909.
Desafios de saúde
Mas problemas de saúde começaram a atormentar o jovem monge. Ele teve que interromper seus estudos e até a vida conventual, recebendo ordens de ir descansar na casa de sua família em Pietrelcina. Esse descanso temporário duraria… sete anos. Apesar dessa dificuldade, foi ordenado padre na Catedral de Benevento no dia 10 de agosto de 1910 e celebrou sua primeira Missa em Pietrelcina, em 14 de agosto.
Separado dos demais capuchinhos e vítima de tormentas interiores terríveis, ele trocava correspondências regularmente durante esse período com o Padre Agostinho, seu diretor espiritual, que lhe recomendou escrever seu combate interior e as graças extraordinárias que recebia.
Um superior planejava enviá-lo para viver como padre secular, mas ele foi instruído a retornar ao convento em 1911. O demônio estava enfurecido; atacava e batia no jovem místico com tanta violência que o guardião do convento, movido por uma inspiração muito franciscana, ordenou Padre Pio a pedir a graça de ser doravante atormentado… em silêncio. Essa graça foi alcançada naquela mesma noite, para grande alegria dos capuchinhos, um pouco cansados do barulho, e dos aldeões, que começavam a se mostrar preocupados.
No entanto, a saúde frágil do Padre Pio forçou-o a retornar a Pietrelcina. Os médicos tiveram dificuldade de encontrar um diagnóstico, a ponto de um deles chegar a anunciar que o padre não duraria mais que uma semana.
O capuchinho deixou Pietrelcina novamente para ir a Foggia, onde o ar não lhe fez bem. No dia 28 de julho de 1916, foi aconselhado a ir a San Giovanni Rotondo para descansar por algumas semanas. Ele permaneceria ali até sua morte...
Meio vivo e meio morto, foi alistado, até que o olharam mais de perto. Há uma foto desse período do frade Capuchinho como recruta, trajando um uniforme e segurando uma arma; ele nunca havia dado um tiro e parece meio deslocado na foto. Foi durante esse período que ele bilocou pela primeira vez. Os italianos haviam acabado de ser duramente derrotados em Caporetto em 24 de outubro de 1917, e seu comandante, General Cardonna, decidiu cometer suicídio; quando ele estava levantando sua arma, um capuchinho entrou em seu escritório e convenceu-o a mudar de ideia. O general assim fez, e, então, agradeceu ao bom padre e dispensou-o. Ele imediatamente perguntou aos seus subordinados quem era aquele padre que eles deixaram entrar, mas ninguém o havia visto entrar ou sair. O general só o reconheceu em uma foto muitos anos mais tarde.
Uma ferida de amor
Ao retornar a seu convento depois do período nas forças armadas, ele recebeu a graça de uma ferida de amor no dia 30 de maio de 1918. No dia 05 de agosto, recebeu uma transverberação e, no dia 20, os estigmas, com muita dor. Mas não se enganem. Como ele escreveu ao Frei Agostinho, seu diretor espiritual, “em comparação com o que eu sofro em meu corpo, os combates espirituais que estou travando são muito piores (…); estou vivendo numa noite perpétua… Tudo me atormenta, e não sei se estou fazendo o bem ou o mal. Eu percebo que isso não são escrúpulos, mas a dúvida que sinto sobre se estou agradando ou não a Deus me esmaga.
No início, Padre Pio tentou curar suas feridas. Não adiantou. Tentou escondê-las. Em vão. As peregrinações a San Giovanni Rotondo começaram.
De 1918 a 1921, o apostolado do Padre cresceu, e os médicos que examinaram suas feridas estavam convencidos de sua natureza inexplicável. O Papa Bento XV chegou mesmo a dizer que “Padre Pio é um desses homens que Deus envia à terra de tempos em tempos para converter nações.”
O ano de 1921 mudou o curso das coisas. Uma conspiração eclesiástica de Padres corruptos vivendo com mulheres e presidida por um Bispo que praticava simonia teve influência em Roma. O Bispo de Manfredonia, a diocese à qual pertencia o convento de San Giovanni Rotondo, chegou a clamar que havia visto o Padre Pio usar perfume e talco e derramar ácido nítrico nas suas feridas para piorá-las! E os cônegos de San Giovanni Rotondo, ao menos alguns deles, faziam fofoca sobre os lucros que os capuchinhos estavam tendo com o “estigmatizado”. O pior é que elas foram levadas a sério.
Preocupada com essas alegações episcopais e revelações, Roma tornou-se muito cautelosa… com os Capuchinhos. Um período difícil para o Padre Pio se seguiu, pois o apostolado confiado a ele foi, pouco a pouco, tirado dele. Houve mesmo conversas sobre transferi-lo a outro convento. Isso foi suficiente para mexer com os locais, que estavam determinados a manter e a defender o “santo” deles. Uma rebelião não era coisa impossível. Pensando que iria deixar esse pequeno vilarejo situado no Cabo de Gargano, Padre Pio escreveu essa carta tocante, cujas palavras finais, hoje, estão inscritas na cripta onde ele estava enterrado.
“Eu sempre me lembrarei desse povo generoso na minha pobre e assídua oração, pedindo paz e prosperidade para si; e, como sinal da minha afeição, não podendo fazer nada mais, eu expresso meu desejo de que, enquanto meus superiores não se objetem, meus ossos sejam enterrados nesta terra”
Um superior Capuchinho até pensou em levar o Padre Pio embora escondido em um barril num carrinho. Obediente, porém nem servil, nem burro, o Padre Guardião recusou essa farsa.
Punições continuaram caindo sobre o pobre Padre. No dia 23 de março de 1931, o Santo Ofício proibiu-lhe qualquer ministério, qualquer celebração pública da Missa e qualquer contato com outro capuchinho fora do seu convento. Após ter permanecido estoico quando descobriu, no refeitório, a carta que seus irmãos não lhe haviam revelado (por discrição), ele desabou em lágrimas ao chegar a sua cela. Um bom irmão que testemunhou a cena se sentiu mal por ele, mas o Padre Pio deu-lhe uma resposta digna daquela dada às santas mulheres de Jerusalém: ele estava chorando não por ele, mas por todas as almas que seriam privadas das graças da conversão.
Como um recluso, Padre Pio aproveitou seu tempo lendo. A História da Igreja de Rohrbacher e, em um único dia, a Divina Comédia – paradoxalmente sofrendo de dores de cabeça ao chegar ao 'Paraíso'.
Em 1933, as sanções começaram a ser levantadas. Padre Pio retomou seu ministério, especialmente no confessionário, onde passava, regularmente, até 10 horas por dia.
Projeto de hospital
Os anos pacíficos passaram. Em 1940, já era um homem doente quando lançou o projeto do que viria a ser a Casa Sollievo della Sofferanza, um grande hospital com material moderno e médicos eminentes. Como em todas as obras providenciais, não houve ausência de obstáculos, mas o hospital foi inaugurado em maio de 1956. Ele ainda existe hoje.
Ao mesmo tempo, Padre Pio criou grupos de orações ao redor de todo o mundo, principalmente graças a seus filhos e filhas espirituais, que incluíam [antigos] maçons, vigaristas, um tenor famoso (Gigli) e mulheres de pouca virtude.
Pio XII pediu-lhe orações, mas sua morte em 1957 iniciou um novo e doloroso capítulo na vida do Capuchinho. Alguns dos seus irmãos de elevado grau na Ordem demostravam tudo, menos interesse religioso pelas somas enormes de dinheiro que passaram pelas suas mãos. Eles queriam esse dinheiro para eles mesmos. Uma conspiração “filial” apoiada pelas autoridades da Ordem se formou; eles chegaram até mesmo a colocar microfones na cela e no confessionário do Padre. O caso foi descoberto – o Padre reclamou a um dos seus amigos – e os irmãos culpados dessa vigilância nada evangélica foram dispensados de suas funções e enviados a outros conventos.
O fim da sua vida foi mais pacífico, embora ainda empregado no desgastante ministério às almas.
Dois eventos nos últimos meses da sua vida são dignos de menção. A Missa Nova promulgada em 1968 foi precedida por Missas normativas. Padre Pio pediu que lhe fosse permitido celebrar a Missa de todos os tempos, e essa permissão lhe foi dada.
No mesmo ano, 1968, a encíclica de Paulo VI sobre controle de natalidade foi promulgada. Padre Pio, com apenas dois meses de vida restantes e no ápice da sua vida mística, enviou uma carta ao Papa agradecendo-lhe por essa Encíclica, que causou tanta controvérsia.
Esse segundo Cura d’Ars sentia o fim aproximando-se. Na noite de 20 a 21 de setembro, 1968, cinquenta anos após aparecerem, seus estigmas desapareceram: a pele das suas mãos ficou macia e limpa, sem qualquer marca de cicatriz. Seu jubileu de sangue foi completado. A Eternidade se aproximava, e, na noite de 22 a 23 de setembro, Padre Pio foi se encontrar com seu Criador.
DOM LEFEBVRE E PADRE PIO
No fim do verão de 1967, Dom Lefebvre estava na Itália e viajou a San Giovanni Rotondo. O encontro foi breve. Dom Lefebvre pediu a bênção do Padre para o Capítulo vindouro dos Padres do Espírito Santo. O humilde capuchinho se negou, respondendo a Dom Lefebvre que era ele quem devia abençoá-lo. Educação entre santos.
Esses dois grandes homens da Igreja eram muito diferentes. Um era padre, o outro, bispo; um experimentou vários fenômenos extraordinários, o outro deixou apenas uma memória enigmática de um sonho misterioso em Dakar.
E, ainda assim, ambos trazem semelhanças importantes.
Ambos sofreram pela Igreja através da Igreja.
Ambos foram vítimas de verdadeiras perseguições por parte das autoridades, apesar de essas perseguições terem sido por razões muito diferentes, e eles reagiram de maneira muito diferente a elas.
As perseguições do Padre Pio eram pessoais, inspiradas pela inveja de Padres seculares dissolutos e pela ganância de certos capuchinhos. Essas perseguições levaram a punições injustas, que Padre Pio aceitou com obediência heróica.
O caso de Dom Lefebvre era diferente. As perseguições vieram da sua determinação de manter a Fé e a Missa de todos os tempos e da sua recusa aos erros conciliares e à nova liturgia. Razões de fé guiavam essas perseguições, que iam muito além de uma simples questão de disciplina. Dom Lefebvre, portanto, resolveu desobedecer a essas injunções por uma razão mais elevada que a obediência formal pura. Sua Fé foi heróica, enquanto sua obediência não teria sido nada além de um servilismo confortável e uma prudência mundana.
Outra semelhança é o entendimento profundo de ambos do Santo Sacrifício da Missa. Ambos relembraram incessantemente a natureza sacrificial e expiatória da Missa que a nova liturgia queria esconder, um através de sua maneira muito mística de celebrar a Missa como o caminho do Calvário, o outro através da sua espiritualidade centrada no Santo Sacrifício. Ambos relembraram o papel central do Padre na obra da Redenção, um por uma vida literalmente crucificada, o outro por seu apostolado do sacerdócio.
(Originalmente publicado na edição de Julho-Setembro de 2018 (Nº 340) de Le Chardonnet)
Sermo Geminet terra:
que se cubra de verdura a terra!
Breve preâmbulo
Produza a terra erva verde, e que dê semente, e árvores frutíferas, que dêem fruto segundo sua espécie, cuja semente esteja nelas mesmas (para se reproduzirem) sobre a terra. E assim se fez.(Gn. 1, 11). Declara Isaías sobre o Cristo: Quem falará de sua geração? (Is. 53, 1) De certo modo depende a geração do Cristo da geração de Maria (falo da geração temporal do Cristo). Ora para se descer a detalhes da geração de Maria, não basta a inteligência humana. Invoquemos pois a graça do Espírito Santo, por que se santificou Maria, e imploremos ao Divino Espírito que me conceda dizer algo de valor.
Primeira Parte
[Maria, remédio enquanto erva verdejante]
É regra da divina providência diligenciar por cada ser, segundo sua conveniência. Por isso dispõe ao homem, porque é humano, remédio tirado da terra. Assim conforme lemos em Sirácida: O Altíssimo é quem produziu da terra o medicamento (Eclo. 38, 4). Oferecem-se dois remédios tirados da terra: a erva verdejante e as árvores frutíferas. A erva verdejante é a bem-aventurada Virgem, cuja festa celebra a Igreja por esses dias. Com efeito, ela se chama erva pela humildade, verdejante pela virgindade, e frutífera pela fecundidade. Considerando as propriedades da erva, podemos apanhar três características: a erva é mirrada em tamanho, suave ao tato, benfazeja em virtude.
Em primeiro lugar, digo que a erva é mirrada em tamanho. Se comparássemos a erva à árvore, veríamos que ela pouco cresce em altura, contrariamente à árvore, que se avulta para cima. Ora a altura significa orgulho. Assim aquilo do Salmo: Vi o ímpio arrogante, e elevando-se como o cedro frondoso (Sl. 37 [36], 35). O ímpio, i. é, o orgulhoso, pois que o orgulho é princípio de impiedade, se eleva pela riqueza do mundo, contra a qual escreve o Apóstolo: Manda aos ricos deste mundo que não sejam altivos, nem confiem na incerteza das riquezas, mas em Deus vivo (1 Tm. 6, 17). Eleva-se no conhecimento, porque o orgulho do conhecimento se exalta a si mesmo. Se sua soberba subir até ao céu, e sua cabeça tocar nas nuvens, por fim perecerá como o esterco (Jó 20, 6). Percebe que a prosperidade mundana e a alta idéia que tem de si, que o eleva como o cedro do Líbano, exaltam o ímpio. Donde o profeta Amós: Sua altura era como a altura dos cedros (Amós 2, 9).
A erva não cresce muito, mas permanece mirrada em tamanho, significando humildade. [Deus] faz germinar a erva (...) para serviço do homem (Sl 147 [148], 8). Por serviço entenda-se a humildade. Eleva-se a árvore muito acima da terra, permanecendo fixada a ela; a erva pouco se fixa a terra, sendo rapidamente arrancada dela. Assim o orgulhoso, conquanto se magnifique deveras e se exalte, tem o coração plantado em terra, donde não se pode arrancá-lo. O humilde nada possui na terra; assim, o coração se arranca facilmente dali. Em razão dessa pequenez o humilde se compara à erva.
Possuía a bem-aventurada Virgem inúmeras qualidades por que se deve louvá-la. Era ela cheia de graça, segundo o testemunho do anjo. Foi escolhida Mãe de Deus, e em se tornando Mãe de Deus, só glorificava de si a humildade ao dizer (Lc. 1, 48): Porque se curvou sobre sua humilde serva. Buscava o Senhor a mulher por que se salvaria o gênero humano, para que o contrário curasse o contrário. O orgulho perdeu o gênero humano, pois a origem de todo o pecado foi o orgulho. Não convinha que o humilde Filho, que com a humildade veio salvar o gênero humano, habitasse mãe orgulhosa. Assim, Deus é todo atenção para a humildade. A propósito da humildade da bem-aventurada Maria escreve Agostinho num sermão sobre a Assunção: Ó verdadeira humildade de Maria, que engendrara Deus para a humanidade, revelara a vida aos mortais, franqueara os céus, purificara o mundo, desvendara o Paraíso ao homem, libertara as almas dos homens!. A pequenez da erva significa a humildade de Maria.
Em segundo lugar, a erva não é dura, mas tenra. Tenra ou cediça ao tato, como um coração tenro que não se obstina. Há de se notar a existência de certa ternura de coração, [que é] virtuosa e natural, e de outra viciosa e supurativa. [Ora] localiza-se a vontade ou coração humano entre duas realidades: a que lhe é superior, e a que lhe é inferior. Caso ceda facilmente ao inferior – à concupiscência da carne ou à cobiça do mundo – trata-se de ternura antinatural, de que fala o livro dos Provérbios: Para guardar-te da mulher estrangeira, da desconhecida de palavras lisonjeiras (Pr 2, 16), e Jeremias: Sai do meio dela, povo meu, para que salve cada um a sua vida da ira do furor do Senhor (Je 51, 45). Não era essa a ternura da erva [Virgem Maria]. Do mesmo modo a vontade do homem tem a de Deus acima, devendo ceder à moção divina, pois o coração duro conhecerá a tristeza no último dia (Eclo. 3, 26). Acerca da ternura escreve Jó: Deus amolgou meu coração, e o Onipotente me turbou (Jó 23, 16). Compara-se a juventude à erva, no Salmo 90[89], 6: De manhã, i. é, na juventude, floresce e rebenta; de noite, abate-se e resseca. Durante a juventude, deixa-se o homem facilmente conduzir. A bem-aventurada Virgem teve essa fineza de obediência, porque logo obedeceu a palavra do anjo, e acreditou fosse conceber do Espírito Santo. Ela se submete sem vacilar: Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra! (Lc. 1, 38). Assim se dá com os santos, que só ensinam o que experimentaram. Como fosse a bem-aventurada Virgem a mais obediente das criaturas, ensina-nos a obediência. De tudo quanto se diz dela no Evangelho, lê-se que ensinara sobretudo o mandamento da obediência: Fazei tudo quanto ele vos disser (Jo 2, 5). Diz ela: Tudo quanto vos disser, e não: Tudo quanto vos ordenar, pois ela é a mesma prontidão de obediência, obedecendo à mera palavra do superior. Assim escreve São Paulo a Tito: Sejam sujeitos aos príncipes e às autoridades, que lhes obedeçam (Tito 3, 1). A obediência é virtude primordial. Deste modo se refere a ela Gregório, nas Morais (XXXV, 14): “A obediência é a única virtude que introduz n’alma as demais virtudes, para em seguida guardá-las ali”. Certas pessoas saem a murmurar e dizer que é melhor obedecer à vontade espontânea que à vontade alheia, mas isso é falso. Dentre todas as boas ações exteriores, nenhuma se compara ao oferecimento de sacrifício, e a obediência é mais agradável que holocaustos. Por isso diz Gregório: “É justo preferir obediência a sacrifícios, porque estes imolam carne estranha, enquanto aquele imola a vontade própria” (ibid). A bem-aventurada Virgem propusera ensinamentos em atos e palavras sobre a obediência. Pela desobediência de um só homem, todos somos pecadores; era conveniente que fôssemos salvos pela obediência, e como a obediência do filho se inicia pela mãe, deste modo a bem-aventurada Virgem foi obediente.
Em terceiro lugar, a erva possui virtude benfazeja para a saúde: serve para cuidar das doenças; se ela não tivesse virtude medicinal, escrever-se-ia em vão no livro da Sabedoria: Nem erva nem ungüento recobravam-lhe a saúde (Sb. 16, 12). O gênero humano estava doente: Tende piedade de mim, Senhor, porque sou enfermo: sara-me (Sl. 6, 3). A doença é conseqüência do pecado; quisera Deus aplicar remédio medicinal, agindo como bom médico. Quando os bons médicos querem demonstrar sua ciência médica, aplicam-se em primeiro às doenças gravosas, tornando-se deste modo célebres. O gênero humano definhava, nascendo em corrupção no ventre da mulher. É o que afirmava Salomão: Constatei que a mulher era mais amarga que a morte (Sb. 7, 26). Querendo manifestar a bondade do remédio, o Senhor aplicou-o antes do mais na mulher, para que o remédio se estendesse aos demais, como está escrito: O remédio de todos esses males é uma nuvem que venha depressa (Eclo. 43, 24). Na oração Salomão diz: O Senhor disse que habitaria numa névoa (1 Re 8, 12). Dentro da nuvem, i. é, da bem-aventurada Virgem, encontra-se a salvação e a cura do gênero humano. Assim se afirma em Sirácida: Em mim há toda a graça do caminho e da verdade, em mim toda a esperança da vida e da virtude (Eclo. 24, 25). Como se encontrasse o remédio de todos na nuvem, a saber, a bem-aventurada Virgem, escreve o Apóstolo: Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançar a misericórdia (Hb. 4, 16). Ele diz: [O remédio] é uma nuvem que venha depressa, pois a virtude [desse remédio] rapidamente se manifesta. Já que é rápida para quem recebeu a graça durante a infância, quanto mais para a Virgem, que a recebe desde o seio maternal, donde foi purificada do pecado original [...]. Deus está no meio dela; não será comovida (Sl. 46 [45], 6), nem pelo pecado mortal, nem pelo venial. Também diz Agostinho: “Não hei de falar coisa alguma, quando se trata de pecado na mãe de Deus”. Igualmente o texto de Jerônimo no saltério traz: “Deus a socorreu desde o despontar da manhã” (Sl. 46 [45], 6). Assim sendo celebramos seu nascimento acima daquele dos outros santos, exceto os do Cristo e de São João Batista. A bem-aventurada Virgem fora erva pela humildade.
De igual modo, foi ela erva verdejante pela virgindade. Em Jerônimo se diz: Toda a erva da região ressecará; mas a bem-aventurada Virgem era erva verdejante pela virgindade. Assim em Lucas: O anjo Gabriel foi enviado a Maria, [que era] virgem (Lc. 1, 27).
Vede como neste verdejar observamos a humildade, a beleza e a utilidade ou necessidade. [Traduzida] nesta verdura, vemos [simbolizadas] a frescura, a beleza, a utilidade ou necessidade.
Em primeiro lugar, digo que nisso constatamos a humildade como causa, pois a humildade é causa do verdejar. Assim em Sirácida: A verdura que cresce sobre as águas (Eclo. 40, 16). Deveis saber que a erva se resseca por causa do sol ou do fogo. Do mesmo modo a concupiscência da carne resseca a verdura da virgindade. Segundo Jó: É fogo que consome até o extermínio (Jó 31, 12). Que alimenta a verdura da virgindade? Sem dúvidas o amor celeste, pois a virgindade tem algo de celeste. Deste modo escreve Jerônimo: “Viver na carne como se fora dela não é comportamento terrestre ou humano, mas celeste.” E o Apóstolo, ao encorajar a virgindade, apostrofa: Cada um tem de Deus seu próprio dom; uns dum modo, e outros doutro (1 Co. 7, 7). A virgindade é dom da graça de Deus, com o concurso do livre arbítrio. Assim o adolescente diz: Não poderia ser casto se Deus me não concedesse (Sb. 8, 21). Não continha a Virgem a água da graça? Claro, porque lhe declarara o anjo: Não temais, Maria, pois encontrastes graça diante de Deus (Lc. 1, 30). Ela foi cumulada de graça, como também afirmou o anjo: Ave, cheia de graça; porque ela continha em plenitude as águas da graça, não se contentara em preservar a virgindade do modo habitual, a saber, pela continência conjugal, mas se propusera firmemente à preservação da virgindade perpétua para além do uso comum. Desta feita respondeu ela: “Como poderá ser, se não conheço varão?” (Lc. 1, 34), i. é: “Não me proponho a conhecer nenhum”.
Em segundo lugar, vemos neste verdejar beleza deleitável. Diz-se em Sirácida: A graça e a beleza deleitam a tua vista; mas a verdura dos campos leva vantagem a ambas essas coisas (Eclo. 40, 22). A pureza da carne e a virgindade regozijam o olhar de Deus e dos santos. Por quê? A bem falar, quem regozija é a ordem ou beleza da ordem. Fala Agostinho: “Se algum percebe janelas mal postas numa casa, não se regozija”. No homem a ordem natural é a carne submissa à alma; onde a ordem é respeitada existe beleza, mas onde a perturbam deforma-se o homem. Daí vem que os pecados da carne, embora uns e outros difiram em gravidade, desonrem o homem, por vergonhosos e desordenadores: o que no homem é inferior se torna superior, e vice-versa. Na bem-aventurada Virgem nada era desordenado, nem ato, nem desejo, estando isenta das inclinações pecaminosas. Por isso se diz nos Cânticos: Toda és formosa, minha amiga, e em ti não há mácula (Ct. 4, 7). Por causa disso escreve-se a seu respeito: O rei desejará tua beleza (Sl. 45, 12).
Igualmente concluímos que o verdejar é útil. Enquanto a erva permaneça verde, espera-se que produza frutos. Mas à ressecção, já não se espera mais frutos. Vaticina Isaías: Secou-se a erva, não vingaram as sementes, pereceu toda a verdura(Is. 15, 6). Ao contrário, verde a erva, espera-se dela fruto. Assim Jeremias: Será sempre verde sua folha e em tempo de seca não terá mingua (Je. 17, 8). Quando alguém floresce em virgindade, produzirá fruto de caridade. Mas quando ressequido na concupiscência, então suas obras são estéreis para a vida eterna. Aquele semeia na carne, da carne colherá corrupção (Ga. 6, 8). Só tem serventia a erva seca se jogada no fogo. Em paralelo, quem arde no fogo da concupiscência não tem serventia, senão jogado no fogo do inferno. Contudo a bem-aventurada Virgem sublimou-se em virgindade, melhor, ela é a rainha das virgens. Como possuísse em grau excelente a verdura da virgindade, produziu fruto admirável. As demais, porque virgens, produziram fruto espiritual, sobre o qual diz o Apóstolo: O fruto do Espírito é caridade, contentamento, paz (Gl. 6, 8). Como abundava nesta verdura, a bem-aventurada Virgem produziu fruto em seu seio. Disseram acerca dela: Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto de teu ventre! (Lc. 1, 42). A propósito diz Isaías: Uma virgem concebera e dará luz a um filho (Is. 7, 16). Seu coração arderá de admirável ardor, e por isso faz maravilhas em sua carne. As demais virgens produziram fruto espiritual, mas esta produziu fruto no ventre. Foi ela então erva verdejante. Disse [Deus]: Produza a terra erva verde, e que dê semente! (Gn. 1, 11).
Que tipo de semente? Semente santa, semente virtuosa, semente necessária.
Em primeiro lugar, produziu a bem-aventurada Virgem semente santa. Segundo Isaías (6, 13): Estabelecer-se-á nela uma semente santa. Por que santa? Porque será a semente do que é santo. Em primeiro lugar, será a santidade de Deus, que é o mesmo Santo dos Santos. Diz-se: Sereis santos como eu sou santo (Lv. 11, 45). Essa é a casta santa que brota da semente, por isso semente santa. A semente é a palavra de Deus (Lc. 8, 11), e o Cristo é o Verbo de Deus. A propriedade da semente é produzir algo semelhante a si; assim, a semente do Verbo de Deus produz algo semelhante a si, fabricando deuses. Por isso afirma João: Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1, 12). Louva-se Abraão por sua santidade; o Cristo é semente de Deus segundo o Espírito, e descendente de Abraão segundo a carne, a quem se dirigiram as promessas, assim como à sua descendência (Gl. 3, 6). Na tua descendência serão benditas todas as nações da terra (Gn. 22, 18). A semente, pois, é santa. Pela semente do Verbo de Deus nos tornamos filhos de Deus, tanto quanto pela semente de Abraão somos filhos de Abraão. Bendita a semente que nos traz a benção!
Ela é também semente virtuosa. No Evangelho comparam-na ao grão de mostarda, o menor dentre os grãos, que produz árvore de longos ramos, onde se refugiam os pássaros do céu. O Cristo é uma semente pequenina: na cruz, apequenou-se, mas crescera até preencher o céu e a terra. Subiu aos céus para abarcar todas as coisas.
Igualmente é semente necessária. Assim concluiu Isaías: Se o Senhor dos Exércitos não nos conservasse alguma semente, teríamos sido como Sodoma (Is. 1, 9). O bem-aventurado Pedro diz: Não existe, sob os céus, outro nome dado aos homens por que possamos ser salvos (At. 4, 12). A semente é admirável, e admirável sua germinação. A terra é a natureza humana privada da umidade da graça. Assevera Jeremias: Observei a terra; eis que estava vazia, e não havia coisa alguma (Je. 4, 23) Como pudera produzir erva? Dalguma forma, certamente. A terra estava árida da concupiscência do pecado. Eis aquilo do Sirácida: Ao meio-dia queima a terra (Eclo. 43, 3). Com efeito estava a terra mais abaixo, pois acima Deus criara o céu, e embaixo a terra. Como ela germinou? Está escrito em Gênese: Disse Deus: produza a terra erva verde (Gn. 1, 11). Uma palavra, i. é, a geração do Verbo, e se produz o fruto. De igual modo em Provérbios: A Sabedoria construiu sua casa (Pr 9, 1), a saber, na bem-aventurada Virgem, fazendo-lhe produzir erva. [Lemos] nos Salmos: Nela nasceu um homem etc. (Sl 87 [86], 5). Tal homem preencheu a terra, porque estava vazia. Visitaste a terra e a regaste, cumulaste-a de riquezas (Sl. 65 [64], 10). Igualmente, por que estava ressecada, ele a regou com o Espírito Santo. Lemos nos Salmos: Ressumam os pastos do deserto, e as colinas cingem-se de alegria (Sl. 65 [64], 13). Também, porque era pequenina, infiltrou-se na terra para dar-lhe semente celeste. Prega Isaías: Assim será a minha palavra, que sair da minha boca: não tornará para mim vazia, mas fará tudo o que eu quero, e produzirá os efeitos para os quais eu enviei (Is. 55, 11). Se alguém se esvaziou pelo pecado, volva-se a esta erva, e será cumulado de bens. Lemos nos Salmos: Seremos cumulados dos bens da tua casa (Sl. 65 [64], 5). Se há alguém que ressecou, recorra a esta palavra, e será regado. Lemos nos Salmos: Nele confiou meu coração, e fui ajudado (Sl. 28 [27], 7). Se há alguém mergulhado em profundezas, recorra a esta palavra, e será conduzido à luz celeste. Salmo 43 [42], 3: Envia tua luz e tua verdade; elas me guiarão, me levarão à montanha santa, e me introduzirão nas tuas moradas.
Que se digne o Senhor em nos conceder etc.!
Segunda Parte
[A cruz, remédio semelhante à árvore frutífera]
Produza a terra erva verde, etc. (Gn. 1, 11).
O Altíssimo nos retirou da terra dois remédios: a erva verdejante e a árvore frutífera. Falamos da erva, a bem-aventurada Virgem. Resta falar da árvore frutífera, a árvore da venerável cruz do Senhor, cuja celebração agora se inicia. Ambosremédios se ligam de modo conveniente, pois a erva verdejante nos traz a salvação, mas a árvore frutífera no-la garante e eleva, já que o Filho de Deus se fez obediente etc., e mais a frente: Por isso também Deus o exaltou (Fl. 2, 7). Deste modo lê-se no Evangelho que estavam de pé junto da cruz de Jesus sua mãe [...] (Jo. 19, 25).
Vejamos em que se constitui essa árvore. A propósito da árvore Moisés parece descrever três características: a espécie, a aparência e o fruto. Se tu te interrogares sobre a espécie, ele responde: de madeira; se sobre a aparência, ele responde: frutífera; se sobre o fruto, ele responde: carregado.
Primeiramente, se te interrogares sobre a espécie da árvore, digo que é de madeira. A madeira convém como remédio por três razões: convém em relação a nossa ferida, à nossa reparação, e àquele quem repara.
Em primeiro lugar, digo que a árvore da cruz nos convém como remédio porque convém à ferida. Uma árvore feriu o gênero humano, pois o primeiro homem comeu da árvore proibida. Assim encontrou a sabedoria divina remédio numa árvore. A desobediência feriu o gênero humano, porque o primeiro homem subtraiu o fruto da árvore proibida. O homem novo restituiu à árvore comum o fruto de salvação. Salmo 69 [68], 5: Restitui aquilo que não roubei. Ele se deu a si na árvore para compensar o dano e trazer o remédio. O madeiro, do qual se faz bom uso, é bendito (Sb. 14, 7).
Prestai atenção: comparemos o madeiro [da cruz] à árvore. A propósito da árvore proibida, diz-nos três coisas a Escritura: A mulher viu que a árvore era boa para comer e agradável aos olhos... tirou do fruto dela e comeu (Gn. 3, 6-7). Antes de tudo a árvore é boa para comer: por isso é apta à alimentação. Ao contrário a árvore da cruz nos ensina a mortificação da carne. Daí se afirmar: Aquele que os vossos príncipes suprimirão. Aquela árvore é morta: Se viverdes segundo a carne, morrereis (Rm 8, 13). Ao contrário a árvore da cruz vivifica a carne, matando-a: Porque também Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, ele, justo pelos injustos, para nos oferecer a Deus, sendo efetivamente morto segundo a carne, mas vivificado pelo Espírito (1 Pe. 3, 18); e ainda: Se pelo Espírito fizerdes morrer as obras da carne, vivereis (Rm. 8, 13).
Em segundo lugar, encontrava-se beleza terrestre na árvore proibida: Ela viu a árvore, que era agradável ao olhar (Gn. 3, 6). [Disse] Isaías: Toda sua glória é como a flor dos campos (Is. 40, 6). A flor carrega a beleza e a glória do mundo, mas é maldita porque por ela os homens são levados à danação. Lamenta Jó: Eu vi o insensato com profundas raízes, e logo amaldiçoei a sua prosperidade (Jó 5, 3). Ao contrário a árvore da cruz é ignominiosa. Assim se descrevera acerca deste momento: É maldito de Deus o que pende do madeiro (Dt. 21, 23). Reparai a afirmação de que a árvore era agradável aos olhares de Adão e Eva, e disso se gloriavam. Primeiro, fala-lhes a serpente sobre a ciência: sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal (Gn. 3, 5). Desta feita se denominava árvore da ciência do bem e do mal. Existem bens que os homens aplicam corretamente, como as virtudes; mas ter experiências de certas coisas não é experimentar virtudes. Há quem abunde em bens do mundo, e os utiliza mal. Esta árvore possuía beleza de olhar, mas a árvore da cruz possuía a vergonha da loucura. Assim aquilo do Apóstolo: Proclamamos um Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios (! Co. 1, 23). Oséias: Transformarei a beleza dessa árvore em ignomínia (Os. 4, 7). Mas a ignomínia da cruz se transmudou em glória. Assim encontramos em Ezequiel: Eu, o Senhor, humilhei a árvore alta e exaltei a árvore humilde (Ez. 17, 24). Vede com o madeiro da cruz está exaltado. Cosroes, rei da Pérsia, tomara de Jerusalém como despojo a árvore [da cruz], que foi devolvida à Cidade Santa por Heráclius; e é em memória desse acontecimento glorioso que até hoje apregoam a festa da exaltação da Santa Cruz. À cruz sempre se exaltou, porque o Senhor confirma o justo (Sl. 37 [36], 17). Num panegírico sobre a Santa Cruz escreve Agostinho: “Cessou a cruz como pena, mas permanece [como glória]: de suplício de condenados, gravou-se na fronte dos imperadores.” (Enarrationes in Psalmos, 36, Sermo 2, 4). Assegura São João Crisóstomo: “Em todo canto resplende a cruz sobre a coroa dos reis, as armas dos soldados, os altares consagrados; coroadas as cabeças, os reis tomam a cruz.” Exaltaram pois a árvore da cruz, a qual o Senhor há de exaltar muito mais. Vê-se em Mateus: Escurecer-se-á o sol, e a lua não dará sua luz, e então parecerá o sinal do Filho do Homem no céu (Mt. 24, 29-30), i. é, a árvore da cruz. Crisóstomo sustenta que “após o obscurecimento do sol e da lua, o Filho do Homem só haveria de aparecer em presença duma cruz mais resplendente que os raios do sol”.
De igual forma a árvore é agradável. Assim no Gênese: Era ela agradável aos olhos (Gn. 3, 6). A deleitação da cruz não é verdadeira deleitação, pois que é mais amarga que agradável. Por isso diz Salomão: Por isso declarei o riso como um devaneio; e disse ao gozo: por que te enganas assim vãmente? (Ecle. 2, 2). Ao contrário a árvore da cruz tem a beleza da amargura, que no livro de Reis se fala assim: Armar-se-á de ferro e de pau de lança (2 Re. 23, 7). Escreve o apóstolo Pedro: Tendo o Cristo padecido na carne, armai-vos deste mesmo pensamento (1 Pe. 4, 1). Transforma-se em doçura este transporte de amargura, sendo significado em Êxodo quando se diz que os filhos de Israel encontraram águas amargas: ordenou o Senhor a Moisés estendesse o cajado sobre elas, para se adoçarem. Os justos padecem tribulações, mas o madeiro da cruz os torna doces. Sob o signo da cruz, o fiel exalta-se na tribulação: Que eu jamais me glorie senão na cruz de Nosso Senhor (Gl. 6, 14); diz Tiago: Meus irmãos, tende por um motivo de maior alegria para vós as várias tribulações que caem sobre vós (Ti 1, 2) Por quê? Devido ao gosto pela cruz. Afirma o Apóstolo: Considerai, pois, aquele que sofreu tal contradição dos pecadores contra si, para que não vos fatigueis, desfalecendo em vossos ânimos (Hb. 12, 3), porque foi tomado como salteador. Quem deve considerar um mal ser alvo de contradição? Convém à ferida o madeiro da cruz.
Igualmente ele convém à reparação. Vede nas Escrituras: onde estava o perigo? Sabe-se que um remédio foi dado. Por uma árvore, adveio o primeiro mal ao homem, na expulsão do Paraíso. Qual fora o remédio? A árvore da vida. Mas como não pudesse o homem alcançar a árvore da vida, não haveria de ter o remédio. Disse então o Senhor: “Tende cuidado de não tomarem do fruto da árvore da vida!”. O Cristo nos trouxe o fruto dessa árvore. É árvore da vida para quem dela comer (Pr.3, 18). Outro perigo foi o dilúvio. O remédio veio da madeira da arca. Se estás no dilúvio, nas águas do século, acorre em direção à árvore da cruz. Lê-se num salmo: Se ando em meio à sombra da morte etc., tua vara, teu cajado, i. é, a cruz, etc. (Sl 23 [22], 4). Sou conduzido à boa direção pela madeira da cruz; igualmente, a madeira foi o remédio para o povo de Israel, ao ser perseguido pelo opressores egípcios, uma vez que Moisés os feriu com seu cajado e com ele dividiu o mar. Se sofres assaltos dos inimigos espirituais, acorre em direção ao madeiro da cruz. Está escrito no livro de Reis que os filhos de Israel combatiam contra os filisteus, e levaram a Arca do Senhor até o campo de batalha; os filisteus temeram, e diziam: Deus chegou ao acampamento!” (1 Re. 4, 7), devido à arca transportada ao campo. A arca era feita de madeira imputrescível. Vê-se num salmo: Os habitantes dos confins [da terra] temem pelos seus prodígios (Sl. 65 [64], 9). Os vencidos temem o estandarte adversário; assim os demônios vencidos pelo Cristo temem o estandarte, o madeiro da cruz. Daí canta a Igreja: “Eis o madeiro da cruz; fugi, inimigos!” Convém a cruz à ferida e à reparação.
Em terceiro lugar, ela convém ao reparador; nela o Cristo é exaltado. Por isso se escreve: É preciso que o filho do Homem seja elevado (Jo 12, 34). Como foi ele exaltado? Decerto como combatente. A ele convém o que se prediz em Números: Eu o verei, mas não agora; eu o contemplarei, mas não de perto; nascerá uma estrela de Jacó; e levantar-se-á uma vara de Israel (Nm. 24, 17). Escreve o Apóstolo: Despojando os principados e as potestades (infernais), levou-os (cativos) gloriosamente, triunfando em público deles em si mesmo (pela cruz) (Col. 2, 15). O madeiro da cruz é um como carro de triunfo exaltado em Cristo. Compara-se ele ao baldaquino de Salomão (Ct. 3, 9), ou ao cetro que dirige o povo: O cetro do teu reino é um cetro de eqüidade (Sl. 45 [44], 7). O Cristo foi exaltado como combatente. De mesmo modo foi exaltado como a um mestre [que ensinasse] desde a cátedra. Acerca dessa exaltação escreveram: E eu, quando for levantado da terra, atrairei tudo para mim (Jo 12, 32). Hoje contemplamos a esperança que nos trouxe o remédio.
Vejamos a aparência da árvore. A árvore aparece carregada de frutos; diz-se de tal árvore que é frutífera. E quais seus frutos? Fala-se neles nos Cânticos: temos à nossa porta frutos excelentes, novos e velhos que guardei para ti, meu bem-amado (Ct. 7, 14). Os frutos velhos são figuras que remontam à árvore. A propósito dos frutos, aquilo de Oséias: vi os vossos pais como os primeiros frutos da figueira (Os. 9, 10). Quais são os frutos novos? Durante a benção de Josué, no Deuteronômio, faz-se menção de três frutos, a saber, frutos do céu, frutos do sol e da lua, e frutos das colinas eternas. Quais são os frutos do céu? Os membros do Cristo. Os membros do Cristo ornaram a cruz como os frutos a uma árvore, e não apenas os membros corporais do Cristo, mas também os de seu corpo místico, dos quais se proclamam: Estou pregado à cruz do Cristo (Gl. 2, 19). Dos frutos se diz nos Cânticos: Entre meu amado no seu jardim, prove-lhe os frutos deliciosos. (Ct. 5, 1). Os frutos do sol e da lua são os exemplos das virtudes que manifestou o Cristo na cruz. Tu tens na cruz a demonstração da caridade do Cristo, pois que ele nos amou e entregou-se por nós: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos. (Jo 15, 13). De igual modo deu-nos exemplo de humildade, porque humilhou-se a si mesmo (Fi. 2, 8). Deu exemplo de obediência, porque ele se fez obediente (ibid.) ao Pai. Ensinou a paciência, Ele, ultrajado, não retribuía com idêntico ultraje (1 Pe. 2, 23). São estes os frutos daquele vale, sobre o qual se canta: Eu desci ao jardim das nogueiras para ver os novos frutos dos vales (Ct. 6, 11). Quais são os frutos das colinas eternas? Afirmo serem os ensinamentos, impregnados de sabedoria, dos doutores. O esplendor luminoso de vosso poder manifestou-se do alto das eternas montanhas (Sl. 76 [75], 5). Encontrarás doutores que ensinam a fé; o Cristo ensina a fé na cruz, ao dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes? (Mt. 27, 46). Ele demonstra que sua humanidade padeceu a paixão, mas não em razão da impotência de [sua] divindade. Ainda encontrarás doutores que ensinam a paciência; o Cristo ensina a paciência na cruz, ao dizer: Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem (Lc. 23, 34). Encontrarás alguns que ensinam o comportamento humano; o Cristo fê-lo na cruz, ao demonstrar a sua mãe o que devia a ela e ao discípulo, ao falar: “Mulher, eis aí teu filho!”. Depois, disse ao discípulo: “Eis aí tua mãe!” (Jo 19, 27). Tais são os frutos das colinas eternas, de que falam os Cânticos: Teus rebentos são como um bosque de romãs com frutos deliciosos (Ct. 4, 13). Ele é então uma árvore frutífera.
Existem árvores que estão continuamente carregadas de flores e de frutos – é o caso a árvore da cruz, carregadas de flores. Vede que a árvore da cruz carrega um fruto triplo, a saber, fruto de purgação, de santificação e de glorificação.
Em primeiro lugar, digo que a árvore da cruz produziu fruto de purgação, pois pela cruz somos todos libertados do pecado. Assim aquilo do bem-aventurado Pedro: Carregou os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro (1 Pe. 2, 24). Acerca do fruto escreve Isaias: Este é o fruto do perdão do seu pecado (Is. 27, 9). Em segundo lugar, produz o madeiro da cruz fruto de santificação, de que se afirma: Frutificais na santidade (Rm. 6, 19). Em que consiste a santificação? No apego do homem à cruz. O pecado distanciou de Deus o homem, que se reconciliou pela cruz. Deste modo em Romanos 5, 10: Fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, e: Reconcilia-te com Deus e faze as pazes com ele: deste modo terás melhores frutos (Jó 22, 21), a saber, os frutos do Espírito: a caridade, a paz, o contentamento. A fim de nos purificar, [o Cristo] padeceu fora das portas (Hb. 13, 12); em toda santificação, os ministros da Igreja utilizam o sinal da cruz. Em terceiro lugar, o fruto da cruz é a glorificação, de que nos diz João: O que ceifa recebe o salário e ajunta fruto para a vida eterna (Jo 4, 36); no livro da Sabedoria: É esplêndido o fruto de bons trabalhos, e a raiz da sabedoria é sempre fértil (Sb. 3, 15). Como já se falou, o fruto se adquire pela cruz. Pelo pecado o homem foi excluído do Paraíso; por isso, padeceu o Cristo a paixão para que, através da cruz, fosse aberto o caminho entre a terra e o Céu. Assim a cruz do Cristo é aquela escada de Jacó: E viu em seus sonhos uma escada posta sobre a terra, cujo cimo tocava o céu, e os anjos de Deus subindo e descendo por ela, e o Senhor apoiado na escada (Gn. 28, 12). Os santos ascendem aos céus pela virtude da cruz. Assim aquilo do Apóstolo: Temos ampla confiança de poder entrar no santuário eterno, em virtude do sangue de Jesus etc.. (Hb. 10, 19).
Imploremos ao Senhor etc..
Tradução: Permanência
(a partir da tradução francesa de Dominique-Raphael Kling, 2005)
Lux orta est:
Nasce a luz.
Prólogo
[Os bens verdadeiros: graça e glória eternas]
Nasce a luz para o justo, e a alegria para os retos de coração (Sl. 97 [96], 11). Toda dádiva excelente, todo dom perfeito vem do alto e descende do Pai das luzes. Estas últimas palavras são extratos do cap. 1 de São Tiago (1 ,17). Os bens temporais são boas dádivas; os bens naturais, sejam alma e corpo, são dádivas melhores; os bens da graça e glória eternas são dádivas excelentes.
Toda a dádiva excelente, qual seja, a graça, provém do Pai das luzes. Da graça se diz dádiva excelente por sua ação meritória; donde aquilo de João 15, 5: Sem mim, nada podeis fazer. Igualmente da graça se diz dádiva perfeita por alcançar as benesses da glória. E tais dádivas, quem no-las distribui é o Pai das luzes. Salmo 84 [83], 12: O Senhor dá a graça, no presente, e a glória, no futuro. Porque a graça de Deus é de tamanha eficácia para a boa ação no presente, em vistas à glória eterna no futuro, imploremos antes ao Senhor de nos conceder a graça etc..
Primeira Parte
[Por que chamam de “luz” a Virgem?]
Nasce a luz para o justo. Breve é a expressão, e de sentidos mui diversos; encontramo-la no Salmo 97 [96], 11. Lemos que o nascimento da Virgem se havia anunciado no Antigo Testamento, em numerosas figuras; dentre as várias figuras, representam-na três de modo singular, a saber, a aurora, a aparição da estrela e o broto da raiz. A aurora significa o nascimento [da Virgem], sob o aspecto da santificação. Na aparição da estrela ela está prefigurada sob o aspecto da integridade da virgindade. No broto da raiz, sob o aspecto de sua elevação e grande contemplação.
A propósito da aurora, em que se prefigura o nascimento da Virgem sob o aspecto da santificação, lê-se em Gênese 32, 27, no que o anjo fala a Jacó: Larga-me, porque já vem vindo a aurora. O combate de Jacó significa a assembléia dos patriarcas que outrora lutavam contra o anjo usando dois braços, i. é, lágrimas e orações. Assim em Oséias 12, 4: Prevaleceu sobre o anjo, e ficou vencedor; chorou e suplicou-lhe. Após reconhecer o nascimento da bem-aventurada e gloriosa Virgem na aurora, declarou o anjo: Larga-me, como se dissesse: “Não me supliques mais, antes recorra à bem-aventurada Virgem.” A aurora é o termo da noite precedente e início do dia vindouro. De igual modo, no nascimento da bem-aventurada Virgem Maria, termina a noite da culpa, e começa o dia da graça. Declara Sedúlio: “Ela pôs cobro aos vícios e deu medida aos costumes.”
Em segundo lugar, o nascimento da Virgem gloriosa está prefigurado na aparição da estrela, representando a integridade da virgindade. Assim pontifica Balaão em Números 24, 17: Nascerá uma estrela de Jacó; e levantar-se-á uma vara de Israel. Ora, compara-se seu nascimento à integridade da virgindade duma estrela; assim como o astro emite seus raios sem corrupção, nem diminuição ou perda de luz, assim a bem-aventurada Virgem engendrou seu Filho sem desprendimento violento na carne, e sem a perda da virgindade. Afirma São Bernardo: “É de justiça que se compare a bem-aventurada Virgem a um astro, pois assim como o astro emite seu resplendor sem se corromper a si mesmo, e sem diminuir a claridade, assim o Filho [da Virgem] não suprime em nada a virgindade de sua mãe.”
Em terceiro lugar, o nascimento da gloriosa Virgem se prefigurou no broto da raiz, representando a contemplação. Isaías 11, 1: Sairá uma vara do tronco de Jessé, e uma flor brotará da sua raiz. O broto retesa-se em direção ao céu, significando a contemplação da bem-aventurada Virgem, que tinha o coração elevado ao alto, acima as coisas terrestres. Daí São Bernardo: Ó Virgem sublime! Em que sois sublime? Vós elevais tua alma àquele que se assenta no trono, ao Senhor da glória.”
Deste modo, nesta tríplice figura, anunciaram-nos o nascimento da bem-aventurada Virgem Maria. Houve uma como aurora em seu nascimento; e uma como estrela que nasceu na formação do Filho de Deus; e um como broto que germinava em seu comportamento honesto. Num só versículo resume David a tríplice figura: Nasce a luz para o justo etc.. A luz encerra a noite, e faz romper o dia, emite seu resplendor sem incorrer em corrupção e, abandonando as coisas inferiores, tende em direção ao alto. No Evangelho chamam a assembléia dos apóstolos de “luz”. Assim Mateus 5, 14: Vós sois a luz do mundo. São os anjos também chamados “luz”, Gênese 1, 3: E Deus disse: “Que a luz seja”. E a luz foi. A Glosa afirma que tal se declara dos espíritos bem-aventurados ou anjos. Como a Virgem ultrapassasse a assembléia dos apóstolos e dos anjos, em razão de sua excelência, ela é denominada convenientemente “luz”.
Por outra razão, pode ela também ser denominada “luz”. Vemos Deus dizer em João 8, 12: Eu sou a luz do mundo, e a bem-aventurada Virgem germinar essa luz. Ora, é impossível se engendrar a luz, em geração unívoca, por algo que não seja luz. Eis porque convém à Virgem o apelido de “luz”.
Vestem-lhe bem estas palavras: Nasceu a luz para o justo etc.. É necessário sublinhar dois fatos em particular: em primeiro lugar, o nascimento da gloriosa Virgem, quando se lê: Nasceu a luz; em segundo lugar, o fruto do nascimento, neste passo: Nasce a luz para os justos, e a alegria para os retos de coração! Nasceu a luz para o justo, i. é, para seu pai, Joaquim, porque era sua filha, e para o justo, i. é, o Cristo; nasceu a luz, i. é, a bem-aventurada Virgem havia de se tornar um tipo singularíssimo de mãe. Ainda: Nasceu a luz para o justo, i. é, ela será advogada do arrependido. Assim se canta: “Ó Virgem, advogada nossa!”. Ainda: Nasceu a luz para o justo, i. é, para os praticantes da justiça, os [homens] ativos; e a alegria para os retos de coração, i. é, para os [homens] contemplativos. Denomina-se “ativos” os praticantes da justiça, e “contemplativos” os espirituais, que necessitam de luz que os oriente ao bom comportamento e à contemplação de Deus.
Revela-se assim porque a bem-aventurada Virgem é denominada “luz” e por quais figuras fora anunciada.
Tratará o sermão deste trecho: Nasceu a luz para o justo; a conferência [da noite] tratará do resto.
Até agora se tratou das razões por que a bem-aventurada Virgem foi chamada “luz”; acrescente-se pois algumas mais. Observamos que a luz corporal é fonte de alegrias, que guia os viajantes e os que se mantém na via; dissipa as trevas; difunde as semelhanças; é a mãe das cores e a mas bela das criaturas; dá agrado e consolação aos olhos. Encontram-se tais qualidades na bem-aventurada Virgem, e por isso se diz que é bom contemplá-la.
Em primeiro lugar, afirmo que a luz é fonte de alegrias, pois aquele que se acha no mar é mui desejoso da luz, e nela se compraz. Assim ela convém à Virgem, figurada em Ester 8, 16: E aos Judeus parecia-lhes ter-lhes nascido uma nova luz, a alegria, a honra e o júbilo. Assim se declarou aos judeus, i. é, aos que têm fé, e aos cristãos que confessam o Cristo, Deus e homem, que existe uma nova luz, i. é, a bem-aventurada Virgem, chamada de nova luz, pois que parece que não houve alguma antes dela, nem haverá outra depois dela. Denominam-na de “luz” porque lhe são estranhas as trevas do pecado e da ignorância. Parecia ela alçar os olhos da alma, como agora fazia com os do corpo: felicidade para o íntimo, honra para o próximo, triunfo para Deus! Acerca da alegria de seu nascimento, diz-se nos Provérbios de Salomão 13, 9: A luz dos justos, i. é, a bem-aventurada Virgem alegra; porém a candeia dos ímpios apagar-se-á.
Em segundo lugar, essa luz é vereda e guia dos viajantes. De igual modo a bem-aventurada Virgem é aquela que indica a direção nesta estrada da vida. Está em João 12, 35: Andai enquanto tendes luz, para que não vos surpreendam as trevas, i. é, as obras das trevas, ou os anjos das trevas, i. é, os demônios, ou ainda as trevas, i. é, o suplício dos infernos. Assim fala Provérbios 4, 18: A vereda dos justos, como luz que resplandece, vai adiante, e cresce até ao dia pleno. A vereda dos justos, i. é, a bem-aventurada Virgem, que é vereda estreita e direita, e é pura da pureza da virgindade – aperta-se pelo rigor de sua fidelidade religiosa, e alonga-se pela direitura de seu caminho. A vereda dos justos é a bem-aventurada Virgem, como luz que luz para si mesma e para outrem, como progresso do bem em direção ao melhor, crescendo até ao dia pleno, até ao gozo da eternidade.
Em terceiro lugar, a luz dispersa as trevas. De igual modo o poder da gloriosa Vigem extirpa os vícios. Isaías 9, 2: Este povo, que andava nas trevas, viu uma grande luz, i. é, a bem-aventurada Virgem, que fora grande luzeiro pois que, como o Filho ilumina o mundo inteiro, a Virgem [ilumina] todo o gênero humano. Desta luz declara o Gênese 1, 3: “Que a luz seja!”. E Deus separou a luz das trevas, e a luz foi. “Que a luz seja!”, quando da criação da alma da bem-aventurada Virgem e a luz foi, quando de [sua] santificação. Gênese 1, 4: E Deus separou a luz das trevas, por que, no seguimento, [a Virgem] não pecou. Desta luz se diz em Gênese 32, 27: Larga-me, porque já vem vindo a aurora. À aurora fogem as trevas e aparece a luz. Do mesmo modo a bem-aventurada Virgem espanta as trevas do pecado e desvenda-nos a luz da graça. Chamam-na de “aurora”, que quer dizer “hora do orvalho” [hora rorans], pois que, ao seu nascimento, tornaram-se os céus doces como mel. É denominada “aurora”, que quer dizer “brisa suave”, pois naquele momento silvavam os passarinhos, demonstrando um como gozo de alegria e felicidade. Igualmente viram os Padres no nascimento da Virgem a alegria do céu. Chamam-na também de “aurora”, i. é, “sopro d’ouro” [aurea aura], em razão de sua preciosidade. Assim aquilo de São Bernardo: “Retirai o sol que ilumina o mundo inteiro: onde o dia? Retirai Maria, a estrela do mar grande e extenso, i. é., do mundo: que sobrará senão obscuridade e trevas espessíssimas? Que se conclui daí? Se ela está presente, dissipam-se as trevas; se ela está presente, aurora o dia.”
Em quarto lugar, a luz difunde e comunica seu resplendor. A bem-aventurada Virgem difunde e partilha para todos os raios de sua graça. Assim, em Sirácida 24, 19-20: Vinde até mim, vós que me desejais, e abastecei-vos de meus víveres, pois meu hálito é mais doce que o mel etc.. Vinde, i. é, “Passai das vaidades do mundo para mim, que sou cheia de graças”; ou então: “Vinde até mim, abandonai as delícias, que amo a castidade.” De meus víveres,. i. é, das dádivas da graça, abastecei-vos. Não recebereis pouco, senão muito, pois meu hálito é mais doce que o mel, porque a bem-aventurada Virgem é vigilante e misericordiosa com todos. Assim prega Bernardo: “A todos abre a bem-aventurada Virgem os braços da misericórdia, e todos recebem algo de sua plenitude: o doente a cura, o aflito a consolação, o pecador o perdão, o justo a graça; mais ainda, o Filho de Deus recebeu dela a substância da carne, de sorte que não há quem fuja a seu calor.”
Em quinto lugar, a luz é a mãe generosa das cores. Deste modo é a bem-aventurada Virgem a mãe das virtudes. Como as cores embelezam o corpo, assim as virtudes embelezam a alma, porque a bem-aventurada Virgem é a mãe das virtudes. Consta em Sirácida 24, 24: Eu sou a mãe do amor formoso [dilectio], i. é, do amor que leva a Deus. “Dileção” quer dizer “ação de ligar duas coisas”. A Virgem liga-nos a Deus: [Eu sou a mãe do amor formoso] e do temor, por que fugimos ao pecado. Diz [Salomão], em Provérbios 14, 16: O sábio teme e desvia-se do mal. Demais, o Sirácida, em 1, 27: O temor do Senhor baniu o pecado. [Eu sou a mãe...] do conhecimento, i. é, da fé santa, e da santa esperança, i. é, da esperança da beatitude futura. Deste modo escreve Bernardo: “Se em nós há traço de virtude, se existe algo de salvação e graça, sabemos que tudo isso transborda daquela que abunda em delícias. Aqui [em Maria] encontra-se o jardim sobre o qual se dispersa a divina viração que vem do sul, e seus perfumes transbordam em dádivas da graça.”
Em sexto lugar, a luz é das criaturas a mais esplêndida. Assim a bem-aventurada Virgem. No livro [da Sabedoria] 7, 29 se lê: Ela é mais formosa do que o sol, i. é, que o justo que fulge na Igreja Militante; [ela é mais formosa] do que todas as constelações de estrelas, i. é, que os santos da Igreja Triunfante. Comparada com a luz, i. é, com a criatura angélica, ela vence em dignidade e formosura.
Em sétimo e último lugar, a luz é o agrado e a consolação dos olhos. De igual modo a bem-aventurada Virgem é a consolação dos homens. Assim se encontra no [livro da] Sabedoria 7, 10: Eu amei [a Sabedoria] mais do que a saúde, que põe em fuga a doença, e que a formosura de corpo, por que se retira a feiúra, e resolvi-me tê-la por luz de uma boa vida. Os demônios e os perversos detestam a luz, que praz aos bons. Prega Santo Agostinho que “no palato enfermo, o pão é amargo, enquanto é doce no palato saudável; aos olhos doentes, a luz é insuportável, enquanto é amável aos olhos puros”. A luz é amável à inteligência curada pela fé, e desejosa da alma curada pela caridade. Não é de admirar que a bem-aventurada Virgem seja amável, pois se diz dela no livro de Ester 5, 1: Ela era bem feita e de inacreditável formosura, parecendo aos olhos de todos amável e graciosa. De também aquilo dos Provérbios 11, 16: A mulher gentil obterá glória, i. é, a glória eterna, à qual nos conduz Aquele que, com o Pai e o Espírito Santo, vive etc..
Segunda Parte
[Maria é a jóia das almas retas]
Nasceu a luz para o justo, e a alegria para os retos de coração (Sl 97 [96], 11). Dissemos hoje como a bem-aventurada Virgem, em seu nascimento, é luz esplendorosa. Resta falar de como ela é uma jóia para os homens retos, pois se escreve no Salmo: ...alegria para os retos de coração.
Na Santa Escritura, não se promete a jóia aos que fazem prova de retidão, senão aos retos de coração, i. é, aos perfeitamente retos. Poremos de manifesto o significado de Jó 1, 1, de quem se diz: Este homem era sincero e reto, e temia a Deus, e fugia do mal, i. é, do pecado. Em Provérbios 14, 16 doutrina Salomão: O sábio teme e desvia-se do mal. Ao homem com tal retidão se promete a alegria.
Convém notar que existem dois homens: o homem interior e o homem exterior. De acordo com isso, é preciso que o homem perfeitamente reto possua a retidão do homem interior e [a do homem exterior]. O homem interior tem-na dentro d’alma. Ora, possui a alma duas partes, a saber, o intelecto e a vontade. É pois necessário que exista retidão no homem interior; em primeiro lugar, para aquilo que é ato da inteligência [intellectus], porque a retidão consiste no conhecimento da verdade; em segundo lugar, é necessário que exista também junto ao ato da vontade a retidão [affectus], que é a deleitação no verdadeiro bem, pois o conhecimento da caridade retifica a inteligência, e o amor do verdadeiro bem a vontade.
Em primeiro lugar, afirmo que o conhecimento da maior dentre as verdades retifica a inteligência. Assim aquilo do Salmo 72 [71], 1: Quão bom é Deus – i. é, boníssimo – para com os retos, o Senhor para com os puros de coração! Ele é bom, i. é, espalha suas benesses sobre os retos de coração, sobre os possuidores do altíssimo conhecimento da verdade pela fé. A fé é luz particular em vistas ao conhecimento do Senhor e do que lhe respeita. Salmo 125 [124], 4: Senhor, faze bem aos bons – no que respeita à potência afetiva – e aos retos de coração – no que é próprio à inteligência. Está claro agora que, para que o homem seja perfeitamente reto, exige-se a retidão da luz interior, de sua alma, para o que é próprio ao intelecto.
Em segundo lugar, exige-se a retidão do homem interior para o que é próprio ao afeto. Acerca deste gênero de retidão, diz Bernardo que “a retidão da criatura racional é o conformar-se com a vontade divina”. Ora, consiste essa conformidade na caridade, que transforma o amador no ser amado, não segundo a substância, mas na conformidade da vontade.
Igualmente é preciso que tudo seja reto no homem exterior; por isso, se requerem três condições: em primeiro lugar, que seja reto em sua vista e seu olhar; em segundo lugar, que seja reto em sua língua; em terceiro lugar, que seja reto em seu caminhar.
Em primeiro lugar, afirmo que é necessário que o homem exterior seja reto em sua vista e seu olhar. Salomão em Provérbios 4, 25 diz: Os teus olhos olhem direito, e a tua vista preceda os teus passos. Escreve: Os teus olhos olhem direito, não apenas interior, senão que exteriormente, o que é permitido ver; vaticina Gregório: “Não é permitido contemplar o que é interdito desejar.” Também diz: olhem direitos, a saber, os exemplos dos santos e as boas obras dos próximos. E a tua vista etc..: o homem deve abater o olhar em direção aos seres inferiores e humildes. Mas a verdade é que os olhos se alçam, por causa do orgulho e da arrogância do coração; está consignado em Provérbios 6, 16-17: Seis são as coisas que o Senhor abomina, e a sua alma detesta uma sétima: olhos altivos, língua mentirosa. Quando o pavão, que se glorifica da cauda, observa seus pés, imediatamente recolhe a cauda. Do mesmo modo se alguns homens de bem são arrastados pelo orgulho, o que não praz a Deus, contemplem os pés para seu escarmento. Diz-se: teus olhos, no plural, e não no singular; e completa: olhem direito, e não à esquerda.
Em segundo lugar, o homem exterior deve ser reto em sua língua, para o que é próprio ao afeto. De fato, escreve o Apóstolo: Esforça-te por te apresentares a Deus [como um homem] digno de aprovação, como um operário que não tem de quê se envergonhar, que distribui retamente a palavra da verdade (2 Tm. 2, 15). Dirige-se aqui sobretudo a um prelado e, em seguida, num timbre diferente, a todos. Diz: Esforça-te, pela dor de contrição; por te apresentares a Deus digno de aprovação, como um operário que não tem de quê se envergonhar, i. é, que não seja suscetível à vergonha, mas ao louvor e a recompensa. Este é aquele que diz palavras úteis. São os perversos os suscetíveis à vergonha. Dispensando com diligência a linguagem da verdade. Há pessoas que não dispersam diligentemente a linguagem da verdade, a saber, aqueles que predicam em nome da glória, ou da excelência dos bons, ou ainda da vaidade própria. Ao contrário dispensam corretamente a linguagem da verdade os que o fazem em vistas à glória de Deus e à edificação do próximo.
Ouvi falar dum mestre que ensinara teologia por vinte e cinco anos, vinte dos quais exercera, como confessou quando de sua morte, mais em nome da vanglória que por reconhecimento de Deus e edificação do próximo. Mal uso faremos duma bela espada, feita para cortar, caso a tomemos para atiçar o fogo, pois não será utilizada em consideração à finalidade para que foi concebida. De mesmo modo, a palavra da verdade foi concebida para a glória de Deus e edificação do próximo. Serve-se mal quem dela se serve de outra maneira ou para outra finalidade. Daí aquilo do Sirácida 28, 25: Faze uma balança para pesares tuas palavras, i. é, pesa tuas palavras para saber se são ou não para a glória de Deus, se são ou não mofinas a teu próximo; e um freio bem ajustado para tua boca. Um freio está bem ajustado quando ambos os lados estão igualmente firmes; caso um lado esteja frouxo, enquanto o outro firme, então não está bem ajustado. Por vezes, ocorre a uma pessoa em prosperidade conservar corretamente o freio de sua boca, mas durante a tribulação, blasfemar e murmurar. Deles se fala na epístola de Tiago 1, 26: Se alguém, pois, julga que é religioso, não refrando a sua língua, para guardá-la das palavras más e blásfemas, sua religião é vã.
Em terceiro lugar, o homem exterior deve ser reto em sua inteligência. Ensina o Apóstolo, em Hebreus 12, 13: Dirigi os vossos passos pelo caminho direito, para que o que manqueja não se desvie, devido à infidelidade da inteligência, antes, porém, seja sanado, a saber, pela graça de Deus. A afetividade pode fazer alguém manquejar das duas pernas. Assim em 1 Reis 18, 21: Até quando claudicareis vós para os dois lados? Se o Senhor é Deus, segui-o. Manquejam dum pé só os que possuem a fé na inteligência, mas tem aversão ao bem em sua afetividade. Manquejam de dois pés os que cometem infidelidade na inteligência e detestam o bem em sua afetividade, ou os que exultam no tempo de prosperidade, mas murmuram no tempo da tribulação. Por isso afirma o Apóstolo: (Hebreus 12, 13): Dirigi os vossos passos pelo caminho direito etc.., i. é, onde há a paciente humilde, a verdadeira fé, o amor verdadeiro. Se deparamos com um homem reto tanto interior quanto exteriormente, temos nele promessa de alegria.
Mas tu perguntarás por que quem descreveu os retos de coração não fê-lo, do mesmo modo, com os retos de corpo, andar ou olhar? Quando existe a retidão do homem interior, existe a do homem exterior. Mateus 6, 22 diz: Se teu olho for são, i. é, sem marca de duplicidade, todo o teu corpo será luz, o conjunto inteiro de tuas obras será bom e reto. De fato, porque depende o homem exterior do homem interior, limitou-se ele a descrever o homem reto de coração.
Está claro quais são os retos de coração. Sabeis o que fazem os que possuem um coração reto? Ao Senhor reembolsam três coisas: primeiro, reformam a vida; segundo, amam ao Senhor; terceiro, bendizem ao Senhor e lhe rendem graças pelas benesses que Deus lhes concedera.
Em primeiro lugar, afirmo que eles reformam a vida. Assim em Provérbios, o ímpio, o que não tem piedade diante do Senhor nem compaixão diante do próximo, afrouxa a brida, i. é, não modera seu olhar, i. é, seu coração; o reto corrige suas veredas com previdência. Este é o reto de coração, reto em justiça perante o próximo, reto em contemplação perante Deus. Por sua vez, o ímpio não modera seu olhar, de tal sorte que não acolhe os mandamentos de Deus e, se os acolhe, não os pratica.
Em segundo lugar, os retos de coração apegam-se a Deus por amor. Assim no Cântico 1, 3: os retos amam-te. Salmo 17, 5: Os inocentes e os justos se acercam de mim, a saber, pelo fervor e pelo habitus da caridade.
Em terceiro lugar, os retos de coração rendem a Deus graças pelas benesses recebidas, como no último capítulo de Esdras (Neemias 8, 5): Quando Esdras terminou o livro da lei, todos os justos puseram-se de pé. Quando Esdras terminou, i. é, quando Esdras lera e explicara o inteiro teor [da lei] (fala-se de “lei” porque esta nos obriga). Bendisse ao Senhor, o Altíssimo, o Senhor Todo-Poderoso dos Exércitos, e o povo respondeu: “Ámen!”. Em seguida: Reuniram-se todos em Jerusalém para celebrar seu contentamento etc..
Tradução: Permanência
(a partir da tradução francesa)