Skip to content

Espiritualidade (180)

Não há amor maior

“O meu preceito é este: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Não há amor maior que dar a própria vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos se fizerdes o que eu vos mando” (Jo 15,12-14).

 

Nosso Senhor convida seus discípulos a entregar suas vidas a seu amigo. Ele, claramente, ensina que não há amor maior que esse. Seguindo Cristo crucificado, o sacrifício da vida inteira de uma pessoa por amor de Deus, nosso maior amigo, é a maneira mais perfeita de obedecer a Deus. Há muitas maneiras através das quais um homem ou mulher pode aceitar esse mandamento divino da caridade. A vida matrimonial pede, em algum grau, que os esposos sacrifiquem suas vidas por seus filhos e pelo cônjuge. Muitos vivem uma vida celibatária em continência perfeita no mundo, sacrificando suas vidas por alguma obra de caridade. Os soldados também, de uma maneira especial, sacrificam suas vidas pelo seu país. Porém, duas das maneiras mais perfeitas de “entregar sua vida” ao próximo são a vida religiosa enclausurada e a vida de um missionário. Esses dois estados de vida, em essência, construíram a Cristandade.

O missionário edifica a Cristandade de dentro para fora. Da ordem espiritual das almas advém a ordem necessária para o avanço material da sociedade. O verdadeiro objetivo de toda a atividade missionária é a santificação das almas. Apenas após estabelecer a prática geral da virtude, o missionário pode começar a ver os benefícios materiais da sociedade. Se o canibal não parou de comer seu próximo, ou se o bárbaro não parou de guerrear e pilhar os inocentes, não pode haver nenhuma harmonia real ou qualquer tipo de estrutura na sociedade. O pecado e o vício, que são frutos do amor-próprio desordenado, são os elementos mais poderosos de autodestruição em qualquer sociedade. A alma pagã deve, em primeiro lugar, reconhecer que Deus tem o direito de pedir a ele grandes sacrifícios na sua vida pessoal. Apenas então ele será capaz de pensar em seu próximo caridosamente.

É aqui que a vida contemplativa vem em auxílio do missionário. Nenhum ser humano pode entrar no coração do homem. A vida interior de uma alma pertence, exclusivamente, a Deus, nosso Criador. Pelo sacrifício de sua vida inteira, o religioso impetra a Deus pela salvação das almas. Através das orações e dos sacrifícios dos religiosos, Deus adentra a esterilidade da terra inculta das almas e dá-lhes sua graça, usando o missionário como seu instrumento. O missionário não pode adentrar a alma de seu fiel, tampouco pode o contemplativo, mas Deus, como Mestre daquela alma, tem direito de entrada.

Em 1985, Dom Marcel Lefebvre abençoou a clausura das irmãs carmelitas nos Estados Unidos. Em seu sermão, ele explicou a vida de um mosteiro carmelita: “O Carmelo é uma casa de sacrifício e oração”. A casa ilustra a vida comum dos religiosos contemplativos vivendo na “casa” de sua comunidade. O sacrifício de suas vidas inteiras é derramado ao pé da Cruz em união ao sacrifício de Nosso Senhor. Suas mortificações purificam não apenas as suas almas, mas as dos seus próximos. Suas orações são oferecidas pela glória de Deus e pela salvação das almas. Elas unem-se, intimamente, às orações dos padres missionários, quase compartilhando da oração do Pai mencionada pelo profeta Joel: “Chorem os sacerdotes, ministros do Senhor, postos entre o vestíbulo e o altar, e digam: Perdoa, Senhor, perdoa ao teu povo, e não deixes cair a tua herança em opróbrio, de sorte que as nações a dominem”

O Reino de Deus funda-se sobre esse espírito, sejamos nós leigos, religiosos ou missionários. Infelizmente, o mundo moderno, construiu a “Cidade dos homens decaídos” ao negar esses valores. A família moderna pode ter uma casa confortável como moradia, mas eles, frequentemente, não têm um lar familiar. A ideia do sacrifício foi eliminada de suas confortáveis vidas, nas quais o prazer é o único objetivo real de sua existência. A oração foi substituída por reclamações, desespero e uma espécie de zombaria de Deus. Nossa sociedade moderna construiu uma civilização sobre as ruínas da noção católica de Cristandade. Estabelecemos uma morada confortável na qual os pais abortam seus filhos e praticam eutanásia para matar seus próprios pais, na qual a sensualidade do prazer pessoal é o ponto de referência para todas as decisões a serem tomadas, e na qual uma blasfêmia desesperadora zomba de nosso Criador. A “casa de sacrifício e oração” tornou-se um “abrigo de sensualidade de blasfêmia para os desabrigados”.

Nosso Senhor ensina que o Reino de Deus está dentro de nós. Ele também nos ordena buscar, primeiro, o Reino de Deus, e todas as outras coisas nos serão dadas. Para a reconstrução da Cristandade, devemos, primeiramente, estabelecer Nosso Senhor como Rei de nossas almas, tornar-nos seus amigos e entregar nossas vidas a Ele. Devemos viver continuamente na sua “casa de sacrifícios e orações”.

A Cristandade, ou o reino espiritual, é a real edificação da civilização. “Santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso Reino, seja feita Vossa vontade assim na terra como no Céu...”

(Revista The Angelus, Julho-Agosto de 2020. Tradução: Permanência)

Teresinha, templo de Deus

(No dia 11 de julho de 1937 encerrava-se em Lisieux o 11° Congresso Eucarístico Nacional da França com a consagração da Basílica dedicada a Sta. Teresinha.

O Papa Pio XI, devotíssimo da santa, tencionava pessoalmente presidir as cerimônias. Devido ao precário estado de saúde não conseguiu realizar o seu ardente desejo.

Enviou, então, como Legado Papal, o Cardeal Eugênio Pacelli, o futuro Papa Pio XII. Da admirável alocução do Cardeal Pacelli na consagração da Basílica destacamos o trecho onde enaltece Teresinha).

 

AS ROSAS PARA PIO XI

No alto da nova basílica, brilha a cruz triunfante iluminada pelo sol de junho. No alto do edifício espiritual é também a cruz que a vós se oferece na pessoa do Papa representada, aqui, por seu humilde delegado.

A cruz, porque “se todos que piedosamente querem viver no Cristo sofrem perseguição” são particularmente penosas para o coração do Pontífice atual e lhe arrancam queixas pungentes e solenes protestos as que, em diferentes países, sofrem seus filhos. Mas, nem a violência sacrílega das massas encegueiradas por falsos profetas nem os sofismas dos doutores da impiedade que desejariam descristianizar a vida de todos puderam vencer a resistência e aprisionar a palavra e a pena deste intrépido ancião.

No entanto, e bem o sabeis, fazem alguns meses que a seus sofrimentos morais somaram-se sofrimentos físicos. Nesses dias, a grande família católica por inteiro, de um extremo a outro do mundo, voltou-se com filial ansiedade para o leito de sofrimento do Pai comum prostrado por dores agudas suportadas com grandeza heróica e sobrenatural, com coragem viril e cristã. Cada manhã seus olhos acompanhavam os telegramas dos jornais; cada noite seus ouvidos abriam-se para o jornal falado difundido pelo rádio; pela manhã e à tarde e mesmo durante a noite uma oração constante partindo dos lábios e do coração de 300 milhões de fiéis animava o mundo a elevar-se, com o incenso de sacrifícios, diretamente ao coração de Deus. Invocava-se esse Coração divino pela intercessão de sua Mãe “a suplicante toda poderosa”, invocavam-se pela intercessão dos santos e das santas, sobretudo daqueles que parecem ser os canais das graças milagrosas. Assim foi principalmente ela a invocada, esta querida santa de Lisieux, por quem o Papa, e se sabia, sentia tão terna e confiante devoção. E veio a consolação depois da cruz. Quando a Igreja festejava a ressurreição do Senhor, a doença alivia o cerco e o Pontífice como que ressuscitando para uma nova vida, surpreende o mundo com a publicação quase simultânea de três Encíclicas.

Foi por um sentimento de especial gratidão para com a taumaturga de Lisieux que, não podendo comparecer pessoalmente, como desejaria, às jornadas festivas em sua homenagem, o Soberano Pontífice Pio XI fez-se representar por um embaixador especial: “Legatus a latere”, diz o que traduziríamos, nesta circunstâncias, como o mensageiro do seu coração tocado de indizível gratidão.

Esse embaixador que o Soberano Pontífice vos envia carregado de suas bênçãos paternais, ele não o quer de volta com as mãos vazias: “Traga-Nos três rosas de Lisieux, recomendou-lhe, que dizer três graças especiais que imploramos à querida Santinha. E não é trair a confiança e revelar-vos, para que imploreis com o Supremo Pastor, as três graças que ardentemente ele suplica. Permanecendo fiel ao gracioso símbolo que Sua Santidade escolheu, parece-me entrever Teresa do Menino Jesus cultivando, no Carmelo e para o Papa que a elevou aos altares, as três rosas que lhe pede. Vamos recebê-las de suas suaves mãos para levá-las à Sua Santidade.

Por primeiro a rosa vermelha rodeada de espinhos. Sim, é a imagem da primeira graça solicitada pelo Santo Padre: uma perfeita e filial conformidade com todos os desígnios de Deus mesmo que se cumpram no sofrimento.

Segundo, a rosa cor-de-rosa de pétalas rijas e numerosas, a primeira a abrir-se e a que ainda viceja nos dias de outono quando as outras já fenecem. Simboliza o desejo do Santo Padre de recuperar as forças e o vigor físico; não para fugir à dor, “non recuse dolorem”, mas para ainda trabalhar, “peto laborem”, com a magnífica energia que durante tantos anos pôs a serviço de Deus e do bem das almas!

Terceiro a rosa branca de cálice amplo e perfumado, a que justifica o seu título de rainha das flores, abrindo generosamente suas pétalas de veludo acariciante e imaculado, envolvendo-se de perfume ora vivo ora suave. Com essa magnífica flor permitimo-nos simbolizar o desejo do Santo Padre de santidade de vida e de zelo fervoroso para o clero secular e regular, chamando à salvação das almas a partir da própria santificação.

 

TERESINHA, TEMPLO DA LEI DE DEUS

Há um terceiro templo, uma terceira casa de Deus entre os homens que, certamente, não nos cabe dedicar ou consagrar Deus, já que Ele mesmo o fez, mas exaltar e glorificar no dia de hoje. Essa casa de Deus é a alma de vossa encantadora Santa Teresa do Menino Jesus.

Por humilde que fosse, por pequenina que desejasse ser, a alma da Santa Teresa foi um imenso e magnífico templo. Assim como a basílica que hoje se eleva em sua honra, ela abrigou, em si, a lei divina, a graça, a Eucaristia e podemos dizer, a totalidade dos fiéis, a Igreja. Foi, portanto, a casa viva de Deus entre os homens. “Ecce Tabernaculum Dei cum hominibus”. Já não sabemos que, segundo a doutrina do grande apóstolo São Paulo (1 Cor. 111, 16-17), cada um de nós é o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em nós? “Nescitis quia templum Dei estis et Spiritus Dei habitat in vobis?... Templum Dei sanctum est, quod estis vos”. É esta a nossa grandeza e a nossa mais alta dignidade. Feitos à imagem e semelhança divina, trazemos na fronte um raio celeste que conservamos, mesmo decaídos, testemunha de nossa sublime origem e que nos torna belos e grandes no mundo material que nos rodeia; grandeza e dignidade que se projeta para além do tempo penetrando a eternidade; preciosa aos olhos de Deus pois custou o sangue de um Deus. É ela que lava e purifica nosso espírito; por ela nossas almas marcadas em íntima união com a graça e a caridade que o Espírito Santo transborda em nossos corações tornam-se o edifício espiritual construído nos alicerces dos apóstolos e dos profetas tendo por pedra angular o próprio Jesus Cristo: “Superrædificati super fundamentum Apostolorum et Prophetarum, ipse summa angulari lapide Christo Jesu” (Ephos. 11,20); sobre esta pedra fundamental todo edifício bem projetado eleva-se como templo santo para o Senhor, sobre ela somos transformados pelo Espírito em habitação de Deus: “In quo emnis ædificatio constructa crescir in templum sanctum in Domine, in que et vos coædificamini in habitaculum Dei in Spiritu” (Ephos. 11, 21-22), o Espírito de vida, de verdade de caminho para o céu.

 Deus hoje habita em seus templos, dizíamos há pouco, não como naqueles em que outrora repousavam insensíveis e inertes as tábuas da lei antiga – mas pelos ministros do seu poder, pelos mandatários de sua jurisdição que em nossas igrejas promulgam sua Lei e sancionam sua observância. Assim essa lei divina aí permanece viva e atuante guiando as almas no caminho da retidão e da pureza fora dos quais a natureza fraca e corrompida não  conhece senão descaminhos e vergonhas.

            A Lei de Deus assim foi, viva e ativa, na alma de Teresa. Como a outra Virgem, de quem nos falam os Atos “que trazia sempre no peito o Evangelho do Senhor” Teresa trazia sempre presente em sua alma e seu coração, a Lei e os conselhos divinos de seu bem amado Jesus Cristo.

           

TERESINHA, TEMPLO DA DOUTRINA DE DEUS

Ela lhe conhecia os segredos muito além do que aprendera pela leitura e pelo estudo. Contudo, não descuidou de instruir-se. O mesmo Soberano Pontífice que nos diz: “Agradou-se a Divina Bondade dotando-a e enriquecendo-a de um dom de sabedoria excepcional” declara também: “Ela buscou fartamente nas lições de catecismo a pura doutrina da fé; a do ascetismo no livro de ouro da Imitação de Cristo; a da mística nos escritos de seu Pai, São João da Cruz. Sobretudo nutria seu espírito e coração na meditação das Sagradas Escrituras; e o Espírito da verdade ensinou-lhe o que habitualmente esconde aos sábios e aos prudentes e revela aos humildes. Ela adquiriu uma tal ciência das coisas sobrenaturais que foi capaz de traçar para os outros um caminho seguro de salvação”.

Traçar m caminho, um “caminhozinho”. Sua ciência das coisas divinas, em parte adquirida, em parte infusa, ela não a guardou para si. Disse: “Minha missão é de ensinar a amar a Deus como eu O amo e de entregar meu ‘caminhozinho’ às almas”. É este um dos mais maravilhosos ângulos dessa figura tão atraente: a carmelitazinha, que do fundo do seu convento dá lições ao mundo do nosso século tão orgulhoso de sua ciência. Ela tem uma missão; tem uma doutrina. Mas sua doutrina, como ela mesma, é humilde e simples; resume-se em duas palavras: “Infância espiritual” ou em sua equivalente: “Caminhozinho”.

Não temos nós o Evangelho ensinando-nos há vinte séculos que “o Reino do Céu pertence às crianças e aos que a elas se assemelham”? O mestre o disse; doutores e santos comentaram sua palavra; mas para confirmá-lo objetivamente, como de todos o mais claro e decisivo comentário, temos a aplicação literal e integral desse princípio na orientação de uma vida inteira que por este “caminhozinho” elevou-se, em poucos anos, à maior e mais alta perfeição.    

É sobretudo por ele que Teresa ilumina e subjuga tantas almas. “Ela fascina o mundo pela magia do seu exemplo” diz Pio XI. Porque, depois de adquirir a ciência das coisas divinas, compreendeu o que Bossuet chama a “desgraça de toda ciência que não termina no amor”. Sua ciência de Deus levou-a a amá-Lo ilimitadamente do momento em que foi capaz de conhecê-Lo.         Apesar de, desde os três anos de idade jamais haver-Lhe recusado qualquer coisa. Foi sobre um ato de amor que, despertou sua alma; foi sobre um ato de amor que se cerraram seus olhos e seu coração quando murmurou no último suspiro: “Meu Deus, eu vos amo!” No entanto o amor não terminava com a vida; sua mensagem e sua missão não terminariam também. “Sinto, dizia pouco antes de morrer, que minha missão vai começar”. É impossível à palavra humana descrever o alcance desta missão e dos seus resultados.

O gênio brilhante de Agostinho, a sabedoria de Tomás de Aquino, projetaram sobre as almas raios de indestrutível clareza; por eles, o Cristo e sua doutrina são melhor conhecidos. O poema vivido por Francisco de Assis mostrou ao mundo uma imitação, até então inigualada da vida de Deus feito homem. Por ela legiões de homens e mulheres aprenderam a melhor amá-Lo. Porém, uma carmelitazinha, apenas chegada à idade adulta, conquistou, em menos de meio século, incontáveis falanges de discípulos. Em sua escola os doutores da lei tornaram a ser crianças; o supremo Pastor a exalta e reza a seus pés em humilde e assídua súplica; e agora mesmo, de um extremo a outro do mundo, há milhões de almas beneficamente influenciadas pelo livrinho: A história de uma alma.

Tinha muita razão dizendo a nossa querida Santa: “Sinto que minha missão vai começar. Minha missão é dar meu ‘caminhozinho’ aos outros”.

 

TERESINHA, TEMPLO DA GRAÇA

A alma de Teresa, templo da lei divina, luminosamente conhecida, amorosamente observada e ardentemente ensinada aos outros, foi também a habitação da graça, isto é, do próprio Deus.

Lembrávamos há pouco: todo homem nascido, privado por triste herança das predileções divinas porém remido pela Incarnação e morte de Jesus Cristo, pode, pelo batismo, voltar a ser filho de Deus. Torna a sê-lo mesmo depois das quedas do pecado pessoal desde que, na sinceridade de sua vergonha e dor, recorra aos méritos infinitos da Redenção.

Tudo é mistério da graça, participação real porém invisível da invisível natureza de Deus. É o mistério dos Sacramentos, sinais sensíveis dessa graça. É o mistério da incorporação do cristão a Jesus Cristo e da habitação, em nós, das três pessoas divinas. Toda alma em estado de graça é a casa de Deus.

Ora, essa graça do batismo, não somente Teresa nunca a perdeu pelo pecado como ainda sempre aumentou o seu tesouro por atos de amor e por mais íntima união com Aquele que é o seu autor e seu princípio: “Meu céu, eu o encontrei na Santíssima Trindade que mora em meu coração prisioneira do amor”.

Era assim que gostava de cantar.

Apesar dessa misteriosa união com Deus escapar às nossas avaliações e pobres medidas humanas, sabemos que pode não somente existir ou desaparecer como aumentar ou diminuir segundo a resposta da alma às suas sucessivas influências. Ações poderosas mas tão suaves que são chamadas toques da graça; ações divinas mas tão respeitosas da liberdade humana que qualificam-nas de chamados. Enfim, ações que, mesmo atuando em nós em conseqüência de uma operação extrínseca, de um ato realizado independente de nós mesmos (ex opere operato) terão maior ou menor eficácia dependendo da colaboração que nossa alma lhes der.

É por esta razão que, se a plenitude da divindade não habitou senão em Jesus pela união pessoal com uma natureza humana, os santos doutores sempre se extasiaram contemplando a morada de Deus na Virgem-Mãe. Porque Ela, cheia de graça desde o momento de sua concepção imaculada, não cessa durante toda sua vida mortal de aumentar seu tesouro por uma conformidade perfeita do seu querer com o querer divino, por uma correspondência absoluta e incessante a todos os chamados de Deus.

Sem atingir as alturas que o Filho de Deus reservou a sua Mãe, estamos seguros que Ele permitiu uma familiaridade incomum a esta alminha de criança para a qual jamais existiu outro prazer e outro querer que não fosse o prazer divino. Se alguém me ama, disse Ele, guardará minha palavra e meu Pai o amará; e viremos a ele e nele estabeleceremos a nossa morada. Ecce Tabernaculum Dei cum hominibus.

 

TERESINHA, TEMPLO EUCARÍSTICO

Teresa foi um tabernáculo sobretudo por sua devoção eucarística. Como no templo material onde tudo existe em função do altar e do viático, assim na alma de Teresa, templo espiritual de Deus, o lugar de honra e de predileção sempre pertenceu a Jesus-Hóstia.

Quando pequenina, querendo participar das lições de catecismo e dos encontros piedosos de suas irmãs mais velhas dizia que “quatro anos não são demais para preparar a primeira Comunhão”.

Conheceis seu cândido amor pelas procissões do Santíssimo Sacramento quando, na alegria de atirar flores a Jesus cuidava de jogá-las bem alto para que, ao caírem, tocassem o ostensório. Sabeis que durante a preparação próxima da Primeira Comunhão pressentiu as alegrias secretas da vida conventual fazendo também a experiência do sacrifício, multiplicando as orações e os atos de renúncia. Em dois meses anotou num caderninho recebido de Carmelo o total de 818 sacrifícios e 2.773 aspirações ou atos de amor.

Sabeis, por fim, o que disse do seu primeiro encontro com Jesus-Hóstia: “Sim, foi um beijo de amor! Sentia-me amada e dizia: Eu te amo, eu me entrego para sempre! Jesus nada pediu-me, nem ao menos um sacrifício. Há muito tempo Ele e a pequena Teresa olhavam-se e compreendiam-se. Nesse dia, nosso encontro não foi um olhar mas uma fusão. Não éramos mais dois. Teresa desaparecera como a gota d’água no oceano. Jesus permanecia só”.

Sim, hóspede único na alma de Teresa, tabernáculo de sua escolha. Quem saberá as confidências trocadas no mistério desse tabernáculo? Eram ingênuas e ternas pois que o alimento substancial dos que a conhecem e lutam mas também o primeiro alimento dos pequeninos, o angélico bocado das almas de criança. Eram sérios e profundos pois que Teresa, à sua inocente e virginal ternura, somava imenso respeito pela Hóstia da qual procurava com o olhar as imperceptíveis parcelas na patena que volta à sacristia envolvendo-as de homenagens e chamando outras irmãs para adorá-las à espera do sacerdote que vinha recolhê-las. Eram sinais significativos já que numa época em que restos de jansenismo conservavam as almas sonolentas de um falso respeito que as distanciava da comunhão, Teresa sentia uma fome imperiosa deste pão cotidiano e consolava-se de sua privação forçada pelo aviso profético dos decretos salvadores que abriram para as almas o acesso à Mesa Santa. Eram íntimos e sublimes, inacessíveis à palavra pois que, desde a sua primeira Comunhão compreendeu o poder redentor do sofrimento humano unido ao sofrimento do Cristo e pede a Deus que “transforme em amargura qualquer consolação terrena”. Foi magnificamente ouvida. Seu caminhozinho, por ser coberto de rosas, foi ainda mais rico em espinhos: espinhos das dores físicas da doença, espinhos da incompreensão e, por vezes, da contradição, espinhos mesmo do aparente abandono do Bem Amado que, no leito de morte lhe arrancaria esta confissão: “É agonia pura, sem sombra de consolação”.

Em cada uma de suas sucessivas comunhões Deus fê-la aprofundar pouco a pouco mais o mistério da dor redentora. O amor que a devorava e sua sede de reparação dela fizeram uma hóstia viva unida à Hóstia perpetuamente oferecida. Da Hóstia divina parecia ter copiado a aparência exterior da brancura e fragilidade não apenas pela candura angélica de sua alma que lhe transfigurava a fisionomia mas também pela palidez de seus traços desfeitos. Estava no fim de suas forças, gravemente enferma quando, um dia, arrastou-se até a capela para a missa e a comunhão; como uma irmã apiedava-se vendo-a tão fraca replicou: “Não acho que seja muito sofrimento para ganhar uma comunhão”.

Assim foi, a vida inteira, o que desejara ser quando visitara a santa casa de Lorette: “O templo vivo de Jesus”.

 

TERESINHA, TEMPLO DA IGREJA UNIVERSAL

Um último traço fazia da alma de Teresa a casa de Deus, Templo da lei e da doutrina divina, templo da graça sobrenatural, tabernáculo vivo de Jesus-Hóstia, ela era também, pela amplitude dos seus desejos, o templo da Igreja Universal; “Ecclesia Dei”. Escutemos o que ela mesma diz de suas ações de graça: 

“Imagino minha alma como um terreno disponível e peço à Virgem Maria que dele remova os detritos das imperfeições; a seguir peço que Ela mesma nele erga uma grande tenda digna do céu e a guarneça de seus enfeites. Convido os anjos e santos para que venham cantar cânticos de amor. Parece-me, então, que Jesus fica contente vendo-se magnificamente recebido e eu compartilho de sua alegria”.

Eis a Igreja triunfante descendo à alma de Teresa. Veremos nela a Igreja padecente? Sem duvida, pois que dela não poderia Teresa desinteressar-se. Todavia, estas almas já ao abrigo do pecado e próximas da visão beatífica pareciam-lhe mais objeto de inveja que de pena: “Não quero, dizia ela, que peçam a Deus para me livrar das chamas do purgatório. E Santa Teresa d’Ávila declarava às suas filhas que queriam por ela rezar: ‘Que importa ficar, até o fim do mundo, no purgatório se por minhas orações posso salvar uma única alma?’”.

A Igreja militante sempre existiu na alma de Teresa pela união de solidariedade que une todas as almas em estado de graça, como membros de um mesmo corpo. Porque devem ser e são inseparáveis os membros que participam de uma só e única vida: ora, nossa vida é o Cristo, a graça de sua Redenção sangrenta tornada sangue espiritual de nossas almas.

Contudo, a massa branca dos eleitos não satisfaz Teresa e o templo de seu zelo projeta-se mais além. Porque o Cristo morreu por todos os homens ela desejaria salvá-los, a todos. Assim como Paulo de Tarso, não podia pensar sem lágrimas de dor que “o Cristo tem inimigos”; e como Francisco de Assis não se resignava vendo que “o Amor não é amado”.

Eis porque salvar almas conduzindo-as ao conhecimento e ao amor de Jesus Cristo foi sua mais ardente aspiração. “O amor de Deus, o amor de Jesus, dela dirá Pio XI, inspiravam-lhe magníficos gestos de apóstolo e de mártir”.

 Desejou o carmelo de Hanói para estar mais próxima do terreno missionário. E sua vida passa-se em Lisieux, na oração e no silencio. Muitas vezes nossos olhos detiveram-se sobre a sacristia aparentemente absorvida em preparar o cálice e o missal para a missa da comunidade. Facilmente acreditaríamos que seus horizontes espirituais limitavam-se aos muros brancos da capela ou, no máximo, aos da clausura que limita os jardins silenciosos do convento. Como nos enganaríamos!

Quando no Natal de 1886 iniciou o que chamava o terceiro período de sua vida, “o mais belo de todos, o mais cheio de graças do céu”, Jesus maravilhosamente transforma essa vida espiritual já inteiramente votada a seu serviço, ou fazendo de Teresa, segundo ela mesma diz, “um pescador de almas”. Na muda contemplação das mãos divinas trespassados por nós e tantas vezes derramando seu sangue inutilmente sobre a terra, compreendeu, um dia, a grito ansiado do Redentor: “Tenho sede!” “Desde então, diz ela, desejei dar de beber ao Bem Amado; senti-me devorada pela sede de almas... e quanto mais Lhe dava a beber mais aumentava a sede de minha pobre alminha e recebia essa sede ardente como minha recompensa”.

Refletindo sobre o dia 8 de setembro quando, segundo suas próprias palavras, tornou-se “a esposa do Rei dos céus” acrescentava: “Seu único objetivo era salvar almas sobretudo almas de apóstolos. A Jesus, seu divino Esposo pedia para si particularmente o ter uma alma apostólica. Não podendo ser sacerdote desejou que, em seu lugar, um sacerdote recebesse os dons do Senhor e que sentisse os seus desejos”.

Bem sabia que, se as aspirações e desejos dos missionários podiam ser os seus, sabia também que os meios de ação deveriam ser diferentes: “Para eles, as armas apostólicas; para mim, a oração e o amor... Trabalhar para a salvação das almas é o objetivo que me levou a ser carmelita. Não podendo ser missionária pela ação quis sê-lo pelo amor e pela penitência”.

Começou ainda criança. Sua primeira conquista, lembrai-vos, foi um celebre condenado à morte. Não acabou nunca de rezar e de se imolar pelas almas: sua última comunhão, dia 19 de agosto de 1897, na festa de Santa Jacinta, foi oferecida por um bem conhecido apóstata.

Entre essas duas comunhões, quantas outras almas teria salvo durante a sua vida, pelo sacrifício e pela oração? Só Deus sabe e esta será sem dúvida, uma de nossas maravilhosas surpresas, no céu.

Mas, ainda era pouco para o seu amor. “Gostaria de salvar almas mesmo depois de minha morte... Desejaria ter no céu o mesmo que na terra: amar Jesus e fazê-Lo amado. Espero não ficar inativa lá em cima. Meu desejo é ainda o de trabalhar pela Igreja e pelas almas. É o que peço ao bom Deus e estou certa que me ouvirá”.

O que se seguiu à sua morte, canta pelo mundo inteiro o quanto Ele há quarenta anos a ouve e ouvirá sempre. A epopéia de suas conquistas apostólicas orquestradas pela voz das nações, ecoa de um pólo a outro; a santa Igreja, ela mesma, modulou o tema e ritmou o compasso abreviando todos os prazos canônicos para elevar Teresa aos altares e proclamando – a pequena contemplativa morta aos 24 anos! – Padroeira universal das Missões.

Como sois grande, pequenina Santa! E numerosa é vossa família espiritual. Sois grande, pequenina alma! Pequeno tabernáculo de Deus vivo entre nós, tornaste-vos o refúgio da humanidade que reza, que sofre, que milita e que cada dia a vós recorre!

Nos hinos que em vosso louvor se elevam parece-me ouvir um eco daquele que cantava Isaías à glória da nova Sion: “Gritem de alegria... transbordem de satisfação! Conquistem o espaço e ampliem muito a tenda. Não lhe neguem o aumento. Soltem-lhe as cordas e que os piedosos as sustentem. Porque te expandirás à direita e à esquerda; e tua posteridade tomará posse das nações e povoará as cidades desertas”.

Cada dia vós acolheis, ó Teresa! Legiões de crianças que vos consagram sua inocência, virgens que vos seguem na clausura, doente a quem dais ou saúde ao corpo ou o admirável heroísmo de vossa conformidade com o querer do Amor misericordioso. Sois vós que sustentais os missionários nas fadigas e decepções de seu apostolado distante; vossa imagem trouxe-lhes o sorriso na frigidez dos “isbas”, na aridez das choupanas, na imensidão dos desertos de areia, dos oceanos e até nas nuvens e nas alturas do firmamento.

Pequeno templo de Deus, sois o templo imenso de uma humanidade conquistado por vós. Ecce tabernaculum Dei cum hominibus.

 

(Tradução de Maria Helena Pinto Fraga).

Glória a São Miguel

Pe. Xavier Beauvais, FSSPX

Nosso glorioso arcanjo recebeu do Senhor uma multidão de privilégios na Igreja triunfante. Seu amor pelos anjos o faz merecer o belo título de "Pai dos anjos ”, porque, segundo São Jerônimo, no céu, os anjos que cuidam de outros anjos, são chamados de pais dos anjos. O dever de um pai é alimentar seus filhos. O célebre arcanjo, zelando pela honra de Deus e da salvação dos anjos, alimentou-os com caridade, protegeu-os do veneno do orgulho.

É por isso que os anjos o reverenciam e o honram como seu pai. Ele os apoiou e os salvou da perdição. E como pai extremoso, ele os alertou para não se deixarem cegar pela idéia de uma revolta, e os confirmou na fidelidade a Deus. Ele pode lhes falar como São Paulo falava aos primeiros cristãos: "Eu vos gerei na fidelidade e reconhecimento para com o Criador, na firmeza, na fé aos mistérios revelados, na coragem de resistir à tentação de Lúcifer”.

A grandeza do glorioso São Miguel se manifesta também pelo fato dele ter sido no céu, o apóstolo dos anjos. Santo Tomás e São Boaventura pensam que os anjos de uma ordem superior instruem, iluminam e comunicam no céu as suas perfeições aos anjos de uma ordem inferior. Eles os instruem, ao lhes fazer conhecer o que que não conheciam; eles os iluminam ao lhes comunicar sua maneira mais perfeita de conhecer; eles se tornam mais perfeitos, ao tornar mais profundo seus conhecimentos. Assim como na Igreja há apóstolos, profetas e doutores para iluminar e para aperfeiçoar os fiéis, da mesma forma, há entre os anjos várias ordens para que os superiores sejam guia e luz para os inferiores. A nota particular de São Miguel é a de iluminar os anjos. Ele o fez quando Lúcifer quis conduzi-los ao pecado da revolta, tendo já havia conseguido convencer um grande número deles a atribuir a si próprios e não a Deus, a grandeza e a magnificência de suas naturezas, e a se julgarem capazes de desfrutar da bem-aventurança eterna sem o auxílio divino. Houve uma luta nos céus: Lúcifer de um lado, cheio de orgulho junto aos anjos rebeldes, desejando ser semelhante a Deus, seduzindo e liderando em seguida uma grande parte das tropas angelicais sob o estandarte da revolta, proferindo seu grito de guerra contra Deus, com o propósito de derrubar seu trono. São Miguel, por sua vez, chefiou os anjos e gritou: "Quem é como Deus?", ou seja, quem é tão ousado a ponto de pretender se assemelhar a Deus?

São João chama este combate de "uma grande guerra", grande pelo local onde ocorreu, pela qualidade dos combatentes, por seu número e motivo.

Esta guerra foi declarada para derrubar Deus de seu trono e pela recusa a reconhecer ao Filho de Deus na encarnação futura. Guerra cujo resultado será a vitória de São Miguel e a precipitação dos anjos rebeldes nos abismos.

Pai dos anjos, Apóstolo dos anjos, Chefe da milícias angélica ... Depois de Lúcifer ter caído do céu por seu pecado de orgulho, São Miguel ocupa o seu lugar e torna-se o chefe dos anjos bons, como Lúcifer se tornou o chefe dos anjos rebeldes. É por isso que a Igreja chama São Miguel de "o chefe da milícia celeste”, ou, como São Luís de Gonzaga: "O capitão invencível dos exércitos celestiais" e novamente, chefe dos chefes dos anjos, de acordo com a palavra de o arcanjo Gabriel ao profeta Daniel. "Miguel, primeiro dos principais chefes ”. A Sagrada Escritura nos prova por fatos essa primazia.

São Miguel ordena ao arcanjo Gabriel de explicar a visão a Daniel. Este último obedece imediatamente, embora seja um dos maiores entre os espíritos angelicais. Por este primado, São Miguel supera em dignidade a todos os anjos e a todos os reis da Terra. São Miguel exerce sua primazia sobre os nove coros dos anjos.

Ele reina não apenas sobre as nações, sobre os humanos, mas também sobre o coro dos anjos. Deus, na verdade, marcou São Miguel com o selo de sua grandeza.

Ele também é o Patrono dos anjos da guarda. A autoridade de São Miguel é tão extensa que cabe a ele dar para os homens os anjos da guarda, como escreveu São Bruno. Ele possui esse encargo por duas razões: primeiro por ser o chefe de todos os anjos e o vigário de Deus -- é por isso que governa os anjos e dá a cada um deles ofício e ministério. Segundo por ter recebido o governo dos homens e dever, portanto, defendê-los, protegê-los por meio dos anjos da guarda. É com grande amor que São Miguel guarda os fiéis, aqueles que vivem de acordo com a fé. Desde o nosso nascimento ele designa um anjo encarregado de guardar e defender nossa própria pessoa, de todos os males físicos e morais (com o concurso nossa cooperação). Devemos respeitar sua presença e ouvir a sua voz, encarregado que são também de nos guiar.

Enquanto o demônio, no dizer de São Pedro, ainda ronda ao redor de nós como um leão faminto, procurando por sua presa e tentando devorá-la, São Miguel, pai atencioso e amigo vigilante está sempre pronto para o combate, envia os anjos para repelir o inimigo infernal e seus ataques. O afeto dele para os fiéis, supera o dos anjos, porque cuida de todos os homens, e, não contente em enviar os anjos, ele próprio cuida das necessidades particulares de cada um. Ele dá ordem aos anjos para tomarem a defesa dos fiéis, aquele que Daniel chama de "vigilante".

Cabe-nos, portanto, implorar incansavelmente a ajuda de nosso grande arcanjo São Miguel, para uma renovação nacional.

A França, que tantas vezes foi-lhe consagrada, não perdeu o benefício desta consagração. É uma devoção eminentemente católica, como disse o Bispo de Bois de la Villerabel, e profundamente francesa.

São Miguel, é a indignação, a rebelião da inteligência e do coração em face daquilo que nem razão nem o coração pode admitir sem negar a si mesmo. Ele é aquele que nos defende na luta pela fé, na luta pela nossa identidade católica e nacional. -- São Miguel, defendei-nos no combate para não perecermos na hora do juízo.

Tenho sede!

Charles Journet

 

Na Quinta-feira Santa Jesus dissera a seus discípulos: “Tenho desejado, ansiosamente, comer convosco esta páscoa, antes de sofrer” 1. Como pôde desejar assim a páscoa na qual vão começar sua agonia e Paixão? A resposta secreta está contida numa só realidade: desde a sua entrada no mundo2, Jesus está devorado e consumido pelo desejo de reparar a ofensa infinita feita a Deus pelo pecado, e abrir aos homens as fontes do perdão prometidas pelo profeta3. A aproximação do suplício sangrento da Cruz, pelo qual todas as coisas na terra e nos céus vão-se reconciliar4, traz-Lhe misterioso reconforto.

A sede do desejo que atormenta a Jesus é salientada por Santo Agostinho nos seus comentários sobre os salmos: “Desejaria o Cristo realmente comer quando procurava os frutos da figueira, para apanhá-los se os encontrasse?” 5. Desejaria Ele, realmente, beber, quando dizia à mulher de Samaria: Dai-me de beber? E quando disse, sobre a Cruz: Tenho sede? Do que teria o Cristo fome? Do que teria sede, senão de nossas boas obras?” 6. E ainda: “Que haverá de mais evidente que os homens devem ser atraídos pelo batismo para esse corpo da cidade de Jerusalém, da qual era imagem o povo de Israel... Até o fim, esse corpo estará sedento: caminha e tem sede. Acolhe multidões nele, jamais, porém cessará de ter sede. Daí provém a palavra de Jesus: Tenho sede, mulher, dá-me de beber. A Samaritana junto ao poço compreende que o Senhor está com vontade de beber e é saciada por Aquele que tem sede. Assim compreende a princípio, e Ele, então, a acolhe quando ela crê. E sobre a Cruz, Ele diz: Tenho sede! Não lhe deram, porém, aquilo do que tinha sede. Era deles que tinha sede, e deram-Lhe vinagre...” 7

Santo Tomás insistirá, ao mesmo tempo, sobre os dois sentidos, um carnal, outro espiritual, do Sitio8: “Se Jesus diz: tenho sede! É antes de tudo, porque morre de morte verdadeira, não da morte de um fantasma. Ainda aqui aparece seu desejo ardente da salvação do gênero humano, conforme diz São Paulo: Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade9. Jesus mesmo dissera: O Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido10. Ora, a veemência do desejo exprime-se, muitas vezes, pela sede, como diz o salmista11: Minha alma tem sede do Deus vivo”.

Esses aspectos são especialmente preferidos por Santa Catarina de Siena. “É a fome e a sede do ansioso desejo que Jesus tinha de nossa salvação, escreve ela, que o faziam exclamar sobre o madeiro da Santa Cruz: Tenho sede! Como se dissesse: Tenho sede e desejo de vossa salvação, mais do que vos pode demonstrar o suplício corporal da sede. Sim, porque a sede do corpo é limitada, mas a sede do santo desejo não tem limites” 12. Em outra carta, explica que, se Jesus foi saturado de opróbrios no seu corpo, Ele é insaciável no desejo. Desde o momento da Encarnação, tomou sobre si a Cruz do desejo de fazer a vontade do Pai e de salvar o mundo. É uma cruz mais pesada do que qualquer outra dor corporal. E assim, quando se aproxima o Seu fim, na Ceia da quinta-feira santa, exulta em espírito: o sofrimento do sacrifício, desde então iminente, vai afastar o sofrimento do desejo; por ela, o desejo será atendido13.

Como teria a Santa de Siena compreendido tão intensamente a sede de fazer a vontade do Pai e de salvar o mundo, que dilacerava Jesus na Cruz, se algo dessa chama não existisse nela para devorá-la? Sua carta n. XVI dirige-se a um importante prelado. Com a impetuosidade de seu desejo, fala-lhe dos apaixonados de Deus que, vendo a ofensa que Lhe é feita no mundo e a condenação das criaturas, chegam a perder o sentimento da própria vida. Não fogem dos sofrimentos, mas vão a seu encontro. Glorificam-se deles como São Paulo nas suas tribulações. Oh! Segui este Apóstolo, acrescenta Catarina com audácia. Abri os olhos. O lobo infernal atira-se sobre as ovelhas que pastam nos jardins da santa Igreja. Ninguém ousa arrancá-las de suas presas. Os pastores dormem no amor de si mesmos, na cupidez, na impureza. O orgulho embriaga-os a ponto de não verem que a graça os desertou. Amam-se a si mesmos e não a Deus. Fingem não ver o mal: calam-se e deixam-no crescer. “Ó Pai muito querido! Deste amor de vós mesmo, quero que sejais isento! Eu vos conjuro, fazei que a Verdade primeira não tenha que vos repreender um dia, dizendo: Maldito sejas tu, tu que te calaste!”.

De Maria da Encarnação temos o seguinte relato: sendo ainda ursulina no Convento de Tours, foi transportada, soerguida pelo espírito apostólico e viu a indigência das terras em estado de missão que se abriam diante dela e inflamavam-lhe o desejo: “Por uma certeza interior, via os demônios triunfarem sobre aquelas pobres almas que ele arrebatava do domínio de Jesus Cristo, nosso divino Mestre e soberano Senhor, que, entretanto, os havia resgatado com seu precioso Sangue. Diante da certeza do que via, fui tomada de tal zelo que, não me contendo mais, estreitei de encontro ao peito todas aquelas pobres almas, e apresentei-as ao Pai Eterno, dizendo-Lhe que já estava em tempo de fazer justiça em favor de meu Esposo. Lembrei-Lhe que Lhe prometera todas as nações por herança, e que além do mais, Ele satisfizera, pelo seu Sangue, todos os pecados dos homens... Que embora houvesse morrido por todos, nem todos viviam, como, por exemplo, aquelas almas que eu lhe apresentava e trazia sobre mim. Queria-as todas para Jesus Cristo ao qual, de direito, pertenciam” 14.

Santa Teresinha sentia seu ardor de salvar o mundo identificar-se com o da Igreja eterna: “Queria esclarecer as almas como faziam os profetas, os doutores. Gostaria de percorrer a terra, pregar vosso nome, e plantar sobre o solo infiel vossa Cruz gloriosa, ó meu Bem-Amado! Uma única missão, porém, não me bastaria: queria anunciar o Evangelho ao mesmo tempo em todas as partes do mundo e até mesmo nas ilhas mais distantes. Queria ser missionária, não somente durante alguns anos, mas gostaria de tê-lo sido desde a criação do mundo e continuá-lo a ser até a consumação dos séculos” 15.

Assim os santos, à imitação de Cristo, têm sede da salvação do mundo. O sofrimento redentor do Cristo na Cruz, que exteriormente podemos descrever com acerto, não mostra a sua veemência, suas terríveis exigências senão àqueles que, através dos tempos, consentem em perder-se nela, sem nada reservar para si mesmos. É o mistério da co-redenção que lhes abre as portas supremos do mistério da redenção.

Jesus ora pelo mundo inteiro, se por “mundo inteiro” compreendemos todas as criaturas humanas. Entrega-se por todas e cada uma delas. “Filhinhos meus, diz São João, eu vos escrevo estas coisas a fim de que não pequeis, mas se algum de vós pecar, temos por advogado, junto do Pai, Jesus Cristo, o justo. Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” 16. Se Jesus envia seus discípulos por toda parte, é a fim de que o mundo creia que o Pai O enviou17. É para que “todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” de que Ele é o único mediador entre Deus e os homens, “que se deu a Si mesmo em resgate para todos” 18. Todos aqueles que forem salvos, sê-lo-ão pela única oração redentora que nos foi dada: a oração de Jesus na Cruz.

Entretanto, Jesus não reza pelo mundo, quando “mundo” significa cidade do mal19. Ele roga contra o mundo. Roga por todos os homens, contra o mundo que está neles, para arranca-los do mundo que neles está, e transferi-los integralmente para a cidade de Deus. Todavia, esta oração mesma de Jesus pode ser recusada. Resisto contra ela, fecho-lhe meu coração. O Amor que vem a mim, primeiramente no presépio, depois sobre a Cruz, posso rejeitá-lo. Eis o inferno. Que este possa ser finalmente preferido por muitos, é a suprema causa da indizível agonia do Salvador.

“Pensava em ti na minha agonia; derramei tais gotas de sangue por ti” 20. Teologicamente, essas palavras são verdadeiras. Na essência divina onde mergulhava a sua visão, Jesus abrangia num só olhar todo o desenrolar concreto da história do mundo. Via, em cada minuto da existência, todas as almas imortais pelas quais intercedia. Conhecia cada pecado, cada ofensa infinita feita ao Amor. Nossas infidelidades de hoje e de amanhã O feriram. Desolaram a sua agonia. Foi por elas que — conscientemente — Ele morreu. Uma que fosse..., e essa já reclamaria a redenção infinita. A agonia de Jesus é assim coextensiva a toda a tragédia humana. Toda a duração do tempo, todas as novas faltas e omissões estão contidas nas profundezas do único instante da Paixão redentora. Ora, se Jesus sofreu pelos pecados que ainda serão cometidos, e que virão até o fim do mundo, então, — e esta verdade é tremenda — sou eu que, pecando amanhã, te-lo-ei posto em agonia há dois mil anos. É um dos sentidos de outro pensamento de Pascal: “Jesus estará em agonia até o fim do mundo: não se pode dormir durante esse tempo”.

Referindo-se àqueles que experimentaram o dom de Deus e renegaram-no depois, a Epístola aos Hebreus, usando de uma palavra misteriosa, declara com autoridade “que eles crucificaram em si mesmos o Filho de Deus e O expõem à ignomínia” 21.

Nossos pecados de amanhã contribuíram para a agonia de Jesus. Em compensação, e isso é verdade, nossas fidelidades de amanhã te-lo-ão consolado. Pio XI assim se expressou, na Encíclica Miserentissimus Redemptor22: “Se a previsão de nossas faltas deixava a alma de Cristo triste até a morte, como duvidar que a previsão de nossas reparações futuras não lhe proporcionava, desde aquele instante, alguma doçura? Não nos diz o Evangelho que sua tristeza e angústia puderam ser consoladas pela visita do Anjo? Aquele Coração muito santo, ferido incessantemente, pela ingratidão do pecado, temos que consolá-lo agora, e nós o podemos, de maneira misteriosa, mas verdadeira. Com razão pôde queixar-se o Cristo, na liturgia, pela boca do salmista, de ser abandonado pelos seus amigos: “Tu conheces o meu opróbrio, minha confusão e minha vergonha. A afronta partiu-me o coração. Esperei que alguém se condoesse de mim e não houve ninguém” 23.

 

(Transcrição parcial da obra “As sete palavras” de Charles Journet).

  1. 1. Lc 22,15.
  2. 2. “É impossível que o sangue dos touros e dos bodes apague os pecados. Eis por que o Cristo, entrando no mundo, disse: Tu não quiseste nem sacrifícios nem oferendas; mas tu me formaste um Corpo. Os holocaustos pelos pecados não te agradaram. Então eu disse: Eis-me que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade”, Hebr. X, 4-7.
  3. 3. “Neste tempo haverá uma fonte aberta para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém, a fim de lavar o pecado e as manchas”. Zacarias, XIII, 1.
  4. 4. Aprouve ao Pai “reconciliar por Ele todas as coisas, pacificando, pelo Sangue de sua Cruz, tanto o que está na terra, como o que está no céu”. Cl 1, 20.
  5. 5. “E no outro dia, ao sair de Betânia, teve fome. E tendo visto ao longe uma figueira que tinha folhas, foi lá a ver se acharia nela alguma coisa. Tendo-se aproximado, nada encontrou senão folhas, porque não era tempo dos figos”. Mr, XI, 13.
  6. 6. Enarr, in Ps. XXXIV, Sermo 2, n.4.
  7. 7. Enarr, in Os. LXI, n. 9.
  8. 8. Commentaire de Saint Jean, XIX, 28.
  9. 9. I Tim., II, 3-4.
  10. 10. Lucas, XIX, 10.
  11. 11. Salmo XLII (XLI), 3.
  12. 12. Epistolário, ed. Misciatelli, Siena, 1913, Carta VIII, t. I, pág. 34.
  13. 13. “Com la pena corporale si cacciava la pena Del desiderio; perocchè vedevo adempito quello che io desideravo”. Carta XVI, t. I, pág. 65.
  14. 14. Ecrits spirituels et historiques, ed. Janet, Paris, 1930, t, II, pag. 310.
  15. 15. História de uma alma, cap. XI. Pouco antes, a Santa se maravilhara de que Deus não “tivesse receado mendigar um pouco d’água à Samaritana. Ele estava com sede! Mas ao dizer: “Dá-me de beber, era o amor de sua própria criatura que o Criador do universo reclamava. Tinha sede de amor!”. Algumas horas antes de morrer, exclamou: “Nunca pensei poder sofrer tanto! Nunca, nunca! Não posso explicar isso senão pelo imenso desejo que sempre tive de salvar as almas” Novíssima Verba, pág. 194.
  16. 16. I João, II, 1-2.
  17. 17. João, XVII, 21.
  18. 18. I Tim., II 4-6.
  19. 19. “Rogo por eles; não rogo pelo mundo, senão por aqueles que me deste, porque são teus” (João, XVII, 10).
  20. 20. Pascal, Pensées, edit. Br., no. 553.
  21. 21. Hebr., VI, 6.
  22. 22. De 8 de maio de 1928.
  23. 23. Salmo LXVIII (LXIX), 20-21. Trad. Do Pe. Matos Soares. Esse salmo é recitado nas Matinas de quinta-feira.

Os cinco setenários

Hugo de São Vitor

Encontrei na Sagrada Escritura, Irmão, cinco septenários e, se me for possível, gostaria – como tu me pedes – de enumerá-los primeiramente um por um, distinguindo uns dos outros. Depois, comparando-os em detalhe, mostrar a correspondência que há entre eles.

 

I. INTRODUÇÃO 

Em primeiro lugar são colocados os sete vícios: primeiro a soberba, segundo a inveja, terceiro a ira, quarto a tristeza, quinto a avareza, sexto a gula, sétimo a luxúria.

Em oposição a tais vícios estão postos os sete pedidos da oração dominical1: primeiro o que nos faz pedir a Deus: “Santificado seja o vosso Nome”; segundo: “Venha a nós o vosso Reino”; terceiro: “Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”; quarto: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”; quinto: “Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”; sexto: “Não nos deixeis cair em tentação”; sétimo: “Mas livrai-nos do mal”.

Em terceiro lugar seguem os sete dons do Espírito Santo2. Primeiro o espírito de Temor do Senhor; segundo o espírito de Piedade; terceiro o espírito de Ciência; quarto o espírito de Força; quinto o espírito de Conselho; sexto o espírito de Inteligência; sétimo o espírito de Sabedoria.

Em seguida vêm em quarto lugar as sete virtudes. A primeira: Pobreza de espírito, que é a Humildade; segunda: Mansidão ou Benignidade; terceira: Compunção ou Dor; quarta: Fome de Justiça ou Bom Desejo; quinta: Misericórdia; sexta: Pureza de Coração; Sétima: Paz.

Finalmente, em quinto lugar estão dispostas as sete bem-aventuranças. A primeira: O Reino dos Céus; segunda: a posse da Terra dos vivos; terceira: a Consolação; quarta: Saciedade da justiça; quinta: Misericórdia; sexta: a Visão de Deus; sétima: a Filiação divina.

Distingue primeiro estes septenários e compreenderás que os vícios são como doenças que enfraquecem a alma, ou feridas do homem interior; que o homem é ele mesmo como um doente; que o médico é Deus, que os dons do Espírito Santo são o remédio; as virtudes são a saúde e que as bem-aventuranças são a alegria da felicidade.

 

II. OS SETE VÍCIOS

Há, pois, sete vícios capitais ou principais e é deles que nascem todos os males. São as fontes e abismos tenebrosos dos quais os rios da Babilônia têm suas águas, e correm por toda a terra, e repartem gota a gota a iniqüidade. É destes rios que o Salmista falou quando cantava ao povo fiel: “Junto dos rios de Babilônia, ai nos assentamos a chorar, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros daquela terra penduramos as nossas cítaras3 Destes sete vícios devastadores, que corrompem toda a integridade da natureza e ao mesmo tempo produzem rebentos de todos os males, nós só falaremos na medida em que seja necessário para explicar o nosso presente tema.

São, pois, sete, dos quais três dentre eles despojam o homem; uma vez despojado o homem, é flagelado pelo quarto vício; uma vez flagelado o homem, é jogado no chão pelo quinto vício; uma vez jogado no chão o homem, é seduzido pelo sexto vício; uma vez seduzido, o sétimo vício submete o homem à escravidão. A soberba despoja o homem de Deus; a inveja o despoja do próximo; a ira o despoja de si mesmo; a tristeza flagela o homem assim despojado; a avareza o joga no chão; a gula seduz o caído; e a luxúria reduz à escravidão aquele que fora seduzido. Voltemos um pouco e expliquemos em ordem cada um desses vícios

O VÍCIO DA SOBERBA

Nós dissemos que a soberba despoja o homem de Deus. A soberba, com efeito, é o amor da própria excelência, quando a alma ama exclusivamente o bem que ela possui, ou seja, sem Aquele do qual o bem procede. Oh, pestífera soberba, que fazes? Por que convences o riacho de separar-se da fonte? Por que persuades o raio de afastar-se do sol? Senão para que um, cessando de ser alimentado pela fonte, seque; e o outro, no mesmo instante que se separa do princípio da luz, se torne tenebroso? Ambos, pois, cessando de receber aquilo que ainda não têm, perdem imediatamente aquilo mesmo que tinham. De fato, quando tu ensinas a amar o dom fora do Doador, fazes que aquele que recebeu parte do bem reivindique-o perversamente para si, perdendo o bem inteiro que reside no Doador. Não podemos possuir algo com proveito, se não o amamos n’Aquele pelo qual o temos, e como todo bem verdadeiramente procede de Deus, nenhum bem pode ser possuído com proveito fora de Deus. Mais ainda: perde-se até mesmo aquilo que se possui, se não é amado n’Aquele e com Aquele que nos fez possuir o bem.

O VÍCIO DA INVEJA

            Acontece, pois, que aquele que só sabe amar o bem em si mesmo, vendo em outro um bem que ele não possui, é necessariamente atormentado, e tanto mais amargamente quanto não sabe amar Aquele em que reside o bem.

E assim é que a inveja sempre se segue à soberba. Porque aquele que não fixa o seu amor lá onde reside todo bem, quanto mais se vangloria perversamente do seu bem próprio tanto mais gravemente é atormentado pelo bem alheio. A sua altivez recebe, pois, com toda justiça sua própria pena: a inveja que ela mesma engendra. Dado que não quis amar o Bem comum a todos, é justo que se consuma pela inveja do bem alheio. Certamente o feliz êxito alheio não o queimaria, se possuísse Aquele no qual todos os bens residem. Nem mesmo lhe pareceria alheio o bem de outro, se soubesse amar o seu próprio bem lá onde possuiria, a um tempo, o seu bem e o bem do próximo. Mas, pelo contrário, quanto se eleva contra o seu Criador, nessa mesma medida cai por debaixo do próximo pela inveja. Quanto ali se elevou mentirosamente, aqui verdadeiramente é derrubado.

O VÍCIO DA IRA

Mas uma vez começado este processo de destruição não se pode detê-lo aqui. Tão logo a inveja nasce da soberba, ela mesma dá à luz a ira. A alma miserável já se enraivece da sua própria imperfeição, porque não soube alegrar-se, pela caridade, do bem alheio. E, assim, até mesmo aquilo, que tem, começa a desagradar-lhe, ao encontrar no outro o bem que ela não pode ter.

Aquele que poderia ter alcançado em Deus todos os bens pela caridade, perde pela inveja e pela ira o que tentava possuir fora de Deus: depois de ter perdido a Deus pelo orgulho, perde o próximo pela inveja e a si mesmo pela ira.

OS VÍCIOS DA TRISTEZA E DA AVAREZA

Tendo perdido tudo, não lhe resta nada onde a infeliz consciência possa alegrar-se, e ela volta-se contra si mesma pela tristeza. Não querendo piedosamente alegrar-se do bem alheio, é justo que seja cruciada pelo seu próprio mal. Depois que a soberba, a inveja e a ira roubaram o homem, logo em seguida a tristeza lhes segue para flagelar o homem desnudado. À tristeza lhe sucede a avareza, que expulsa o que fora flagelado, pois tendo perdido a alegria interior, é impelido a buscar consolo exteriormente.

OS VÍCIOS DA GULA E DA LUXÚRIA

Apresenta-se, então, a gula, que seduz o expulsado: este vício tenta em primeiro lugar e de modo muito próximo a alma que aspira aos bens exteriores, pois é por meio do próprio apetite natural que ela a convida aos excessos.

Finalmente sobrevém a luxuria, que violentamente reduz à escravidão aquele que fora seduzido. Porque uma vez que a carne foi inflamada pelos desregramentos, a alma amolecida e enfraquecida não consegue vencer o ardor da luxúria que a ataca. A alma torpemente submetida se vê escrava de uma crudelíssima tirania; e não teria meio de levantar-se dessa escravidão que lhe tem cativa se não recorresse e fosse escutada pela bondade do Salvador.

 

III. AS SETE PETIÇÕES DA ORAÇÃO DOMINICAL OPOSTAS AOS SETE VÍCIOS E SUA RELAÇÃO COM OS DONS DO ESPÍRITO SANTO, COM AS VIRTUDES E COM AS BEATITUDES

É por isso que se seguem sete petições opostas aos sete vícios: por meio delas imploramos o socorro d’Aquele que nos ensinou a rezar e que nos prometeu, se rezarmos, dar-nos seu bom Espírito para curar nossas feridas e desatar o jugo de nosso cativeiro. Mas, antes de explicar essas petições, queremos mostrar, por outra comparação, a extensão do dano que engendram em nós os ditos vícios: assim, mais perigosa mostrar-se-á a apatia e mais se imporá a necessidade do remédio.

O coração infla-se pela soberba; torna-se árido pela inveja; racha-se pela ira; é esmagado e como que feito pó pela tristeza; dispersa-se pela avareza; é infectado e umedecido pela gula; é pisoteado e reduzido ao estado de lama pela luxúria. Enfim, o infeliz está em condições de dizer: “estou atolado num lodo profundo, e não encontro onde pôr pé; cheguei a um sítio de águas profundas, e já as ondas me cobrem4. A alma, uma vez atolada nessa lama das profundezas e mergulhada na lama da imundice e da impureza, não pode em absoluto puxar-se para fora, a menos que clame ao Salvador e lhe peça socorro. Daí as palavras do Salmista: “Esperei, esperei no Senhor, e Ele inclinou-se para mim e ouviu o meu clamor. Tirou-me da fossa da perdição, do pântano lodoso, e assentou os meus pés sobre a pedra5. Eis porque ensinou-nos a rezar, para que todo nosso bem venha d'Ele, para que nós compreendêssemos que o que nós pedimos, bem como o que nós recebemos em resposta ao nosso pedido, é um dom seu, não algo devido que merecemos.

A primeira petição se opõe, portanto, à soberba. Ela faz-nos dizer a Deus: “Santificado seja o vosso nome”. Pedimos que Ele nos conceda temer e venerar seu nome, para que lhe sejamos submetidos pela humildade, já que pela soberba mostramo-nos rebeldes e obstinados. Por essa petição é dado o dom do Espírito Santo de temor a Deus, para que esse espírito, vindo ao coração, crie nele a virtude da humildade, e para que esta virtude cure a doença da soberba6: assim o homem humilde poderá chegar ao Reino dos Céus7, que o anjo orgulhoso perdeu por sua presunção.

A segunda petição opõe-se à inveja. Ela faz-nos dizer “Venha a nós o vosso reino”. Ora, o reino de Deus é a salvação dos homens, pois se diz que Deus reina sobre os homens quando os homens, de sua parte, são submissos a Deus, tanto agora, unindo-se a Ele pela fé, quanto depois, permanecendo unidos a Ele pela visão. Assim, aquele que pede que venha o reino de Deus busca certamente a salvação de todos os homens; por isso, pedindo a salvação comum de todos, mostra sua reprovação ao vício da inveja. Por essa petição é dado o espírito de piedade, para que esse espírito, vindo ao coração, acenda a benignidade; assim o homem chegará ele mesmo à posse da herança eterna, à qual ele deseja ver chegar o próximo8.

A terceira petição opõe-se à ira. Ela faz-nos dizer: “Seja feita vossa vontade assim na terra como no céu”. Aquele que diz “seja feita a vossa vontade” não busca a querela, mas indica que lhe agrada tudo o que a vontade de Deus decide sobre ele e sobre o próximo segundo seu bel-prazer. Por essa petição é dado o espírito de ciência, para que esse espírito, vindo ao coração, instrua-o e coloque-o numa salutar compunção: assim o homem saberá que o mal que ele sofre resulta de suas próprias faltas, e que o bem que ele pode ter provém da misericórdia de Deus; ele aprenderá por esse meio, seja quanto aos males que ele suporta, seja quanto aos bens dos quais é privado, a não se irritar contra o Criador, mas a mostrar-se paciente em tudo. É maravilhoso como, pela compunção do coração, que, sob a ação do espírito de ciência, nasce interiormente da humildade, a ira e o tumulto da alma pacificam-se. Ao contrário, “a ira matou o insensato9, porque, atribulado e cego pelo vício da impaciência no tempo da adversidade, não reconhece nem que mereceu o mal que enfrenta, nem que recebeu por graça o bem que possui. Esta virtude, a compunção ou dor, é recompensada pela consolação: assim aquele que, por livre vontade, aflige-se e geme cá embaixo diante de Deus merece encontrar lá no alto a verdadeira alegria e felicidade10.

A quarta petição opõe-se à tristeza. Ela faz-nos dizer “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. A tristeza é o desgosto e o luto sentidos pela alma quando, amolecida, por assim dizer, e amargurada por seu vício, ela não aspira mais aos bens interiores e que, uma vez que todo seu vigor foi morto, nenhum desejo de restauração espiritual lhe sorri mais. Por conseguinte, para curar esse vício, é preciso que supliquemos ao Senhor misericordioso que apresente à alma apática e desgostosa o alimento que a recomporá interiormente: ausente esse alimento, a alma ignora o apetite por ele; presente, seu sabor relembra-a da realidade e ela põe-se a amá-lo. Por essa petição é, portanto, dado o espírito de força, para que esse espírito recomponha a alma que sucumbe: assim, uma vez retomada a virtude de seu vigor passado, ela encontra forças para sair de seu desgosto e pôr-se a desejar a suavidade interior. O espírito de força cria, portanto, no coração a fome de justiça: poderosamente iluminada cá embaixo pelo desejo nascido da piedade, ela obtém lá no alto como recompensa a saciedade perfeita da beatitude11.

A quinta petição opõe-se à avareza. Ela faz-nos dizer “Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”. É justo, com efeito, que aquele que não se mostrou avaro na reivindicação do que lhe é devido não duvide da exoneração de sua dívida. Por esse meio, ao mesmo tempo em que somos libertados do murmúrio da avareza pela graça de Deus, a condição posta à nossa salvação instrui-nos sobre a maneira segundo a qual nossas dívidas são perdoadas. Por essa petição é, portanto, dado o espírito de conselho, para que esse espírito nos ensine a exercer de bom coração neste mundo a misericórdia para com aqueles que pecam contra nós: assim, no mundo futuro, quando daremos conta de nossos próprios pecados, mereceremos encontrar misericórdia12.

A sexta petição opõe-se à gula. Ela faz-nos dizer “Não nos deixeis cair em tentação” 13. Essa tentação é aquela que, lisonjeando a carne, esforça-se frequentemente, por meio do apetite natural, em arrastar-nos aos excessos. Ela faz deslizar inadvertidamente à voluptuosidade, embora abertamente nos seduza pelo pretexto da necessidade. Mas, na verdade, nós não somos em absoluto induzidos nessa tentação se nos aplicamos a dar à natureza a medida do necessário, sempre nos lembrando de manter o apetite prevenido contra a lisonja da voluptuosidade. Para que sejamos capazes de agir assim, é-nos dado, por nossa petição, o espírito de inteligência, para que o alimento interior da palavra de Deus contenha o apetite exterior, e que a alma, fortificada pela nutrição espiritual, não se deixe abater pela fome corporal nem vencer pela voluptuosidade carnal. É por essa razão que o Senhor mesmo, quando teve fome, e quando seu tentador sugeriu-lhe enganosamente que se restaurasse com um pão exterior, respondeu-lhe: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que provém da boca de Deus14. Assim, Ele mostrava claramente que, quando a alma é interiormente restaurada por este pão [espiritual], ela não faz muito caso da fome corporal, que, exteriormente, faz com que ela sofra por um momento. Para lutar contra a gula é dado, portanto, o espírito de inteligência, que, vindo ao coração, limpa-o e purifica-o; pelo conhecimento da palavra de Deus, como um colírio, ele cura o olho interior e o torna tão luminoso e claro que  se torna penetrante ao ponto de contemplar até a própria claridade da divindade. Ao vício da gula opõe-se, assim, como remédio, o espírito de inteligência; deste, nasce a pureza do coração; e a pureza do coração é um penhor da visão de Deus, pelo que está escrito: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” 15.

A sétima petição opõe-se à luxúria. Ela faz-nos dizer “Livrai-nos do mal”. Certamente, é normal que o escravo peça sua liberdade. Por essa petição é dado o espírito de sabedoria, apto a devolver ao cativo a liberdade perdida: com a ajuda da graça, ele poderá – o que lhe seria impossível apenas por suas próprias forças – escapar ao jugo de uma injusta dominação. De fato, “sabedoria” (sapientia) vem de “sabor” (sapor): a alma, tocada pelo gosto da doçura interior, recolhe-se toda no interior por efeito do desejo e não se dissipa mais desordenadamente no exterior pela voluptuosidade da carne, porque possui interiormente tudo aquilo em que se deleita. É, portanto, a justo título que, à voluptuosidade exterior, vem opor-se a doçura interior; assim, quanto mais tivermos provado e adquirido gosto e prazer nesta, mais livremente e liberalmente desprezaremos aquela. Assim, o espírito de sabedoria, ao tocar o coração com sua doçura, ao mesmo tempo modera exteriormente o ardor da concupiscência e, uma vez anestesiada a concupiscência, cria interiormente a paz: desde então, enquanto a alma inteira recolhe-se na alegria interior, o homem encontra-se plena e perfeitamente restaurado à imagem de Deus, pelo que está escrito: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filho de Deus16.

Eis aí, irmão. Satisfiz a teu pedido, não como deveria, mas como, no momento, pude. Recebe o humilde presente que pediste sobre os cinco septenários e, quando lhe lançares os olhos, lembra-te de mim. Que a graça de Deus esteja contigo. Amém.

(Tradução: Permanência. Six opuscules spirituels, les éditions du cerf, paris, 1969.)

  1. 1. Mt 6, 9-13.
  2. 2. Cfr. Is 11, 2.
  3. 3. Sl 136, 1-2.
  4. 4. Sl 68, 3.
  5. 5. Sl 39, 2-3.
  6. 6. Pela primeira beatitude acha-se diretamente beatificado o pobre que aceita e ama sua pobreza. Mas, entre as virtudes dessa alma de pobre, encontra-se em primeiro lugar a humildade, e é a ela que Hugo destaca, seguindo Santo Agostinho.
  7. 7. Mt 5, 3.
  8. 8. Mt 5, 4.
  9. 9. Jó 5, 2.
  10. 10. Mt 5, 5.
  11. 11. Mt 5, 6.
  12. 12. Mt 5, 7.
  13. 13. Graças a seu senso do hebraico e a seu conhecimento de São Jerônimo Hugo dá em algumas palavras a interpretação que sugere o tom permissivo da forma verbal aramaica ou hebraica – tom esse que é preservado pela fórmula tradicional usada em português.  [N. do T.]
  14. 14. Mt 4, 5.
  15. 15. Mt 5, 8.
  16. 16. Mt 5, 9.

2. O Dom da Força

Santa Catarina de Ricci São João de Colônia São Pedro mártir

 

“Quem achará uma mulher forte?” Em vão procuro a resposta no livro dos Provérbios, onde se lê essa interrogação. Vejo, é verdade, uma descrição ideal desse tipo de virtude, mas, feita a descrição, o santo livro se abrevia e termina como que de repente. Seria então uma ironia, ou uma dessas questões que nunca se resolvem, que os antigos designavam com o nome de problemas, e em nossa linguagem chamamos de enigmas?

Não se trata de enigma. Ou, por outra, se o for, o Espírito de Deus o resolve dia após dia. À fraqueza de Eva opõe a força da Mãe das Dores; em face da história lamentável das inconstâncias das mulheres que não se apoiam em Deus, exibe a epopéia das santas que encontraram, na inspiração do Espírito de força, a coragem indomável dos heróis. É o caso de Santa Catarina de Ricci. 

As principais manifestações da força são duas: resistir e atacar. É raro que essas características se encontrem completamente isoladas. Contudo, em geral, uma delas predomina. E como temos de optar entre ambas, diremos que o temperamento da nossa santa é sobretudo de ataque. O Espírito de Deus lhe inspira a ciência, a arte e a coragem de agir impetuosamente a seu serviço.

Ainda criança, ela quer ser dominicana. É preciso, o quanto antes, fazer com que toda a gente vá falar com seu pai, personagem ilustre de Florença, para obter o consentimento: irmãs dominicanas de passagem pela cidade, o seu tio, o Padre Ricci e a superiora do convento do Prato, muito próxima das principais famílias e influente em Florença. Essa última consegue que a menina vá passar dez dias em seu mosteiro. Naturalmente, ao cabo de dez dias, Catarina recusa partir com o irmão, que veio buscá-la. O pai vem em seguida, mas ela não quer acompanhá-lo. É necessário que a abadessa intervenha com  autoridade: a menina enfim parte, mas à condição de poder retornar. O pai não se apressa em cumprir a palavra. Daí então lhe veio em auxílio um recurso supremo e sobrenatural: ela cai doente, ficando entre a vida e a morte. O pai se aflige. Certo dia, ele chorava ao pé dela, segurando-lhe as mãos caídas: “Meu pai", diz a menina, "Nosso Senhor me quer por esposa: Ele me disse. Deixe-me partir e me curarei, o senhor verá”. O pai prometeu e, subitamente, Catarina recobrou as forças. Desta vez ela alcançou seus objetivos, o pai a deixou partir. Ela quis ser dominicana, e foi.

Uma vez dominicana, queria ser perfeita “até o pescoço”. “As religiosas estavam orgulhosas de ter uma pequena santa na sua companhia; apenas queriam que essa santinha de onze anos fosse como elas, prudente, amável, obediente, regular, acompanhando-as passo a passo na rotina comum” 1. Não era essa a vontade do Espírito nem o desejo da sua fiel servidora. A íntima comunicação com as coisas do céu a apartava, subtraía-a do cumprimento dos tranquilos deveres. Fenômenos extraordinários se multiplicavam. A comunidade, confusa, encheu-se de desconfianças contra essas coisas extraordinárias. Seu confessor chegou até a lhe ordenar que cuspisse nas visões. Ela o fez heroicamente mas as visões, em vez de desaparecerem, aprovaram o  procedimento. — A troca de coração com Nosso Senhor, os santos estigmas e outras manifestações sobrenaturais foram a recompensa da obediência e o sinal inequívoco da inspiração divina. Como era escrava da regra, e possuía uma nobre e franca familiaridade com todas as irmãs, acabou por obter a ratificação do seu gênero de vida: sua perseverança, coragem e energia sobrenatural, que nunca desfaleciam, lograram uma vitória completa. Ela quis ser uma dominicana perfeita, e conseguiu.

Isso não era o bastante. Uma vez perfeita, quis que suas irmãs também o fossem. “Agora o seu valor era conhecido e celebrado. Nomeada subprioresa, superou todas as expectativas, a tal ponto que, na primeira vacância, foi por unanimidade eleita prioresa. Ela então mostrou toda sua capacidade… Mulher de inteligência e coração, governou num espírito de justiça incorruptível. Exemplo vivo de austeridade e observância vigilante da regra, não deixava nenhuma falta passar impune… Não tolerava que as religiosas ocupassem o espírito com frivolidades ou afeições mundanas” 2. Contudo, a firmeza era temperada pela mansidão, como convém a um dom recebido do céu. A natureza é violenta; porém, a verdadeira força é dona de si mesma e sabe se conter. “Seu modo de mandar era tão maternal que todas tinham grande gosto de obedecê-la”. Compreende-se que, sob direção tão sublime, o Convento do Prato tenha se tornado um modelo de vida religiosa. Catarina quisera que suas irmãs fossem perfeitas, e elas o foram.

Mas isso não era o bastante para o seu coração ardente. Queria agora que a perfeição e a santidade do Convento do Prato irradiasse pela sua Ordem, e por esta Florença tão amada, da qual era o anjo protetor. Como Santa Catarina de Sena, teve discípulos. “Sua Ordem lhe forneceu os primeiros. Provinciais e priores chamavam-na de Mãe; religiosos de grande valor estimavam muito corresponder-se com ela e lhe seguir os conselhos. A sua família inteira estava nas suas mãos… Na aristocracia florentina, contava com grande número de discípulos, almas elevadas, capazes das mais heróicas virtudes cívicas e católicas… A maior parte levava no mundo uma vida que, no mosteiro, não seria deslustre”. — “Outras almas, ainda mais perfeitas, buscavam sua amizade. Basta citar Santa Maria Madalena de Pazzi, São Filipe Néri, São Carlos Borromeu, São Pio V e Savonarola. Ela se manteve fiel a esse último, e o convento do Prato se tornou o guardião da memória desse homem extraordinário. Com sua correspondência vastíssima, com as visitas numerosas que recebia, com a edificação que todos relatavam em suas relações com Prato, apôs o selo final à obra da sua vida. Ela quis que o Convento do Prato fosse um foco de vida perfeita, e foi.  

Assim se desenrolou, em meio a grandes obstáculos, a forte unidade desta vida. O Espírito de Deus lhe ensinou a querer fortemente o que Ele mesmo queria, e ela quis sem fraquejar. Dominicana, perfeita, imã de virtude e centro de apostolado, eis as etapas do seu ataque. Ela permanece como um exemplo deste primeiro aspecto do Dom da Força. 

*

Da Itália, país dos condottieri heróicos, passamos a Holanda, país da coragem sofrida. Terra de gente acostumada a refrear vagarosamente, por meio de diques, as invasões do mar; pais desses heróis que, ainda há pouco, esperavam com calma o inimigo nas trincheiras e, sem tremer, alcançavam vitórias incomparáveis apenas por não recuar. A Holanda é o país da força, mas não da força de ataque, mas da força que sofre sem fraquejar. O Espírito divino, habitando nas almas pela caridade, tempera muitas vezes sua ação segundo nossas disposições naturais. E como a caridade sabe sofrer, charitas patiens est, encontramo-nos na Holanda junto a uma raça de santos de caridade forte e paciente.

Fazia vinte anos que São João de Gorcum era pároco de Hoornaar. Toda a Holanda fora devastada pela seita dos Mendigos do mar, e a religião católica, proscrita em boa parte do território. Na paróquia de Gorcum, os calvinistas aprisionaram um grande número de padres e religiosos, que, encarcerados na cidadela, foram submetidos às mais ignóbeis vexações. João de Gorcum continuava no meio dos seus paroquianos, vestido como leigo para poder continuar o ministério. Chega a penetrar a prisão para levar aos irmãos prisioneiros a Sagrada Eucaristia. Assume os cuidados da extensa paróquia devastada, porém é traído por suas idas e vindas. Feito prisioneiro, é trancado com os futuros companheiros de martírio.

As torturas inventadas pelos verdugos são inimagináveis. Despojados dos hábitos religiosos, semi-nus, transportaram-nos a Brielle, uma travessia mortal de vinte horas. São recebidos em Dordrecht pela populaça que os cobre de imundices e xingamentos. E como se fossem animais ferozes, o povo paga a fim de vê-los no barco. Em Brielle, obrigam-nos a rodear a mesa de um festim onde os verdugos celebram com uma orgia a triste vitória. No dia seguinte, ordenam que se arrastem de joelhos até o lugar do suplício e que dêem três voltas no patíbulo. Julgando que é chegada a hora derradeira, rezam o Salve Regina, mas tudo aquilo não passa de farsa. São conduzidos, em meio a uma turba histérica, à praça do mercado onde ergue-se um outro patíbulo. Cantam o Te Deum. Nova paródia: terminarão esse dia na prisão. 

No dia 7 de julho os levaram ao tribunal do governador. São intimados a abjurar da presença real de Jesus na Eucaristia e do primado da Santa Sé. Três sucumbem, os demais resistem. No dia seguinte, um dos apóstatas, que era noviço franciscano, veio retomar o seu lugar no sagrado cortejo. 

Era o dia 9 de julho de 1572. Entre as ruínas e escombros de um convento agostiniano saqueado, descobria-se um velho celeiro cujo teto, em parte desmoronado, era suportado por umas vigas. Os confessores da fé foram alinhados desnudos à frente dessas vigas. Os esbirros levaram primeiro o franciscano, Nicolás Pieck, passaram-lhe uma corda no pescoço e o içaram alto na viga. Enquanto o mártir sofria e se debatia, os hereges fizeram um último esforço sobre os demais, para que apostatassem. João toma a palavra e, em nome de todos os companheiros, proclama a presença real de Nosso Senhor na Eucaristia e o Primado do papa. Dois deles, contudo, fraquejam e terminam por sucumbir. Os demais cerram fileira e aguardam no posto de combate. Com a corda no pescoço, um a um são içados nas vigas do teto, como bandeiras de extermínio. São João de Gorcum é um dos últimos, mas sua coragem não desfalece, e é finalmente executado. Dezenove cadáveres pendiam enforcados. A multidão se lança sobre eles e os mutila e os despedaça. Depois de colocarem os pedaços cruentos nas pontas de uns piques, partem num horrível cortejo e percorrem Brielle em todos os sentidos. Finalmente, na praça do mercado, empilham os pedaços e vendem-nos aos que pagam maior preço3.

Neste drama sinistro, tudo é resistência, tudo é imolação suportada, tudo é paciência indomável. Não há o ímpeto do ataque. A força se concentra num único ato: não ceder. À medida que a agressão cresce, o espírito de resistência cresce igualmente. Que espírito inspira a nossos mártires essa recusa enérgica, essa sublime denegação, essa passividade heróica, senão o Espírito de Força, mais admirável talvez na tolerância paciente, alheia a toda consolação humana, do que nos entusiasmos da atividade!… Que luz para essas almas privilegiadas que Deus chama ao sofrimento!

*

Pedro de Verona prostrava-se no chão do capítulo do convento de Bolonha. Deram ouvidos a uma voz acusadora e lhe atribuíram um fato desonroso. O prior o intima a justificar-se. De joelhos, ele se recusa, protestando simplesmente a sua inocência. Os testemunhos parecem convincentes, contudo, e o Irmão Pedro, expulso do convento de Bolonha, é relegado a Jesi, na região das Marcas. Ele parte desonrado. Por muito tempo seguirá assim, em penitência, suportando sem murmuração a provação divina. Finalmente, chega a hora da verdade: sua inocência é reconhecida e proclamada, e ele retorna ao convento com a cabeça cingida da aureola dos fortes que sabem sofrer com paciência e magnanimidade de coração. 

Agora, é hora do ataque. Irmão Pedro é inquisidor, ou seja, incumbido de desmascarar e perseguir a heresia. Ele age em meio aos maiores perigos, pois é um erro pensar que o perigo estava apenas do lado dos hereges. De resto, ele busca convencê-los sobretudo pela pregação. Sua bravura é tão grande, seus sucessos tão brilhantes, que se torna o alvo de todas as emboscadas. “Hei de morrer na mão dos heréticos”, dizia com freqüência, mas seguia a missão sem empalidecer. — Em 1252, conspiraram para assassiná-lo. Irmão Pedro é prevenido. Ele anuncia a seus irmãos de Como que seu fim está próximo e que seu martírio ocorrerá entre Como e Milão. 

Em seguida, após o último discurso de despedida, parte para Milão onde o dever o chama. No caminho, a emboscada está preparada. O santo canta com os companheiros as estrofes do Victimae paschali laudes. Ele caminha adiante, acompanhado apenas do Irmão Domingos. Numa mata espessa os assassinos se lançaram sobre ele. Um golpe de foice lhe rompe a cabeça. Ele diz: “Eu confio minha alma nas vossas mãos, Senhor”. Em seguida, recobrando um pouco as forças, escreveu com seu sangue estas palavras no chão: Credo in Deum. 

*

"Bem-aventurados aqueles que tem fome e sede de justiça porque serão saciados". Esse é o cerne da alma dos nossos três santos: Santa Catarina tem fome e sede da justiça devida a Deus, ou seja, da santidade que faz os verdadeiros justos; São João tem fome e sede da justiça do cumprimento do dever, sendo fiel até a morte; São Pedro mártir, que sabe adorar a justiça de Deus quando ela fere um inocente, também sabe aceitar sem fraquejar os desígnios dessa mesma justiça quando fere o erro para salvar a inocência. 

Bravura no ataque e paciência no serviço de Deus, eis a marca dos nossos três santos. No presente momento — consumada a bem-aventurança — já estão saciados. Lá do céu, donde se exclui toda a injustiça, contemplam na fonte a Vontade divina condenando as injustiças da terra e aprovando toda reta intenção. 

Nós, que padecemos perseguições pela justiça e aborrecemos a iniquidade, ergamos os olhos e recobremos a coragem. A luta presente dura só um distante, há um dia seguinte para a perseguição e o martírio. O reino de Deus, reino de justiça onde nossos santos nos precederam, não está longe de nós. Bem-aventurados aqueles que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados.

(Tradução Permanência)

  1. 1. Sainte Catherine de Ricci, pelo R. P. Boitel. Desclée, 1897, p. 7.
  2. 2. Ibid, p. 17-18.
  3. 3. Todos estes detalhes foram tirados da Notícia sobre São João de Colônia e seus companheiros, pelo R. P. Mortier , Desclée, 1899.

As promessas do Sagrado Coração de Jesus

Em suas aparições a Santa Margarida Maria, Nosso Senhor insiste que o culto a seu Sagrado Coração seja revestido do aspecto de reparação. Seus devotos devem não somente descobrir seu Amor insondável, mas também oferecer reparação pelas injúrias, friezas e ingratidão com que Ele é ofendido. De fato, o liberalismo, desconhecendo a submissão que o homem deve a Deus, põe na liberdade do homem o princípio de todas as leis da sociedade moderna. O liberalismo quer que o próprio Deus se submeta à liberdade do homem. Que blasfêmia!

A essência da devoção ao Sagrado Coração é o reconhecimento de que a submissão humilde do homem à lei de Deus é seu maior bem, e que o homem deve submeter-se não como um escravo ao seu tirano, mas como um filho que reconhece o amor de seu pai em suas disposições e ordens. A devoção ao Sagrado Coração é, portanto, essencialmente antiliberal.

As reclamações de Nosso Senhor sobre os jansenistas parecem definir nossos modernistas atuais: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens, que nada poupou até esgotar-se e consumir-se para dar-lhes testemunho do seu amor, e em paga não recebe da maior parte deles mais do que ingratidão, pelos desprezos, irreverências, sacrilégios e friezas que têm para comigo neste Sacramento de amor”. Irreverências, sacrilégios, friezas: Nosso Senhor parece aqui estar descrevendo a Missa Nova!

O modernismo é o esforço de teologia para justificar o sacrilégio do homem que se põe no lugar de Deus. A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é a descoberta do amor de Jesus Crucificado e de como devemos obedecer a Ele.

 

I – Introdução

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus foi apresentada oficialmente ao mundo católico pelo Papa Leão XIII, em 25 de maio de 1899, como meio extraordinário de salvação para a humanidade. “Hoje se oferece aos nossos olhos” – disse então o Papa – “um grande sinal de salvação, sinal todo infuso de divino amor e de suprema esperança. É o Sagrado Coração de Jesus, encimado pela Cruz, cercado de espinhos e resplandecente de uma claridade esplêndida, em meio às chamas de seu amor. N’Ele é necessário depositar toda a nossa confiança; a Ele é necessário pedir e esperar a salvação”.

Foi longo o caminho que essa devoção percorreu até chegar a uma proclamação tão solene e explícita por parte do Vigário de Cristo.

Certamente ela expressa a própria essência do catolicismo. Mas existe também, sem dúvida, algo de novo nela. Dom Columba Marmion, no capítulo que dedica à devoção do Sagrado Coração no seu livro “Jesus Cristo em seus mistérios”, mostra bem como ali se dão os dois aspectos de continuidade e de novidade.

Podemos dizer que o primeiro devoto do Sagrado Coração de Jesus foi o apóstolo São João, que ouviu suas palavras comovedoras na Última Ceia, e que o viu ser ferido pela lança e dele jorrar sangue e água.

Na Idade Média, o amor à santa humanidade de Nosso Senhor professado pelos místicos incluía, certamente, o aspecto central dessa devoção. Vemos São Bernardo inflamado em sua pregação, ouvimos as conversas íntimas entre Nosso Senhor e Santa Gertrudes, vemos o admirável Pobre de Assis reproduzir as chagas da Paixão do Salvador em sua própria carne.

São Boaventura assim convidava as almas: “Para que do lado de Cristo, adormecido na Cruz, se formasse a Igreja e se cumprisse a Escritura que diz ‘farão lamentações sobre Aquele que traspassaram’ (Zc 12, 10), um dos soldados o feriu com uma lança e abriu-lhe o lado. Isto foi permitido pela divina Providência, a fim de que, brotando sangue e água da ferida, se derramasse o preço de nossa salvação, o qual, manando do arcano do Coração, desse aos sacramentos da Igreja a virtude de conferir a vida da graça, e fosse, para os que vivem em Cristo, a taça levada à fonte viva que mana para a vida eterna. Essa é a mesma lança do pérfido Saul – figura do povo eleito castigado – que, errando o golpe, se cravou por divina misericórdia na parede, e abriu um buraco na pedra e um furo no muro. Aparece pois, alma amiga de Cristo, e sê como a pomba que faz seu ninho na parte mais alta da entrada da caverna: ali, como um pássaro, encontrarás morada; ali, onde o rouxinol de amor casto esconde os filhotes; põe ali tua boca para que bebas as águas das fontes do Salvador. Esta é a fonte que jorra no centro do paraíso e que, dividida em quatro rios, deságua nos corações devotos, rega e fecunda toda a terra.”

Mas essa devoção, que até então estava reservada aos altos místicos e contemplativos, encontrou uma nova expressão quando Nosso Senhor tomou, Ele próprio, a iniciativa de estendê-la a todos os fiéis. O que até então fora um segredo das almas mais santas e penitentes passou a ser uma oferta de amizade íntima a todos os católicos.

 

II – Divina Estratégia

Muitas devoções nascem espontaneamente do espírito do povo católico. Aparecem, crescem e se difundem, movidas pelo interesse e pela admiração dos fiéis. Mas a devoção ao Sagrado Coração de Jesus não foi assim. Não foi uma devoção espontânea, mas sim uma devoção ensinada e propagada pelo Céu. Serão as diversas intervenções de Nosso Senhor, Ele mesmo, que farão com que essa devoção se difunda de modo tão admirável.

Ela é uma resposta do Salvador à perfídia do humanismo renascentista, que se propôs a abalar a lei de Deus e de sua Igreja. Essa oferta é uma vingança amorosa diante do protestantismo e de seu sucedâneo, o Jansenismo. Nosso Senhor propõe essa devoção como um remédio para os males modernos, como um antídoto contra o espírito da revolução.

Assim considerada, essa devoção poderia parecer uma coisa antiga e sem importância, ou que, ao menos, teve sua importância no século XVII, mas já não mais hoje em dia. Que nos importam hoje as disputas protestantes? Que nos interessam as querelas dos jansenistas? Será então esta devoção algo fora de época? Pensar assim seria um engano grave da nossa parte. A crise modernista, que vivemos hoje com o Vaticano II e todas as suas reformas, é a continuação em linha direta da crise do protestantismo e do jansenismo, da revolução francesa e da revolução comunista.

Se as idéias são as mesmas, se a revolução é a mesma, podemos pensar, sem medo de engano, que o remédio para sua cura será exatamente o mesmo.

Qual será o plano do divino Salvador ao querer difundir deste modo a devoção ao seu Sagrado Coração? Qual será sua intenção ao revelar de modo tão amplo os segredos de sua divina amizade? E como esta devoção pode ser o antídoto para crise tão aguda?

Nosso Senhor quer curar os males dessa peste que se difunde entre nós usando o remédio contrário. A peste negra que dizima a cristandade desde o início do Renascimento é o egoísmo satânico que propõe a própria liberdade como princípio absoluto de todas as relações do homem com Deus. O liberalismo insolente que nascerá desse espírito malsão quer transformar essa rebelião contra Deus em lei e em fundamento da sociedade. E assim o fez.

O remédio apresentado pelo Salvador será a manifestação do Amor que o moveu a encarnar-se e a morrer na Cruz por nós. Amor desinteressado, amor generoso, capaz de curar todos os nossos males: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e que é por eles tão ingratamente correspondido!”.

Ingratidão! Esse é o nome próprio da nossa sociedade moderna. Esse é o rosto verdadeiro da revolução. Nosso Salvador propõe a contemplação e o estudo do seu Amor como o grande remédio capaz de curar-nos dessa ingratidão.

Vejamos bem: Nosso Senhor não reclama da nossa desobediência. E bem que poderia reclamar. Poderia repreender-nos pelos nossos pecados. São enormes e sem número! Poderia lançar-nos ao rosto nossa malícia. Entorpecemos tudo aquilo que tocamos! Mas não, nada disso. Nosso Senhor aparece repetidas vezes para reclamar da nossa ingratidão.

 

II – Santa Margarida Maria

Em meio à tormenta do século XVII, entre a surda conspiração dos inimigos de seu reinado, Nosso Senhor elege como instrumento de seus desígnios uma religiosa tímida e escondida na clausura. Ela será o general que deverá, como nova Joana d’Arc, conduzir a batalha da cristandade.

Margarida Maria Alacoque nasceu em 22 de agosto de 1647, em Verosvres, na Borgonha. A formação da nossa santa foi marcada especialmente pelo sofrimento. Dos quatro aos sete anos, ou seja, entre 1652 e 1655, foi morar no castelo de sua madrinha, Madame de Corcheval, dama nobre da região, para ali começar, em ambiente sereno e austero, sua formação. Mas sua educação teve de ser interrompida quando Madame de Corcheval morreu. Sua afilhada então voltou à casa paterna. Em 1655, mesmo ano da morte de sua madrinha, falecem também sua irmã mais nova e seu pai, Cláudio de Alacoque. Sua mãe, Felisberta, colocou seus filhos maiores em colégios, e Margarida como interna no convento das Clarissas mitigadas de Charolles.

No convento das Clarissas, Margarida contraiu uma doença grave, sendo necessário mandá-la de volta para sua casa. Lá permaneceu cerca de quatro anos prostrada na cama, sem poder se levantar. Os médicos não sabiam mais o que fazer quando ela resolveu consagrar-se à Santíssima Virgem, prometendo-lhe que seria sua filha. “Bastou que eu fizesse o voto” – declarou Margarida – “e logo fui curada da doença com a nova proteção da Santíssima Virgem, que, tomando posse tão completa do meu coração, e tendo-me como sua filha, me governava como coisa que lhe era consagrada; me repreendia pelos meus erros e me ensinava a cumprir a vontade de Deus.” 

Em sua casa, outra situação muito dolorosa a esperava. Sua mãe tinha deixado a gestão do seu patrimônio por conta de seu cunhado, Toussaint Delaroche, homem avarento e de temperamento irritável. Ele, sua mulher e sua mãe tomaram as rédeas da casa e começaram a tratar a senhora Alacoque e seus filhos como se fossem empregados. A santa suportou durante anos a semiescravidão a que era submetida pelas injustiças do tio. Às vezes tinha até que mendigar pão aos vizinhos. A casa materna se transformou numa prisão torturante. “Deus me deu tanto amor à Cruz que não consigo viver um momento que seja sem sofrer, mas sofrer em silêncio, sem consolo, alívio ou compaixão, e morrer com este Soberano da minha alma, sob o peso de toda sorte de opróbrios, dores, humilhações, esquecimentos e desprezos...”     

Diante de seu desejo constante pela vida religiosa, e superadas as intenções de casar a jovem Margarida, sua família quis enviá-la a um convento das Ursulinas onde já vivia uma prima sua. Santa Margarida Maria – que tinha muito carinho por essa prima – deu uma resposta em que transparece seu grande desejo de perfeição: “Olha, se eu entrar no teu convento, será por amor a ti. Mas prefiro ir a um convento onde não tenha parentes nem conhecidos, para ser religiosa somente por amor a Deus.” Uma voz interior já a tinha avisado: “Não te quero lá, mas sim em Santa Maria”, que era o nome do convento das visitandinas de Paray-le-Monial. No entanto, as pressões familiares para que escolhesse as Ursulinas eram fortes. Doenças de sua mãe e de um dos seus irmãos a obrigaram de todas as maneiras a adiar seus planos de vida religiosa. Em certa ocasião, um sacerdote franciscano hospedou-se na casa dos Alacoque durante uma missão. Santa Margarida aproveitou a oportunidade para fazer uma confissão geral. Ao conhecer o alto grau de virtude e os desejos de vida religiosa da jovem, o sacerdote achou que ela devia seguir sua vocação. O religioso então conversou com o irmão dela e o convenceu a mudar de atitude. Nossa Santa foi então finalmente aceita como noviça em 20 de junho de 1671, vestiu o hábito em 25 de agosto do mesmo ano, e fez sua profissão solene em 6 de dezembro de 1672.

Nosso Senhor vinha misteriosamente dispondo de Santa Margarida de tal modo que ela era, humanamente falando, o instrumento menos apto possível para a tarefa a que a destinara. De caráter tímido, de saúde frágil, religiosa sob obediência estrita sem poder dispor de si mesma, levando uma vida de clausura sem jamais sair de dentro dos muros do seu convento, e que morreu antes de completar 45 anos, ela deveria ser o grande apóstolo que difundiria no mundo inteiro a devoção ao Sagrado Coração. Disposição surpreendente de Nosso Senhor, que quis com isso mostrar que essa difusão era obra inteiramente sua.

O Papa Pio XII, depois de fazer a lista dos Santos que a precederam na prática e difusão da devoção ao Sagrado Coração, disse a esse respeito: “Mas entre todos os promotores desta excelsa devoção, merece um lugar especial Santa Margarida Maria Alacoque, que, com a ajuda de seu diretor espiritual, o beato Cláudio de la Colombière, e com seu zelo ardente, conseguiu, não sem a admiração dos fiéis, que esse culto adquirisse um grande desenvolvimento e, revestido das características do amor e da reparação, se distinguisse das demais formas de piedade cristã.”

Durante a curta vida da nossa santa, Nosso Senhor lhe revelou os segredos do seu Amor incompreensível. Suas palavras ficarão registradas na autobiografia que Santa Margarida foi obrigada a escrever. Esse texto foi o grande meio para dar a conhecer as intenções de Nosso Senhor ao lamentável século XVII. Além dessas páginas, nossa santa conseguiu lançar seu confessor, Cláudio de la Colombière, e sua superiora, a Madre Greyfié, na obra de pregação desta devoção. Eles serão os braços de Santa Margarida em sua difusão.

 

III – As Promessas

Para mover vontades tão atrofiadas, para aquecer corações tão gelados, o divino Mestre uniu promessas surpreendentes à manifestação de seu insondável Amor.

Não se sabe quem foi que fez a compilação das famosas 12 promessas do Sagrado Coração. Mas esse devoto atento procurou cuidadosamente em todas as palavras de Nosso Senhor a Santa Margarida as promessas que associou à devoção ensinada, e as apresentou numa única lista.

 

1ª Promessa: “Eu darei aos devotos do meu Coração todas as graças necessárias a seu estado”.

É curioso como uma promessa tão grande como esta seja lida e vista com tanto desinteresse por parte dos católicos. Vejamos bem o que é que Nosso Senhor promete. Neste mundo submetido à Revolução, neste mundo apóstata, cumprir com os deveres do seu estado é, na maioria das vezes, uma situação dramática, que exige uma virtude heróica. Que pai de família nunca se viu atormentado diante das infinitas influências que empurram seus filhos na direção contrária daquilo que ele lhes ensina? Que professor católico nunca se sentiu perseguido por ensinar a seus alunos as verdades mais simples e evidentes? Que médico católico nunca teve medo de ser despedido do hospital em que trabalha por não querer receitar meios desonestos de contracepção? Que advogado católico nunca se viu compelido a mentir e a aceitar procedimentos desonrosos em seu trabalho cotidiano?

E o que mais assusta é vermos como todos estes procedimentos inadmissíveis para um católico vão se tornando lei comum em nosso mundo contemporâneo. Temos a impressão de que as garras da revolução vão se apertando e fechando todas as saídas. A desobediência à lei de Deus se torna a lei dos homens.

Pois bem: é diante desse mundo ameaçador que Nosso Senhor oferece sua ajuda ao católico indefeso. Promete a quem se torne devoto de seu Coração todas as graças necessárias, sua ajuda, sua intervenção em cada uma destas situações tão prementes. Promete abrir-nos uma porta quando o mundo nos tiver fechado todas elas. Promete Ele mesmo nos conduzir, como Capitão experiente, quando o barco da nossa vida enfrentar os recifes modernos em meio à tempestade.

 

2ª Promessa: “Eu estabelecerei e conservarei a paz em suas famílias”.

Há de fato duas promessas nesta pequena frase. A primeira é o estabelecimento da paz nas famílias, e a segunda é a sua conservação. Paz significa tranqüilidade na ordem. Portanto, estabelecer a paz significa alicerçar a vida daquela família que se fez devota do Sagrado Coração na ordem da verdade. E esse estabelecimento, para que seja pacífico, exige que seja também tranqüilo, que essa ordem estabelecida seja constante e estável. Que família não tem um filho, um pai, um irmão que esteja longe de Deus e de sua Lei? Que família não vê sua vida interna católica constantemente ameaçada? Pois Nosso Senhor promete estabelecer a paz e conservá-la, mesmo diante dos mais ferozes ataques. Nosso Senhor se oferece como o fundador e conservador das nossas famílias!

 

3ª Promessa: “Consolarei meu devoto em todas as suas aflições”.

Consideremos bem estas palavras. O divino Mestre não diz que seus devotos não terão aflições. Não! Estamos em tempo de apostasia, em tempo de guerra. O mundo está em fogo, a Santa Igreja é perseguida e humilhada, e nós, devotos do Sagrado Coração, ainda queremos ter uma vida cômoda? Não! É necessário que tomemos parte nas dores da Santa Igreja, é preciso que subamos com Nosso Senhor ao Calvário. Mas – e aqui entra a admirável promessa – o Salvador promete que estará ao nosso lado, e de cada pequena injúria, dor ou sofrimento que tenhamos, Ele mesmo virá consolar-nos! Virá mostrar-nos como superar nossos males, como tirar deles um bem maior, como os bens deste mundo passam, como teremos uma felicidade eterna. Nos consolará melhor do que um pai amoroso faria por um filho único afligido. Ele dirá em nosso interior dulcíssimas palavras que iluminem nossa inteligência inquieta e sustentem nosso coração cansado.

É tão grande o bem deste consolo que quase desejamos aflições que nos obtenham a promessa do Divino Consolador!

    

4ª Promessa: “Serei para eles um refúgio seguro na vida e principalmente na hora da morte”.

Refúgio é um lugar protegido, onde o perigo que ameaça não pode alcançar-nos, onde os males que nos perseguem encontram um escudo que os impede de chegar até nós. É um lugar que está sempre à nossa espera, para o qual podemos fugir em meio às tormentas.

O demônio, quando decide perder uma alma, se prepara longamente, estuda todos os seus passos, descobre todas as suas brechas, conhece todas as rachaduras em sua vontade e nos seus afetos, considera todos os erros que há em suas idéias. O tentador, então, vai conduzindo seu perseguido até a arapuca em que o fará cair irreparavelmente. Muitas vezes o demônio, nesse processo funesto, aceita perder um pouco para ganhar muito. Quando vemos uma inteligência angélica tão aguda dedicada inteiramente à nossa ruína, quão grande não é o nosso receio? Nos sentimos como presas fáceis diante de um predador voraz. Nos sentimos profundamente desamparados.

Nosso Senhor promete ao devoto do seu Coração ser seu refúgio. Nem toda a sutileza, nem toda a força e veemência, nem toda a astúcia do inferno inteiro reunido poderão alguma coisa contra nós, se Nosso Senhor oferecer seu Coração como refúgio. Quando o demônio, a carne e o mundo jurarem perdê-lo na hora de sua morte, o verdadeiro devoto do Coração de Jesus verá este refúgio que se abre consoladoramente para ele!

 

5ª Promessa: “Derramarei bênçãos abundantes sobre todos os seus trabalhos e empreendimentos”.

Como tudo hoje é difícil para um católico! O mundo moderno, fruto da revolução, dispôs todos os elementos da vida cotidiana de modo contrário não somente à lei de Deus e da Igreja, mas também contra a própria natureza humana. As instituições, os costumes, o trabalho, as famílias, as diversões, os estudos, tudo está organizado na direção contrária à qual um católico deveria ir. Nossos empreendimentos mais simples, as aspirações mais legítimas se vêem contrariadas constantemente. O católico parece estar diante de um frustrante dilema: ou lutar em vão, ou deixar-se levar pela corrente.

Nosso Senhor promete aqui a seu devoto que Ele mesmo conduzirá suas empreitadas e projetos. As obras realizadas deste modo terão o selo do Coração de Nosso Senhor, e, mais que uma simples ajuda em sua realização material, elas terão uma luz de vida eterna. Serão benditas para nossa salvação.

 

6ª Promessa: “Os pecadores encontrarão em meu Coração uma fonte inesgotável de misericórdias”.

Quantas vezes os sacerdotes encontram, em sua vida de apostolado, pessoas de grande valor que gostariam de sair deste ou daquele vício ou pecado, e pessoas que admiram a vida católica e gostariam de levar uma vida de piedade e que, apesar disso, terminam seus esforços com a dolorosa constatação: “Não consigo!”. Gostariam de sair do estado de pecado em que vivem, mas são tantos os laços e vínculos que os prendem a essa situação que concluem seus desejos com o grito: “Eu quero, mas não tenho valor!”.

Nosso Senhor promete ao pecador que abraçar a devoção ao seu Sagrado Coração que Ele mesmo descerá ao poço das suas misérias e debilidades. Promete conduzi-lo pela mão entre suas cadeias e amarras até trazê-lo de volta à vida da graça. Nosso Senhor promete ter paciência com ele. Ele mesmo abrirá as portas, Ele mesmo aplanará o caminho espinhoso e desfará os obstáculos que se opõem à sua conversão.

    

7ª Promessa: “As almas tíbias se tornarão fervorosas pela prática desta devoção”.

Com que facilidade os padres, pastores de almas, caem na idéia de que seja normal que a maioria dos seus paroquianos seja medíocre. Não se pode esperar que toda a paróquia seja fervorosa! Não se pode pretender que a grande maioria dos fiéis seja piedosa e bem formada! Devemos dar-nos por contentes com ter algumas almas que estejam um pouco acima da média.

Embora o fundamento deste pensamento seja uma desconfiança no valor da graça de Deus, e de certo modo quase uma blasfêmia, a experiência mostra que não é menor a dificuldade de um pecador para sair de seu estado habitual de pecado do que a de um católico medíocre para aproximar-se de uma vida fervorosa. Algumas vezes, este último é mais difícil de converter do que um pecador público! São Pio X dizia que tinha mais medo da tibieza dos bons do que da perversidade dos maus.

Pois Nosso Senhor promete a estas almas envelhecidas, a estas almas que já não se admiram com o sagrado, que não se sentem atraídas pelo céu, que já não temem sua condenação, a elas Ele promete uma renovação. Promete que do tronco velho e ressecado do seu catolicismo sairá um broto vigoroso, que dará flores e frutos surpreendentes. Estas almas que tantas vezes ouviram a pregação da Verdade, e que a recobriram com a poeira da sua banalidade, encontrarão na devoção ao Sagrado Coração uma renovada juventude.

 

8ª Promessa: “As almas fervorosas ascenderão em pouco tempo a uma alta perfeição”.

Os doutores místicos ensinam que, chegada certa altura da vida espiritual, os caminhos começam a fazer-se difíceis e sutis. Todos eles dizem que a complexidade dessas regiões espirituais é tal que as almas que atravessam o escolho do que chamam de a terceira conversão e entram na região que Santa Teresa chamou de Quarta Morada necessitam imperiosamente da ajuda de um diretor espiritual que os guie e conduza. Santa Teresa explica como, nesse momento, a falta de ajuda de um confessor bem instruído é geralmente causa de um acovardamento por parte da alma generosa. Então, ou bem regressam a uma vida de piedade comum, ou bem ficam paralisadas nesse desamparo.

Nosso Senhor promete ao generoso devoto de seu Coração que Ele mesmo será seu “Confessor instruído” ou seu “Diretor espiritual”. Ele mesmo será o Guia experiente nesses caminhos difíceis.

 

9ª Promessa: “Minha bênção permanecerá sobre as casas em que for exposta e venerada a imagem do meu Sagrado Coração”.

A bênção e proteção de Nosso Senhor e sua ação misericordiosa não serão algo passageiro, não será uma graça recebida em uma ocasião especial e memorável, mas será uma fonte constante e sempre viva. Nosso Senhor promete estar presente Ele mesmo como um fogo que mantenha a vida verdadeira da família que se fizer devota de seu Coração.

Nesta promessa vemos uma delicadeza de Nosso Senhor para conosco. A devoção consiste essencialmente em uma disposição interior, na prontidão da nossa vontade ao serviço de Deus. Mas a disposição interior necessita de uma prática exterior, tanto para expressar-se quanto para apoiar-se. É muito difícil encontrar uma prática exterior que não termine por afogar e substituir a devoção interior. Nosso Senhor aqui nos ensina Ele mesmo uma prática que possa concentrar e manifestar a devoção a seu Coração amoroso. Propõe que a família ponha no centro da casa uma imagem em que Ele apareça com seu Coração visível, e que diante dessa imagem a família venha a realizar suas práticas de piedade. Essa imagem deve ser o centro da família. Essa imagem deve ser exposta e deve ser honrada.

Nosso Senhor ali não deixará de ouvir o pai de família que venha rezar diante de sua imagem pedindo ajuda nas aflições para manter sua casa; atenderá prontamente a mãe que reze pelo filho que dá passos perigosos em sua vida incipiente; enfim, Nosso Senhor promete que Ele mesmo se tornará o Chefe daquela família, e dela cuidará como sua.

 

10ª Promessa: “Darei aos sacerdotes que pratiquem especialmente esta devoção o poder de tocar os corações mais endurecidos”.

Sacerdotes conformes ao Coração de Jesus! Nosso Senhor lhes promete que terão o poder de trazer as almas para Deus. Nos tempos da cristandade sempre houve sacerdotes generosos que, aceitando o sacrifício de suas vidas, eram enviados às terras de infiéis e pagãos. Lá deviam trabalhar, lutar e pregar sem fruto – ao menos, sem fruto aparente. E eram necessárias várias gerações de missionários para que os primeiros frutos começassem a aparecer. Que coisa terrível para um sacerdote é ver-se revestido do poder de Nosso Senhor, ser capaz de curar e salvar as almas que se condenam e, mesmo assim, ver que elas resistem ao seu chamado! Como um médico que tem nas mãos o remédio mais precioso e eficaz, e vê o doente morrer por não querer tomar o remédio que lhe é oferecido. Nosso Senhor aqui apresenta aos sacerdotes que abraçarem a devoção a seu Coração, e que façam dessa devoção o princípio da sua ação sacerdotal, a promessa de que Ele mesmo vencerá a obstinação dessas almas enfermas.

Noutros tempos, essa promessa já seria admirável; hoje, porém, ela é mais do que um tesouro raro, pois, se antigamente eram os pagãos e infiéis que mantinham seus corações inacessíveis à pregação da Verdade, hoje o mundo inteiro se tornou terra de missão: nossos países, que eram católicos, hoje vivem no mais desaforado indiferentismo. E não há nada que os faça sair dessa inação. A mais sábia pregação, os mais comovedores exemplos não causam nem sequer o mais mínimo interesse.

Pois Nosso Senhor promete que, nestes tempos de ineficácia, Ele dará poder aos pobres padres perdidos neste deserto de infidelidade para converter os corações mais endurecidos!

Uma última palavra sobre esta promessa. Embora ela se refira aos sacerdotes, podemos pensar que o próprio fato de haver sacerdotes conformes ao Coração de Jesus já é um dom do Divino Salvador. Um Priorado que tenha bem estabelecida a devoção ao Sagrado Coração não deixará de ter muitas e sólidas vocações sacerdotais.

 

11ª Promessa: “As pessoas que propagarem esta devoção terão seus nomes escritos para sempre no meu Coração”.

No dia da nossa confirmação recebemos o título de Soldados de Cristo. Este título nos deixa – nós, homens modernos – indiferentes. Soldado? O que quer dizer esta palavra que, desde então, passou a ser a nossa obrigação diante de Deus? Um rei, um duque ou um conde, em outros tempos, eram também chefes dos seus exércitos, e governavam seu reino por meio dos seus homens. Ser soldado, então, era ser um braço do rei; era participar do governo das posses de seu senhor. Nós, quando fomos armados cavaleiros, quando recebemos nosso título de nobreza de Soldados de Cristo pelas mãos do bispo, recebemos sobre os nossos ombros a obrigação de velar pela honra da Santa Igreja, pela difusão da Verdade, pela expansão do Reino de nosso divino Senhor.

Podemos dizer que, ao abraçar a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, fomos recebidos na intimidade da sua amizade. O que é ainda mais do que ser seus soldados. Pois bem: tal título exige que disponhamos dos nossos bens, das nossas forças, das nossas atividades na difusão e expansão dessa mesma devoção. Seria uma ingratidão sem nome de nossa parte se não fizéssemos assim. Que nosso Rei seja conhecido, amado e obedecido! Qual não será a nossa glória se houvermos contribuído de alguma forma para que o Reino do Sagrado Coração tenha conquistado novas almas?

Mas isto, que não é mais do que a nossa obrigação, é visto e recompensado por Nosso Senhor como se fosse uma obra de grande valor, e Ele promete aos que assim se dediquem à expansão da sua devoção que “terão seus nomes escritos em seu Coração”. Vejam bem o que nos diz o Salvador: Ele, tomando a iniciativa, nos ofereceu sua amizade e intimidade; Ele, o Criador do céu e da terra, a quem devemos submissão. E é aqui, quando respondemos a esse convite imerecido e, orgulhosos da honra com que somos tratados, anunciamos aos nossos conterrâneos deste vale de lágrimas como é bom seu Coração generoso, que – oh, incompreensível grandeza – Nosso divino Rei se sente obrigado para conosco, e nos promete uma amizade ainda maior, colocando-nos em lugares de honra em seu amor!

 

12ª Promessa: “Eu prometo, na misericórdia excessiva do meu Coração, que concederei, a todos os que comungarem na primeira sexta-feira de nove meses consecutivos, a graça da perseverança final e da salvação eterna. Esses não morrerão em desgraça, nem sem receber os Sacramentos; e nesse transe extremo receberão asilo seguro no meu Coração”.

Esta é conhecida como A Grande Promessa. “Foi numa sexta-feira de maio de 1686” – escreve Santa Margarida Maria – “que, durante a Santa Comunhão, meu divino Mestre me disse estas palavras”. Vivemos tempos muito confusos e difíceis. A revolução chegou tão longe que tudo parece estar sob seu domínio. As almas que querem permanecer fiéis são arrastadas pelos ventos mais violentos. E esta gravíssima situação chegou ao paroxismo quando invadiu a própria Igreja e fez prisioneiras as próprias autoridades. A alma fiel parece abandonada por todos os lados, perseguida e desamparada.

Pois, em meio a esta tempestade sem igual, Nosso Senhor oferece um Porto Seguro aos que queiram atender a seu chamado. Como no pequeno barco do Evangelho. E é importante notar como em suas palavras essa devoção aparece associada ao momento de crise em que vivemos: “A devoção ao meu divino Coração é o último esforço do meu amor aos cristãos destes últimos séculos. Esta devoção, se realmente entendida, facilitará a salvação de todos, levando-os a amar-se mutuamente entre si, como Eu os amei. Quero reinar por meu divino Coração sobre a pobre humanidade destes tempos. E reinarei! Apesar da oposição de satanás e de todos os que ele instiga contra Mim.”

O tempo de Fátima acabou?

A história prova Fátima. A Rússia NÃO se converteu nem está se convertendo!

O tema da minha palestra é: “O tempo de Fátima se encerrou?” Entendo por “tempo de Fátima” o tempo em que a mensagem e os pedidos de Fátima, bem como os eventos que com ela têm fortes ligações, nos trazem sua lembrança, ou lhe fazem alusão, mantêm-se atuais.

Esta aula consiste em duas partes: na primeira, nomearei alguns eventos históricos que aconteceram em datas importantes desde o ponto de vista de Fátima. Na segunda parte falarei porque a Rússia não se converteu nem está se convertendo – um dos pontos-chave para entendermos se o tempo de Fátima se encerrou, ou se ainda o estamos vivenciando. 

 

Primeira parte: A história prova Fátima. 


Não posso lembrar exatamente a primeira vez que escutei sobre Fátima. Isto ocorreu quando eu ainda era universitário ou quando ainda ia para a escola. Mas sempre me interessei por história e sempre pensei que a história do mundo tem algum propósito (a mensagem de Fátima teve grande dimensão histórica), e também como russo (Fátima teve uma grande relação com a Rússia), desde o começo fascinei-me com os eventos daquela longínqua vila portuguesa no ano de 1917 (ano que eu, como anticomunista convicto desde tenra idade, penso ser o ano mais trágico da história russa), e comecei a refletir sobre o que aquilo significava para a Rússia, para o mundo e para toda a humanidade. O que descobri foi um dos fatores que influenciaram a minha conversão à fé católica. Porém mesmo quando já era católico, durante meus estudos e pesquisas históricas, descobri mais fatos que somente reforçaram minha fé e credo na autenticidade de Fátima. 

Para mim, um dos fatos, ou melhor, série de fatos, é que muitos dos notáveis eventos históricos depois de 1917 aconteceram em “datas de Fátima” (com isso quero dizer os dias 13 dos meses de maio a outubro, com exceção de agosto, em que o dia é 19 – dias das aparições de Nossa Senhora de Fátima) e o fato de que eles provam a propagação dos “erros da Rússia” pelo mundo. Alguns desses eventos são amplamente conhecidos, outros não. Descobri a maioria dos eventos por conta própria, embora depois eu tenha encontrado alguns deles nas obras dos autores chamados “fatimistas”. 

Para relatar todos eles seria necessário escrever um livro, pois não é algo para o formato de uma curta palestra, portanto durante a minha conferência irei me ater  apenas a citar os mais impressionantes e fascinantes e, talvez, alguns pouco conhecidos. 

13 de junho de 1918 – Próximo à cidade russa de Perm, os bolcheviques assassinaram o primeiro membro da família imperial russa, ninguém menos que o grande duque Miguel, em favor do qual o imperador Nicolau II abdicou do trono na primavera de 1917. Embora Miguel não tenha aceitado o trono, de acordo com alguns historiadores e juristas ele foi, de fato, o último detentor do trono russo. A dinastia Romanov começou com Miguel e terminou com Miguel. De certo modo, podemos considerar seu assassinato simbolicamente como o fim da Velha Rússia. O corpo do grande duque até hoje não foi encontrado. 

19 de agosto de 1927 – A imprensa soviética (jornal oficial “Izvestia”) torna pública a Declaração de Sérgio Stragorodsky, ato patriarcal do então locum tenens (lugar-tenente) da igreja ortodoxa na Rússia sobre a “Lealdade incondicional da igreja ortodoxa russa ao governo soviético”. Apesar deste importante documento ter sido assinado antes, ele foi publicado exatamente no “dia de Fátima” de 19 de agosto. Infelizmente esse evento não é muito conhecido fora da Rússia, inclusive em círculos religiosos, mesmo sendo algo diretamente ligado com religião 1. O documento criou as bases de um certo fenômeno (ao qual os ortodoxos que a ele se opõem consideram heresia 2.) chamado Сергианство (Sergianismo). Na declaração, Sergio e os outros bispos que a assinaram, disseram que a igreja ortodoxa “decisivamente e irrevogavelmente" ingressou numa atmosfera "de lealdade” ao governo soviético (comunista e ateu) e sugeriu que o povo ortodoxo deixasse suas convicções políticas em casa e levasse para a igreja “apenas a fé”, ou, se eles não pudessem “fugir dos assuntos”, que a Declaração mudava apenas as “relações com o poder”, mas “a fé e a vida ortodoxa mantêm-se intactas” (o que não foi verdade) 3. No documento, Sergio também silenciou sem qualquer vergonha as perseguições religiosas na Rússia soviética, chamou as forças anticomunistas (incluindo clérigos ortodoxos) de “inimigos”, e disse que as “alegrias e sucessos” do governo soviético são “nossas (isto é, ortodoxas) alegrias e sucessos” e seus fracassos – “nossos fracassos” (sabemos porém que as “alegrias” do governo comunista incluem a destruição de igrejas e o assassinato de cristãos). Sergio todavia considerou qualquer golpe ao poder soviético como um “golpe contra nós” (ortodoxos). Porém, o mais importante é o primeiro parágrafo, citado acima. Como disse o autor russo Boris Talantov, a declaração criou uma situação em que as pessoas puderam ser chamadas ao mesmo tempo de crentes ortodoxos e leais, e cidadãos entusiastas do governo comunista 4. De modo que uma pessoa poderia acreditar em Deus, ir à igreja, rezar, comungar, etc., mas fora da igreja, a mesma pessoa poderia (e deveria) aderir fervorosa e lealmente ao regime comunista — regime que prega o ateísmo, materialismo, perseguição a cristãos, terror vermelho e assim por diante — não somente na Rússia, mas em todo o mundo. Esta é a essência do Sergianismo: A rejeição direta do Reinado Social de Jesus Cristo

Embora alguns bispos, padres e fiéis ortodoxos (que podemos chamar de um tipo de “ortodoxos tradicionalistas”) tenham sido contrários à Declaração de Sergio, logo foram silenciados, exilados ou assassinados. E fatalmente o sergianismo se tornou doutrina oficial da igreja ortodoxa (o próprio Sergio foi eleito patriarca de Moscou em 12 de setembro de 1943, com a ajuda de Stalin). E não obstante a igreja ortodoxa ter uma longa história de submissão ao poder estatal (cesaropapismo, período sinodal na Rússia, etc.), houve naquele ato algo sem precedentes: a submissão da igreja ortodoxa a um regime abertamente anti-cristão e ateu, que rompeu até com a tradicional doutrina ortodoxa sobre as relações entre igreja e estado. Outro ponto interessante sobre esse evento, é que tal mudança doutrinal aconteceu contra o plano de fundo de preservação da liturgia ortodoxa tradicional, das práticas litúrgicas ortodoxas tradicionais, etc. Quando hoje muitas pessoas do Ocidente (inclusive alguns católicos tradicionais) admiram a liturgia oriental ortodoxa, eles não entendem que essa forma tradicional não traz a essência tradicional 5. Isso foi uma astuta estratégia dos bolcheviques, verdadeiros instigadores da Declaração de Sergio, que depois de verem falhar esse primeiro atentado para destruir a igreja ortodoxa por dentro – também chamado de obnovlenchestvo (“renovação”), que incluiu a modernização da doutrina e liturgia – fizeram um segundo e mais bem-sucedido atentado (Sergianismo) para mudar a doutrina quase sem mudar a liturgia. A igreja ortodoxa e o povo ortodoxo, que foram (como podemos ver através da história) muito apegados às formas simples, frequentemente sem levar em consideração a essência, caíram vítimas desse engano. 

Curiosamente, esse evento ocorre em 1927, ano em que a Irmã Lúcia pela primeira vez recebeu do céu a permissão de revelar as primeiras duas partes do segredo de Fátima. 

Quero falar agora sobre os anos de 1929 a 1931, cruciais para todo o mundo do ponto de vista de Fátima. Por quê? Neste ano de 2017, muitas pessoas esperam algo incomum, um evento grandioso para acontecer, pois este ano é o centenário das aparições de Fátima. Mas eu, bem como outras pessoas que acreditam e se interessam por Fátima, não concordo com isso. Porque o ano em que Nossa Senhora pediu a consagração da Rússia foi 1929. Em 1917 Nossa Senhora disse: “virei pedir a Consagração da Rússia...”, e de fato ela veio pedi-la em 1929 (aparição em Tuy no dia 13 de junho). Por que ela escolheu aquele ano de 1929 e por que os anos de 1929 a 1931 (em 1931 Nossa Senhora apareceu em Rianjo e disse que o papa e os bispos estavam atrasados na consagração) são tão cruciais? 

1929 – É uma interessante coincidência que esse ano tenha sido chamado na historiografia soviética de “o ano da grande virada”, pois em 1929 o governo soviético finalmente renunciou a política econômica anterior (menos radical e mais liberal) e acelerou a coletivização da agricultura diretamente contra os camponeses. A reação à essa política foi a onda de revoltas de camponeses em várias regiões da URSS entre 1929 e 1931. Em sua entrevista nos anos 80, o ex-ministro das relações exteriores de Stalin, V. Molotov, disse que considera a vitória comunista contra os camponeses russos durante a coletivização como um evento de grande importância, até mesmo mais importante do que a vitória na Segunda Guerra Mundial 6. Então ele percebeu que naqueles anos, mais que qualquer outro momento, esteve em jogo o destino da dominação comunista na Rússia, e foi quando a queda do poder comunista esteve mais próxima de acontecer. Depois a revolta dos camponeses foi esmagada e a coletivização se realizou (1931-32), a espinha dorsal da Velha Rússia, que eram os camponeses russos, foi quebrada econômica, política e culturalmente... 

1929 – Foi também o ano da crise econômica nos EUA, que começou em outubro, pouco depois do dia 13. Essa crise econômica gerou uma depressão que, de acordo com alguns pesquisadores, devido a políticas equivocadas implementadas pela administração de Herbert Hoover e Franklin D. Roosevelt, se tornou a “Grande Depressão” (curiosamente, Hoover trabalhou antes na American Relief Administration, ligada à Rússia pós-revolucionária, e Roosevelt usou conselhos de especialistas econômicos da escola keynesiana, os quais admiravam e usavam experiências soviéticas, portanto aqui encontramos novamente "erros da Rússia"7.) A Grande Depressão influenciou os panoramas econômicos e políticos de todo o mundo. 

1929 – Foi também exatamente o ano em que um prisioneiro italiano começou a escrever seus “Cadernos da prisão”. Esse homem, Antonio Gramsci, foi o fundador do partido comunista italiano e seus cadernos serviram como a base do Marxismo Cultural, uma praga que tem devastado o Ocidente moderno e, de muitas maneiras, a Rússia moderna e o mundo inteiro. Mas Gramsci não foi o inventor dessa ideologia. Ele usou a experiência dos bolcheviques que recebeu enquanto morava na Rússia soviética, em Moscou, entre 1922 e 1923 8. Ali, ele não só casou-se com uma revolucionária russa de uma família de amigos de Lenin, como conheceu o próprio Lenin e assistiu não só a implementação das políticas econômicas comunistas, mas também viu como os bolcheviques buscavam mudar a cultura tradicional. Ele observou as consequências da legalização do aborto (o estado soviético foi o primeiro na Europa a legalizá-lo), provavelmente a preparação da primeira edição da Grande Enciclopédia Soviética, na qual proclamou-se a tolerância do poder soviético à homossexualidade (ao contrário dos estados "capitalistas" ocidentais), observou os desfiles de homens e mulheres nus sob a bandeira vermelha nas ruas de Moscou (mais tarde organizada na organização bolchevique "Abaixo a vergonha!") que proclamou a vergonha como um "preconceito burguês", e o indivíduo humano como "apenas um animal", assistiu à devassidão na Rússia bolchevique, seguida da disseminação de teorias como a famosa "teoria do copo d'água" de Alexandra Kollontai, revolucionária e feminista (mais tarde primeira embaixadora mulher da União Soviética, que notavelmente não foi vítima dos expurgos de Stalin dos velhos bolcheviques e viveu confortavelmente sob o governo stalinista até o fim de sua vida em 1952) e que proclamou não existir o amor e que as relações entre homem e mulher são "apenas uma necessidade fisiológica", "como beber um copo d'água", de modo que as mulheres podem se satisfazer com qualquer homem, em qualquer momento, etc. Todas essas coisas fascinaram Gramsci e ele as usou em seu desenvolvimento do Marxismo Cultural. A Rússia “espalhará seus erros..." 

Setembro de 1931 - O Japão invade a Manchúria, na China, evento que muitos historiadores hoje consideram o primeiro da cadeia de eventos que culminou na Segunda Guerra Mundial. 

1931 - Nosso Senhor disse à Irmã Lúcia: "Não quiseram atender ao Meu pedido! ... Como o Rei da França, arrepender-se-ão, e fá-lo-ão, mas será tarde. A Rússia já terá espalhado os seus erros pelo mundo, provocando guerras e perseguições contra a Igreja." 

Agora, quero falar um pouco sobre os acontecimentos na história do país que durante muitos anos foi objeto de meus estudos históricos: a Espanha. Em 1931 aconteceu uma revolução naquele país, caiu a monarquia e proclamou-se a República. Desde o início, a Segunda República Espanhola manifestou tendências anticatólicas. 

11-13 de maio de 1931 - Em diversas grandes cidades da Espanha foram queimadas, saqueadas e destruídas muitas igrejas e conventos. O governo republicano ignorou (e por vezes encorajou) tais eventos. 

13 de outubro de 1931 - Durante os debates parlamentares sobre artigos anti-religiosos e anticatólicos da nova Constituição da República Espanhola, o líder dos liberais de esquerda e futuro primeiro-ministro Manuel Azana proclamou solenemente: "A Espanha deixou de ser católica." 

13 de maio de 1936 - Após a vitória da Frente Popular de extrema esquerda (coalizão de socialistas, comunistas e liberais de esquerda apoiados por anarquistas) nas eleições gerais no inverno daquele ano, após a qual Azana se tornou presidente da República, seu sócio Santiago Casares Quiroga tornou-se o novo primeiro-ministro. Durante os famosos debates parlamentares de 16 de junho, em que o líder da oposição de direita, o monarquista José Calvo Sotelo culpou o governo da Frente Popular pela desordem e violência que naqueles dias reinavam na Espanha, Casares respondeu-lhe que se algo acontecesse, o único responsável seria o próprio Calvo Sotelo. Os radicais de esquerda que participavam da sessão entenderam essa ameaça no sentido de que, se cometessem algumas ações contra a oposição de direita e contra Calvo Sotelo pessoalmente, não seriam punidos pelo governo. 

13 de julho de 1936 - Às três da madrugada, um grupo da polícia republicana, acompanhado de membros do Partido Socialista Espanhol, chegou ao apartamento de Calvo Sotelo em Madri, eles o prenderam ilegalmente e depois o assassinaram no carro da polícia. O assassinato do líder da oposição do parlamento pela polícia estatal teve um efeito tão forte no país, que foi exatamente depois disso que muitas pessoas — entre as quais o general Franco — que ainda tinham dúvidas sobre se unir à possível insurreição contra as forças revolucionárias do governo, decidiram agir antes que fosse tarde demais. A insurreição de 17-18 de julho, que terminou em abril de 1939 com (usando as palavras do papa Pio XII) "a vitória da Espanha católica" começara. Outro fato interessante sobre isso é que José Calvo Sotelo, assassinado naquela "data de Fátima" de 13 de julho de 1936, nasceu na cidade de Tuy, numa casa situada não muito longe do convento em que a Santíssima Trindade com Nossa Senhora apareceram à Irmã Lúcia em 1929! 

Quanto à Segunda Guerra Mundial, não é amplamente conhecido o seguinte evento: 

19 de agosto de 1939 - Como se sabe, o pacto entre a Alemanha nazista e a União Soviética (conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop) foi assinado em 23 de agosto de 1939, mas de fato fora decidido anteriormente, na data de 19 de agosto. Naquele dia assinou-se o acordo de crédito Alemão-Soviético, que precedeu o Pacto final. Além disso, esta é a data do suposto discurso de Stalin (suposto porque alguns historiadores, seguindo a historiografia soviética, negaram a sua existência, no entanto outros historiadores pensam que este discurso foi real), em que ele explicou que a URSS precisava rejeitar a união com a Grã-Bretanha e a França em favor de um acordo com a Alemanha, e que interessava à URSS 9 um conflito entre Alemanha, Grã-Bretanha e França. O embaixador alemão na URSS, Schulenburg, estava convencido de que a decisão sobre o Pacto de Stalin com a Alemanha (com seu protocolo secreto) ocorrera exatamente no dia 19 de agosto. Depois da assinatura do Pacto, Hitler entendeu que Stalin não impediria suas ações na Polônia, e o caminho para a guerra mundial estava aberto. 

Penso que todos esses acontecimentos, de grande importância histórica, ocorridos nas "datas de Fátima" no período anterior à Segunda Guerra Mundial, mostram-nos claramente o significado e a autenticidade da mensagem de Fátima. Como nosso tempo aqui é limitado vou apenas citar algumas datas semelhantes do período posterior à Segunda Guerra Mundial. 

13 de outubro de 1962 — Foi o dia da primeira importante vitória da facção liberal durante o Concílio Vaticano II da Igreja Católica (referente à questão da composição das comissões do Concílio) 10. No mesmo dia, de acordo com algumas fontes, representantes da igreja ortodoxa russa do patriarcado de Moscou chegaram ao Concílio 11. O Sergianismo, um dos principais "erros da Rússia", entrou na Igreja Católica não apenas literalmente através desses representantes, mas através das inovações introduzidas nos documentos conciliares pela facção liberal, cujo objetivo era uma "adaptação" da Igreja Católica ao "mundo moderno", rejeitando o Reinado Social de Jesus Cristo. 

13 de setembro de 1963 — Foi o dia da segunda importante vitória da facção liberal no Concílio Vaticano II (quando o novo papa Paulo VI nomeou quatro cardeais-moderadores com amplos poderes, três dos quais eram liberais, assegurando e reforçando com isso o domínio liberal no Concílio). 

Chegamos agora aos tempos do colapso da URSS. Curiosamente, mais uma vez, uma das principais pessoas que, juntamente com o  presidente dos EUA Ronald Reagan, derrotou a URSS na fase final da Guerra Fria, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher nasceu na "data de Fátima", 13 de outubro de 1925. Eventos que levaram diretamente ao colapso da URSS (prisão de Gorbatchov, tentativa frustrada de golpe de Estado por parte dos comunistas linha-dura, confronto em Moscou, etc.) aconteceram nos dias 19-21 de agosto de 1991. Entretanto, o dia da Independência da Rússia (da URSS, agora hipocritamente chamado simplesmente de o Dia da Rússia) é celebrado em 12 de junho (não 13, mas no dia anterior), talvez seja uma alusão do Céu ao fato de que a conversão da Rússia, não está concluída. 

Podemos dizer realmente, mesmo levando em consideração todos os eventos históricos ocorridos nessas datas características, que a "Época de Fátima" terminou e faz parte apenas da história, como algumas pessoas dizem? Começarei agora a segunda parte da minha palestra, na qual falarei sobre o tema da "conversão da Rússia". 

 

Segunda Parte: A Rússia NÃO está convertida nem está se convertendo! 


"Pelos seus frutos os conhecereis" (Mt 7,16). 

Podemos realmente dizer que a Rússia se converteu à Fé (mesmo que não para a católica, mas para alguma fé "cristã") ou que pelo menos se converteu do comunismo? 12

Sei que há uma tendência no Ocidente contemporâneo e, o que me surpreende, mesmo em círculos tradicionalistas, de considerar que a Rússia atual passa por algum tipo de reavivamento político e cultural, religioso e "tradicionalista". Como exemplo, tomarei o artigo de um respeitado autor, Robert Siscoe, que li há alguns anos em uma cópia do jornal The Remnant, adquirido por mim na capela da FSSPX na Grã-Bretanha 13. A principal mensagem deste artigo é a de que a Rússia de hoje é quase tradicional materialmente, e que precisa apenas da essência (a fé católica) para alcançar a conversão formal ou final. Infelizmente, com todo o respeito ao Sr. Siscoe, devo dizer que tal visão da Rússia atual não é mais do que um pensamento conseqüente a um desejo. Devo discordar dele categoricamente, pois a realidade que vivemos na Rússia hoje é tão distante do quadro do Sr. Siscoe, que às vezes parece-me um pesadelo. 

Não, a Rússia não se converteu nem está se convertendo, nem sequer materialmente! Pelo contrário, está cada vez pior, comparando-se à situação de 15-20 anos atrás. Nos últimos anos, a Rússia tem passado não por um renascimento espiritual, mas por um renascimento soviético, que não pode prometer nada de bom. 

Não muito longe daqui, na praça Vermelha, a múmia de Lênin ainda está em seu mausoléu satânico. Centenas de monumentos a Lênin e seus asseclas ainda estão nas praças e ruas das cidades, vilas e aldeias russas. Apenas alguns deles foram destruídos nos anos 90. Hoje, eles não só são mantidos sob o pretexto de que "tudo isso é nossa história", mas foram acrescidos de novos monumentos a ninguém menos que Josef Stalin. Sim, nos últimos anos, em diferentes lugares da Rússia, foram instalados muitos monumentos e bustos para Stalin 14. O último foi erguido (em torno da nova escultura de Lênin) na chamada "Viela dos chefes de Estado" em Moscou, inaugurado em setembro deste ano na presença do ministro da Cultura da Federação Russa e outros funcionários. Essa tendência é algo sem precedentes, porque mesmo nas últimas décadas da URSS, na Rússia, monumentos a Stalin eram praticamente inexistentes, já que tinham sido destruídos durante os tempos de Khrushchov e só agora começaram a ser reerguidos! 

Milhares e milhares de ruas de cidades, vilas e aldeias russas ainda são batizadas com nomes de Lenin e outros criminosos comunistas e assassinos em massa (não apenas russos). Basta simplesmente olhar o mapa de qualquer (qualquer!) cidade, aldeia ou vila russa na internet para entender isso! Quando propostas para rebatizá-las aparecem, geralmente são combatidas sob o pretexto de que rebatizá-las é "caro". Mas isso não é verdade, porque é barato. Além do mais, é uma hipocrisia, pois quando por exemplo algumas pessoas danificaram a grande estátua de Lenin em São Petersburgo, na praça atrás da estação de trem "Finlândia" (inclusive, para o revestimento desta praça foram usadas pedras de um cemitério católico de São Petersburgo destruído pelos bolcheviques), esta estátua foi restaurada "em todo o seu esplendor", à custa de milhões do dinheiro dos contribuintes. Por outro lado, quando surgem tentativas modestas de instalar algo que glorifique os heróis da resistência anticomunista, essas tentativas encontram hostilidade. Recentemente, por exemplo, houve uma tentativa de pendurar uma pequena placa no prédio em que viveu o almirante Kolchak, um dos líderes do Movimento Branco, que lutou contra os bolcheviques durante a guerra civil. Esta placa dizia apenas que Kolchak fora um oficial e explorador russo, não havia sequer menções sobre sua liderança do Movimento Branco ou sobre a sua luta contra o bolchevismo. Mas, de qualquer forma, as organizações pró-comunismo, depois de muitas vezes vandalizarem a placa, foram ao tribunal e ela foi removida, por decisão do tribunal e das autoridades. Assim, nos mapas das cidades russas é praticamente impossível encontrar quaisquer ruas dedicadas aos heróis da resistência anticomunista, ou mesmo aos czares ou personalidades do tempo imperial, e o mesmo acontece com os monumentos. Se existe algum, o número é tão ínfimo que é apenas uma exceção à regra. 

Há alguns anos aconteceu algo semelhante ao incidente acima em Moscou. Alguém decidiu abrir um restaurante com o nome de "Anti-Soviético". A razão não era ideológica, mas apenas uma piada, pois no lado oposto da avenida havia uma "Cafeteria Soviética". Algumas pessoas, no entanto, também foram ao tribunal, exigindo eliminar esse nome, porque era "ofensivo" (não o "soviético", mas o "anti-soviético"!). Consequentemente, o nome foi removido, e o homem que iniciou o processo contra o restaurante "anti-soviético" foi nomeado pelo prefeito de Moscou, Sobyanin, como nada menos que Representante oficial de Moscou na Alta Câmara do Parlamento russo (13 de setembro de 2013)! 

Estes são fatos de caráter ideológico, mas e a esfera espiritual? Diz-se que a Rússia passa por algum renascimento espiritual, pelo menos ortodoxo. Mas é verdade? Os espectadores ocidentais, normalmente, observam apenas a hostilidade da atual Rússia ao casamento gay e à homossexualidade. Mas não entendem que as razões contra essas coisas na Rússia geralmente não são de caráter moral e, o que é mais impressionante, é que muitas pessoas na Rússia se opõem ao casamento homossexual ao mesmo tempo em que, por exemplo, apoiam o aborto. Não parece lógico, mas é verdade. A taxa de aborto na Rússia ainda é uma das mais altas do mundo, e, o que é especialmente curioso, não há um forte movimento Pró-Vida na Rússia, em comparação aos países ocidentais, sobretudo católicos. Até mesmo a igreja ortodoxa, à exceção de poucos indivíduos, prefere não falar sobre este importante tema, temendo uma reação hostil do público (quero dizer, não de grupos liberais, mas de um espectro mais amplo da sociedade) e de autoridades. Na verdade, a igreja ortodoxa continua a política sergiana de submissão à vontade do governo, mesmo que o governo não seja muito cristão. As autoridades na Rússia, de fato, têm uma postura pró-aborto. Às vezes, elas podem fazer algumas declarações sobre o "perigo da baixa taxa de natalidade", etc., mas em geral são apenas declarações, de modo que o aborto continua sendo um tema que não se pode tocar, e os indivíduos que tentam defender a sua proibição são zombados e silenciados. Além disso, os contraceptivos, os divórcios, a pornografia, a prostituição, etc., também são comuns na atual Rússia. 

A imprensa ocidental gosta de criar a sensação de um suposto "renascimento espiritual" da fé ortodoxa na Rússia de hoje. Eles geralmente observam, neste caso, a proximidade de autoridades do governo com a igreja ortodoxa russa, e longas filas de pessoas que querem ver algumas relíquias. Quanto ao primeiro ponto, já falei sobre o Sergianismo, quanto ao segundo, eles não levam em conta a curiosidade do povo russo. O mais importante, porém, é que tais expectadores, jornalistas, etc., só têm interesse em criar uma impressão falsa (ou fake news, se quiser), eles não vão a nenhuma celebração normal de domingo na igreja ortodoxa. Caso contrário, veriam um quadro bastante diferente: um número de fiéis muito pequeno, mesmo nas grandes catedrais de cidades como Moscou e São Petersburgo, comparado por exemplo, ao número de fiéis em países como a Polônia ou até mesmo nações hoje mais secularizadas da Europa Ocidental como a Espanha e a Itália. Falei sobre os domingos comuns, porém mesmo nas grandes festas, as estatísticas testemunham a mesma tendência. De acordo com estatísticas policiais, que são mais objetivas neste caso, nas celebrações da Páscoa de 2014, por exemplo, participaram 300 mil pessoas 15. A população de Moscou é de cerca de 12 milhões de pessoas, ou até mais. Pode-se contar quão pequeno é o número de verdadeiros crentes ortodoxos na capital da Federação Russa! Na realidade, o número de crentes ortodoxos não mudou muito durante a última década e não ultrapassa os 10%, mesmo nas regiões "mais ortodoxas"; em outras é cerca de 2-4%16. Por outro lado, o número de muçulmanos vem crescendo constantemente e em festas muçulmanas é possível ver multidões de muçulmanos rezando ao redor de suas mesquitas em Moscou, São Petersburgo e outras cidades e vilas. 

Além disso a espiritualidade ortodoxa, tal como praticada na Rússia de hoje, é muito peculiar. O sergianismo está vivo não só em mera forma, mas também em essência. Nos últimos anos houve casos de "ícones de Stalin" em algumas igrejas ortodoxas. Por exemplo, um certo "ícone" foi venerado no bairro de São Petersburgo de Strelna, não muito longe do palácio do Congresso Presidencial 17. Embora esses "ícones" similares não sejam oficiais, há tendências stalinistas e pró-comunistas difundidas entre os ortodoxos na Rússia, e até entre o clero. As mesmas pessoas podem se considerar ortodoxas e louvar a União Soviética, Stalin que é descrito por alguns extremistas como um "líder ortodoxo" (sic!) e até Lenin, etc. Muitos ortodoxos pediram a canonização de Sérgio Stragorodsky, o instigador do sergianismo. Até o próprio Patriarca Cirilo pediu que se reconhecessem "as conquistas do período soviético"18.(sic!) Alguns dias atrás, na ocasião da abertura do monumento às vítimas das repressões políticas (por algum motivo, incrivelmente, não são chamadas de vítimas das repressões comunistas), Cirilo disse que o comunismo era uma "grande ideia para construir um mundo livre e justo” (sic!) e apenas a sua implementação na prática estava errada 19

O próprio presidente Putin, em janeiro do ano passado (2016), disse que "gostava e ainda gosta de idéias comunistas e socialistas" (sic!). E comparava o chamado "Código moral do construtor do comunismo" nada menos do que à Bíblia 20! Apesar de ele também ter dito depois que a "incorporação prática" dessas ideias não foi perfeita, essa declaração é, de qualquer maneira, bastante notável. Antes, Putin apresentara uma cópia do "Manifesto Comunista" de Marx e Engels como presente de aniversário ao líder do Partido Comunista da Federação Russa, Guennadi Ziuganov, e depois disse: "São para esses tempos, devemos nos orientar nessa direção"21(sic!). 

Portanto o que está se passando na Rússia agora não é um renascimento espiritual, mas um renascimento soviético (ou neossoviético), envenenando todas as esferas da vida. Quem for a qualquer grande livraria de Moscou, São Petersburgo, etc., verá dezenas ou até centenas de livros de autores que podemos chamar de "revisionistas soviéticos". Pode-se ver prateleiras de livros sobre Stalin, por exemplo, a maioria enaltecendo-o como "grande líder", "gestor eficaz", etc., e rejeitando os fatos das repressões soviéticas, dizendo que "elas nunca aconteceram" ou justificando-as; livros enaltecendo outros líderes soviéticos, até mesmo os mais sangrentos deles, como Beria, etc., e livros justificando a URSS 22. Comparado com eles, o número de livros que contam a verdade sobre as atrocidades comunistas, sua ideologia, seus líderes, etc., e livros sobre os heróis da resistência anticomunista é muito pequeno. O povo russo está hoje ativamente submetido a uma lavagem cerebral por essa propaganda neossoviética. Quem assistir canais de TV estatais russos (não canais como RT para espectadores estrangeiro, mas para o espectador doméstico em primeiro lugar), verá muitos filmes, séries, documentários que, se não elogiam, ao menos apresentam o período soviético como heróico, inofensivo e até mesmo "fofo" (como talvez não perfeitos, mas "velhos bons dias"). Diversas pessoas pró-soviéticas e pró-stalinistas participam regularmente de programas de entrevistas nos canais de TV russos (para o espectador doméstico, em primeiro lugar) como convidados bem-vindos, geralmente com apoio do público 23. Alguns anos atrás também foi aprovada uma lei que proíbe a crítica às ações do Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial e a comparação da União Soviética com a Alemanha nazista 24. Mitologia soviética e arquétipos, estereótipos e slogans da propaganda soviética são ativamente usados hoje na política externa russa, especialmente nas relações com países vizinhos e ex-membros da URSS. Essa propaganda esteve especialmente ativa durante as últimas crises na política externa. Quando durante esse período assisti aos canais estatais da televisão russa e li fontes pró-governo na internet, pareceu-me que tinha voltado à URSS, porque toda a retórica estava repleta de clichês tirados diretamente dos tempos soviéticos. Na arena da política externa, a Rússia agora tem amizade com a Venezuela socialista, Cuba, Coréia do Norte e China comunistas, Irã islâmico, etc. A única coisa boa que posso apontar sobre a atual política externa russa são suas ações na Síria, mas elas estão sendo realizadas por razões outras que a defesa dos cristãos ou do cristianismo. 

Se compararmos a Rússia atual com a Rússia dos anos 90, por exemplo, veremos que se nos anos 90 o principal discurso ideológico se houve algum em que existiu algum elemento de arrependimento dos crimes do comunismo era sobre o assassinato da família do imperador Nicolau II; agora o principal discurso ideológico do regime é a vitória na Segunda Guerra Mundial, que, não importa como seja abordada, foi também uma vitória comunista. Sob o prazer dessa vitória, muitas coisas soviéticas (de bandeiras vermelhas, agitadas maciçamente nas ruas hoje, até justificativas ideológicas ao regime comunista e suas diversas ações), como disse anteriormente, estão retornando às nossas vidas.

Na verdade, a sociedade contemporânea russa de líderes a pessoas comuns que critica ativamente o liberalismo em palavras, na prática, conscientemente ou inconscientemente, professa um dos princípios fundamentais do liberalismo: o relativismo moral. Especialmente em relação à sua própria história. "Tudo isso é a nossa história": é o chavão das pessoas que tentam defender os monumentos de Lenin, os crimes de Stalin, etc. Mas elas não entendem que não há "simplesmente história", o que há é boa história e má história, e para começar uma nova vida feliz, um homem ou um país deve avaliar o seu passado e condenar os seus pecados, tentando não repeti-los. 

Mas esta simples verdade cristã é o que está faltando na Rússia hoje! A maioria esmagadora do povo russo, do governo até à igreja (ortodoxa) e os homens comuns, está em estado de atrofia moral. Eles não têm arrependimentos pelos crimes do comunismo soviético nem compaixão por suas vítimas, eles se recusam a condenar essa ideologia maligna, que causou tanto dano não só ao mundo, mas em primeiro lugar ao próprio povo russo. Pelo contrário, como uma vítima da "síndrome de Estocolmo", a sociedade russa, à exceção de alguns indivíduos corajosos, começa a justificar e até louvar aquela época, tentando diminuir ou até mesmo rejeitar como "mentiras" (inventadas por “malfeitores anti-soviéticos") as atrocidades do regime comunista, ou mesmo aprovando-as, dizendo que eram “corretas e justas” e que as vítimas dos comunistas eram “traidores, fascistas”, etc.; ou até mesmo começa a inventar mitos óbvios, como o de que a URSS era "um país cristão" (não explicitamente, mas "em sua alma" e ações, dizem) e que Stalin era "um czar ortodoxo", "fiel disfarçado" e teorias malucas parecidas 25. Ou pelo menos, diz-se que o comunismo era uma "idéia boa e bonita", apenas sua implementação não foi tão perfeita etc. Pergunte a qualquer um nas ruas da atual Rússia o que pensa sobre o período soviético, o comunismo, Stalin, Lenin, etc. A resposta da maioria será positiva ou indiferente, mas dificilmente será negativa. De acordo com uma recente enquete do principal centro de pesquisa, 38% da população considera Stalin como "o maior homem da história"(!), 32% considera Lenin 26. Outras pesquisas indicam que o número de pessoas que considera as repressões como "um crime político" diminuiu nos últimos cinco anos de 51% para 39% 27

Mas nós, como cristãos, sabemos que sem arrependimento não há absolvição! Enquanto a sociedade russa, o povo russo, não entender a natureza perversa da ideologia comunista como tal e não condenar explicitamente a ideologia comunista e o regime soviético, não haverá conversão. Não se pode ser cristão e ao mesmo tempo elogiar, ou pelo menos justificar, o regime comunista. É preciso rejeitar o regime comunista completamente com todos os seus crimes, etc. Agora, porém, a Federação Russa é a sucessora legal da URSS, tem o hino nacional da era soviética (embora com outras palavras), festas soviéticas, a era soviética é louvada por parlamentares, funcionários, publicitários e até padres; milhares de ruas das cidades russas, vilas e aldeias ainda glorificam "heróis" bolcheviques e nelas ainda se levantam monumentos para eles. E, no centro da capital russa, em seu mausoléu satânico, se encontra a múmia do principal bolchevique, Lenin... 

Sim, a maioria dos russos atualmente não é comunista, mas ainda é soviética. "Soviético" é uma categoria mais ampla do que "comunista", relaciona-se não só com o partido, mas também com a mentalidade e com o estado. A mentalidade da maioria do povo russo agora, de funcionários do governo a trabalhadores comuns, na realidade ainda é "soviética", e mesmo a geração mais jovem foi envenenada de sovietismo por seus avós ou pelos livros didáticos, que ainda estão cheios de paradigmas marxistas, porque nos anos 90 as pessoas foram preguiçosas para limpá-los desse veneno. O povo russo ainda gosta de coisas que gostava nos tempos soviéticos e odeia coisas, pessoas e países que odiava naquele período, por causa das diretivas do poder soviético (por isso se opõem ao casamento gay, porque não existia naqueles tempos, ao mesmo tempo que apoiam aborto e divórcio), as divergências em relação a isso são pouco comuns 28

Na esfera espiritual, também não podemos ver nenhuma tendência positiva real. Além do aborto, há o divórcio (Putin, Sobyanin e outros são homens divorciados), etc. Quem simplesmente for às ruas de Moscou, São Petersburgo e outras cidades, verá o mesmo comportamento imoral, a mesma moda imoral, o mesmo envenenamento pelo Marxismo Cultural que existe nos países ocidentais modernos. Não há diferença. Em pequenas cidades e vilarejos, destruídos pela coletivização comunista, a decadência é ainda mais visível. Mas a situação na Rússia é ainda pior, porque diferentemente dos países europeus e americanos, em que existem, mesmo que pequenas, saudáveis forças de oposição tradicionalistas, conservadoras, anti-comunistas ou anti-liberais, na Rússia só existem forças pseudo-conservadoras soviéticas (ou semi-soviéticas), que justificam o comunismo criminoso, ou os liberais pró-Ocidente contemporâneo. Para pessoas de mentalidade realmente tradicional, qualquer uma dessas alternativas é inaceitável. Essa é a devastação que a URSS deixou para trás. 

Entretanto, não há nada de errado em rejeitar os pecados do passado e condená-los! Muito pelo contrário, depois disso (mas somente depois disso), uma nova vida feliz começará! Ademais, neste caso, um grande futuro aguarda a Rússia e o mundo — tempo do triunfo do Imaculado Coração, da paz e do reinado de Maria... Mas é evidente que agora a Rússia não pode fazer isso sozinha, ela precisa da ajuda urgente do céu. 

A sociedade russa está doente, há décadas que ela sofre lavagem cerebral de propaganda comunista e, agora, neo-soviética. Está doente a tal ponto que, como às vezes penso, pode dar nascimento a uma construção ainda mais monstruosa do que foi a URSS, ou pode ser salva por um milagre. Esta não é uma opinião apenas minha, mas de muitos conhecidos meus, católicos tradicionais ou não. 

Acredito que todos os fatos (que podem ser facilmente provados) citados em minha palestra falam por si mesmos. E que a resposta para a pergunta de se a Rússia foi convertida ou está se convertendo é evidente. A Rússia não foi convertida nem está se convertendo, pelo contrário, vai agora na direção oposta. Significa que o "Tempo de Fátima" está longe de terminar, nós ainda o vivemos. O mundo moderno está envenenado pelos "erros da Rússia": o Ocidente pelo Marxismo Cultural e a Rússia pelo sovietismo e pelo relativismo moral, e que justifica e se recusa a condenar tanto os crimes dos comunistas como essa ideologia maligna. O único meio de salvar o mundo foi definido pelo Céu em Fátima e Tuy. A Rússia precisa urgentemente da consagração! É nossa única esperança. 

Falei anteriormente sobre um milagre. Este milagre nos foi prometido por Nossa Senhora em Fátima. Quando isso vai acontecer, e depois de todo tipo de infortúnios, depende do papa, dos bispos e de nós também. 

P.S: Alguns eventos importantes aconteceram depois desta palestra, que são provas até maiores da tese principal nela apresentada — que a Rússia nem se converteu, nem está em vias de converter-se. Por causa de sua relevância, penso que é importante mencioná-los aqui na forma deste Post Scriptum

Em primeiro lugar, deve-se dizer que, no novo documentário, filmado em janeiro de 2018, o presidente russo Vladimir Putin disse que "o comunismo é muito semelhante ao cristianismo", porque em sua opinião, ambos se baseiam em idéias de "liberdade, igualdade, fraternidade"29. Mas sabemos que na realidade a tríade "liberdade, igualdade e fraternidade" é o slogan maçônico, e não cristão! 

Além disso, Putin repetiu novamente sua infeliz comparação do "código do construtor do comunismo" com a Bíblia, e ainda mais blasfemamente comparou a múmia de Lenin, ainda deitada no mausoléu em Moscou, com relíquias sagradas de santos cristãos! 

Além disso, Guennadi Ziuganov, chefe do Partido Comunista Russo, disse que Putin prometeu-lhe que enquanto permanecer como presidente, o corpo de Lenin permanecerá no mausoléu na Praça Vermelha. De acordo com Ziuganov, Putin também rejeitou as alegações de que Lenin não foi enterrado de acordo com as tradições cristãs 30, ignorando assim um óbvio caráter oculto e o simbolismo do mausoléu. 

O segundo evento notável aconteceu quase simultaneamente. A nova comédia britânica "A Morte de Stalin", de Armando Lanucci, foi proibida na Rússia. Não discutiremos aqui a qualidade ou precisão histórica desse filme, mas o que é importante para nós é o fato de que ele foi rotulado como "extremista" e "ofensivo à história russa (sic!)" por burocratas, políticos, ativistas culturais e até sacerdotes ortodoxos, porque zomba de líderes soviéticos! O autor pró-stalinista Nicolai Starikov chamou o filme de parte de uma "guerra de informação anti-russa (sic!)". O ministro da Cultura da Federação Russa, Vladimir Medinsky disse que o filme será visto pelo público em geral, na sua opinião, como uma "zombaria de todo o passado soviético" e Pavel Pozhigailo, o então chefe do conselho público do Ministério da Cultura da Federação Russa, chamou isso de "ofensivo aos comunistas" (sic!) 31. Como se os comunistas e o passado soviético fossem algo sagrado para a atual Rússia (e de fato eles são, como podemos ver nos numerosos exemplos mencionados nesta palestra, para muitas pessoas, de oficiais de alto escalão a pessoas comuns nas ruas, para sua própria infelicidade e para a infelicidade da Rússia). 

Em todos esses exemplos, podemos ver que o espírito soviético está longe de morrer na Rússia, ao contrário, ele está ressuscitando agora em uma forma neo-soviética! Isto prova claramente que a conversão da Rússia não foi concluída nos anos 1980-90 e não está acontecendo agora, pelo contrário, muitos processos e eventos alarmantes, como os dois mencionados neste Post Scriptum, são o grito pela necessidade urgente de consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, exatamente como foi pedido em Fátima e em Tuy! Quanto antes melhor! Nossa Senhora de Fátima, rogai por nós! 

  1. 1. Além disso, não há muita informação sobre o tema em inglês ou outras línguas, e este evento é considerado como caso estritamente ortodoxo, embora na realidade não seja, especialmente à luz de Fátima.
  2. 2. Veja, por exemplo: Moss V. Sergianism as an Ecclesiological Heresy. http://www.euphrosynoscafe.com/www.saintbasilchurch.org/10.html
  3. 3. Texto da Declaração com links para opiniões a favor e contra dos seus contemporâneos, pode ser visto aqui: http://www.krotov.info/acts/20/1927/19270729.html
  4. 4. Talantov B. Sergianism, or Adaptation to Atheism (the Leaven of Herod). http://orthodoxinfo.com/ecumenism/cat_tal.aspx
  5. 5. Eles não sabem também, que o nome atual da Igreja Ortodoxa Russa (Russkaya), do Patriarcado de Moscou também vem dos tempos de Stalin, porque antes o nome era outro — Igreja Ortodoxa Greco-Católica Russa (Rossiyskaya) (Cafólica (Kafolicheskaya)) aqui é a palavra grega, semelhante à católica (Katolicheskaya), mas usada pelos ortodoxos não no sentido de orientação a Roma ou a união com ela, é claro. Assim, a continuidade entre a ortodoxia russa pré-revolucionária e sua versão soviética é duplamente duvidosa.
  6. 6. https://www.e-reading.club/chapter.php/64297/131/Chuev_-_Sto_sorok_besed... // Чуев Ф. Сто сорок бесед с Молотовым. М., 1991.
  7. 7. Veja, por exemplo: Shlaes A. The Forgotten Man. A new history of the Great Depression. 2007.
  8. 8. Em Moscou, não muito longe do Kremlin, é possível ver uma placa comemorativa na casa em que Gramsci morou em 1922-23 (Rua Mokhovaya, 16) próxima à casa do sangrento revolucionário húngaro Béla Kun, que também morava lá, e outros.
  9. 9. Em inglês, por exemplo, aqui: http://theeasternfront.org/mein_sozialismus/downloads/articleI.pdf
  10. 10. Veja: Wiltgen R. M. (S.V.D.). El Rin desemboca en el Tiber. Historia del Concilio Vaticano II. Madrid, 1999., p. 21.
  11. 11. Veja note 68, p. 339 of: Socci A. El Quatro Secreto de Fatima. Madrid., 2012.
  12. 12. [N. do E.] O Pe. Alonso, maior estudioso de Fátima, ensinava o seguinte acerca deste ponto: “É preciso afirmar que Lúcia sempre julgou que esta conversão não se resume ao retorno do povo russo à religião ortodoxa, com a rejeição do marxismo ateu dos soviéticos. Antes, refere-se pura, simples e totalmente à conversão total da Russia à única verdadeira Igreja de Cristo, que é a Igreja Católica”.
  13. 13. Siscoe R. Is Russia Converting? The material preparation for the Consecration. // The Remnant, September 15, AD 2013, Volume 46, Number 15.
  14. 14. A longa lista (com lugares e datas de construção) pode ser vista, por exemplo, aqui: Памятники Сталину. https://ru.wikipedia.org/wiki/Памятники_Сталину#Современные_памятники
  15. 15. Пасху в Москве встретили около трехсот тысяч человек. Интерфакс/Interfax, 20 апреля 2014. http://www.interfax.ru/moscow/372712.
  16. 16. As estatísticas policiais de diferentes regiões da Rússia podem ser vistas, por exemplo, aqui: Данные о посетивших пасхальные богослужения в 2014 г. http://www.sova-center.ru/religion/discussions/how-many/2014/04/d29380/
  17. 17. Sobre o "ícone" de Strelna com uma imagem e um comentário bastante interessante do pároco, veja, por exemplo, aqui: http://www.fontanka.ru/2008/11/26/078/ Sobre outro caso mais recente de "bênção" de um “ícone” similar na base aérea militar perto da cidade de Engels na região de Saratov (por ocasião, uma das áreas na qual antes dos tempos de Stalin viviam muitos católicos russos de origem alemã), veja, por exemplo, aqui: https://www.saratovnews.ru/news/2015/06/16/aleksandr-prohanov-bydet-rato... prichislenii-geroev-vov-k-liky-svyatyh/
  18. 18. Veja aqui: http://www.ng.ru/faith/2016-05-26/2_patriarh.html
  19. 19. Veja aqui: http://www.dw.com/ru/комментарий-день-памяти-жертв-репрессий-день-триумфа- кгб-трусости-и-унижения/a-41176479.
  20. 20. Artigo em um dos principais jornais russos "Novaya Gazeta" sob o nome notável "Putin falou sobre suas simpatias às idéias do comunismo e do socialismo", aqui: Путин рассказал о симпатии к идеям коммунизма и социализма. // Новая газета, 25.01.2016. // https://www.novayagazeta.ru/news/2016/01/25/117979-putin-rasskazal-o-sim... kommunizma-i-sotsializma.
  21. 21. A reportagem do canal controlado pelo governo NTV pode ser vista e lida aqui: Путин с "намеком" подарил Зюганову на юбилей фигурку Чапаева. http://www.ntv.ru/novosti/1075237
  22. 22. Por exemplo, obras de autores como: Mukhin, Starikov, Puchkov, Dugin, S. Kara-Murza, Kremliev, Martirosyan, Dukov, Wasserman, Kalashnikov, etc. – mencionando apenas alguns deles.
  23. 23. Por exemplo, personalidades como Kurginyan, Prokhanov, etc.
  24. 24. A iniciadora desta lei foi a parlamentar Irina Yarovaya, ex-membro do partido Liberal "Yabloko" e agora membro do partido pró-governo "Rússia Unida". Yarovaya foi especialmente atuante na promoção pró-soviética e também no controle da Religião, Internet, etc. da parte do estado, que foram iniciativas nos últimos anos. Ela também é apoiadora do sistema judiciário juvenil.
  25. 25. Essas teorias bobas se propagam em muitos livros que são vendidos até em respeitadas livrarias russas.
  26. 26. https://www.levada.ru/2017/06/26/vydayushhiesya-lyudi/
  27. 27. https://www.levada.ru/2017/05/23/zlonamerennoe-bezrazlichie/
  28. 28. Não há muitos trabalhos em inglês sobre esse tema importante. Um dos poucos e, provavelmente o melhor e o mais detalhado, embora com algumas tendências liberais, é: Satter David. It Was a Long Time Ago, and It Never Happened Anyway. Russia and the Communist Past. 2012.
  29. 29. Veja o relatório do canal RT oficial pró-Putin aqui (em inglês): https://www.rt.com/news/415883- putin-communist-ideology-christianity/ - ou aqui (em espanhol): https://actualidad.rt.com/actualidad/259997-putin-comunismo-cristianismo... - A única imprecisão, é que em "liberdade, igualdade, fraternidade" foi adicionado "justiça", mas se olharmos para o documentário, veremos que foi adicionado pelo questionador do documentário, não por Putin diretamente.
  30. 30. Ibid.
  31. 31. Mais detalhes veja, por exemplo, aqui (em inglês): https://www.theguardian.com/world/2017/oct/14/in- russia-nobodys-laughing-at-armando-iannucci-death-of-stalin – ou aqui (em espanhol): http://www.el- nacional.com/noticias/entretenimiento/nuestro-amigo-comun-muerte-stalin-renacimiento-censura_221417 – ou aqui (em russo): https://meduza.io/feature/2018/01/23/eto-ne-yumor-ya-byl-znakom-s-gaydaem.

A Permanência no centenário de Fátima

Dom Lourenço Fleichman, OSB

Em 1987, ao se completarem os 70 anos das aparições de Nossa Senhora em Fátima, Portugal, Dom Marcel Lefebvre reuniu a sua Fraternidade Sacerdotal São Pio X no local das aparições, numa peregrinação internacional de padres, seminaristas e religiosos, juntamente com alguns poucos milhares de fiéis, sobretudo da França e Alemanha.

Nessa ocasião o bispo de Ecône fez uma solene consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, sem querer, de modo algum, usurpar um papel de chefia que não era o seu, mas desejando, por outro lado, cumprir a ordem dada pela Mãe de Deus, quando da aparição a irmã Lúcia, em Tuy, na Espanha, em 1929.

Se os papas se recusaram a consagrá-la, ou se o fizeram sempre de modo parcial, eu pelo menos – pensava o santo bispo – cumprirei a minha parte. Eis o trecho da consagração relativo à Rússia, feita por Dom Marcel Lefebvre, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, na Cova da Iria:

... na intenção de frear os castigos que anunciastes, vos tornastes a mensageira do Altíssimo, para pedir ao Vigário de Jesus Cristo, unido a todos os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao vosso Imaculado Coração. É com pesar que vemos que ainda não deram resposta a vossos pedidos.

Por esta razão, a fim de antecipar o feliz dia em que o Soberano Pontífice realizará os pedidos de vosso divino Filho, sem nos atribuir uma autoridade que não nos pertence, mas por uma humilde súplica dirigida ao vosso Coração Imaculado, em nossa condição de bispo católico, penetrados de solicitude pela sorte da Igreja universal, e unidos a todos os bispos, padres e fiéis católicos, Nós resolvemos responder, por Nossa parte, aos pedidos do Céu. (...)

E Dom Lefebvre continua com mais detalhes:

Em segundo lugar, damos, entregamos e consagramos, na medida em que isso está em nosso poder, a Rússia, ao vosso Imaculado Coração: nós vos suplicamos, na vossa maternal misericórdia, de tomar esta nação sob vossa poderosa proteção, de fazer dela vosso domínio onde reinais como Rainha, de fazer dessa terra de perseguições uma terra de eleição e de bênção. 

Nós vos conjuramos a submeter tão inteiramente essa nação a vós, que, convertida de sua impiedade legal, torne-se um novo reino para Nosso Senhor Jesus Cristo, nova herança para vosso doce cetro. Do mesmo modo, tendo abandonado seu antigo cisma, que ela retorne à unidade do único rebanho do Pastor eterno, e que, submetida assim ao Vigário de vosso divino Filho, ela torne-se um ardente apóstolo do Reino social de Nosso Senhor Jesus Cristo em todas as nações da Terra.

Como fica claro no texto dessa bela consagração, a Rússia jazia ainda sob a escravidão da União Soviética. Quem poderá dizer qual a influência desse ato nos acontecimentos que viriam? Quantas mudanças após o fim da Cortina de ferro e as vicissitudes sofridas pelo povo russo após 70 anos de comunismo.

Em duas ocasiões a consagração realizada por Dom Marcel Lefebvre foi renovada pelos bispos da Fraternidade São Pio X: 1997 e 2005. E agora, no último dia 19 e 20 de agosto do ano corrente de 2017, realizou-se a terceira renovação dessa mesma consagração. O contexto não poderia ser mais grandioso: reuniu-se em Fátima uma multidão de cerca de nove mil fiéis, 200 religiosas, entre irmãs da Fraternidade, dominicanas, hospitalares e outas. Entre os seminaristas, sacerdotes e religiosos eram mais de 300. Todo esse mundo rezando em torno dos três bispos da Fraternidade São Pio X num evento de grande porte.

A peregrinação organizada pela Permanência e nossas Capelas atravessou o mar salgado com fiéis da Capela São Miguel (Rio de Janeiro), da Capela Nossa Senhora da Conceição (Niterói), da Capela N. Sra da Assunção (Fortaleza), de Florianópolis e de São Paulo. Os 33 peregrinos se juntavam a cerca de 50 outros do Priorado de S. Paulo, além de alguns que foram por conta própria. Ao todo os brasileiros beiravam uma centena. Bela representação se pensarmos na distância e na situação de grave crise por que passa nosso país.

O dia 19 de agosto marcava o centenário da 4ª aparição de Nossa Senhora. De fato, no dia 13 desse mês, em 1917, as três crianças estavam na prisão e não puderam comparecer ao encontro marcado pela Mãe do Céu. Foram surpreendidas pela aparição da Virgem Maria quando, já libertadas da prisão, se dirigiam à Cova da Iria, no local chamado Valinhos, poucas centenas de metros após se deixar Aljustrel, o vilarejo onde moravam. Hoje há um oratório com uma bela imagem de Nossa Senhora.

A Fé sobrenatural é um dom de Deus que se aloja na nossa inteligência e esclarece nossa razão, realizando em nós o ato de crer, e dando-nos motivos e forças para agirmos segundo a vontade de Deus, na Caridade. Essencialmente, a Fé não necessita de apoio sensível e é capaz de agir sobre nós, mesmo em condições adversas, como no meio de uma guerra, ou num leito de hospital. No entanto, a prática da Igreja e o exemplo dos santos mostram uma relação muito íntima entre a realização sobrenatural e interior da Fé e as coisas físicas que sempre acompanham a vida sensível dos homens. É assim que estar de joelhos no meio das pedras, diante do lugar em que o corpo glorioso da Virgem Maria encostou nessa terra; estar ali rezando o Rosário no dia mesmo em que se completam 100 anos dessa aparição, é algo que move os céus, que espalha de modo mais abundante as graças de conversão, de santificação, de adoração e louvor.

Não se trata de “sentir” alguma coisa, uma emoção, ou banhar-se em lágrimas para, por assim dizer, confirmar a graça invisível. Ao contrário, é como se a graça invisível nos levasse pela mão, nos conduzisse à sublime presença do Céu tocando a Terra, sem abandonar o que em nós há de humano, dual, corpo e alma, espírito e sensibilidade. 

Foi assim que no sábado 19, após a missa cantada às 15:00 de uma tarde quente e ensolarada, com os milhares de fiéis tentando se esconder do sol de 38º sob as poucas árvores do parque em que se montaram as tendas do altar, seguimos em procissão rezando o Terço, pelas trilhas do campo, entre as oliveiras e carvalhos. A multidão de padres e fiéis compactou-se em torno da imagem de Nossa Senhora nos 100 anos dessa aparição, quando Nossa Senhora insistiu muito sobre o aspecto sobrenatural da oração constante.

Essa multidão já mudara o ambiente da pequena cidade. Por toda parte encontrávamos padres e religiosas da Tradição. Os franceses dominavam a cidade, tendo vindo aos milhares. Ouvia-se igualmente por toda parte o inglês de muitos americanos e o alemão. 

Os grupos iam e vinham, entre os túmulos de Francisco e Jacinta, dentro da Basílica, a Capelinha das aparições, construída no local mesmo em que Nossa Senhora tocou a Terra, o parque onde foram celebradas as missas do sábado e do domingo, e o vilarejo de Aljustrel, hoje transformado por um turismo religioso intenso, mas que preservou, restaurou e iluminou o lugar onde os três pastorinhos viveram a maior aventura ocorrida nos últimos cem anos. 

O mundo se transformou, a Revolução tomou conta das sociedades e expulsou a fé da vida dos homens; passamos por duas guerras mundiais, o Concílio Vaticano II destruiu o obstáculo ao reino do Anticristo, o homem pisou na Lua, dominou os semi-condutores e aplicou-lhes os algoritmos da programação mais avançada. Mudaram-se os costumes sociais, os costumes religiosos, a política dos povos. E nada disso chega perto da grandeza e da importância de Fátima.

Se pensarmos no conjunto de graças recebidas pelas três crianças, desde a intensa preparação feita pelo Anjo de Portugal, em 1916, passando pela maternal presença da Virgem Maria nas seis aparições de 1917, na heróica comunhão das crianças com o sofrimento das almas dos pecadores, nos atos de reparação, nas orações pelo papa, na gravíssima responsabilidade que a Mãe do Céu punha em seus tão pequeninos ombros mostrando-lhes o Inferno, e exigindo delas a mais filial e plena união reparadora ao Imaculado Coração; se imaginarmos a alma de três crianças sabendo que o castigo terrível da guerra iria se abater sobre a humanidade e que cabia a elas anunciarem ao mundo o remédio oferecido por Nosso Senhor, de recorrer à Mãe de Deus no amor puríssimo do seu Imaculado Coração; enfim, se pensarmos em tantos outros detalhes que não podemos aqui enumerar, decididamente estamos diante do maior evento acontecido sobre a Terra nesses tempos de apostasia e de calamidade. 

Por isso tudo era importante atender ao chamado de Dom Bernard Fellay e termos uma representação aos pés do trono da graça, como cantamos no introito da missa do Imaculado Coração, celebrada no domingo, ali pertinho do lugar em que esse mesmo Coração foi mostrado aos homens pela primeira vez, na palma da mão de Nossa Senhora:

Adeamus cum fidúcia ad thronum gratiae” – avancemos com confiança ao trono da graça, ao trono do amor maternal, ao trono do socorro nos dias de tribulação, em que só o coração da Mãe pode vir em auxílio aos seus filhos aflitos e famintos.

Assim foi a missa do domingo 20 de agosto, em Fátima. Para que se tenha uma idéia da grandeza da reunião, cerca de 25 sacerdotes distribuíram a Comunhão aos nove mil peregrinos reunidos. Mesmo assim ultrapassou os 20 minutos o tempo necessário para que todos comungassem. 

No final da missa os três bispos reunidos renovaram a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria. Ao citar esta questão no sermão da missa, Dom Bernard Fellay lembrou que a conversão da imensa nação eslava não significa apenas o fim do comunismo. Após tantos séculos de cisma, de uma ruptura que se iniciou pela recusa da autoridade do papa como sucessor de Pedro e chefe da Igreja universal e que levou o povo russo também à heresia, ao recusar todos os dogmas solene e infalivelmente pronunciados pela Igreja ao longo dos últimos séculos, não faz sentido imaginarmos que a Rússia possa ser agraciada por um milagre que a livrasse da escravidão soviética sem que a levasse à única Fé, à única verdade proclamada e ensinada com toda a autoridade de Cristo pela Igreja Católica Romana.

E falamos de Igreja Romana! Logo surge outra questão aflitiva: como imaginar uma conversão da Rússia à fé da Igreja Romana sem pensar na conversão das autoridades da Igreja, o papa e os bispos do mundo inteiro, à verdadeira fé ensinada ao longo de dois mil anos e rechaçada pelo Concílio Vaticano II. Este é o drama que vivemos. Ele só faz aumentar nossas obrigações espirituais, nossa necessidade de praticar oração e penitência, o terço diário e o estudo do verdadeiro catecismo.

O fato é que, malgrado os 70 anos de regime ateu e perseguidor da fé, a Rússia parece ser o único país capaz de manter certas exigências morais já desaparecidas do Ocidente. Qualquer coisa de religioso se conserva mesmo na estrutura governamental e apesar dos seus governantes, o que significa que no dia em que o papa resolver obedecer à ordem do Céu e consagrar a Rússia, junto com todos os bispos do mundo, ao Imaculado Coração de Maria, mesmo sendo tarde, algo de portentoso, de espetacular poderia suceder, e nós veríamos uma reviravolta na situação atual, em que o liberalismo tomou conta de todo o mundo ocidental, que só fala e só raciocina em termos de total liberdade para tudo e para todos os que não são católicos. 

Na Espanha, mais uma vez os homens responderam aos ataques islâmicos no coração da Europa proclamando as liberdades e a democracia. Foi assim em Paris, em Nice, na Alemanha. Enquanto a cegueira tomar conta dos governantes, políticos, artistas, jornalistas etc. os inimigos da Fé católica, os inimigos da Civilização Cristã crescerão e nos ameaçarão dentro de nossas casas, em nossas cidades. A Europa já caiu diante dos milhões e milhões de islâmicos que a invadiram encontrando os portões abertos. Muitos sofrimentos foram preditos pela Virgem Maria em Fátima, e todos se realizaram ou estão se realizando: o fim da 1ª Grande Guerra, o início da 2ª Guerra ainda no pontificado de Pio XI, a Rússia espalhando seus erros pelo mundo, o desaparecimento de muitas nações etc.

Muito antes do Concílio Vaticano II abrir as portas da Igreja ao mundo liberal já se constatava uma política equivocada diante das nações. Conhecemos alguns desastres provocados pela política e pela diplomacia do Papa Pio XI, tais como o massacre dos Cristeros, no México, ou a condenação da Action Française, de Charles Maurras. Ora, as aparições de Fátima, e em particular o pedido de consagração da Rússia, contrariavam os desejos da política do Vaticano na época de Pio XI. Apesar de ter mostrado até certo ponto crer na veracidade das aparições, este papa preferiu não realizar a consagração. 

Por isso, Nosso Senhor se lamentou com a irmã Lúcia, numa comunicação espiritual que esta teve em Rianjo, na Espanha, e sobre a qual ela escreve:

“Numa ocasião em que eu pedia a Deus a conversão da Rússia, da Espanha e de Portugal, pareceu-me que Sua Divina Majestade me dizia: “Me consolas muito pedindo a conversão dessas pobres nações. Pede-a também à minha Mãe dizendo-lhe sempre: “Doce Coração de Maria, sede a salvação da Rússia, da Espanha e de Portugal, da Europa e do mundo todo”. (...) E em outra ocasião: “Avise aos meus ministros que, como eles seguem o exemplo do rei da França, retardando a execução do meu pedido, eles o seguirão nas dores. Jamais será tarde demais para recorrer a Jesus e a Maria”.

E ao Pe. Gonçalves, seu confessor: “... Nosso Senhor me disse se lamentando: “Não quiseram ouvir meu pedido. Como o rei de França, eles se arrependerão e o farão, mas será tarde. A Rússia terá espalhado seus erros pelo mundo, provocando guerras e perseguições contra a Igreja. O Santo Padre terá muito a sofrer”.

Diante desse contexto, a reunião de cerca de dez mil pessoas em Fátima, no ano do centenário, as missas, os terços rezados, as penitências realizadas pela multidão e, sobretudo, a renovação da Consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria fortalecem a nossa Fé católica, nos anima no combate, nos exige atitudes verdadeiras e fortes dentro de nossas famílias, em nossas Capelas, suplicando à Virgem Maria que sopre em nossos corações o seu espírito de fé sobrenatural, de sabedoria, de amor pelos pobres pecadores e pela conversão do papa e dos bispos, para que, enfim, assumam o seu papel de confessores da Fé diante de um mundo apóstata.

(Revista Permanência 287)

Reflexos de Fátima

Alexandre Bastos

 

“Senhor Padre, a Santíssima Virgem está muito triste, por ninguém fazer caso da Sua Mensagem, nem os bons nem os maus; os bons, porque continuam no seu caminho de bondade, mas sem fazer caso desta Mensagem; os maus, porque, não vendo que o castigo de Deus já paira sobre eles por causa dos seus pecados, continuam também no seu caminho de maldade, sem fazer caso desta Mensagem. Mas creia-me, senhor Padre, Deus vai castigar o mundo, e vai castigá-lo de uma maneira tremenda. O castigo do Céu está iminente.”

Entrevista com Pe. Fuentes (Dezembro de 1957)

 

 

PRIMEIRA PARTE: “A TREZE DE MAIO NA COVA DA IRIA...”

Quem parte de Lisboa rumo à Serra do Aire, encontra a pitoresca aldeia de Aljustrel, que há um século contava exatas vinte e seis casinhas. O seu relativo isolamento poupara a aldeia da laicização promovida pela recente República liberal. Por todo o país, padres eram presos, igrejas eram fechadas e religiosos deportados. “A perseguição não assolava Fátima tão fortemente, talvez porque a distância da capital nos fazia passar quase despercebidos”, escreveria Lúcia.

Apesar da austeridade em que viviam, que parece excessiva à moleza do nosso tempo, não eram exatamente pobres para os padrões da região: os pais da Lúcia tinham um patrimônio modesto, formado por terras e um pequeno rebanho. A proximidade das casas do vilarejo explica um pouco a amizade entre as famílias dos pastorinhos, estreitada ainda mais pelo parentesco: Ti Olímpia (1864-1956), mãe de Francisco e Jacinta, era a cunhada da mãe da Lúcia, até casar-se em segundas núpcias com Manuel Pedro Marto (1873-1957), conhecido como “o homem mais sério do lugar”. 

Apesar de muito sisudo, Ti Marto foi seguramente o mais simpático dos coadjuvantes da história de Fátima. Ex-soldado, de porte ereto e olhar arguto, acreditou desde a primeira hora na veracidade dos fatos: “mentir, ai Jesus, os cachopos foram sempre tão contrários a isto”. Nós o vemos tomar o partido dos pastorinhos em todas as oportunidades e desde o começo.

Ele sempre teve grande simpatia pela sobrinha. Ao reencontrá-la em Maio de 1946, quando a Irmã Lúcia retornou ao lugar para identificar os locais das aparições do Anjo, travou com ela este simpático diálogo:

– Que bela cachopa tu estás!... Tu sim, que valeu a pena vires a este mundo! Lembras-te da minha Jacinta e do meu Francisco?

– Então, Tio, não me hei-de lembrar?!

– Se fossem vivos seriam como tu!...

– Seriam como eu!... Seriam melhores do que eu! Nosso Senhor desta vez enganou-se: devia ter deixado cá um deles, e deixou-me a mim!... 1

Era o exato oposto da mãe da Lúcia, Ti Maria Rosa, uma camponesa severa e corpulenta que não concebia que a filha pudesse estar a dizer a verdade. Para obrigá-la a desmentir-se, como dizia, não hesitava injuriá-la, castigá-la, cobri-la de pancadas com o cabo da vassoura. Algumas irmãs da Lúcia, sentindo-se abrigadas pelas opiniões da mãe, uniam-se a ela, debochando e rindo.

Um diálogo travado então com um tipo que insultava a pastorinha é revelador dos seus sentimentos:

– Então, ti Maria Rosa, que me diz das visões da sua filha?

– Não sei – respondeu. – Parece-me que não passa duma intrujona que traz meio mundo enganado.

– Não diga isso muito alto; senão, alguém é capaz de matá-la. Parece que há por aí quem Ihe tem boa vontade.

– Ah! Não me importa, contanto que a obriguem a confessar a verdade! Eu é que hei-de dizer sempre a verdade, seja contra meus filhos, seja contra quem for, nem que seja contra mim 2

Nosso Senhor, contudo, dobraria essa resistência da mãe da Lúcia do modo mais admirável, pois, no grande Milagre do Sol, de 13 de outubro de 1917, aquela que mais duvidou, pôde assistir a tudo ajoelhada ao lado da filha. 

Não devemos fazer uma opinião demasiado severa a respeito dos seus parentes, que formavam uma família simples e dedicada ao trabalho. A mãe de Lúcia era uma mulher de extrema honestidade e piedade, “uma santa”, no dizer do pároco de Fátima. Mãe de sete filhos, unia aos seus muitos afazeres domésticos o encargo de enfermeira de Aljustrel, e não havia ninguém que caísse doente, sem que ela largasse tudo para acorrer ao enfermo. Mesmo quando veio a gripe espanhola, apesar do risco real de contágio, não mudou em nada sua rotina, cuidando dos doentes como se fossem seus filhos. “O importante”, dizia a boa senhora, “é fazer o bem, ajudar os outros para que Deus também nos ajude”. Gabava-se de nunca ter perdido uma Missa, mesmo quando amamentava, e de já ter caminhado certa vez dez quilômetros para assistir a um ofício. “A grande virtude da minha mãe”, dirá Lúcia, “repousa sobre a rocha da lei de Deus e de sua Igreja”. 

Quanto ao seu marido, Antônio dos Santos, pequeno agricultor e criador de ovelhas, conhecido pelo apelido de “abóbora”, nunca deixou que mendigo algum passasse por sua residência sem receber esmola, e tinha em casa uma porção de carne sempre pronta para o caso de algum necessitado aparecer. Muito amigo e próximo da filha, foi ele quem a ensinou a chamar a lua de “candeia de Nossa Senhora”, e as estrelas de “candeias dos anjos”. “Exemplos admiráveis de família cristã”, descreveria Lúcia. 

 

Os pastorinhos

Foi nesse ambiente de Fé que cresceram os pastorinhos de Fátima, Lúcia, Francisco e Jacinta, que tinham, no momento das aparições da Santíssima Virgem, respectivamente 10, 9 e 7 anos. Suas personalidades, tão distintas, seriam marcadas de forma definitiva pelos acontecimentos.

Francisco Marto foi o consolador de Nosso Senhor, tão ofendido pelos nossos pecados. Muito manso e introspectivo, era essencialmente um contemplativo. “O desejo do Céu e a contemplação das coisas divinas”, escreveu o Pe. João de Marchi, “enchiam a transbordar o coraçãozito do Francisco”, a ponto de torná-lo estranho às coisas do mundo. Quando alguma criança roubava nas brincadeiras, dizia com indiferença: “Pensas que ganhaste tu? Pois sim! A mim isso não me importa”. Repetia o mesmo ainda quando outras crianças más apanhavam suas coisas, embora fosse suficientemente robusto para retomá-las à força. “Parece-me que, se houvesse crescido, o seu principal defeito seria o de não-te-rales”, declararia mais tarde a sua prima.

Mas este desapego, diga-se, nunca se traduzia em respeito humano. Certa vez, ele se deparou com uma pobre mulher que fingia benzer terços e objetos religiosos, e que o convidou a ajudá-la. Francisco respondeu com severidade: – Eu não posso benzer e vossemecê também não! São só os Senhores Padres.

Outra vez, a sua mãe, a sra. Olímpia, disse-lhe para aproveitar a ausência da madrinha para levar as ovelhas a pastorear na sua propriedade. Francisco retrucou: – Ah, isso é que eu não faço! – ganhou logo uma bofetada pela resposta. O menino respondeu sem alterar a voz: – Então, é a minha mãe que me está a ensinar a roubar? – Quando Lúcia, depois das aparições, cedendo a rogos de familiares e vizinhos, aceitou participar da organização de uma festança, o menino interpelou-a: – E tu voltas a essas cozinhadas e brincadeiras?

A sua irmã, Jacinta Marto foi, segundo a sentença da Irmã Lúcia, “aquela a quem a Santíssima Virgem comunicou maior abundância de graça, conhecimento de Deus e da virtude”. Dizia-se que só se assemelhava ao Francisco pelos mesmos olhos castanho-escuros e os traços bem-feitos. Muito expansiva e sensível, a voluntariosa Jacinta era alegre como um passarinho. Sua espiritualidade era apostólica e, sobretudo após a visão do inferno, terá como missão a conversão dos pecadores: Da mihi animas, tolle coetera, poderia ser seu lema. Não media esforços para convertê-los, e jejuava e vigiava e fazia mortificações dignas de um cartuxo, a tal ponto que escreveu Garrigou-Lagrange: “Jacinta é uma das almas mais generosas do século XX”. Dentre os inúmeros sacrifícios que fez, impressiona a resignação e o abandono com que se submeteu a uma dolorosa cirurgia no final da sua vida, como veremos. 

A mãe da Lúcia era a catequista de Aljustrel, e antes da primeira comunhão da filha, ensinou-lhe o que pedir ao receber Jesus no coração: “Sobretudo, pede a Nosso Senhor que te faça uma santa”. “Essas palavras”, dirá mais tarde a Lúcia, “se me gravaram tão indeléveis no coração, que foram as primeiras que disse a Nosso Senhor logo que o recebi”. Santa Lúcia de Fátima, santa pela obediência heróica, pela obscuridade e paciência da sua vida escondida – foi ela que ouviu primeiro de Nossa Senhora que iria para o Céu. Sua missão foi resumida por Jacinta pouco antes desta última ir para o hospital: “Tu ficas cá para dizeres que Deus quer estabelecer no mundo a devoção do Imaculado Coração de Maria. (...) que o Coração de Jesus quer que, a seu lado, se venere o Coração Imaculado de Maria”. Este será sempre seu ideal, e as aparições posteriores em Pontevedra (1925-26) e Tuy (1929) têm implicações consideráveis para nossas vidas.

 

1915 - O prelúdio

Ao completar sete anos, a mãe de Lúcia decidiu que era chegado o momento de a menina começar a trabalhar e a incumbiu da guarda das ovelhas da família. Antônio dos Santos e as demais filhas protestaram, julgando-a muito pequena para a tarefa. Mas Maria Rosa não era do mesmo sentimento: “É como todas”, disse, pondo fim à questão.

A nova responsabilidade não desagradava a Lúcia, que se sentia “uma menina grande”. Foi assim que, no dia combinado, partiu junto com três moças da aldeia vizinha, Maria Rosa, Maria Justino e Teresa Matias, que se ofereceram para acompanhá-la. O destino escolhido para as pastagens era um vale mais ermo conhecido pelo nome de Cova da Iria, aonde chegavam atravessando hortas e pomares. Costumavam passar ali boa parte do dia, quando não rumavam mais para o sul, para brincar num lugar chamado Valinhos, onde eram abundantes o capim para as ovelhas e a sombra para descansarem. Desse lugar, podia-se subir ao Cabeço, uma elevação mais escarpada, cercada por tojos e rosmaninhos, de onde se avistava uma espécie de gruta a que chamavam Loca do Cabeço.

Certo dia, por volta de uma da tarde, começaram a rezar o terço e uma delas chamou a atenção das demais para uma figura suspensa no ar, sobre o arvoredo – era a primeira de três manifestações que veria naquele ano com aquelas moças. A figura parecia-lhes uma estátua de neve atravessada pelos raios do sol, mas nunca disse palavra. 

– Que é aquilo? – perguntaram-se as companheiras, meio assustadas.

– Não sei!

Lúcia guardou silêncio sobre o que vira, mas as moças trataram de espalhar o acontecido por toda a aldeia. A mãe de Lúcia, desgostosa, perguntou à filha:

– Ouve lá: dizem que viste para aí não sei o quê. O que é que tu viste?

– Não sei! – respondeu Lúcia.

E como não sabia explicar-se, acrescentou:

– Parecia uma pessoa embrulhada num lençol. Não se lhe conheciam olhos nem mãos.

– Tolices de crianças! – sentenciou Ti Maria Rosa. 

 

1916 - As aparições do anjo

Havia algo de misterioso na forte amizade que Jacinta sentia pela prima: “Não sei por quê, a Jacinta, com seu irmãozinho Francisco, tinham por mim uma predileção especial e buscavam-me, quase sempre, para brincar”, escreveu Lúcia. De modo que, quando souberam que a prima começaria a pastorear, e não poderia portanto tornar a brincar com eles, correram inconformados a pedir à mãe autorização para acompanhá-la, mas isso lhes foi negado. Nesse tempo, portanto, Lúcia só os encontrava à noitinha, quando retornava do pasto.

Contudo, aos dois pequenitos custava-lhes conformar-se com a ausência da sua antiga companheira. Por isso, renovavam continuamente as instâncias junto de sua mãe, para que pudessem guardar o seu rebanho. Ti Olímpia, talvez para ver-se livre de tanta insistência, acabou consentindo, e foi assim que, no ano de 1916, Lúcia já não pastoreava com as antigas companheiras, mas com os primos.

Jacinta por vezes metia-se no meio do rebanho:

– Jacinta – perguntava-lhe Lúcia – para que vais aí, no meio das ovelhas?

– Para fazer como Nosso Senhor, que, naquele santinho que me deram, também está assim, no meio de muitas e com uma ao colo.

Foi nesse ano de 1916, espaçado pelas estações do ano (primavera, verão e outono), que Lúcia tornou a ver o anjo, que dessa vez comunica-se com ela. É pouco o que diz, mas que profundidade!

A primeira aparição ocorreu na Loca do Cabeço. O anjo disse-lhes: “Não temais! Sou o Anjo da Paz. Orai comigo”. É digno de nota que o anjo tenha se apresentado assim, pois Portugal acabara de entrar oficialmente na Grande Guerra e o país, governado pelos maçons, vivia intensa perseguição religiosa.

O Anjo da Paz prostrou-se e ensinou aos pastorinhos uma oração que consiste, na primeira parte, num ato de fé, esperança e caridade (“Meu Deus! Eu creio, adoro, espero e amo-vos”), e, na segunda, num ato de reparação (“Peço-vos perdão para os que não crêem, não adoram, não esperam e não vos amam”).

– Orai assim. Os Corações de Jesus e Maria estão atentos à voz das vossas súplicas.

Dito isso, desapareceu, deixando os pastorinhos a tal ponto subjugados e imersos no sobrenatural, que mal conseguiam falar: “A presença de Deus sentia-se tão intensa e íntima que nem mesmo entre nós nos atrevíamos a falar” 3, escreveu Lúcia.

Note-se que o anjo refere-se aos “Corações de Jesus e Maria”. Será assim nas três aparições, mas sempre obedecendo a uma gradação: aqui alude aos “Corações de Jesus e Maria”; na segunda aparição falará dos “Corações Santíssimos de Jesus e Maria” e, na terceira, do “Santíssimo Coração [de Jesus] e do Coração Imaculado de Maria”. Essa gradação tem um valor pedagógico e aponta para aquilo que escreveu o Cardeal Cerejeira: “Fátima será para o culto do Coração Imaculado de Maria o que foi Paray-le-Monial para o culto do Coração de Jesus. Fátima, de certo modo, é a continuação, ou melhor, a conclusão de Paray-le-Monial: Fátima reúne estes dois Corações que Deus mesmo uniu na obra divina da Redenção.” 

A segunda aparição do anjo ocorreu no verão do mesmo ano. Por conta do calor, as crianças fizeram a sesta em casa e foram brincar no poço do Arneiro, uns 50 metros da casa da Lúcia. Foi aí que o anjo lhes apareceu:

– Que fazeis? Orai, orai muito. Os Corações Santíssimos de Jesus e Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente, ao Altíssimo, orações e sacrifícios.

– Como nos havemos de sacrificar? – perguntou Lúcia.

– De tudo o que puderdes, oferecei um sacrifício em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores. Atraí, assim, sobre a vossa Pátria, a paz. Eu sou o Anjo da sua guarda, o Anjo de Portugal. Sobretudo, aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos envia.

Nota-se outra gradação pedagógica na fala do anjo. Na primeira aparição, pediu um ato de reparação, nesta pede sacrifícios. 

A terceira aparição do anjo ocorreu no outono. Foi aqui que ele deu a comunhão aos pastorinhos. Antes, porém, ensinou aos pastorinhos uma oração de reparação a Nosso Senhor:

– Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores.

O anjo deu a comunhão aos serranitos pronunciando as palavras:

– Tomai e bebei o Corpo e Sangue de Jesus Cristo, horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus.

Repetiu ainda mais uma vez a oração acima, e desapareceu.

Mais tarde, Lúcia seria interrogada pelo Bispo de Viseu, D. José Pedro da Silva:

– Quando a Irmã comungou da mão do Anjo, sentiu na boca o contacto físico das Sagradas Espécies, tal como hoje quando comunga?

– Sim.

– Lembra-se de ter engolido a Sagrada Hóstia?

– Sim.

Eis aqui uma primeira prova de que, em Fátima, não se tratava de umas “visões imaginativas”, como quiseram alguns. Há outras provas. Por exemplo, quando os pastorinhos viam Nossa Senhora, por vezes baixavam os olhos, o que logo chamou a atenção de alguns. Eles explicaram que a luz da Virgem, de tão forte, cegava.

 

1917 - As aparições de Nossa Senhora

Em Maio de 1917 começaram as aparições de Nossa Senhora. Assim como o anjo, ela era toda de luz, e brilhava mais do que o sol, “luz sobre luz”, esclareceria a Lúcia. A Virgem aparecia-lhes de pé sobre a copa duma carrasqueira, árvore de folhas brilhosas e cheias de espinhos, com cerca de um metro de altura. Os pastorinhos ficavam bem próximos, dentro da luz que dela emanava. Embora tudo nela exprimisse a paz celestial, o seu olhar era triste – ela não sorriu nenhuma vez em todas as aparições – embora tomado de solicitude maternal; sua voz era fina, doce e melodiosa. Quanto às crianças, havia uma curiosa gradação: Francisco apenas via; Jacinta, via e ouvia; Lúcia, via, ouvia e falava com a Virgem4. As aparições duravam alguns minutos, menos do que o tempo de se rezar um terço. 

As crianças estavam a brincar antes da primeira aparição; construíam uma casinha com pequenas pedras, quando, subitamente, relampeou e elas, temendo chuva, resolveram voltar para casa. Novo relampear e, um pouco mais adiante, deram com a Virgem.

– Não tenhais medo. Eu não vos faço mal.

– De onde é Vossemecê? – perguntou-lhe a Lúcia.

– Sou do Céu.

Aqui, observa um autor, nota-se a precisão e a beleza da resposta de Nossa Senhora. Ela não diz que “veio” do Céu, como talvez responderia algum outro santo. Ela diz, ao contrário, “Sou do Céu” – isso é mais exato, pois trata-se da Imaculada Conceição, onde o pecado jamais teve morada, nem por um instante sequer.

 – E que é que Vossemecê me quer?

Nossa Senhora então pede que voltem para lá no dia 13 durante seis meses seguidos, que no final dirá quem é e o que quer. E afirma que virá ainda uma sétima vez.

Segue o diálogo conhecido. Lúcia quer saber se vai para o Céu. “Sim, vais”. Resposta que lhe encheu de uma alegria indescritível. E a Jacinta? “Também”. O Francisco? “Também, mas tem que rezar muitos terços.”5

– A Maria das Neves já está no Céu?

– Sim, está.

– E a Amélia?

– Estará no purgatório até o fim do mundo.

Ao ler isso, nossa atenção se volta naturalmente para o triste fim da Amélia – moça que morrera poucos meses antes e que, segundo os pesquisadores, pecava contra a pureza. Mas é preciso reconhecer que a sorte de Maria das Neves é muito consoladora: Ela está no Céu! Não foi nenhuma grande santa, nenhuma grande penitente, apenas uma boa católica – e está no Céu.

– Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?

– Sim, queremos – respondeu a Lúcia em nome dos três.

Desde aquele momento, comenta o Pe. João de Marchi, os três pastorinhos começaram a ser heróis.

– Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.

Em seguida, Nossa Senhora comunicou-lhe uma misteriosa luz, que era Deus. Finalmente, despediu-se com as palavras:

 – Rezem o terço todos os dias 6, para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra.

Nossa Senhora se foi. Voltou as costas para os pastorinhos e foi-se embora em direção ao nascente, desaparecendo pouco a pouco. 

Os serranitos ficaram novamente imersos no sobrenatural, porém, desta vez, não sentiam o aniquilamento físico que a aparição do anjo lhes causava. Ao contrário, sentiam-se exultantes, eufóricos, e não lhes foi difícil contar imediatamente ao Francisco o que ouviram. Este, cruzando as mãos sobre o peito, exclamou contente:

 – Ó minha Nossa Senhora, terços rezo todos quantos Vós quiserdes. – Deve ter cumprido muito bem a exigência que lhe fora feita, porque já na segunda aparição Nossa Senhora lhe promete levar logo para o Céu, como veremos.

Passaram assim o resto da tarde, saboreando tudo que lhes acontecera, recordando a beleza da branca Senhora que se dignara aparecer-lhes:

– Ai, que Senhora tão bonita! – exclamava a Jacinta, para daqui a pouco tornar a exclamar:

– Ai, que bonita Senhora! – suspirava de novo a Jacinta, o rosto iluminado de alegria.

– Estou mesmo a ver – dizia Lúcia – ainda vais a dizer a alguém.

– Não, digo, não –  respondia Jacinta –  está descansada.

Eles voltaram a Aljustrel, Jacinta sempre repetindo “Ai, tão bonita!”. Lúcia, antes de despedir-se da prima, ainda chamou-a uma vez: 

– Psiu!… mesmo com a mãe.

– Pois sim! – assegurava-a novamente a Jacinta.

O Sr. Marto e a Sra. Olímpia ainda não haviam voltado do mercado, aonde foram comprar  uma porca para a engorda. A Jacinta os esperava inquieta. Mal os viu, saiu correndo toda alvoroçada ao encontro deles para publicar a sua alegria: 

– Ó mãe, vi hoje Nossa Senhora na Cova da Iria.

Certa de que era alguma brincadeira de criança, a mãe fez pouco caso: “És bem doidinha!” – disse, e foi direto para os seus afazeres. Isso se passou à porta de casa. Eles entraram e a Jacinta lhe disse:

– Minha mãe, vou rezar o terço com o Francisco, que foi o que Nossa Senhora mandou que nós fizéssemos. – E lá se foram rezar.

Na hora do jantar, contudo, junto à lareira, na presença de toda a família e também do pai da Lúcia, que lá estava por acaso, a mãe perguntou à filha:

– Ó, Jacinta, conta lá como foi isso de Nossa Senhora na Cova da Iria.

Era tudo o que Jacinta queria ouvir! A menina começou a falar com entusiasmo:

– Era uma Senhora tão linda, tão bonita!… Tinha um vestido branco, e um cordão de ouro ao pescoço até ao peito… Ai, que bonito!… Tinha as mãos juntas, assim – e a pequena levantava-se do banquinho, juntava as mãos à altura do peito para imitar a visão.

– Entre os dedos tinha as contas. Ai, que lindo tercinho ela tinha… todo de ouro, brilhante, como as estrelas da noite, e um crucifixo que luzia… que luzia… Ai, que linda Senhora!… Falou muito com a Lúcia, mas nunca falou comigo, nem com o Francisco… Eu ouvia tudo o que elas diziam… Ó mãe, é preciso rezar o terço todos os dias… A Senhora disse isso à Lúcia. E disse também que nos levava os três para o Céu, a Lúcia, o Francisco e mais eu… E mais outras coisas disse que eu não sei mas que a Lúcia sabe… Quando Ela entrou pelo Céu dentro, parece que as portas se fecharam com tanta pressa que até os pés iam ficando de fora entalados… Era tão lindo o Céu… Havia lá tantas rosas albardeiras! 7

Os adultos perguntaram ao Francisco se isso tudo era verdade. Ele confirmou a história e a notícia rapidamente se espalhou. O calvário de Lúcia apenas começava.

 

A segunda aparição (13 de junho de 1917)

A segunda aparição ocorreu no dia 13 de junho, na mesma hora e local. O rumor fez com que umas cinqüenta pessoas estivessem presentes na Cova da Iria. Eles não viram nem ouviram Nossa Senhora, mas notaram uns fenômenos estranhos no momento da aparição: os galhos da azinheira se vergaram repentinamente sob o peso de algo que não percebiam. Alguns puderam ouvir algo que não distinguiam, mas que se assemelhava a um zumbido de abelha. Foi suficiente para que retornassem entusiasmados com o pouco que viram, e dessem publicidade ainda maior aos fatos.

Nesta ocasião, Nossa Senhora pediu aos pastorinhos que voltassem no mês seguinte, rezassem o terço e aprendessem a ler. Disse que os primos iriam logo para o Céu, mas não a Lúcia, que haveria de ficar aqui para propagar a devoção ao seu Imaculado Coração, e acrescentou: A quem a abraçar, prometo a salvação”. Palavras importantes que deveriam ficar gravadas em nossos corações.

– Fico cá sozinha? – perguntou Lúcia.

– Não, filha. E tu sofres muito? – respondeu Nossa Senhora, para concluir com palavras que, segundo o sentimento de Lúcia, não se destinavam apenas a ela. – Não desanimes. Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus 8

Finalmente, Nossa Senhora abriu as mãos, comunicando o reflexo de uma luz imensa na qual os pastorinhos puderam ver o Imaculado Coração de Maria cravejado de espinhos. Anos depois, interrogada por Dom José Pedro da Silva:

– Poderá, de algum modo, descrever a luz que Nossa Senhora lhe “meteu no peito”?

– Não posso: porque não conheço palavras que a descrevam.

Uma observação interessante foi feita pelo Pe. Chautard. A representação clássica do Coração doloroso de Maria apresenta-o traspassado por uma espada: é nova a imagem do seu coração coroado de espinhos. Indica talvez que a dor que Nossa Senhora mais ressente é a recusa do reinado social de Cristo, inagurado pelo Liberalismo, após a Revolução em França, e que culminaria naquele mesmo ano no Comunismo, com a Revolução bolchevique.

 

O segredo (13 de julho de 1917)

A terceira aparição é a mais importante, pois foi a do grande segredo. Costuma-se falar em Terceiro Segredo de Fátima, mas trata-se na verdade de um único segredo em três partes, comunicado de uma só vez neste dia. Segundo o Irmão François de Marie des Anges, as três partes do Segredo referem-se: a primeira às almas; a segunda às nações; a terceira, à Igreja.

As semanas que precederam o grande dia 13 de julho foram particularmente sofridas para Lúcia, pois sua mãe redobrara os esforços para fazer com que a filha “se desmentisse”, levando-a para tanto até o pároco de Fátima.

 – Não me rales mais! Agora diz ao Senhor Prior que mentiste, para que ele possa, no domingo, dizer na Igreja que foi mentira e assim acabar tudo. Isto tem lá jeito! Toda a gente a correr para a Cova de Iria, a rezar diante duma carrasqueira!

O padre recebeu-a com muita amabilidade e, após interrogar a menina, encerrou dizendo:

 – Não me parece uma revelação do Céu. Quando se dão estas coisas, por ordinário, Nosso Senhor manda essas almas a quem se comunica, dar conta do que se passa a seus confessores ou párocos e esta, ao contrário, retrai-se quanto pode. Isto também pode ser um engano do demônio. Vamos a ver.

Influenciada pela dupla autoridade do pároco e da mãe, e percebendo que sua vida virara ao avesso desde o início das aparições, Lúcia concluiu que talvez estivesse mesmo sendo vítima de um engano diabólico e decidiu não tornar à Cova da Iria. 

Contudo, no dia 13 de julho, ao aproximar-se a hora em que deveria partir, sentiu-se impelida por algo que não lhe era fácil resistir, e pôs-se a caminho, passando antes pela casa dos seus tios a ver se Francisco e Jacinta ainda estavam lá. Encontrou-os chorando.

– Então vocês não vão? – perguntou-lhes

– Sem ti não nos atrevemos a ir. Anda, vem.

Os três pastorinhos partiram contentes rumo à Cova da Iria, e corriam tanto, que a gente pedia que reduzissem o passo.

Apesar do sol escaldante, havia cerca de 4 mil pessoas ao redor da azinheira. Dessa feita Ti Marto resolveu ir e ficou rente à sua Jacinta. Na sua linguagem simples, narrou o que viu:

“A Lúcia, ajoelhada um pouco mais à frente, passava as contas e todos respondiam em voz alta. Acabado o terço, levanta-se tão rápida que aquilo não era força dela. Olha assim para o nascente e grita: ‘Fechem os chapéus, fechem os chapéus, que já aí vem Nossa Senhora’. Eu, por mais que olhasse, nada via. Começando então a afirmar-me, vi assim a modo uma nuvenzinha acinzentada que pairava sobre a azinheira. O sol enturviscou-se e começou a correr uma aragem tão fresquinha que consolava. Nem parecia estarmos no pino do Verão. O povo estava mudo que até metia impressão. E então comecei a ouvir um rumor, uma zoada, assim a modo como um moscardo dentro dum cântaro vazio. Mas de palavras, nada!” 9

Ao ver Nossa Senhora, Lúcia entrou em êxtase e emudeceu. Jacinta despertou-a: 

– Anda, fala-Lhe, que Nossa Senhora já está a falar.

– Vossemecê o que me quer? – perguntou Lúcia.

Os presentes não ouviam as respostas. As crianças, inteiramente alheias à multidão silenciosa que as rodeava, adquiriam nesses momentos um não-sei-quê de angelical, os rostos cresciam em alvura e ganhavam uma beleza que não é deste mundo. Crisparam-se subitamente os pastorinhos de horror, e puseram-se a gritar: 

– Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora!

Era o início do grande Segredo. A Virgem mostrou-lhes o inferno, e os três viram um mar de fogo onde flutuavam sem peso nem equilíbrio os condenados ao lado de demônios de formas horríveis e asquerosas, como animais desconhecidos. “Creio que teríamos morrido de susto e pavor”, escreveu a Lúcia. Os pastorinhos não viram o inferno como que ao longe, mas desde muito perto; podiam ouvir a grita e o desespero dos condenados. Muitos anos mais tarde, quando alguém perguntava a Irmã Lúcia sobre o que viu nesse dia, a sua fisionomia imediatamente exprimira tamanho horror, que não era preciso mais nada para que o interlocutor acreditasse na realidade da visão.

Também a Jacinta ficaria profundamente marcada com o que viu. Desde esse dia, costumava dizer:

 – O inferno!, o inferno!, que pena eu tenho das almas que vão para o inferno! E as pessoas lá vivas a arder como a lenha no fogo!

Outras vezes dizia:

 – Francisco, Francisco, vocês estão a rezar comigo? É preciso rezar muito, para livrar as almas do inferno. Vão para lá tantas!, tantas!

Ora, nesse mesmo dia, após a espantosa visão, Nossa Senhora falou aos pastorinhos:

– Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração. Se fizerem o que eu disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre10. Para a impedir virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfará. O Santo Padre consagrar-me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz. Em Portugal conservar-se-á sempre o dogma da Fé, etc. 11

 

A quarta aparição  (19 de agosto de 1917)

A quarta aparição foi precedida de grandes provações: os três foram seqüestrados pelo Administrador de Ourém, Artur Oliveira Santos, um maçom apelidado de “latoeiro”, que os levou para a Administração e os lançou na prisão para forçá-los a revelar o Segredo. Os demais presos diziam-lhes:

– Mas vocês, digam ao Senhor Administrador lá esse segredo. Que Ihes importa que essa Senhora não queira?

– Isso não! – respondia a Jacinta com vivacidade. – Antes quero morrer.

Quando a Jacinta chorava na prisão com pena de não tornar a ver a mãe, Francisco a consolava:

– A mãe, se a não tornarmos a ver, paciência, oferecemos pela conversão dos pecadores. O pior é se Nossa Senhora não volta mais! Isso é o que mais me custa! Mas também o ofereço pelos pecadores.

O Administrador trouxe um médico para examiná-los, na esperança de obter um diagnóstico que os declarasse desequilibrados, mas em vão. No dia seguinte, conduziu-os novamente para sua própria casa, onde, numa tentativa final, ameaçou de morte um a um, dizendo que os havia de queimar em óleo fervente. Todos resistiram bravamente e ao latoeiro só restou soltá-los.

No dia 13 de agosto, estando os pastorinhos presos, dez a vinte mil pessoas foram à Cova da Iria e, na hora prevista, novos fenômenos ocorreram: deu-se uma queda impressionante da luminosidade e umas nuvenzinhas se formaram perto da Carrasqueira e se ergueram por uns 6 metros até se desfazerem. O povo percebeu que havia ali qualquer coisa de sobrenatural, e voltou-se furioso contra o Administrador que seqüestrara os pastorinhos, e mesmo contra o Sr. Prior, que julgavam ser seu cúmplice. Tudo terminaria mal, não fosse pela intervenção de Ti Marto: “Sosseguem, rapazes! Não façam mal a ninguém. Quem merece castigo recebe-lo-á. Tudo isso é por desígnio do Alto.” 

Para provar sua inocência, o pároco de Fátima escreveu um texto sobre os fatos e o fez publicar em diversos jornais de Lisboa, dando aos acontecimentos uma repercussão em escala nacional.

A quarta aparição da Virgem, contudo, ocorreu no dia 19 de agosto nos Valinhos. Depois da aparição, os pastorinhos colheram uns raminhos da azinheira que tocaram nos vestidos da nívea Senhora, e correram muito depressa a levá-los para casa. A Jacinta mesma os mostrou para a mãe da Lúcia:

– Olhe, tia, Nossa Senhora colocou um pé neste raminho e outro neste.

– Dá-me cá! Deixa ver!

A Jacinta deu-lho e Ti Maria Rosa levou-o ao nariz.

– Mas a que cheira isto? – e continuava a cheirar. – Não é perfume… não é incenso… sabonete… cheiro de rosa também não é, nem de nada que eu conheça… Mas é um cheiro bom!12

Depois desse dia, apesar de sempre continuar a duvidar das aparições, proibiu as filhas de debocharem da Lúcia. 

 

A quinta aparição

A mais breve das aparições ocorreu no dia 13 de setembro de 1917, quando estiveram presentes em torno de 25 mil pessoas. O Pe. Manuel Nunes Formigão partiu numa charrete com um grupo de peregrinos da Benedita, ansiosos para ver os fenômenos que se produziam todo dia 13 na Cova da Iria:

“À hora aprazada subimos para o carro e partimos. Durante a jornada comovi-me imenso e por mais duma vez me assomaram as lágrimas aos olhos ao constatar a Fé e a piedade ardente de tantos milhares de romeiros.

“Os caminhos e atalhos iam cheios de gente. Não havia carreiro, por mais pequeno que fosse, que não trouxesse pessoas à estrada. Era uma peregrinação verdadeiramente digna deste nome, cuja vista, só por si, fazia chorar de comoção. Nunca me fora dado presenciar em toda a minha vida uma tão grande e tão empolgante manifestação de Fé. Não se via nem se ouvia coisa alguma que traduzisse o mais imperceptível sentimento de leviandade ou mesmo um propósito de divertimento inocente.”

Passaram em Aljustrel tão logo chegaram para fotografar e conversar com os videntes:

“Foi essa a cena que mais me impressionou. Fiquei positivamente encantado. Aquela simplicidade angélica e aquela absoluta despreocupação, que elas manifestavam, não pode mentir. Não têm o acanhamento próprio das crianças rudes dos campos e das serras na presença de pessoas desconhecidas. Tanto se lhes dá falar com uma pessoa estranha como com muitas. As respostas que dão são sempre as mesmas. Parecem adultos na maneira de se exprimir.”

Outro sacerdote presente na hora da aparição de setembro foi o Cônego José Galamba de Oliveira, que chegou a Fátima acompanhado de um grupo de seminaristas:

“Não dei por nada junto do local mas, após a aparição, não posso indicar o momento preciso, olho para o Céu, talvez porque alguém a isso me convidasse, e vejo à distância aparente de um metro do Sol um como globo luminoso que em breve começou a descer em direção ao poente e, da linha do horizonte, voltou a subir de novo em direção ao Sol.

“Apoderou-se de nós uma justificada comoção. Rezávamos de rijo a pedir não sei o quê. Todos os presentes puderam ver o mesmo globo à exceção de um meu condiscípulo, hoje sacerdote também, natural de Torres Novas. Tomei-o pelo braço para lhe mostrar mas nessa altura perdi o dito globo de vista sem que ele lograsse notá-lo, o que o levou a dizer entre lágrimas: ‘Por que será que eu não vejo? Quem sabe se estou em pecado mortal?’

“Antes ou depois, mas decerto no mesmo dia, começamos eu e outros, não sei se todos os presentes, a ver uma queda como de pétalas de rosas ou flores de neve que vinham do alto e desapareciam um pouco acima das nossas cabeças, sem que as pudéssemos tocar.

“Eu não vi mais nada. Mas isso bastou para nos encher de consolação e partimos com a certeza íntima, uma como intuição, de que estava ali o dedo de Deus.”

Nossa Senhora pediu mais uma vez o terço diário e prometeu fazer um milagre, para que todos pudessem crer, no dia 13 de Outubro.

 

O grande milagre

“O clero do lugar e das redondezas mantém uma atitude de prudente reserva, ao menos na aparência, em relação aos fatos. É o costume da Igreja. Ela proclama abertamente que, em tais circunstâncias, é lícito duvidar. Mas, secretamente, rejubila-se com a grande afluência de peregrinos, que desde o mês de maio aumentou cada vez mais.

“Existem até pessoas que sonham com uma igreja grande e magnífica, sempre cheia; nas proximidades, hotéis, esplendidamente instalados com os mais requintados confortos modernos; lojas imensas, perfeitamente apetrechadas com mil e um objetos de piedade e lembranças de Nossa Senhora de Fátima; estradas de ferro que conduzam convenientemente os peregrinos até ao futuro santuário milagroso, em vez desses ônibus que são um desrespeito à massa dos fiéis e dos curiosos…” 13

Essas linhas odiosas, anteriores aos acontecimentos do 13 de outubro, foram escritas pelo jornalista Avelino de Almeida, um maçom de quatro costados, para o jornal “O Século”, principal diário português. 

Sem acreditar na realidade dos fenômenos, foi como jornalista que se uniu aos milhares de peregrinos que se dirigiam então a Fátima para presenciar um milagre com dia, local e hora marcados para acontecer. Calcula-se em torno de 70 mil o número dos que foram à Cova da Iria, sem se importar com a chuva torrencial que então caía. 

Em Aljustrel, a tensão chegou ao cúmulo. “Tinha-se espalhado o boato que as autoridades haviam decidido fazer explodir uma bomba junto de nós, no momento da aparição”, recorda a Ir. Lúcia. Sua família temia pelo que lhes poderia suceder se não houvesse o tal milagre, e assim, às vésperas do dia, Ti Maria Rosa procurou a filha: 

– Ó, Lúcia, é melhor irmo-nos confessar. Dizem que havemos de morrer amanhã na Cova da Iria… Se a Senhora não faz o milagre, o povo mata-nos. Portanto é melhor que nos confessemos, a fim de estarmos preparados para a morte.

A filha não demonstrava medo algum: 

– Se a mãe quer confessar-se, eu vou também; mas não por esse motivo. Não tenho medo de que nos matem. Estou certíssima que a Senhora há-de fazer amanhã tudo o que prometeu 14.

Um vizinho procurou o pai do Francisco e da Jacinta:

 – Ó, tio Marto, é melhor não ir... Porque poderia calhar ser maltratado. Os pequenos, não; são crianças e ninguém lhes vai fazer mal. Mas você é que está em risco de ser enxovalhado.

O caminho até a Cova da Iria estava apinhado de gente, e não foi sem dificuldade que os pequenos venceram a distância que separava a sua casa materna da Cova da Iria. Lúcia vinha de mãos dadas com o pai, mas a mãe também a acompanhava: “Se a minha filha vai morrer, quero morrer ao seu lado!”, declarou.

Entre os circunstantes, percebiam-se alguns homens armados com varapaus que pareciam inclinados a iniciar uma confusão na primeira oportunidade. Muitos havia que lá foram movidos tão-somente pela curiosidade, como era o caso do Sr. Alfredo da Silva Santos, que poucos dias antes ouvira de um amigo numa cafeteria em Lisboa: 

– Lá em casa, depois de amanhã, vai tudo a Fátima. Parece que tem havido por ali qualquer coisa de extraordinário e está tudo cheio de curiosidade de ver o que há ao certo. 

– Pois também vou! – respondeu. O relato do que viu, como veremos adiante, é espetacular. 

Apesar da chuva, toda a multidão rezava o terço, estando os serranitos ajoelhados diante da azinheira. Por volta das doze horas, houve um princípio de confusão: um padre aproximou-se impaciente dos pequenos e começou a empurrá-los, querendo enxotá-los para longe: “Fora com tudo isto! É tudo uma ilusão!” Lúcia, quase a chorar, recusou-se a sair: “Veio das outras vezes e agora também há de vir!”. Murmúrios e queixas se ouviam, quando finalmente a Lúcia gritou: “Já vi o relâmpago”.

Naquele momento exato, a chuva cessou. O rosto da pequena transformou-se, adquirindo uma beleza indizível. Ela sorria enquanto, de uma ponta a outra do vale, reinava o silêncio mais absoluto:

– Que é que Vossemecê me quer? 

– Quero dizer-te que façam aqui uma capela em Minha honra, que sou a Senhora do Rosário, que continuem sempre a rezar o terço todos os dias. A guerra vai acabar e os militares voltarão em breve para suas casas.

– Eu tinha muitas coisas para Lhe pedir: se curava uns doentes e se convertia uns pecadores, etc.

– Uns, sim; outros, não. É preciso que se emendem, que peçam perdão dos seus pecados.

E tomando um aspecto mais triste, Nossa Senhora encerrou as aparições na Cova da Iria com esta palavra que é como que um resumo de toda a mensagem de Fátima:

– Não ofendam mais a Deus Nosso Senhor, que já está muito ofendido.

Abrindo as mãos, fê-las refletir no sol. A Lúcia, levada por um movimento interior, gritou a todos que olhassem para o sol. Deu-se então o grande milagre:

“Não posso então explicar o que se deu”, narrou o Sr. Alfredo da Silva Santos, que veio de Lisboa. “O sol começou a bailar e a certa altura pareceu deslocar-se do firmamento e, em rodas de fogo, precipitar-se sobre nós. Minha mulher – estávamos casados havia pouco – desmaiou e eu não tive coragem para a amparar. Foi o meu cunhado João Vassalo que a susteve nos braços. Caí de joelhos esquecido de tudo. E quando me levantei não sei o que disse; acho que me pus a gritar como os outros.” 15

Aos olhos da multidão, o sol adquiriu movimentos nunca antes vistos. Primeiro, deixou-se ver por longos minutos sem queimar a vista. Em seguida, descreveu no firmamento uma tripla dança, rodopiando ao redor do próprio eixo como um pneu de bicicleta e bailando para lá e para cá. Finalmente, o momento mais assustador: o sol se desprendeu do céu ameaçando cair sobre o povo aterrorizado:

“A gente gritava: ‘Ai, Jesus, que aqui morremos todos!, Ai Jesus, que aqui morremos todos!…’

“Outros bradavam: ‘Nossa Senhora nos valha!’, e rezavam o ato de contrição.

“Houve até uma senhora que fez confissão geral e dizia em altas vozes: ‘Eu fiz isto, aquilo e aqueloutro!’”

O fenômeno foi testemunhado não apenas pelas multidões em Fátima, mas mesmo em outras aldeias, como São Pedro de Muel (40 km de distância), ou Alburitel (18 km). O Padre Inácio Lourenço relata o que viu nesse dia:

«Tinha apenas 9 anos e freqüentava a escola de primeiras letras da minha aldeia (18 ou 19 quilômetros da Fátima).

…Era meio-dia mais ou menos quando fomos sobressaltados pelos gritos e exclamações de alguns homens e mulheres que passavam na rua diante da nossa escola. A professora, muito boa e piedosa, mas facilmente impressionável e excessivamente tímida, foi a primeira a correr para a rua, sem poder impedir que todas as crianças corressem atrás dela.

Na rua o povo chorava e gritava, apontando para o sol, sem atender às perguntas que, aflitíssima, lhe fazia a nossa professora.

Era o grande Milagre, que se via distintissimamente do alto do monte, onde fica situada a minha terra: era o Milagre do sol com todos os seus fenômenos extraordinários.

Sinto-me incapaz de o descrever, como o vi e senti então. Eu olhava fixamente para o sol, e parecia-me pálido, de modo que não cegava os olhos; era como um globo de neve a rodar sobre si mesmo.

Depois, de repente, pareceu que baixava em ziguezague, ameaçando cair sobre a terra. Aterrado, corri a meter-me no meio da gente. Todos choravam, aguardando de um instante para o outro o fim do mundo.

Junto de nós estava um incrédulo, sem religião, que tinha passado a manhã a mofar dos simplórios que faziam toda aquela caminhada a Fátima para irem ver uma rapariga. Olhei para ele: estava como paralisado, assombrado, com os olhos fitos no sol. Depois vi-o tremer dos pés à cabeça e, levantando as mãos ao Céu, caiu de joelhos na lama, gritando: “Nossa Senhora! Nossa Senhora!”» 16

Quando o sol retornou ao seu lugar, e todos perceberam que não havia perigo, foi uma ação de graças coletiva: – Milagre! Milagre! Bendita seja Nossa Senhora!

Conversões espantosas ocorreram, como a do jovem rico que fora com a mãe. Ela, voltando para o carro onde o deixara, perguntou-lhe:

– Meu filho, ainda duvidas da existência de Deus? 

– Não, minha mãe – respondeu-lhe o jovem com os olhos marejados de lágrimas. – Não, agora é impossível.

Um sujeito de barbas brancas, de Santarém, apostrofava contra os ateus: – Há ou não há sobrenatural? E a Lúcia, que subira nos ombros de um jovem advogado que viera lhe ajudar a deixar a Cova da Iria, gritava para o povo, como um pregador numa cátedra: – Penitência! Penitência! Nossa Senhora quer que façam penitência. Se fizerem, a guerra acabará! – Sua atitude enérgica, seu entusiasmo de fogo, calavam fundo. Era como se ouvissem a voz inspirada de um profeta.

Ao fim, enquanto o povo deixava o local cantando o Salve Rainha, via-se aqui e ali, largados pelo caminho, alguns livre-pensadores, confusos, embrutecidos.

E o que escreveu o jornalista Avelino de Almeida, cujas linhas desrespeitosas lemos acima? Após o fenômeno, publicou em “O Século”:

“Aos olhos deslumbrados daquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o sol tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos, fora de todas as leis cósmicas – o sol bailou, segundo a típica expressão dos camponeses.”

Não foi o único jornal a relatar os acontecimentos. Lemos em “O Dia” as seguintes linhas, publicadas em 19 de Outubro de 1917:

“…o sol prateado, envolvido na mesma leveza cinzenta de gaze, viu-se rodar e girar em volta do círculo das nuvens afastadas! Foi um grito só em todas as bocas; caíram de joelhos na terra encharcada os milhares de criaturas de Deus que a fé levantava até ao Céu!”

O célebre Dr. Almeida Garrett, catedrático e escritor, esteve presente no dia e deixou narrado o que viu:

“Maravilhoso é que, durante longo tempo, se pudesse fixar o astro, labareda de luz e brasa de calor, sem uma dor nos olhos, sem um deslumbramento na retina que cegasse. Este fenômeno, com duas breves interrupções, em que o sol bravio arremessou os seus raios mais coruscantes e refulgentes, e que obrigaram a desviar o olhar, devia ter durado cerca de dez minutos. Este disco tinha a vertigem do movimento. Não era a cintilação de um astro em plena vida. Girava sobre si mesmo numa velocidade arrebatada.

“De repente ouve-se um clamor, como que um grito de angústia de todo aquele povo. O sol, conservando a celeridade da sua rotação, destaca-se do firmamento e, sangüíneo, avança sobre a terra, ameaçando esmagar-nos com o peso da sua ígnea e ingente mó. São segundos de impressão terrífica.”

 

SEGUNDA PARTE: “Deus quer estabelecer no mundo a devoção a meu Imaculado Coração…”

Depois dos prodígios tão admiráveis do dia 13 de outubro, quando toda a gente vira o sol bailar, suporíamos que Fátima ganharia o mundo, que o clero haveria de aderir em peso e aprovaria apressado o culto de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. Mas, não foi assim: o selo oficial de aprovação do clero a Fátima teria de esperar ainda treze anos. 

No ínterim, o governo maçônico fez de tudo para impedir aquilo que chamavam de “reação jesuíta” e denegrir o “fanatismo obscurantista”, que supunham tramado pelos curas para derrubar a República. O clero, por sua vez, não saía de sua prudente indiferença: o pároco de Fátima mesmo não cedia aos que pediam sua aprovação para a construção de uma capelinha no local das aparições, declarando não “querer se meter com estas coisas”; e quando a capelinha foi finalmente construída, por iniciativa exclusiva dos fiéis, nenhum padre quis benzê-la. Em Lisboa, num Congresso Católico, um conferencista referiu-se à Jacinta, que acabara de falecer, como uma vidente, o que suscitou uma gargalhada geral, a que se associou Sua Eminência o Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Antônio Mendes Belo. Mesmo a família de Lúcia, que num primeiro momento constatara aliviada o milagre do sol, retornava pouco a pouco à sua descrença e hostilidade inicial. “Ocorreu-me pensar que tudo estava terminado. Senti uma amargura profunda de ver que a Santíssima Virgem não seria jamais venerada lá, como havia pedido. Pensava freqüentemente nisso. Esta idéia não me saía do espírito e me afligia”, escreveria Lúcia.

Aparentemente, era preciso mais do que um baile solar para Fátima conquistar a Igreja. 

 

Morte do Francisco 

Nos fins de 1918, um surto de gripe pneumônica chegava a Portugal. Na Serra do Aire, os sinos da igreja repicavam diariamente dando notícia de mais algum vizinho que partia – eram tantos os óbitos que, em algumas aldeias portuguesas, o dobre de finados foi proibido para evitar o pânico.

Francisco adoeceu primeiro, e o seu estado era grave.

– Se Nossa Senhora te curar – dizia-lhe a madrinha – prometo oferecer-Lhe o teu peso em trigo.

– Não vale a pena. Nossa Senhora não lhe fará essa graça – respondeu o Francisco, com um sorriso angélico. E a todos que lhe asseveravam que haveria de melhorar, respondia com ar misterioso: não.

A doença progredia e o pequeno ardia em febre. O desfecho parecia iminente.

– Ô, pai, queria receber o Pai do Céu, antes de morrer.

– Já vou tratar disso – respondeu o bom homem, e partiu a toda pressa a chamar o padre.

O sacerdote ouviu-lhe a confissão. Quis saber se era verdade que tinha visto Nossa Senhora, e o pequeno respondeu que sim. No dia seguinte, Francisco fez sua primeira e última comunhão. 

– Olhe, mãe, que luz tão linda ali, junto da porta! – Foram estas as suas últimas palavras. Francisco sorriu, dum sorriso angélico. “O Céu aproximava-se”, e o menino voou “nos braços da Mãe celeste”17.

 

Morte da Jacinta

A morte da Jacinta, cercada de tantos pormenores tocantes, aponta para a mão da Virgem Maria a guiar os últimos dias do seu anjinho na terra. Ela contou à Lúcia que a Bela Senhora lhe tornara a aparecer para comunicar novas cruzes, disse que iria para dois hospitais e depois morreria sozinha: 

– Ô, minha Mãezinha do Céu, então eu hei de morrer sozinha? – lamentava-se Jacinta.

– Que te importa morrer sozinha, se Nossa Senhora te vem buscar? – animava-a Lúcia.

– É verdade, não me importa nada. Mas não sei como é: às vezes não me lembro que Ela me vai a buscar, só me lembro que morro sem tu estares ao pé de mim.

– Coragem, então, Jacinta. A ti já te falta pouco para ires para o Céu, mas a mim!

– Coitadinha! Não chores… Lá hei-de pedir muito e muito por ti… Tu ficas… mas é Nossa Senhora que quer assim. 

Abriu-se um abcesso no lado esquerdo, o pus escorria, o peito alagava-se e ela não conseguia dormir. Os tratamentos que Jacinta recebera ao longo de dois meses no hospital de Vila Nova de Ourém revelaram-se inúteis, e a morte era iminente. Os pais não cogitavam enviar a menina para a capital, não só porque lá os custos do tratamento seriam elevados demais, mas por acreditarem que era tudo inútil. Mas não foi isso o que a Providência estabelecera.

Por aquele tempo, apareceu em Aljustrel um senhor acompanhado da esposa; tratava-se de um médico de Lisboa. O casal vinha de adquirir um carro, e decidira que a primeira viagem com o veículo seria para a Cova da Iria. De passagem por Santarém, cumprimentaram o Rev. Dr. Formigão, que se dispôs a acompanhá-los, e foi assim que chegaram à casa da família Marto. Ao ver o triste estado em que a Jacinta se encontrava, o médico não sossegou até convencer a família a levá-la para a capital, onde seria tratada pelos melhores pediatras portugueses.

O pai foi comunicar sua decisão à filha, que respondeu:

— Ó, meu pai ! (...) Se eu for para Lisboa, o pai pode dizer-me adeus.

Ela não tardou a partir. Suas últimas palavras de despedida para Lúcia são comoventes:

— Nunca mais nos tornaremos a ver!… Reza muito por mim até que eu vá para o Céu; depois lá eu peço muito por ti. Não digas nunca o segredo a ninguém, ainda que te matem. Ama muito a Jesus e ao Imaculado Coração de Maria e faz muitos sacrifícios pelos pecadores.

Chegando a Lisboa, a pequena hospedou-se provisoriamente no Orfanato Nossa Senhora dos Milagres, situado na Rua da Estrela, enquanto aguardava o internamento no Hospital D. Estefânia. Sua mãe não pôde ficar com ela, pois seus outros filhos seguiam doentes, e Jacinta ficou sozinha.

Contudo, longe de ser um lugar lúgubre e triste, o Orfanato lhe dava grandes alegrias, pois a Santa Missa era celebrada diariamente numa capela contígua, o que permitia à serranita, levada ao colo pela Madre Superiora, comungar diariamente. Passava todo o tempo que lhe permitiam rezando e meditando na capelinha — rezava sentada, pois já não conseguia ajoelhar-se. 

No orfanato moravam vinte e cinco crianças, mantidas à custa de esmolas. Jacinta dava-se bem com todas, mas preferia uma em especial, que regulava em idade com ela. Costumava-lhe fazer breves pregações. A madre superiora, sempre atenta a tudo o que se passava, ouvia às ocultas a conversa da pastorinha:

— Não deves mentir, nem faltar nunca à verdade — dizia-lhe. — Não deves ser preguiçosa; deves ser muito obediente e suportar tudo por amor de Nosso Senhor com paciência, se queres ir para o Céu.

Madre Maria da Purificação Godinho era o nome da superiora — uma religiosa franciscana que se vestia com trajes seculares, pois as leis da República proibiam o hábito religioso. Todas as crianças, porém, costumavam chamá-la de madrinha, costume que Jacinta logo adotou. A sua nova madrinha narra admirada a sabedoria precoce da criança, como prova de que algo verdadeiramente sobrenatural tocava a pequenita. Eis algumas sentenças que a superiora compilou da boca da menina, e que denotam uma espiritualidade profunda:

Se os homens soubessem o que é a eternidade, faziam tudo para mudar de vida.

Os homens perdem-se, porque não pensam na morte de Nosso Senhor e não fazem penitência.

A confissão é um Sacramento de misericórdia. Por isso é preciso aproximarem-se do confessionário com confiança e alegria. Sem confissão não há salvação.

Os médicos não têm luz para curar os doentes, porque não têm amor a Deus.

Quem foi que te ensinou estas coisas? Perguntou-lhe a Madre Godinho.

— Foi Nossa Senhora: mas algumas penso-as eu. Gosto muito de pensar.

A serranita parecia possuir ainda o dom da profecia. Certa vez, sua mãe foi visitá-la no orfanato. Madre Godinho perguntou então a ti Olímpia:

— Gostava que tuas filhas Florinda e Teresa seguissem vida religiosa?

— Deus me livre! — respondeu a boa mulher.

Momentos depois a Jacinta, que não tinha ouvido a conversa da mãe com a Superiora, disse muito séria a esta última:

— Nossa Senhora gostava muito que minhas irmãs se fizessem freiras. Minha mãe não quer, mas por isso Nossa Senhora não tardará a levá-las para o Céu.

Assim foi: as duas meninas morreram pouco depois da Jacinta. Florinda tinha sete anos e Teresa, dezesseis.

Quando finalmente ingressou no hospital Dona Estefânia, de Lisboa, ninguém sabia que se tratava de uma das videntes de Fátima. As enfermeiras relataram que, à primeira vista, parecia uma criança igual às outras, mas não tardariam a perceber que havia qualquer coisa de muito especial naquela menina: “Esta menina era muito diferente das outras. Muito paciente… uma santinha! Jamais nós a ouvimos chorar, jamais nós a vimos aborrecer-se”. Jacinta foi operada no dia 10 de fevereiro, e o cirurgião, o Dr. Castro Freire, que também ignorava tratar-se da pastorinha de Fátima, testemunhou a paciência heróica da serranita, que não pôde ser cloroformizada por sua extrema fraqueza. Diz ele: “Para a abertura de uma fístula, a anestesia local está longe de suprimir todas as dores… as únicas palavras que a ouvi pronunciar durante a operação foram ‘Ai! Jesus! Ai! Meu Deus!’”. Na cirurgia, foram-lhe tiradas duas costelas do lado esquerdo, deixando uma abertura do tamanho de um punho.

Passada a operação, a Jacinta melhorava dia após dia. Contudo, no dia 20 de fevereiro, a menina pediu pelo Prior da freguesia, querendo confessar-se e receber os últimos sacramentos, dizendo que havia de morrer em breve. O padre, vendo-a tão bem, não entendeu o pedido e recusou. Jacinta ainda insistiu, mas sem sucesso. Horas mais tarde, morreu sozinha, como Nossa Senhora disse que morreria.

O cadáver da santinha foi levado provisoriamente para a Igreja dos Anjos, em Lisboa. Imediatamente, iniciou-se uma verdadeira romaria de fiéis que levavam terços e imagens para tocar nos vestidos da pastorinha. Passados três dias e meio do falecimento, a face da Jacinta conservava uma cor viva e corada, e o corpo exalava um perfume delicado, semelhante a um ramalhete de flores, coisa que não se poderia explicar naturalmente e que causou grande impressão na agência funerária. 

A família recebeu com grande emoção o comboio que chegava com o corpo da serranita. O pai da Jacinta narrou o episódio:

“Quando cheguei à Vila e vi aquele grupo de pessoas em volta do caixãozinho da minha filha… desatei a chorar como uma criança. Fiquei esgotado. Nunca chorei tanto!..

Nada te valeu! Nada te aproveitou!…

Foste aqui dois meses e depois foste para Lisboa…

E lá morreste sozinha!…”

Anos mais tarde, em 1935, o Sr. Bispo de Leiria decidiu trasladar os restos mortais da pequena vidente para um jazigo novo localizado no cemitério de Fátima. Antes da partida, porém, o caixão de chumbo foi aberto e, para surpresa de todos os presentes, o rosto da criança apresentava-se incorrupto.

 

Lúcia parte para as Dorotéias

Francisco e Jacinta já haviam morrido quando S.Ex.a Rev.ma D. José Alves Coreia da Silva tomou posse da Diocese de Leiria 18. Um dos primeiros cuidados do novo bispo foi tirar Lúcia do local das aparições e mandá-la para um colégio distante — idéia que o Pe. Formigão acalentava desde o término das aparições. 

— Tu não dizes nada a ninguém para onde vais.

— Sim, Senhor Bispo — respondeu a pequena.

— No Colégio para onde vais não dizes quem és.

— Sim, Senhor Bispo.

— Nem dizes mais nada sobre as Aparições de Fátima.

— Sim, Senhor Bispo.

Esse procedimento não era sem razão: a menina expunha-se à graves perigos ficando em Fátima, tanto de ordem espiritual como físicos. Por aquele tempo, o clero mantinha certa distância dos acontecimentos, e Lúcia viu-se colocada no centro das atenções, alvo de incessantes interrogatórios e da adulação dos peregrinos. Por outro lado, não se deve diminuir o risco real de vida: a perseguição religiosa era intensa e fazia pouco que Sidónio Pais fora assassinado em Lisboa. A própria Lúcia sofrera ameaça de morte no ano de 192019.

Era preciso partir. Assim, por determinação do bispo, a pequenita deixou sua aldeia natal de madrugada rumo à cidade do Porto, sem se despedir de ninguém, nem informar aonde ia. A instrução era não retornar a Fátima, nem se corresponder com ninguém da aldeia.

Para uma menina que pouco se afastara de casa, a partida era dilacerante:

“Para onde o Sr. Bispo me quer levar, não sei como será, é com a condição de não voltar mais a casa, por isso não voltarei mais a ver a família, nem estes lugares benditos! Cova da Iria, Loca do Cabeço, Valinhos, Poço do Arneiro, a Igreja onde fica o meu Jesus Escondido e onde tantas graças tenho recebido! O sorriso da minha primeira Comunhão! Vila Nova de Ourém, onde fica a Jacinta, o cemitério onde ficam os restos mortais de meu querido pai e Francisco! Nunca mais voltar a pisar esta terra abençoada, para ir, sabe Deus para onde! Sem nem sequer poder escrever diretamente a minha Mãe! Impossível, não vou!”

Mas a menina de quatorze anos obedeceu, e partiu levando sobre os ombros a dura missão de espalhar a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Antes de subir no trem, na estação de Leiria, despediu-se comovida da mãe, que, sempre torturada pela dúvida, disse-lhe: “Vai, filha, que, se é verdade que viste Nossa Senhora, ela te guardará, mas se mentiste, então vais ser uma desgraçada.”20

 

Como Fátima conquistou a Igreja

Por todo o período que se sucedeu à série de aparições da Cova da Iria, o governo republicano português protagonizou uma verdadeira ópera bufa buscando impedir a repercussão dos acontecimentos. Não que suas intenções não fossem realmente hostis, mas eram acometidos de uma singular incompetência sempre que se lançavam contra Fátima.

O governo ordenou que a azinheira onde a Virgem aparecera fosse arrancada e arrastada a reboque de um carro pelas ruas da cidade, contando que este ultraje afastaria definitivamente o povo da nova devoção — foram pela noite e arrancaram… a árvore errada! Em seguida, foi a vez de uns livre-pensadores fazerem um comício contra as “fantochadas de Fátima” na saída da Missa paroquial. Chegado o dia, não encontram ninguém por lá — o Pároco havia transferido a Missa daquele dia para a Capela de Nossa Senhora de Urtiga. Para impedir as procissões, o governo lançava mão da Guarda Municipal e fechava nos dias 13 o trânsito para Fátima21. — Tudo inútil! O povo desvia caminho e chegava ao local das aparições atravessando as fazendas. 

Os guardas mesmos irritavam-se com as ordens que recebiam. Um deles declarou: 

— Se o senhor soubesse o que me custa estar aqui!… Cumpro ordens e cumpro-as à risca, mas creia que, cá por dentro, tudo isto me revolta. Eu sou religioso, senhor, e não compreendo que utilidade haja em estar a proibir essa pobre gente de ir rezar lá abaixo!… Isto até dá vontade de chorar!… Tenho uma irmã que foi a Senhora de Fátima que lhe salvou a vida22.

Não é tudo: em 1922, na ânsia de pôr um fim ao culto de Fátima, os maçons puseram bombas na capelinha das aparições bem como na azinheira — novo fiasco! A dinamite posta na azinheira não explodiu, e as demais apenas derrubaram o telhado da minúscula capelinha. O bispo de Leiria proibiu que fosse restaurada, pois raciocinava como Gamaliel: “se esta idéia ou esta obra vem dos homens, ela mesma se desfará; mas, se vem de Deus, não a podereis desfazer” (At 5, 38-39)

Enquanto tudo isso ocorria, de um extremo a outro de Portugal, desde as margens do Douro aos campos férteis do Algarve, almas atribuladas continuavam a vir a Fátima em busca de socorro para as suas angústias, remédio para as suas dores, lenitivo para os seus males. No ano mesmo do malogrado atentado ao santuário, quarenta mil peregrinos estiveram em Fátima. Dois anos depois, em 1924, o número aumentara para duzentos mil peregrinos — três vezes mais do que no milagre do Sol. Parecia que cada vez vinha mais gente, todos movidos pelas numerosas graças e milagres alcançados pela intercessão de Nossa Senhora do Rosário de Fátima.

Maria da Capelinha narra que, por esse tempo, eram muitos os que vinham apenas para agradecer. Uma vez, viu um homem de Torres Novas chorando diante da azinheira. Havia muitos anos que tinha uma ferida na perna que deitava pus, e parecia não ter cura. Sua esposa veio de Fátima com um punhado de terra e, misturando a terra com água, pediu-lhe que a deixasse lavar a sua perna com aquela lama. O homem, que não tinha crença alguma, retrucou que sua perna precisava de asseio, não de sujeira. A mulher insistiu e terminou por dobrar a resistência do marido. Durante nove dias, lavou sua perna com aquela lama e, a cada dia, parecia-lhe que a ferida ficava menor. No nono dia estava perfeitamente curado. Converteu-se e partiu logo para a Cova da Iria — caminhando com os próprios pés, como fazia questão de dizer. Outra vez foi um tuberculoso de Tomar, também descrente. A mulher lhe fez beber um chá com a terra da Cova da Iria. Contrariado, ele bebeu, e curou-se inexplicavelmente. 

O Pe. Formigão, assíduo nas peregrinações populares, foi mais de uma vez testemunha de curas espantosas. Uma senhora de nome Helena Violeta, de Foz do Douro, paralítica das mãos e membros inferiores, foi a Fátima. Carregada então por religiosos servitas até a Imagem de Nossa Senhora, sentiu-se subitamente curada. Soltou-se dos braços dos religiosos e ajoelhou em fervorosa ação de graças à Virgem. Em seguida, tomada de alegria e exultação, pôs-se à correr em direção à capela das missas, para adorar e agradecer a sua cura a Jesus Sacramentado. 

“Não foi a Igreja que impôs Fátima à fé popular; foi Fátima que se impôs à Igreja”, declarou o Cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa. O que ocorreu após as aparições da Cova da Iria foi um milagre de Fé! Em face de tantas conversões, e do espetáculo edificante de tantos devotos que acorriam à Fátima, o clero começou a aderir. Já no ano de 1926, o Núncio Apostólico veio visitar o Mosteiro da Batalha e, por curiosidade, quis ir ao local das aparições. A impressão que lhe causou foi tamanha, que três meses depois, em 21 de Janeiro de 1927, Roma concedia a Fátima o privilégio da Missa Votiva. A partir daí, os bispos portugueses começaram, um a um, a visitar a Cova da Iria e, em 1930, finalmente, o bispo de Fátima-Leiria declarou como dignas de crédito as visões dos pastorinhos e permitiu oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima.

 

A renovação de Portugal

Os acontecimentos da Cova da Iria ultrapassaram a piedade individual e adquiriram uma repercussão profunda no tecido social do país: “Quem tivesse fechado os olhos há vinte e cinco anos e os abrisse agora já não reconheceria Portugal, tão vasta foi a transformação operada pelo fator modesto e invisível da aparição da Santíssima Virgem em Fátima. De fato, Nossa Senhora quer salvar Portugal”, declararam os bispos portugueses numa Pastoral Coletiva.

O renascimento católico que se seguiu aos acontecimentos de 1917 foi espantoso. As vocações dispararam: quase quadruplicou o número de religiosos num período de dez anos, enquanto os seminários encheram-se. Na diocese de Portalegre, por exemplo, havia 18 seminaristas em 1917; anos depois, em 1933, o número aumentou para 201. Na pequena diocese de Leiria, o seminário estava fechado nos tempos das aparições: dez anos mais tarde fora reaberto e contavam-se 75 seminaristas. No bastião católico do norte, o que ocorreu foi uma explosão de vitalidade: só em Braga o número alcançou 478 seminaristas. Ao lado de tudo isso, a imprensa e o rádio católico desenvolviam-se, bem como os retiros e outras obras de apostolado. 

A romaria a Fátima era cada vez mais concorrida: em 1937, o número de peregrinos na primeira grande peregrinação nacional chegou a meio milhão. O escritor William Thomas Walsh narrou o que viu:

“Entre as estrofes, elevavam-se súplicas individuais e esperanças incontidas, às vezes entremeadas de soluços comovedores: ‘Senhor, nós Vos adoramos!’, ‘Senhos, nós Vos amamos!’, ‘Jesus, tende piedade de nós!’, ‘Senhor, se quiseres, podes curar-me!’ Sim, essas vozes pareciam pertencer a outros tempos mais sinceros e mais ardorosos que o nosso. Pareciam vir das planícies de Esdrelon, das muralhas de Jericó e de Constantinopla, dos campos de Túnis, como pulsações da fé e da dignidade humana, irrompendo através da mediocridade e do nivelamento rasteiro da idade da máquina.” 23

Essa renovação espiritual repercutiu politicamente com a subida pacífica ao poder de um grande líder, António de Oliveira Salazar, que conduziu um programa verdadeiramente católico e contra-revolucionário. Adversário encarniçado do socialismo e do liberalismo, Salazar combatia tudo o que militava contra a família, e contribuiu para fazer do seu país, tido como o mais instável e caótico da Europa, no mais estável de todos — note-se que, entre 1910 e 1926, quarenta e cinco governos haviam se alternado, e o país via-se afundado em dívidas com uma inflação descontrolada. Com Salazar, Portugal viveu em paz, e foi preservado tanto do contágio comunista, que levou a vizinha Espanha a uma terrível guerra civil, como dos horrores da Segunda Guerra Mundial 24. Os estrangeiros que chegavam da Itália, Inglaterra ou França no início dos anos 40, não acreditavam no que viam: enquanto o continente vivia o horror, e boa parte da população viril era ceifada, nas cidades portuguesas a rotina seguia tão inalterada como antes. "O que teve lugar em Portugal proclama o milagre”, declarou o Cardeal Cerejeira, “e prefigura o que o Imaculado Coração de Maria preparou para o mundo”. 

 

Vilar, Porto (1921-1925)

Num subúrbio do Porto, ao lado de uma fábrica, ficava o Instituto Arcediago van Zeller, colégio destinado à educação de moças e administrado pelas senhoras dorotéias. A Ordem de Santa Dorotéia fora fundada em 1834 por Santa Paula Frassinetti (1809-1882) e aprovada por Pio IX, em 1863. Contando com doze estabelecimentos em Portugal, a ordem estava solidamente estabelecida quando sobreveio a revolução de 1910. A partir de então, perseguidas e maltratadas pelos republicanos, as irmãs foram impedidas de usar os hábitos religiosos e viram a maior parte dos seus estabelecimentos ser fechada pelo novo governo. 

Um dos poucos remanescentes era o Colégio do Vilar, cuja superiora chamava-se Madre Maria das Dores Magalhães. Pouco simpática às aparições de Fátima — que ainda não haviam sido aprovadas por aquele tempo — chegou a pedir a Dom José que a dispensasse da obrigação de receber a vidente, pois temia que contaminasse as outras com os modos rudes da gente do campo. “Sim, é uma simples — respondeu-lhe o bispo — mas não creio que vá achá-la simplória. E desejo que a pequena fique aí por uns tempos.”

A primeira impressão que Lúcia causou não foi exatamente favorável, e a madre superiora julgou que seus temores se mostrariam justificados. O confessor do Instituto, Pe. Manuel Pereira Lopes, mudou o nome da menina e tratou de lhe passar severas recomendações: 

— A menina agora muda de nome. A Senhora Diretora tem gosto que fique com o seu, por isso fica a chamar-se Maria das Dores. Se lhe perguntarem de que terra é, diz apenas que é de perto de Lisboa e nada mais. Não fale de Fátima, nem da sua família, nada.

Apesar da tristeza inicial, em que tudo parecia “uma sepultura em vida”, como ela mesma escreveu, a nova vida não iria desagradá-la de todo, sobretudo por ter-se livrado do interrogatório incessante dos curiosos. A rotina era rígida e bem diferente da que levava em Aljustrel: 5:30 despertar; 6:00 meditação; 6:30 missa e comunhão; 7:30 arrumação do dormitório; 7:45 café da manhã; 8:00 aulas e trabalho; 12:00 visita ao Santíssimo Sacramento; 12:15 almoço; 12:45 recreação; 13:30 aulas e trabalho; 16:30 lanche e recreação; 17:00 estudo e trabalho; 19:00 terço; 19:30 jantar; 20:00 recreação; 20:30 oração da noite e dormir. A Lúcia dormia num dormitório coletivo, mas isso não lhe impediria de manter suas práticas de mortificação, como a corda que trazia à cinta desde os tempos de pastorinha. 

Pouco a pouco, a menina perdia seus modos rudes, tornava-se uma boa aluna e conquistava a todos. Eis como a madre superiora a descreveu numa carta ao bispo de Leiria:

“Ao que pese minha total falta de crédito às aparições, observei que não era uma moça comum. Muitas vezes, as irmãs vinham dizer-me que Lúcia tinha qualquer coisa de extraordinário com Nossa Senhora, pois, quando falava dela, era sempre diferente das outras e percebia-se que possuía um amor extraordinário pela Santíssima Virgem. Suas companheiras do Asilo costumavam dizer que não havia quem a igualasse nas bonitas histórias que costumava contar durante o recreio”.

Sim, como em Aljustrel, onde Ti Maria Rosa exclamava “Não sei que atrativo possas ter; as crianças correm para junto de ti como se fossem para uma festa!” 25, Lúcia atraía para junto de si as moças do Asilo do Vilar que se encantavam com sua personalidade e suas histórias. Contudo, jamais falava sobre os acontecimentos que vivera em Fátima. Quanto a isso, nem uma palavra. Sua obediência era heróica: apesar de ter visto Deus Nosso Senhor e a Santíssima Virgem com os próprios olhos, e de tudo isto explodir em seu coração, a moça jamais tocou no assunto para as demais moças do Instituto. Mesmo com a mãe, que a visitou duas vezes, nunca falou a respeito. 

“Quanto à obediência”, continua a Madre superiora, “ela sempre se distinguia, pois fazia tudo muito bem, sem torcer o nariz, sempre de bom coração. Várias vezes, suas companheiras me disseram que Lúcia costumava escolher para si o trabalho menos agradável, deixando os melhores às demais. E fazia tudo com uma simplicidade encantadora.”

O silêncio a respeito das aparições era tão absoluto, que Madre Magalhães veio a supor que a menina havia se esquecido de todo do ocorrido. Para investigar, perguntou-lhe: 

— Lembras do que se passou em Fátima, entre Nossa Senhora e tu? 

A menina baixou os olhos e, ruborizada, respondeu simplesmente: 

— Se me lembro? Penso nisso a todo tempo. 

 

Pontevedra (10/1925-7/1926) - A devoção reparadora dos cinco primeiro sábados

O seu fervor deixava entrever uma vocação. “Suas companheiras dizem amiúde que não há menina mais piedosa e que a capela era onde mais se regozijava, tamanha era sua piedade. Lá, nunca a víamos sentada, mas longe do assento, com as mãos postas sobre o banco. Esta era a sua atitude, que encantava”, escreveu a Madre superiora. E, segundo uma companheira de colégio: “Observá-la na capela, era observar um anjo!“.

Quando a Lúcia procurou-a querendo entrar em religião, a madre pediu que esperasse, e passou-se um ano. Completos dezoito anos, porém, sua superiora interrogou-a se ainda pensava tornar-se religiosa. “Eu desejo, eu quero!”, explodiu a Lúcia. A menina queria entrar no Carmelo de Lisieux, como sua querida Santa Teresinha, mas a madre dissuadiu-a. “Não tens bastante saúde para tais austeridades, filha”. Na sua humildade, Lúcia aceitou esse conselho como se fosse a palavra mesma de Deus e, depois de refletir um pouco, pediu que fosse aceita na própria instituição das Irmãs de Santa Dorotéia, o que alegrou bastante a madre superiora e o bispo de Leiria, Dom José. 

Assim, tomou o trem e cruzou a fronteira de Espanha em outubro de 1925, para o Convento de Tuy, antiga cidade da Galícia, onde as dorotéias portuguesas exiladas estabeleceram seu noviciado poucos anos antes. Tão logo chegou, a Madre provincial conduziu-a à Capela e lhe pediu consagrar-se inteiramente a Nosso Senhor: “Meu Jesus! Eu me abandono toda a Vós. Minha Mãe do Céu, cuidai de mim”. O período de postulado, contudo, Lúcia o faria numa outra casa das dorotéias, na cidade de Pontevedra, distante três horas de carro, para onde seguiu dois dias depois.

A velha casa de Pontevedra não era a mais apropriada às exigências da sua vocação, pois, por também servir de internato a barulhentas crianças, não encontrava nela o recolhimento que desejava. Se isso a consternava tremendamente, era ocasião de oferecer novos e dolorosos sacrifícios a Nosso Senhor. Por aquele tempo, escreveu então ao seu confessor, o Pe. Pereira Lopes: “Estou feliz e não quero outra coisa senão tonar-me uma santa para maior honra e glória de Deus, para obter a salvação dos pobres pecadores e em reparação dos meus pecados”. 

A correspondência entre a superiora do instituto e o bispo de Leiria, Dom José, mostra que a postulante já tinha fama de santidade: 

“Quanto a mim, considero uma graça tê-la aqui por estes cinco meses de preparação, e conto mesmo que, por meio dela, Nossa Senhora concederá bênçãos especiais para esta casa. E para ser bem franca com Vossa Excelência, devo confessar que eu mesma já recebi grandes graças! 

“(...) Rogai a Nosso Senhor para que eu aprenda com ela a ser boa, para que ao menos na minha velhice eu seja aquilo que já deveria ser, depois de tanto tempo de vida religiosa. Por vezes, envergonho-me ao lado dela.”26

Foi na noite de 10 de dezembro de 1925 que a Santíssima Virgem dignou-se visitar mais uma vez a sua protegida, imersa então num mar de angústias. O quarto alumiou-se de repente e Lúcia viu-se diante da Virgem. Esta pousou docemente sua mão maternal no seu ombro, como que para encorajá-la, ao passo que mostrava o coração cravejado de espinhos na outra mão. O Menino Jesus, que a acompanhava, disse-lhe:

– Tem pena do Coração de tua SS. Mãe que está coberto de espinhos que os homens ingratos a todos os momentos Lhe cravam sem haver quem faça um acto de reparação para os tirar.

Eis aqui, nas palavras de Nosso Senhor, o fim desta devoção: reparar pelos pecados e consolar Nossa Senhora. A comunhão deve ser feita com o propósito de desagravar o Imaculado Coração de Maria27. Sem esta intenção, insiste o irmão Marie des Anges, todo o resto perde valor.

A Santíssima Virgem, por sua vez, falou:

– Olha, minha filha, o Meu Coração cercado de espinhos que os homens ingratos a todos os momentos Me cravam, com blasfêmias e ingratidões. Tu, ao menos, vê de Me consolar e diz que todos aqueles que durante 5 meses, ao 1.° sábado, se confessarem, recebendo a Sagrada Comunhão, rezarem um Terço e Me fizerem 15 minutos de companhia, meditando nos 15 mistérios do Rosário, com o fim de Me desagravar, Eu prometo assistir-lhes, na hora da morte, com todas as graças necessárias para a salvação dessas almas.

Refletindo sobre o que viu, escreveu a Lúcia:

“Depois desta graça, como poderia me subtrair do mais pequeno sacrifício que Deus quisesse me pedir? Para consolar o Coração da minha querida Mãe do Céu, ficava contente em beber até a última gota do cálice mais amargo.

“Quereria sofrer todos os martírios para reparar o Coração Imaculado de Maria, minha querida Mãe, e um por um tirar-lhe todos os espinhos que o dilaceram, mas compreendi que estes espinhos são o símbolo dos numerosos pecados que vão contra o Filho, trespassando o Coração da Mãe. Sim, porque por eles, muitos outros filhos se perdem eternamente.” 28

É espantoso pensar o quanto nos é prometido com a devoção reparadora dos cinco primeiros sábados. A parte que nos cabe, porém, não poderia ser mais modesta – dir-se-ia que em tempos tão ingratos, o Céu reduziu suas exigências ao mínimo. Cinco sábados, poucas horas se somarmos tudo, em troca da promessa sem igual de não sermos reprovados. Uma devoção para tempos de apostasia. 

No entanto, é preciso dizer que costumamos considerar a devoção reparadora desde a ótica dos benefícios prometidos, e esquecemos que se trata de um pedido de Nossa Senhora: “virei pedir a consagração da Rússia a Meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados”, foram as suas palavras. Quem sabe não foi pela negligência em se atender a este pedido que a Rússia jamais foi consagrada ao Imaculado Coração? Nesse sentido, o Cardeal Alfredo Schuster comparava essa devoção a uma grande cruzada, e dizia que o que foi Lepanto contra o crescente deveria ser Fátima contra a foice e o martelo.

Apesar de não ter sido expressamente dito nas comunicações de Nossa Senhora, está no espírito de Fátima que esta devoção seja utilizada em prol da salvação dos nossos amigos e familiares – assim compreendia a Irmã Lúcia, que fazia todo mês a comunhão reparadora. Ela escreveu a propósito desta devoção: “Os Santíssimos Corações de Jesus e Maria amam e desejam este culto, porque se servem dele para atrair as almas, e é este todo o seu desejo: Salvar almas, muitas almas, todas as almas.”

Infelizmente, a Devoção reparadora dos primeiros sábados jamais recebeu um ato oficial de aprovação ou incentivo, quer da hierarquia portuguesa 29, quer de Roma. Há pior: a própria vidente viria a ser proibida de falar a respeito durante os pontificados de João XXIII e de Paulo VI 30

 

Tuy – A consagração da Rússia

Em 1926, a Irmã Maria das Dores foi abruptamente transferida para o noviciado de Tuy, após externar mais uma vez o desejo de fazer-se carmelita. Não era sem rigores a vida das irmãs – todas lançavam mão regularmente de uma dura rotina de cilícios e flagelos 31 – mas isso não era suficiente para a vidente de Fátima, que aspirava pelo perfeito recolhimento e obscuridade da vida de clausura. Dom José, bispo de Leiria, e a superiora das dorotéias não concordaram com seus anseios e a religiosa aquiesceu, pensando “Vontade de Deus, tu és o meu Paraíso!”

O Pe. Formigão, que a visitou por esse tempo, escreveu numa carta a seu respeito:

“A pequena continua a mesma, como tu a conheceste. Ela tem uma simplicidade e uma humildade admirável. Que piedade profunda, tão admirável e tão alegre! Que espírito extraordinário de obediência! Que amor do sacrifício e da mortificação!”

Atribuem-se milagres a ela durante esse período. Por exemplo, a cura de uma criança de três anos, de nome Teresinha do Menino Jesus, filha de um cônsul português, que sofria fortemente por conta de dois tumores. A intervenção cirúrgica não lhe servira de nada, e os pais angustiavam-se tremendamente. Lúcia tomou conhecimento da grave doença da criança e procurou os pais para dizer-lhes que não deviam se afligir, pois Teresinha ficaria boa. “Foi neste momento”, escreveu o pai, “que se deu um fenômeno inexplicável para nós. Durante a noite, e contrariamente ao que previa o doutor, tudo desapareceu: a febre, o tumor, o inchaço da perna. Quando nós vimos nossa filha pela manhã, tão desfigurada e tomada de febre poucas horas antes, e agora sem traços do mal que durante três meses a atormentou, ficamos verdadeiramente estupefatos! Teresinha ria e queria ir no chão”. O médico não ficou menos surpreso e declarou que não havia explicação natural para o fato.

No entanto, o grande favor do Céu que obteve em Tuy, e que marcaria definitivamente não apenas a sua própria vida, mas todo o nosso século, foi a Teofania do dia 13 de junho de 1929. Neste dia, dirigiu-se para a capela para fazer sozinha a hora santa. Estava tudo escuro, exceto pela luz de uma lamparina. De repente, contudo, toda a Capela iluminou-se com uma luz sobrenatural, e sobre o Altar apareceu uma Cruz que se erguia até o teto. Irmã Lúcia viu então a Santíssima Trindade, recebendo luzes que, conforme disse, não lhe era permitido revelar. Nosso Senhor pendia na cruz, tendo por cima uma pomba a representar o Espírito Santo e Deus Pai. Sangue pingava das faces do Crucificado e duma ferida do seu peito numa hóstia, e desta para um cálice. No lado direito, Nossa Senhora com seu Imaculado Coração cravejado de espinhos e ardendo num fogo, do outro lado, umas letras grandes que diziam “Graça e Misericórdia”. Nossa Senhora disse-lhe em seguida:

– É chegado o momento em que Deus pede ao Santo Padre que faça, em união com todos os Bispos do Mundo, a Consagração da Rússia ao Meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio. São tantas as almas que a Justiça de Deus condena por pecados contra Mim cometidos, que venho pedir reparação: sacrifica-te por esta intenção e ora.

Aqui também se trata de um pedido de reparação: este é um dos sentidos profundos da Consagração da Rússia. Como escreveu a irmã ao seu confessor, o Padre Gonçalves; “Se não me engano, o bom Deus promete pôr fim à perseguição na Rússia, se o Santo Padre se dignar fazer, e ordenar aos bispos do mundo católico igualmente de fazerem um ato solene e público de reparação e de consagração aos Santíssimos Corações de Jesus e de Maria (…)”. 

Como escreveu um autor, a tomada de um país pelo comunismo é comparável à possessão de um demônio sobre um corpo. A Rússia foi desde o início o instrumento de Satanás para o castigo do triste século XX: Já em 1918, a Igreja foi praticamente declarada ilegal. No mesmo ano, surgiam os primeiros campos de concentração e tinha início a deskulakização. Escreveu Pio XI sobre a Rússia:

“A recrudescência e a publicidade oficial de tantas blasfêmias e impiedades requerem a mais universal e solene das reparações. Durante as últimas festas de Natal, não apenas muitas centenas de igrejas foram fechadas, inúmeros ícones foram queimados, mas os trabalhadores e estudantes foram todos obrigados a trabalhar; os domingos foram suprimidos, e chegou-se a obrigar os trabalhadores das usinas, homens e mulheres, a assinar uma declaração formal de apostasia e de ódio contra Deus, sob pena de serem privados de suas cartas de pão, vestuário e alojamento, sem as quais todo habitante dessa nação infeliz é reduzido a morrer de fome, miséria e frio.” 32

A promessa relacionada à Consagração da Rússia seria meramente a do fim da União Soviética? O Pe. Alonso, maior estudioso de Fátima, explica: “É preciso afirmar que Lúcia sempre julgou que esta conversão não se resume ao retorno do povo russo à religião ortodoxa, com a rejeição do marxismo ateu dos soviéticos. Antes, refere-se pura, simples e totalmente à conversão total da Russia à única verdadeira Igreja de Cristo, que é a Igreja Católica.” 33

Por que a necessidade de uma consagração? Ou, por outra, por que o bom Deus não converte a Rússia sem o concurso dos homens? Eis o que explicou Lúcia:

“(...) intimamente tenho falado a nosso Senhor do assunto e há pouco perguntava-Lhe por que não convertia a Rússia sem que Sua Santidade fizesse essa consagração.

– Porque quero que toda a minha Igreja reconheça essa consagração como um triunfo do Coração Imaculado de Maria, para depois estender o seu culto, e pôr ao lado da devoção do meu Divino Coração, a devoção desse Imaculado Coração.”

Assim como fizera com os cinco sábados, propondo um meio fácil para a salvação das almas, Nosso Senhor depositou nas mãos de seu Vigário o poder de repelir o grande flagelo do nosso tempo, mas, infelizmente!, nenhum papa desde Pio XI valeu-se dele: a Rússia nunca foi consagrada solenemente em união com todos os bispos do mundo 34. Por essa razão, ela não se converteu, nem o Imaculado Coração de Maria foi exaltado.

Irmã Lúcia adoeceu no ano de 1930 e, para repousar, foi enviada por suas superioras a uma pequena cidade marítima nas proximidades, de nome Rianjo. Foi provavelmente numa capela dedicada a Nossa Senhora, que ouviu esta terrível reprimenda do Céu: “Faça saber aos meus ministros que, dado que seguem o exemplo do rei de França retardando a execução do meu pedido, eles o seguirão no infortúnio. Jamais será tarde demais para recorrer a Jesus e a Maria.” 35

A verdade é que naquele mesmo ano, como nota o Irmão François de Marie des Anges, os castigos começam a ocorrer. Na Espanha, a revolução anti-monárquica levou a maçonaria ao poder, fazendo com que a lepra bolchevique se alastrasse pela Península Ibérica. Não passariam cinco anos até o terrorismo vermelho começar a destruir igrejas e conventos na Espanha, enquanto manifestantes desfraldavam bandeiras vermelhas nas ruas, aos gritos de Viva Rusia! 

Foi ainda naquele período que Moscou começou a instruir os partidos comunistas a infiltrarem os seminários católicos, a fim de minar a Igreja desde dentro. 

 

O Terceiro Segredo

Nos anos 30, a verdadeira identidade da Irmã Maria das Dores não era segredo para mais ninguém, e o Convento de Tuy começou a ser muito requisitado por devotos e curiosos. Para cúmulo, as superioras muitas vezes aquiesciam aos visitantes e faziam com que Lúcia fosse aqui ou ali apenas para exibi-la. Por essas razões, o desejo de se retirar para trás das grades do carmelo tornou-se dominante, mas ainda não seria dessa vez que a religiosa subiria esta montanha santa, pois, movidos talvez pelo desejo muito humano de ter no seu instituto a vidente de Fátima, suas superioras não acediam às suas aspirações. À Lúcia restava o consolo da sabedoria de Santa Gemma Galgani: “um pouco mais de morte para ti mesma, e teus problemas não serão nada”. 

Escreveu então:

“Ofereci-me, desejando ser aceite, para, enquanto que o Senhor me não abre as portas do Claustro, ir a terras africanas, ao lado dos Missionários, levar às almas o Amor que abrasa, a Esperança que fortifica, a Fé que guia e eleva da terra ao Céu! Ir com a Divina Pastora, conduzir as ovelhas às pastagens verdejantes, onde correm as águas cristalinas da eterna fonte.”

É admirável como algumas passagens do seu diário remetem-nos as mais belas páginas de Santa Teresinha:

“Mas não me explico, como sinto em mim aspirações tão opostas! Contente voaria pelos sertões da África, em conquista das almas dos meus queridos Irmãos distantes, e chego até a invejar os que têm essa sorte. Feliz me imolaria nos hospitais junto dos membros doloridos de Cristo, para, com os meus serviços, lhes prestar toda a classe de alívios. Mais feliz ainda me enterraria nas leprosarias, colhendo os gemidos da Humanidade em decadência, oferecendo-os a Deus como vítimas expiatórias pelos pecados do mundo.

“Gostaria de adquirir todas as ciências para transmiti-las às almas como reflexo da eterna Sabedoria, fonte donde emana toda a luz da inteligência e ciência adquirida, e poder assim elevá-las do rasto da terra, à luz do sobrenatural! Mas pobrezinha de mim que nada sou e nada tenho! Levanto-me do próprio nada e, na união da minha alma com Cristo, encontro tudo, porque é das profundezas da abjeção que Deus me eleva às alturas do sobrenatural, é pela humildade que se desce ao fundo do Oceano, é aí que se encontra a Luz, a força, a alegria e onde Deus concede a graça de atingir o cume do Amor! Daí o meu ardente desejo de imolar-me a sós com Ele no silêncio dum claustro, onde possa dar-Lhe tudo numa união mais perfeita, num encontro mais íntimo pela Igreja minha Mãe e pelas almas dos meus queridos Irmãos.” 36

No ano de 1943, Lúcia foi acometida de grave pleurisia: escarrava sangue, assim como a santa de Lisieux, e a febre não lhe deixava. O risco de morte era grande:

“Escrevo na cama, onde estou já há 17 dias com febre bastante alta… Talvez que tudo isto seja o princípio do fim, e estou contente”, escreveu então a Dom José, bispo de Leiria. “É bem que, à maneira que a minha missão na terra vai acabando, o bom Deus me vá preparando os caminhos para o Céu.” 

O Cônego Galamba, no entanto, desejoso de conhecer e fazer conhecer a mensagem de Fátima, inquietava-se, temendo que a vidente viesse a morrer sem nunca revelar a parte final do Segredo. Por isso, renovou suas instâncias para que o bispo a fizesse escrever, e assim, no dia 15 de setembro de 1943, Dom José sugeriu à vidente que, se quisesse, colocasse por escrito a terceira parte do segredo. A vidente respondeu que, para fazê-lo, precisaria receber do bispo uma ordem formal, pois não tinha recebido ainda “autorização de Nosso Senhor” para revelá-lo.

Como persistisse uma infecção purulenta na sua perna, Irmã Lúcia teve de ser hospitalizada e submetida a uma cirurgia. Temendo que, sob a medicação, fizesse alguma indiscrição a respeito do Segredo, pediu para não receber anestesia geral mas os médicos não concordaram. A operação transcorreu bem e não demorou para a vidente retornar a Tuy. Escrevia então no seu diário:

“Se o Bom Deus não tiver algo a mais a me pedir ou se não agravar a doença que me enviou, dentro em pouco poderei começar a trabalhar. Mas que Ele faça o que quiser. Não Lhe peço nem a saúde, nem a doença, nem a vida, nem a morte. Que me envie o que mais Lhe agradar!”

Em novembro de 1943, a religiosa finalmente recebeu de Dom José Correia da Silva uma ordem formal para redigir o terceiro segredo. Mas algo estranho se passou. Muito embora não sentisse nenhuma dificuldade para escrever sobre qualquer assunto, por mais que tentasse registrar o Segredo, nada saia do papel. “Ainda não escrevi o que V.Exª.Rev.ma me mandou: já o intentei cinco vezes e não fui capaz”, escreveu então a Dom José; “não sei o que é, no momento de pousar a pena no papel, põe-se-me a mão a tremer e não sou capaz de escrever letra alguma: parece-me que não é nervoso natural, porque no mesmo instante passo a escrever outra coisa diferente e tenho a mão firme”. Concluiu: “Mas, quem sabe, será o demônio que me queira impedir este ato de obediência?”

Passaram-se semanas nessa agonia. Até que uma tarde, estando a sós na capela durante uma visita ao Santíssimo, o rosto mergulhado entre as mãos, sentiu que lhe tocava o ombro a mão amiga da Rainha do Céu:

Não temas, quis Deus provar a tua obediência, Fé e humildade. Está em paz e escreve o que mandam, não porém o que te é dado entender do seu significado. Depois de escrito, fecha-o e lacra-o e escreve por fora, que só pode ser aberto em 1960, pelo Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa ou pelo Sr. Bispo de Leiria.

Continua a Lúcia descrevendo o que sentiu:

“Senti o espírito inundado por um mistério de luz que é Deus e Nele vi e ouvi, A ponta da lança como chama que se desprende, toca o eixo da terra, Ela estremece: montanhas, cidades, vilas e aldeias com os seus moradores são sepultados. O mar, os rios e as nuvens saem dos seus limites, transbordam, inundam e arrastam consigo num redemoinho, moradias e gente em número que não se pode contar, é a purificação do mundo pelo pecado em que se mergulha. O ódio, a ambição provocam a guerra destruidora! Depois senti no palpitar acelerado do coração e no meu espírito o eco duma voz suave que dizia: No tempo, uma só Fé, um só Batismo, uma só Igreja, Santa, Católica, Apostólica. Na eternidade, o Céu! Esta palavra Céu encheu a minha alma de paz e felicidade, de tal forma que quase sem me dar conta, fiquei repetindo por muito tempo: O Céu! O Céu! Apenas passou a maior força do sobrenatural, fui escrever e fi-lo sem dificuldade, no dia 3 de janeiro de 1944, de joelhos, apoiada sobre a cama que me serviu de mesa.” 37

O escrito foi entregue ao Bispo devidamente envelopado. Este, temeroso com a alta responsabilidade que lhe incumbia, não queria lê-lo, o que levou a irmã fazê-lo prometer que abriria o envelope antes de 1960 ou assim que ela morresse, o que ocorresse primeiro. 

Por que o ano de 1960? O Cardeal Silvio Oddi, outrora Prefeito da Congregação para o Clero, tratou da questão:

“Que ocorreu em 1960 que poderíamos relacionar com o Segredo de Fátima? O evento mais importante foi sem dúvida o início da fase preparatória do Segundo Concílio Vaticano. Assim, eu não me surpreenderia se o Segredo guardasse alguma relação com a convocação do Vaticano II… Não me surpreenderia se o Terceiro Segredo fizesse alusão a tempos obscuros para a Igreja, graves confusões e apostasias perturbadoras dentro do próprio Catolicismo… Se considerarmos a grave crise por que temos passado desde o Concílio, os sinais de que esta profecia foi cumprida não parecem faltar…”

Diz ainda o mesmo cardeal que o Segredo não tem nada a ver com Gorbatchev: “a Santíssima Virgem nos alertou sobre a apostasia na Igreja”. 

Essa também é a opinião do Cardeal Mario Luigi Ciappi, teólogo da Casa Pontifícia, que escreveu: “No terceiro segredo se prevê, entre outras coisas, que a grande apostasia na Igreja começará do seu ponto mais alto”.

Também parece ser este o pensamento do Cardeal Alfredo Ottaviani, que leu o Segredo e foi a Portugal entrevistar a Irmã Lúcia: “Eu tive a graça e o dom de ler o texto do terceiro segredo. [...] Posso lhes dizer apenas isto: que virão tempos muito difíceis para a Igreja e que é preciso muita oração para que a apostasia não seja grande demais”.

O texto então tem relação com o Concílio? O jornalista Antonio Socci relata que João XXIII encontrou-se nos primeiros meses do seu pontificado com o Cardeal Fernando Cento, antigo núncio em Portugal, e tratou-se da leitura do Segredo: 

“... João XIII disse: ‘Não, espere’. Primeiro, ele queria anunciar a convocação do Concílio Vaticano II, quase como se quisesse colocar perante o Céu um fait accompli (…)

“João XXIII inquietava-se e quis adiar a leitura do Segredo obstinadamente, para o caso de ele conter algo que desaconselhasse este anúncio. Evidentemente, Roncalli quis tomar esta enorme decisão para a Igreja sem ser ‘influenciado’ pela Mãe do Bom Conselho, sem ser iluminado pela Rainha dos Apóstolos, sem ser assistido pela Mãe de Deus, pela Mãe da Divina Graça, pelo Auxílio dos Cristãos. Assim, depois que o anúncio foi feito, depois que a sua própria vontade foi realizada, João XXIII consentiu: agora que tudo já foi decidido, podemos ver o que a Senhora de Fátima disse.”38

Era então grande a expectativa do mundo católico, pois aproximava-se a data prevista para a revelação do segredo. Os bispos italianos vinham de consagrar solenemente o seu país ao Imaculado Coração de Maria e a devoção à Nossa Senhora do Rosário de Fátima ganhava o mundo. Acompanhado do seu confessor e de um tradutor de português, o papa leu o Segredo com desgosto: “isto não se refere ao meu pontificado”, resmungou. Pouco depois, por meio de um comunicado do Vaticano, foi anunciado que o Segredo não seria revelado, pois “[a Igreja] não deseja tomar a responsabilidade de garantir a veracidade das palavras que os três pastorinhos disseram ter ouvido da Virgem Maria” 39. Todo esse episódio serviu para lançar o descrédito nas aparições de Fátima. Em Portugal, o Cardeal Cerejeira, autoridade maior da hierarquia católica portuguesa, ficou sabendo de tudo pelos jornais, como se fosse um fiel qualquer. 

Anos antes, porém, o Cardeal Eugenio Paccelli havia compreendido a gravidade do que estava em jogo: 

“Suponha que o Comunismo foi somente o mais visível dos instrumentos de subversão usados contra as tradições da Revelação Divina. As mensagens da Santíssima Virgem à Lúcia de Fátima preocupam-me. Esta persistência de Maria sobre os perigos que ameaçam a Igreja é um aviso do Céu contra o suicídio de alterar a Fé na Sua liturgia, na Sua teologia e na Sua alma. Ouço à minha volta inovadores que querem desmantelar a Capela-Mor, destruir a chama universal da Igreja, rejeitar os Seus ornamentos e fazê-La ter remorsos do Seu passado histórico. Chegará um dia em que o Mundo civilizado negará o seu Deus, em que a Igreja duvidará como Pedro duvidou. Ela será tentada a acreditar que o homem se tornou Deus. Nas nossas igrejas, os Cristãos procurarão em vão a lamparina vermelha onde Deus os espera. Como Maria Madalena, chorando perante o túmulo vazio, perguntarão: – Para onde O levaram?”

 

O silêncio

Em março de 1948, Irmã Lúcia finalmente foi recebida no Carmelo de Coimbra – percebendo que o recurso aos seus superiores era inútil, teve de escrever uma carta ao próprio papa pedindo autorização para transferir-se, procedimento esse que lhe foi causa de grandes angústias. Ela chegou no mosteiro às cinco da manhã, e entrou “como os israelitas, muito cedinho antes do nascer do sol, para colher o maná no deserto”. A comunidade recebeu-a em absoluto silêncio. Uma a uma, as irmãs abraçaram-na com um amável sorriso, e seguiram para o coro: “Como é doce, sobretudo nestes dias, a solidão, o recolhimento, e o silêncio aos pés do Sacrário! Mistério admirável, diante do qual se esquecem todos os sofrimentos, todas as penas, todas as amarguras, porque nada há que se possa comparar às penas e dores do nosso Deus!”, escreveu a nova flos carmeli. 

Acompanhada da prioresa, uma espanhola de nome Madre Maria do Carmo, a Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado (este foi o nome que tomou ao receber o santo hábito) conheceu a sua célula, na qual uma grande cruz vazia dominava a parede branca:

– Sabes por que esta Cruz está aí na parede sem o Cristo?

E sem que a nova carmelita tivesse tempo de responder, completou:

– É para que te crucifiques nela.

*

Iniciava um longo período de reclusão de que pouca notícia temos. A vidente que se afastara do contato externo pela reclusão do carmelo, foi “desligada” por uma imposição romana em 1959. Não apenas estava proibida de falar do conteúdo do Segredo, como não poderia receber ninguém sem licença de Roma – nem mesmo o Cônego Galamba ou o Padre Aparício, seu antigo confessor, poderão falar com ela – apenas seus familiares estavam excetuados. Enquanto isso, sem que pudesse se defender, uma campanha de difamação era desferida contra as aparições por padres modernistas em periódicos tão importantes quanto o Civiltá Cattòlica.

Até hoje, dezessete anos após a publicação do Terceiro Segredo, seguem proibidas a publicação da entrevista da vidente com o Pe. Joseph Schweigl, bem como a obra monumental do Padre Alonso, maior especialista em Fátima. Seguem inéditas as cartas da vidente aos papas, os quatro volumes dos seus diários bem como um livro redigido por Lúcia no ano de 1955 e remetido à Santa Sé. O que querem nos ocultar?

Um livro posteriormente publicado, chamado Apelos da Mensagem de Fátima40, foi minuciosamente “revisado” por Roma, e há uma razoável dúvida a respeito da autenticidade de diversos escritos e declarações que lhe foram atribuídas no final de sua vida. 

Por essas razões, a sua entrevista com o Pe. Fuentes, de 1957, é considerada por alguns como a última sem restrições da vidente de Fátima, e seu testamento. Os trechos seguintes são dela:

 

"Senhor Padre, o que falta para 1960? E o que sucederá então? Será uma coisa muito triste para todos, e não uma coisa alegre, se, antes, o mundo não fizer oração e penitência. Não posso detalhar mais, uma vez que é ainda um segredo. Segundo a vontade da Santíssima Virgem, só o Santo Padre e o Bispo de Fátima têm permissão para conhecer o Segredo, mas resolveram não o conhecer para não serem influenciados. Esta é a terceira parte da Mensagem de Nossa Senhora, que ficará em segredo até 1960 (...)

"Senhor Padre, o demônio está travando uma batalha decisiva contra a Santíssima Virgem. E como o demônio sabe o que é que mais ofende a Deus e o que, em menos tempo, lhe fará ganhar um maior número de almas, trata de ganhar para si as almas consagradas a Deus, pois que desta maneira o demônio deixa também as almas dos fiéis desamparadas pelos seus chefes, e mais facilmente se apodera delas.

(...)

"Senhor Padre, eis por que a minha missão não é indicar ao mundo os castigos materiais que certamente virão se antes o mundo não rezar e se sacrificar. Não! A minha missão é indicar a todos o perigo iminente em que estamos de perder as nossas almas para toda a eternidade, se nos obstinarmos no pecado.

(...)

"Senhor Padre, não devemos esperar que venha de Roma, da parte do Santo Padre, um apelo ao mundo para que faça penitência. Nem devemos esperar que esse apelo à penitência venha dos nossos Bispos, nas nossas Dioceses, nem das congregações religiosas. Não! Nosso Senhor já usou muitas vezes destes meios, e o mundo não prestou atenção. Eis por que, agora, é necessário que cada um de nós comece a reformar-se espiritualmente. Cada pessoa deve não só salvar a sua alma como também ajudar a salvar todas as almas que Deus colocou no seu caminho."

 

 

ANEXO

(Terceira Parte do Segredo, tal como publicada em 26 de Junho de 2000)

 

“Depois das duas partes que já expus, vimos ao lado esquerdo de Nossa Senhora um pouco mais alto um Anjo com uma espada de fogo em a mão esquerda; ao cintilar, despedia chamas que parecia iam incendiar o mundo; mas apagavam-se com o contacto do brilho que da mão direita expedia Nossa Senhora ao seu encontro: O Anjo apontando com a mão direita para a terra, com voz forte disse: Penitência, Penitência, Penitência! E vimos n’uma luz imensa que é Deus: “algo semelhante a como se vêem as pessoas n’um espelho quando lhe passam por diante” um Bispo vestido de Branco “tivemos o pressentimento de que era o Santo Padre”. Vários outros Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas subir uma escabrosa montanha, no cimo da qual estava uma grande Cruz de troncos toscos como se fôra de sobreiro com a casca; o Santo Padre, antes de chegar aí, atravessou uma grande cidade meia em ruínas, e meio trémulo com andar vacilante, acabrunhado de dor e pena, ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho; chegado ao cimo do monte, prostrado de joelhos aos pés da grande Cruz foi morto por um grupo de soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo uns trás outros os Bispos, Sacerdotes, religiosos e religiosas e várias pessoas seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições. Sob os dois braços da Cruz estavam dois Anjos cada um com um regador de cristal em a mão, neles recolhiam o sangue dos Mártires e com ele regavam as almas que se aproximavam de Deus.”

(Revista Permanência 288)

  1. 1. Francisco de Fátima, Fernando Leite S. J., p. 11.
  2. 2. Memórias de Fátima, 2a. Memória, p. 88.
  3. 3. Memórias da Irmã Lúcia, 4a. memória, p. 169.
  4. 4. Podemos nos indagar se essa misteriosa gradação não corresponderia à vocação particular de cada um. Francisco, o contemplativo, via apenas; Jacinta além de ver, ouviu do anjo e, depois, da Virgem o apelo de reparação para a conversão dos pecadores; e Lúcia, que falava, terá a missão de comunicar ao mundo os pedidos do Céu e pregar a devoção ao Imaculado Coração de Maria.
  5. 5. Daí em diante, o terço seria o companheiro inseparável de Francisco. “O meu irmão Francisco era inocente e piedoso”, falou João Marto, irmão do pastorinho de Fátima, “Diz a Lúcia que rezava muitos terços enquanto andava com o gado no monte. Isso não posso afirmar porque não vi. O que posso garantir é que em casa só queria rezar terços. Até digo com vergonha que fugia dele para me ver livre de tanto terço! À noite não nos largava enquanto o não rezássemos”.
  6. 6. O Irmão François de Marie des Anges faz uma observação importante: em algumas versões lê-se que Nossa Senhora pediu para se rezar o Rosário; outras dizem que foi o terço. Qual a verdade? Ora, anos mais tarde, Lúcia entrará num convento na Espanha, país em que se utiliza a palavra Rosario indiscriminadamente para significar tanto o terço como o Rosário propriamente dito. Essa é a origem da confusão. Lúcia esclarecerá posteriormente que Nossa Senhora se referia ao Terço.
  7. 7. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, Editora Missões Consolata, Fátima, p. 49.
  8. 8. “Creio que esta promessa não é para mim só, mas para todas as almas que queiram se refugiar no Coração da nossa Mãe do Céu e se deixar conduzir pelos caminhos traçados por ela. Parece-me que estas também são as intenções do Coração Imaculado de Maria: fazer brilhar nas almas sempre mais este raio de luz, mostrar-lhes sempre mais este porto de salvação, sempre prestes a acolher todos os náufragos deste mundo.” (Carta de 14 de abril de 1945.) Citado em Soeur Lucie, confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC.
  9. 9. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, Editora Missões Consolata, Fátima, p. 80.
  10. 10. A “luz desconhecida” ocorreu na noite de 25 para 26 de janeiro de 1938, quando uma aurora boreal de amplitude extraordinária foi vista na Europa (da Noruega a Portugal), mas também no Norte da África, Canadá, América e México. Irmã Lúcia, que contemplava o céu com as irmãs do convento, sabia que essa era a luz que Nossa Senhora mencionara anos antes. – É impressionante constatar que, anos depois, num dia 25 de janeiro, aniversário do “grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo”, foi anunciado o Concílio Vaticano II.
  11. 11. Memórias da Irmã Lúcia, 4a. memória, p. 178.
  12. 12. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, cap. XVIII, p. 115.
  13. 13. Nossa Senhora de Fátima, William Thomas Walsh, Ed. Quadrante, p. 161.
  14. 14. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, cap. XXIII, p. 156.
  15. 15. Ibidem, p. 175.
  16. 16. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, p. 176.
  17. 17. Memórias da Irmã Lúcia, 4a. memória, p. 164.
  18. 18. A diocese fora restaurada dois anos antes por um breve de Bento XV. Até então, Fátima estava na dependência do patriarcado de Lisboa. Quanto ao bispo, diga-se que nos tempos da revolução de 1910, foi preso cinco vezes e torturado pelos republicanos – na prisão, viu-se obrigado a passar noite e dia com os pés imersos em água gelada – resultando em dificuldades de locomoção.
  19. 19. “Dois militares escoltavam-na em direção a Aljustrel, porém, ao ver um terreno com umas covas abertas, um disse ao outro: – Aqui estão covas abertas. Com uma das nossas espadas cortamos-lhe a cabeça e aqui a deixamos, já enterrada. Assim acabamos com isto duma vez para sempre.” (Memórias da Irmã Lúcia, 2a. Memória,  p. 107.)
  20. 20. Um caminho sob o olhar de Maria, Carmelo de Coimbra, Edições Carmelo, 2013, p. 124.
  21. 21. Um telegrama da época, redigido por José Dantas Baracho, Governador Civil, dava instruções muito claras:

    “Administrador do Concelho de V. N. de Ourém;

    “Conforme combinação ontem aqui... se proibirá qualquer manifestação religiosa, que será impedida aí, para o que se reforça posto no local, para onde foi numerosa força armada.”

  22. 22. Era uma Senhora mais brilhante que o Sol, Pe. João de Marchi, p. 295.
  23. 23. Nossa Senhora de Fátima, William Thomas Walsh, Quadrante, São Paulo, 2015, p. 240.
  24. 24. Em 1945, a vidente de Fátima escreveu ao bispo de Leiria: “O bom Deus quer que os senhores bispos, nos poucos dias que antecedem as eleições, falem ao povo, por meio do clero e da imprensa, para dizer que Salazar é a pessoa escolhida para continuar a governar a nossa pátria, que é a ele que serão concedidas luz e graça para conduzir nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade”. E, em 1958, escreveu: “Não podeis imaginar como sofri por nosso tão digno Salazar da ingratidão de tanta gente que não quer ver tudo o que lhe devemos!”. Citado em Soeur Lucie, Confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC, pp. 360-361.
  25. 25. Memórias da Irmã Lúcia, 2a memória, p. 117.
  26. 26. Soeur Lucie, Confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC, p. 175.
  27. 27. Numa aparição posterior, narrada pela vidente, a necessidade desta intenção particular fica clara. Grifos meus: “ [A Lúcia] Apresentou a Jesus a dificuldade que tinham algumas almas em se confessar ao sábado e pediu para ser válida a confissão de 8 dias. Jesus respondeu:

    – Sim, pode ser de muitos mais ainda, contanto que, quando Me receberem, estejam em graça e que tenham a intenção de desagravar o Imaculado Coração de Maria.

    Ela perguntou:

    – Meu Jesus, as que se esquecerem de formar essa intenção?

    Jesus respondeu: – Podem formá-la na outra confissão seguinte, aproveitando a primeira ocasião que tiverem de se confessar” (Memórias, p. 194)

  28. 28. Um caminho sob o olhar de Maria, Carmelo de Coimbra, Edições Carmelo, 2013, pp. 170-171.
  29. 29. O bispo de Leiria, Dom José Alves Correia da Silva, muito embora se mostrasse favorável à devoção, a recomendasse em sermões e aprovasse a sua propagação em Portugal, não chegou a recomendá-la oficialmente.
  30. 30. Por aquele tempo, relata o Irmão François Marie des Anges, uma religiosa, estranhando que Lúcia não mencionasse mais na sua correspondência a prática dos cinco primeiros sábados, escreveu-lhe perguntando a razão deste procedimento. Recebeu do Carmelo de Coimbra uma carta protocolar datilografada com os seguintes dizeres: “A Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado recebeu sua carta e reza nas vossas intenções. Quanto à questão: Por que ela não recomendou precedentemente a devoção dos primeiros sábados? Porque é preciso esperar pela autorização eclesiástica”. Soeur Lucie, Confidente du Coeur Immaculé de Marie, Ir. François Marie des Anges, CRC, p. 374.
  31. 31. A esses rigores, Lúcia somava, entre outros, a corda que trazia amarrada à cintura e abstinência de água três dias por semana. Quanto às práticas de piedade, além dos exercícios regulares da comunidade, Lúcia rezava diariamente o rosário e fazia a Via Sacra. Às quintas, fazia a hora santa, das 23h00 às 24h00
  32. 32. Fatima, joie intime, événement mondial, Irmão François de Marie des Anges, CRC, p. 211.
  33. 33. The Fourth secret of Fatima, Antonio Socci, Loreto Publications, 2006, p. 118.
  34. 34. Remetemos o leitor interessado numa análise detalhada sobre este ponto ao artigo Os papas e a consagração da Rússia, Dominicus, Revista Permanência 264. [Também publicado no nosso site: http://permanencia.org.br/drupal/node/5224 ]
  35. 35. Estas palavras de Nosso Senhor são misteriosas. Como é sabido, Santa Margarida Maria escreveu em 17 de junho de 1689 ao rei de França pedindo a consagração da França ao Sagrado Coração de Jesus. Luís XIV desprezou o pedido do Céu e, exatos 100 anos depois, ocorreu a sangrenta Revolução Francesa e o rei foi decapitado. Assim, as palavras de Nosso Senhor em Rianjo parecem indicar que o não cumprimento dos seus pedidos resultará numa terrível efusão de sangue. O Céu pediu reparação e propôs um meio fácil, mas a rejeição dos meios propostos terá de ser compensada de modo cruento. Esta é apenas uma interpretação, mas podemos corroborá-la com outros escritos da Irmã Lúcia, como a carta que escreveu em 1943 para Dom Garcia y Garcia, Arcebispo de Valladolid, a respeito da situação da Espanha: “Eu Lhe pedi instantemente que usasse de misericórdia para remediar os males da Espanha… mas Ele me respondeu que, se sua justiça não fosse apaziguada pelos meios que pedia, ela o seria pelo sangue dos mártires” (grifos meus). Tudo isso remete à visão do Terceiro Segredo, tal como publicada no ano 2000. Outra carta da Irmã Lúcia, escrita durante o início da Segunda Guerra Mundial ao Pe. Gonçalves, também vai neste sentido: “Deus quer que o momento da consagração da Rússia chegue bem rápido… Se este ato pelo qual a paz nos será concedida não se der, a guerra somente terminará quando o sangue derramado pelos mártires for suficiente para aplacar a justiça divina.
  36. 36. Um caminho sob o olhar de Maria, Carmelo de Coimbra, Edições Carmelo, 2013, p. 282.
  37. 37. Um caminho sob o olhar de Maria, Carmelo de Coimbra, Edições Carmelo, 2013, p. 267.
  38. 38. The forth secret of Fatima, Antonio Socci, p. 195.
  39. 39. Note-se que, na visão publicada no ano 2000, não há referência a palavras ditas pela Virgem Maria. Este é apenas um dos pontos que nos fazem suspeitar que o Segredo não foi integralmente revelado por Roma no ano 2000. Há outros argumentos neste mesmo sentido. Por exemplo, sabe-se que, em setembro de 1952, Pio XII enviou o Pe. Joseph Schweigl para entrevistar a irmã Lúcia a propósito do Terceiro Segredo. De regresso, afirmou: “Não posso revelar nada do que aprendi em Fátima acerca do Terceiro Segredo, mas posso dizer que ele possui duas partes. Uma diz respeito ao papa, a outra, logicamente, embora não possa dizer nada, teria de ser a continuação das palavras, ‘em Portugal o dogma da Fé será sempre preservado’”. Ora, a visão publicada no ano 2000 não contém a continuação destas palavras de Nossa Senhora.
  40. 40. O título original do livro era “A transmissão da mensagem de Nossa Senhora”. Antes de ser publicado, o texto foi todo revisado e corrigido “sob a autoridade direta de João Paulo II”, como explicou o Pe. Luis Kondor ao Irmão François Marie des Anges. Foram incluídas diversas citações de Encíclicas de Paulo VI e João Paulo II que não constavam dos originais, foram suprimidas diversas passagens, outras foram reescritas, além de alterada a ordem dos capítulos. O livro não faz menção à devoção dos cinco sábados, pois a vidente estava proibida de falar do assunto.
AdaptiveThemes