Espiritualidade (180)
Pe. Luís de la Puente, S. J.
Da resignação necessária para ouvir a vocação de Cristo,
renunciar todas as coisas e ser discípulo Dele
Como Cristo Nosso Senhor chama incessantemente os homens para que O sigam, nesta meditação mostrarei qual a disposição mais conveniente que devemos procurar (Exercícios Espirituais de Sto. Inácio, ibid.), para que a santa vocação entre em nós e por ela alcancemos a vida eterna. Declarou-o o próprio Senhor naquela sentença memorável, que disse por São Lucas (Lc 14, 33): “Qualquer de vós que não renuncia tudo o que possui, não pode ser meu discípulo”. Nestas palavras não manda que todos renunciem a todas as coisas, deixando-as de fato, mas que as renunciem com o coração e abandonem as afeições desordenadas por elas, estando preparados para deixá-las se forem impedimentos à salvação, ou se o Senhor, com especial vocação, inspirar a deixá-las, por ser meio mais conveniente e seguro para que se salvem; nestas coisas se incluem o dinheiro, a honra, a dignidade e os cargos proeminentes, bem como os pais, os irmãos, os filhos, os amigos e os conhecidos – quaisquer pessoas ou objetos desta terra, cujo amor desordenado pode impedir-nos de seguir a Cristo e de sermos discípulos Dele. Pressuposto isso, mostraremos três tipos de homens que desejam chegar à salvação, seguindo a Cristo, e querem dispor-se para alcançá-la, a fim de que vejamos qual deles acerta, e qual devemos imitar.
Primeiro ponto. – O primeiro tipo são os homens que desejam chegar à salvação sem usar os meios adequados, por causa da grande dificuldade que sentem: desejam seguir a Cristo, mas não renunciar a todas as coisas, e caso desejem renunciá-las e abandonar as afeições desordenadas, não tomam medidas eficazes para abandoná-las, como o doente que deseja curar-se, mas recusa sangrias, purgas e outros remédios necessários à saúde, em razão da dor e amargura que sente ao tomá-los. A disposição destes é totalmente contrária à vocação divina e à ordem de abandonar todas as coisas; assim, nunca alcançarão a saúde espiritual nem a vida eterna, porque esta não se alcança só com desejos, se faltam obras; assim, parece que querem se salvar e curar, mas de fato não o querem. Por isso disse o Espírito Santo (Pr 13, 4): Vult, et non vult piger, “o preguiçoso quer e não quer”: quer o fim, mas não os meios; quer ir aonde está Cristo, mas não atrás de Cristo; quer a bondade da virtude, mas não a dificuldade, e por isso a deixa. Refletirei também sobre mim, para ver se a minha pretensão a certas virtudes é engano, pois às vezes digo para mim que quero alcançar a humildade e vencer a soberba, mas não quero humilhar-me nem ser humilhado; que quero ter paciência e vencer a ira, mas não gostaria de sofrer, e assim permaneço soberbo e impaciente. A mortificação das paixões é o meio necessário para vencer os vícios, e a prática das virtudes o é para ganhá-las.
Segundo ponto. – 1. O segundo tipo são os homens que desejam chegar à salvação e usar os meios de alcançá-la, porém meios oriundos do próprio juízo e vontade, e não de Deus. Querem seguir a Cristo e renunciar o apego desordenado das coisas, mas sob a condição de ficarem com elas; ainda que sejam ocasião de pecado, e Deus os alerte interiormente para que as abandonem, recusam-se e por isso se entristecem, como o rapaz rico, a quem disse Cristo Nosso Senhor (Mt 19, 21): “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens”. Estes são semelhantes aos doentes que desejam curar-se e tomam os remédios, mas não os que o médico receita, e sim os que escolhem conforme o gosto pessoal, forçando a vontade do médico para que os aprove. Deste modo, estas pessoas buscam trazer a vontade de Deus até à sua, e não levar a sua até à vontade de Deus; por conseguinte, dispõem-se a recusar a vocação divina de renunciar a todas as coisas, com risco de condenarem-se, pois bem sabe Nosso Senhor que a cura está em deixar as coisas possuídas, para que se abandonem as afeições desordenadas e os muitos pecados que daí procedem. Quase sempre devo acreditar que o remédio das enfermidades espirituais não reside nos meios que escolho com o meu juízo cego, mas naqueles que Deus – que é o médico da alma – ordena; veja-se o exemplo de Naaman, o leproso, que, apesar de aspirar pela cura da lepra, negava-se a usar o meio indicado pelo profeta Eliseu (4Rs 5, 10), que era banhar-se sete vezes no Rio Jordão, preferindo o meio fácil que inventou na própria cabeça, que era o profeta tocá-lo com a mão. Porém, se não mudasse de ideia e se resignasse à vontade do profeta, nunca se curaria, uma vez que Deus decidira curá-lo, não pelo meio que escolhia, mas por outro que mais lhe convinha.
2. Refletirei ainda sobre mim, em outros pontos particulares de minha vida, para ver se incido neste engano; pois, se me confesso, erro ao recusar os meios de cura que o confessor prudente assinala, escolhendo os que me aparecem à frente. Se sou religioso, é grande engano pretender a perfeição de estado pelos meios que escolho com o meu próprio juízo, buscando convencer os prelados a concordarem com a minha vontade, em vez de curvá-la para querer o que eles querem; deste modo, dir-me-á Cristo Nosso Senhor o que disse a São Pedro (Mt 16, 23), num caso semelhante: Vade post me Satana, “Retira-te de mim, Satanás”, pois não sou obrigado a fazer o que tu queres, mas tu o que Eu quero: o mestre não seguirá o discípulo, mas o discípulo o mestre, nem o súdito governará o superior, mas o superior o súdito. Ó, Soberano Mestre, porque sois o caminho, a verdade e a vida, não permitais que eu vá por um caminho diferente do Vosso, nem siga outra verdade diferente da Vossa, nem viva outra vida senão a que vivíeis, sempre seguindo-Vos a Vós, que descestes do céu, cumprindo não a minha, mas a vontade do Pai, na vereda que Ele Vos assinalou.
Terceiro ponto. – 1. Aqui vemos que o terceiro tipo de homem é o mais ditoso, porque é o daqueles que desejam alcançar a salvação, a vitória sobre as afeições desordenadas e a perfeição das virtudes pelos meios que Deus escolheu, resignando-se totalmente à vontade divina e prontificando-se a deixar sem vacilo as coisas que possuem, caso seja mais conveniente para a honra e glória de Nosso Senhor e a salvação das almas; é o exemplo dos doentes que desejam curar-se e se confiam nas mãos dos médicos, determinados a tomar todos os remédios receitados e convenientes à saúde, sem preferirem um a outro.
2. Estas pessoas possuem admirável disposição para ouvir a vocação divina e receber dela ilustrações e inspirações, confiando sempre na providência de nosso grande Deus e Senhor, o qual, como disse o profeta Isaías (48, 17), ensina-nos o que é proveitoso e conveniente, e nos guia por esta via ao céu, quer por Si mesmo, quer por seus ministros. Quem deixa que Deus o guie, aceitando os meios que inspira e ordena, há de alcançar um oceano de paz e santidade, e chegará com segurança ao porto da salvação e perfeição, pois a Divina Providência chama a cada um para o estado e o modo de vida que mais lhe convém [...]. Conforme tudo isso, se compararmos os três tipos de homens, e verificarmos os danos e enganos do primeiro e segundo tipos, sou obrigado a escolher o destino do terceiro. Diante da presença de Deus Nosso Senhor, direi do fundo do coração, como outro Saulo recém-convertido (At 9, 6): Domine, quid me vis facere? “Senhor, que quereis que eu faça?” Vede aqui o vosso servo, desejoso de Vos servir e seguir, mas as afeições desordenadas me prostram doente; ponho-me em vossas mãos, para que façais de mim o que quiserdes: estou disposto a cumprir a Vossa vontade; inspirai-me e ensinai-me os meios mais convenientes para a saúde da alma, que eu, junto com a Vossa divina graça, me ofereço a executá-los, ora retendo o que possuo, ora abandonando tudo por Vosso amor.
3. Existem outras pessoas que querem ir mais adiante; assim, para imitar com perfeição a Cristo Nosso Senhor, desejam e se inclinam, no que lhes cabe, a ser pobres, desprezados e afligidos como Ele o foi, de preferência a serem ricos, honrados e consolados, como aconteceu com outros justos, embora estes sempre se conservassem indiferentes diante da posse ou privação dos bens, segundo a vontade de Deus, uma vez que Sua Majestade não faz a todos a graça de chamar para que O sigam na verdadeira pobreza voluntária da vida religiosa, ou para que padeçam trabalhos e injúrias por Seu amor. Eu deveria procurar tal disposição com todas as minhas forças, imitando o Apóstolo, que dizia (Gal 6, 14): “Mas longe mim o gloriar-me senão da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim, e eu crucificado para o mundo”. Ó, Deus Eterno, por Vossa misericórdia, concedei-me essa disposição, para que seja eu digno de que me chameis a fazer e padecer os grandes feitos da Vossa glória. Amém.
(Tradução: Permanência. Meditaciones Espirituales del V. P. Luís de la Puente, de la Companía de Jesús – Tomo II; Imprenta de Pablo Riera, 1856, Barcelona; págs. 58-66.)
Pe. Luís de la Puente, S. J.
Da vocação geral com que Cristo Nosso Senhor chama a todos
os homens para que se neguem a si mesmos,
tomem a sua cruz e O sigam.
Porque Cristo Nosso Senhor veio ao mundo, como disse São João (1Jo 3, 8), para desfazer as obras do demônio, trataremos primeiro nesta meditação sobre o chamado do demônio, que convoca as pessoas para que o sigam contra a Cruz de Cristo Nosso Senhor, e logo depois sobre o chamado do próprio Cristo, para que, comparando este com aquele, vejamos a quem é mais acertado seguir. Esta meditação e a seguinte darão muita luz para que elejamos com acerto o estado mais conveniente para a nossa salvação.
Primeiro ponto. – 1. Em primeiro lugar, há de se considerar Lúcifer (Jo 14, 30; Exercícios Espirituais de Santo Inácio, 2ª sem., 4º dia) príncipe deste mundo, sentado num trono de fogo, cheio de fumo, com aparência horrível e rosto espantoso, rodeado de numerosos demônios, príncipes de trevas, os quais confabulam para guerrear contra o Cristo Nosso Senhor, e dar batalha contra o exército da Cruz. Para tanto, armam laços de tentações aos homens, induzindo-os a três vícios, que São João denomina (1Jo 2, 16) concupiscência da carne, cobiça dos olhos e soberba da vida. Primeiro convidam as pessoas aos prazeres da carne, donde nascem os vícios da gula e da luxúria; então, à cobiça de dinheiro e honras, donde procedem os vícios da avareza e da ambição; depois, à soberba da vida, que é o desejo de excelência, em que há presunção de si mesmo e das próprias opiniões; chama-se a isso soberba da vida, porque é soberba imensa, viva e buliçosa, que vive e cresce sempre (Sl 73, 23), e alimenta os demais vícios e pecados do mundo.
2. Em seguida, há de se ponderar sobre a raiva (1Pe 5, 8; Ap 12, 9) com a qual os demônios cerceiam o mundo por todos os lados, buscando a quem devorar, quer como leões, com a força e a violência das perseguições; quer como dragões, com a astúcia dos raciocínios aparentes, para enganar os homens e pô-los a seu serviço. Grandíssimo é o estrago que causam, pois são inumeráveis os homens que atraem: uns se rendem à cobiça dos bens; outros, à cobiça das riquezas e honrarias mundanas; e outros ainda, à soberba e à altivez da vida; enfim, alistam-se nas forças demoníacas todos os inimigos da Cruz de Cristo, os quais – como disse São Paulo (Fil 3, 18-19), deplorando a miséria desses homens – têm como deus o ventre e a glória mundana, para a própria confusão, pois o fim deles é a morte eterna. Pensando nisso, à imitação do Apóstolo, lamento que existam tantos que sigam as hostes do demônio, e me admiro de que haja gente tão louca que o queira seguir, sabendo que a recompensa de tal serviço será o inferno. Refletindo a minha vida passada e presente, chorarei porque estive neste engano algum tempo, e suplicarei a Nosso Senhor para que me liberte dele para sempre. Amém.
Segundo ponto. – 1. Em segundo lugar, hei de considerar a Cristo Nosso Senhor sentado num lugar humilde, com o rosto sereno e amoroso, rodeado de discípulos e muitas outras pessoas, dizendo a todos eles: Si quis vult post me venire, abneget semetipsum, et tollat crucem suam, et sequatur me: “Se algum quer vir após de mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz e siga-me”. Nestas palavras, contrariamente ao príncipe deste mundo, Cristo chama e convida os homens a três coisas: primeiro, a negarem-se a si mesmos, mortificando as três concupiscências do mundo e os vícios que delas procedem, ou seja, que neguem e mortifiquem o amor dos prazeres sensuais, a cobiça de dinheiro e vã glória, e a soberba interior, mortificando o juízo e a vontade, e toda presunção e desejo de excelência.
2. Segundo, chama-os para que levem a Cruz e se ofereçam em oposição às três concupiscências do mundo, ou seja, que sofram trabalhos e dores, necessidades e desprezos, além de toda sorte de humilhação e sujeição; pois a Cruz Espiritual de Cristo está montada com estas três peças: pobreza, desprezo e dor, embora cada uma delas encerre trabalhos muito distintos, que as acompanham; a Cruz requer que todos a carreguem a cada dia, aceitando cotidianamente o que lhes couber, com perseverança até a morte. Terceiro, Cristo chama os homens para que O sigam, imitando as virtudes e os exemplos que dá com a abnegação e com o peso de Sua própria Cruz, porque já decidiu que não admitirá em Sua escola nem em Sua companhia quem não decidir abraçá-la e não se alistar no Seu exército; por isso disse (Lc 14, 27) que “O que não leva a sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo”.
3. Agora hei de considerar quão acertada é esta vocação; pois, se sou mau e inclinado a vícios e pecados desde o nascimento, é justo que me negue a mim mesmo e mortifique todas as más inclinações, para libertar-me dos males que delas nascem. Se prêmios, riquezas, honras e excelências mundanas são o combustível para todas as maldades, cumpre abandonar o amor desordenado de tais coisas para preservar-me de tantas misérias. E se esta vida mortal me reservar muitos trabalhos, cansaços, dores e tribulações, que haverá de mais sensato do que fazer da necessidade virtude, e abraçar a Cruz de boa vontade, merecendo por ela a vida eterna? Se Jesus Cristo Nosso Senhor desceu dos céus, a fim de levar a Cruz e abraçar-Se à dor, à pobreza e ao desprezo, qual o problema em segui-Lo, imitando os atos de meu Capitão, meu Rei e meu Deus? Ó, soberano Capitão, já que me convocais para que me negue, vinde lutar comigo contra mim, pois mais forte que eu será quem me vencerá. Assim, porque quereis que leve a minha cruz a cada dia, dai-me a cada dia a Vossa graça, para que, sob a opressão do madeiro, não caia nem desfaleça.
Terceiro ponto. – 1. Em terceiro lugar, há que considerar três argumentos eficacíssimos que Cristo Nosso Senhor nos apresenta, a fim de nos persuadir dessa vocação. Primeiro: “O que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; e o que perder a sua vida por amor de mim achá-la-á” (Mt 16, 25); ou seja: Vossa salvação e vida eterna é negar-vos, levar a vossa cruz e seguir-Me até à perda da vida temporal, se for o caso, como já pedi; quem a perder assim, não a perderá totalmente, porque Eu a devolverei renovada e eterna. Do mesmo modo, posso imaginar que Cristo Nosso Senhor me diz: Quem por Mim perder dinheiro, honra, prêmios, amigos e qualquer outro bem temporal, depois o reencontrará; ao contrário, quem quiser ganhar ou conservar essas coisas contra a Minha vontade, perderá tudo, além da própria alma para sempre.
2. O segundo argumento é: “Que aproveitará a um homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma? Ou o que dará o homem em troco de sua alma?” (Mt 16, 26). Como se dissesse: Se seguis a sugestão do demônio e não a Minha vocação, havereis de perder para sempre a alma, pois de que vos aproveitará a posse de todos os prêmios, riquezas, honras e excelências do mundo, se no final vossa alma se condena? Perguntai aos condenados que estão ardendo no inferno, e eles vos dirão (Sb 5, 8): De que nos aproveitou a soberba? De que nos serviu a vã ostentação das riquezas? Que bem nos fez? Qual proveito tiramos dos prêmios, das honrarias, das dignidades e de todos os bens da terra? Tudo passou como sombra, e agora, por causa da nossa maldade, estamos em perpétuo tormento.
3. O terceiro argumento é (Mt 16, 27): “Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai com os seus anjos; e então dará a cada um segundo as suas obras”; ou seja: Tenho de vir julgar o mundo com o estandarte e a bandeira de Minha Cruz; quem não a quis carregar comigo, condenarei ao fogo eterno com os demônios, cujo bando seguia; mas quem deu ouvidos à vocação e abraçou a Cruz, levarei comigo para a glória do Pai. Sopesando esses três argumentos, compararei estes dois chamados, o de Lúcifer e o de Cristo; o fim brutal dos que seguem a um, e o fim ditoso dos que seguem o outro; pois não é possível, como disse o Redentor (Mt 6, 24), servir ao mesmo tempo a dois senhores: não podemos servir a Deus e às riquezas, a Cristo e às honrarias vãs, nem é possível assentar praça sob as bandeiras de capitães tão contrários; por isso, cuidarei de fechar os ouvidos às sugestões de Lúcifer e de abri-los à vocação de Cristo, negando-me a mim, abraçando a minha cruz e seguindo o soberano Capitão sob a Sua bandeira. Eis uma pergunta que ajudará na decisão de qual bandeira abraçar: a quem gostaria eu de haver seguido ou escolhido, quando chegar a hora de minha morte e tiver de me apresentar diante do tribunal de Cristo? A riqueza ou a pobreza, a honra ou o desprezo, os prêmios ou as aflições, o cumprimento da vontade própria ou a abnegação dela e de mim mesmo? Assim, escolherei agora o que mais tarde gostaria de haver escolhido.
4. Para não remeter o acerto da boa escolha apenas à hora da morte e ao juízo, acrescento que o chamado do demônio, embora num primeiro momento prometa deleites, honras, riquezas, liberdade e descanso, está tão misturado com numerosas amarguras, que é verdadeiramente trabalhosíssimo (Sb 5, 7); até os condenados confessam que viveram cansados no caminho da maldade, e andaram por estradas ásperas e dificultosas. Por seu lado, o caminho de Cristo, embora seja de abnegação, está traçado pela Providência Divina, e ajustado às forças de cada um, vindo misturado com tantas consolações e graças celestes, que é verdadeiramente suavíssimo nesta vida, de tal modo que os que seguiam as tropas do demônio encontram grande alívio ao seguir o caminho de Cristo; assim o disse o Senhor (Mt 11, 28): “Vinde a mim todos os que estais fatigados e carregados, e eu vos aliviarei; tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”; ou seja: O jugo é a abnegação, mas suave; o peso é a cruz, mas leve, contanto que sejais mansos e humildes como Eu, porque aos humildes dou a Minha graça, com o que se torna leve tudo aquilo que em si mesmo é pesado e amargo (Ti 4, 6). Ó, dulcíssimo Mestre, sobre cujos ombros carregais a minha cruz e a de todos os mortais, concedei-me ouvir o Vosso chamado e abraçar os trabalhos da cruz, deixando à Providência os consolos ao levá-la, para que, escolhendo na vida o que gostaria de haver escolhido na morte, receba em Vosso juízo a coroa da glória. Amém.
(Tradução: Permanência. Meditaciones Espirituales del V. P. Luís de la Puente, de la Companía de Jesús – Tomo II; Imprenta de Pablo Riera, 1856, Barcelona; págs. 58-66.)
D. José Pereira Alves
Conferência pronunciada no Seminário de Olinda
Dir-me-eis, senhores, a razão por que estou aqui? Como definir-me neste momento? Sonho ou realidade, toda essa visão de luz, de festa, de riso, e de paz?
Eu de nada quero saber; porque um fato de uma verdade crua é que eu estou aqui e é este fato que me acabrunha implacavelmente. Chamá-lo-ia um pesadelo e um duende, se outro que não a Boa Mãe, fosse o objeto deste festival do espírito. Amarrado por cadeias formadas de fibras de corações a esta tribuna, eu recebo a ordem indeclinável de ser o que não sou: “conferencista”! Seja! É preciso uma metamorfose? Não há dúvida. É preciso sê-lo ainda disfarçado? Pois não! Por que não a máscara e o disfarce?
Aceitemos, pois, o fato consumado! Na presente conferência não me haveis de achar, porque haveis de achar os outros, salvo em alguns dos recantos, escondido na obscuridade pessoal. Creio que nem mesmo me posso comparar à laboriosa e pequenina abelha que da matéria prima colhida entre as flores fabrica um delicioso e refinado mel.
Eu sou antes semelhante à garrula criança que, durante o formoso mês de maio, recolhe no avental azul lindas rosas dos canteiros floridos. E depois as entrelaça, dispõe e forma um belo ramalhete para oferecer à Virgem da ermida.
A minha conferência, pois, é um buquê, onde eu só tenho folhas, porque as flores são dos outros; e, por cima, a sua disposição, que é o meu trabalho quase todo, acusa bem a imperícia do seu autor. A eloquência do púlpito tem feito a sobejo o panegirico da fisionomia espiritual de Maria e mergulhado nesses abismos a luz, voltando à tona cega de tanta glória e esplendor. Eu, meus senhores, escolhi para tema desta minha conferência mariana a Beleza exterior e física de Maria Santíssima.
Não se trata de um estudo crítico e profundo da matéria: é apenas uma apologia simples desta formosura sem rival.
Não é também uma exposição à altura do objeto, porque nem tempo houve, nem “a tanto me pode ajudar engenho e arte”.
A Beleza externa de maria será considerada:
1° No conceito Bíblico.
2° No conceito Tradicional.
3° No conceito Litúrgico.
4° No conceito Teológico.
5° No conceito Artístico.
Conceito Bíblico
Tiremos agora as nossas sandálias, porque santa é a terra em que vamos entrar. Escutemos no silêncio da alma, porque penetramos no sancta sanctorum onde Jeová faz trovejar a sua divina voz. Como as grandes catedrais da nossa Santa Religião, vasta, grandiosa, resplandecente é, e o é, soberanamente, essa Catedral da Religião que se chama a Bíblia.
Nas nossas melhores e mais importantes igrejas há um simbolismo admirável que se espalha pelas magníficas pinturas, baixos relevos, pelas linhas duma estatuária rica e artísticas decorações. O mesmo se dá na Basílica da Fé — a Bíblia. Um simbolismo surpreendente vive e palpita naquelas páginas do Céu com um esplendor raro de imagens, de alegorias, de fatos, de painéis lindíssimos e de uma significação profunda.
O Divino Redentor, que foi realmente o negócio dos séculos, se acha prefigurado e vaticinado em toda a Escritura antiga. Lê-se no Talmud que todos os profetas não vaticinaram senão sobre os dias messiânicos. Em virtude das afinidades estreitíssimas entre a personalidade de Cristo e a personalidade de Maria, resultante do mistério da Encarnação, eu creio que não será uma frase atrevida afirmar que, à semelhança do seu Filho, Maria foi também o negócio dos séculos prefigurado e vaticinado nas Sagradas Escrituras. Negotium saeculorum. Novum Testamentum in vetere latet et vetus in novo patet.
O Novo Testamento se oculta no Velho e o Velho se revela no Novo, diz o grande Santo Agostinho. Eu classifico ao menos para o meu fim, em dois grupos distintos a escritura figurativa de Maria o grupo personativo e o grupo emblemático. O grupo personativo compreende um grande número de figuras da predestinada pelo Altíssimo no segredo dos seus conselhos. Destaquemos a esmo: Ester, Judite, Sara, Raquel, Noemi, Abigail, Betsabé, Rebeca, Eva, Esposa do Cântico dos Cânticos.
Analisemos esses tipos bíblicos da Virgem sem falar de outros muitos que apareçem nos Livros Sagrados. Que diz a Bíblia, meus senhores, não digo da fisionomia moral, mas do caráter estético, sensível destas personagens, espelhos presentes da Virgem futura? Que diz?[1]
De Ester, lê-se no seu livro que era muito formosa e de incrível beleza, incredibili pulchritudine. Judite é de elegantíssima presença. Sara em extremo bela — pulchra nimis. Raquel é delineada como uma virgem bela e de formoso semblante; não é Noemi que diz: não me chameis Noemi, isto é, formosa? Prudentíssima e formosíssima era Abigail de Nabul, refere o 1° Livro dos Reis; a formosura excepcional de Betsabé e de Rebeca é superlativamente reconhecida nos Reis e no Gênesis; e Eva a mãe dos viventes, a primeira mulher, não podia deixar de surgir das mãos do Criador com todas as graças da natureza. O poema sagrado nos seus idílios com tanta prodigalidade de pinturas, com tanta poesia de expressão descreve a Esposa! Abri de olhos fechados o Cântico dos Cânticos e em cada página de ouro cintila o mesmo fulgor descritivo do formoso objeto do esposo encantado. [2]Senhores, porque essa insistência do Espírito Santo em acentuar a beleza dessas figuras de Maria? Porque tendo elas caracteres tão diferentes, missões diversas, tem este ponto de contato, de afinidade: a Beleza? Essas considerações dos autores nos iniciam nos desígnios da Providência. O Eterno retratara de antemão a beleza daquela de quem cantou o poeta Florentino: “Ó Virgem, Mãe e Filha de teu Filho; Mais do que ente criado humilde e alta; foste ao divino intento alvo prefixo”.[3]
Eram os esboços da obra-prima. Sim, porque[4]:
“Obra-prima do artista onipotente
Tu és, Maria, a joia mais fulgente
De toda a criação.
Não tem mais brilho o sol, candor a lua,
Nem há beleza que se iguale à tua
Na graça e perfeição”.
O argumento de Santo Antonio é o seguinte: todas as mulheres que são figuras de Maria na Lei Antiga foram célebres pela sua beleza; ora, a verdade é superior à figura e a realidade à sombra; logo a formosura de Maria é incomparavelmente mais deslumbrante do que a de suas figuras bíblicas. Essas figuras são sinais de Maria. Qual é a noção filosófica de sinal?
É aquilo cujo conhecimento prévio leva ao conhecimento da coisa significada. Porque não será a sua fiel representação em virtude de sua relação sobrenatural? Essa reflexão confirma o argumento do douto santo. A propósito escreve um autor: “Plínio, o velho, conta em sua História Natural que o famoso pintor Zêuxis devendo fazer um quadro que os habitantes d’Agrigento queriam consagrar a Juno, estudou as virgens desta cidade para reproduzir em sua obra todas as belezas que poderia descobrir nelas. Pois bem, de uma maneira muito mais admirável, Deus Criador de todo o universo, Deus, o mais sublime dos pintores, escolheu entre as criaturas tudo o que elas encerravam de grandeza e de beleza e como numa pintura sublime, o realizou por Sua sabedoria infinita na Virgem Maria”. Do outro grupo — o grupo dos emblemas — ressalta pelas razões aduzidas a beleza exterior da Virgem. Na Sagrada Escritura nossa boa Mãe do Céu possui uma preciosíssima flora e mesmo uma esplêndida fauna. No reino das coisas sem vida, de toda a fulguração dos céus, de todos os encantos da terra em uma palavra de tudo o que há de belo e de brilhante formou o Altíssimo a auréola dos símbolos de sua eleita — objetos de suas eternas e amorosas intuições. É a mesma semelhança ou proporção do representante e do representado, do sinal e da coisa significada, da ideia típica e do objeto que se impõe claramente. Uma outra reflexão, meus senhores. O emblema envolve em sua natureza um caráter formal de atribuição: é um atributo real; ora, a lei da atribuição exige uma adequada proporção possível entre o sujeito e o atributo, para que ela seja relativamente perfeita. Por que razão, pois, tão belos títulos, belos nas coisas que exprimem, hão de descrever apenas a fisionomia luminosa da alma de Maria? Porque não fotografarão também a surpreendente beleza de seu olhar, dos seus lábios, de sua peregrina face?
Não há razão plausível para essa exclusividade moral. Belas coisas exprimem os emblemas marianos. Sim!
Não é ela a gemedora pomba escondida entre os rochedos? Não é ela a águia real alcandorada sobre os montes?
Que beleza! Que flora figurativa!
“Eu me elevei como o cedro do Líbano: estendi os meus ramos como as palmeiras de Cades; ergui-me como o plátano plantado à beira das águas, eu espalhei um perfume como a canela e como o bálsamo mais precioso”[5]. Floresce como a rosa e perfuma como o lírio, segundo a interessante estrofe encontrada em um antigo pergaminho:
Ut rosa flores
Flagras ut lilium,
Ora pro nobis
Ad tuum Filium.
Irradia como o sol, formosa como a lua, radiante como a aurora.
Que multidão, que riqueza, que brilho de comparações! E sobretudo é a rutilante estrela:
Symbole déespérance á l’heure ou tout est sombre,
Astre celeste ou Dieu mit toute sa splendeur,
Vienne le crépuscule intense qui fait peur,
Vienne l’heure angoissante ou le salut se couche;
“Ave Stella”, dira, dans un soupir, ma bouche[6]
Da análise dos dois grupos figurativos da Virgem emerge, brilhante de formosura inigualável, o perfil hiperangélico de Maria. E não se apele para o silêncio dos Evangelhos, porque esse mesmo silêncio é o maior panegírico de sua beleza exterior. Tenha a palavra S. Antonino: “Tendo Maria em plenitude tudo que de bondade e de beleza houve nos outros, calando-se o Evangelho acerca de um privilégio particular como a beleza e outros, louvou-a mais supondo tacitamente do que manifestando.
Do mesmo modo que os Arcanjos por serem louvados pelos dons superiores, por isso não estão privados dos dons inferiores que neles estão mais perfeitamente do que nas ordens menos nobres. E eu digo que o Evangelho não emudece muito, ao contrário, ele proclama a beleza peregrina de Maria. Não é aquele Mater Jesu a raiz e a preconização virtual das prerrogativas ainda naturais da augusta Mãe de Deus? E por que não tomar em toda a sua extensão a graça de que Maria possui a plenitude? ”[7]
Conceito Tradicional
Os estudos feitos sobre as antiguidades pagãs não têm apenas contribuído para o progresso científico, mas também têm derramado luz no problema religioso.
Os sábios que têm aclarado com a lâmpada de suas pacientes investigações esses labirintos do mito, descobriram relações e harmonia entre o mundo lendário e o mundo cristão, apesar de sua natural antinomia. Os inimigos da Igreja julgavam encontrar nessas semelhanças de doutrina um argumento formidável para provar que o Cristianismo é um grande plágio das religiões, relíquias conservadas no museu do passado, como se a seiva pujante de nossa fé pudesse ter saído dessas múmias estratificadas no sarcófago dos tempos!
Toda essa afinidade se explica naturalmente pela difusão primitiva da Revelação entre os povos.
Não é a religião verdadeira que é o plágio, muito ao contrário, ela é o arquétipo divino que o paganismo copiou, deformando-o na abominável saturnal dos seus vícios e paixões. E é por isso que nós encontramos na Mitologia antiga sombra dos mistérios inefáveis do Cristianismo. A Mariologia lucrou com essa pesquisas crítico-religiosas nos cultos pagãos[8].
A Virgem parece desenhar-se no perfil de Íris, de Ceres e outras divindades do círculo místico. Pois bem, aí, nas tradições idólatras, podereis descobrir confirmações do que vos tenho afirmado na explanação do presente trabalho sobre a formosura externa de Maria. Como tenho em muita conta o vosso precioso tempo, eu apenas citarei um testemunho pagão. Mas não irei desentranhá-lo do politeísmo helênico nem dos carvalhos do druidismo gaulês nem do masdeísmo persa que Zoroastro reformou ou do Budismo índico.
Não! Aqui mesmo nas nossas virgens florestas continentais, sob a verde umbela da pujante vegetação da América do Sul, no Paraguai, os habitantes do grande lago Zaragas, os Macênicos contavam aos missionários que “outrora uma mulher belíssima, ficando sempre virgem, teve do mesmo modo, uma encantadora criança que, depois de homem, operando milagres insignes, um dia no meio de muitos discípulos subiu aos ares convertendo-se no sol”. Consultemos, porém, a tradição cristã, não a que está nos monumentos antigos, mas a que está no senso católico, nos escritos dos Santos Padres e escritores eclesiásticos. Nessa rica messe há apenas o trabalho de escolher. Poderei reclamar a vossa paciente e benévola atenção? Escutai. O pensamento tradicional revela-se em toda parte, absorvendo a insignificante minoria contrária. Ide por aí afora em nossa terra, pelos nossos mais atrasados lugarejos, interrogai o filho do povo, e vereis que o mais bronco dos nossos patrícios não poderá admitir que a Virgem da Conceição não exceda em formosura a mais prendada das filhas dos homens. O mesmo, a fortiori, se daria num meio culto. Se eu pedisse agora nesta luzida assembleia uma votação nominal, Maria Imaculada alcançaria decerto uma esplêndida vitória. É tempo de referir alguns eloquentes testemunhos da dinastia espiritual dos Padres da Igreja e escritores eclesiásticos. Santo André de Jerusalém afirma que “Maria em seu corpo é a mais pura joia da virgindade, um céu esplêndido, uma viva imagem da beleza suprema, uma estátua viva que Deus mesmo esculpiu”. Ela é o espelho da beleza por excelência, diz Santo Alberto Magno. São João Damasceno escreve que “Maria é ao mesmo tempo a obra-prima da natureza e da graça”. Para que multiplicar sem necessidade as citações? Non sunt multiplicanda, é o aforismo da filosofia[9]. Nós não temos a felicidade de possuir de nossa extremosa Mãe Celeste um autêntico retrato. Seria um bálsamo para nosso espírito embeber o nosso olhar naqueles olhares de doçura que tanto consolaram os apóstolos.
Não o temos; nem a imagem comumente atribuída a São Lucas, diz um ilustre jesuíta, nem as descrições minuciosas que os historiadores gregos de data mais recente nos deixaram, são de natureza a assegurar um juízo do que o exterior de Maria poderia ter sido. Jamar, apoiado nesses historiadores, nos dá o seguinte retrato de Maria:
“Ela era duma estatura mediana; seu rosto era oval, dum puro colorido; e notável pela delicadeza e graciosa regularidade das linhas; a fronte larga, sobrancelhas bem arqueadas e dum moreno ligeiramente escuro; olhos vivos; cuja pupila era matizada dum delicado azul.
O nariz e a boca eram perfeitamente proporcionados; lábios purpurinos, queixo de uma forma irrepreensível; cabelos louros; as suas mãos desembaraçadas e delicadas”[10].
Revesti, meus senhores, este belo perfil, de nobreza, de candura, de modéstia, de gravidade, de maneiras simpáticas e distintas, e tereis Maria, segundo as descrições antigas, na esplendente e encantadora expressão de sua beleza sempre jovem. Sempre jovem, sim. Dionísio Areopagita quase que a tomou por uma Divindade se não soubera pela Revelação que só há um Deus. E quando a visitou, a Virgem estava muito além da idade juvenil. Eu li que, quando Deus resolveu criar a rosa, convocou para este fim uma câmara de deputados do universo. Uns queriam-na sem espinhos, outros sem eles não lhe achariam graça; e foi tal a balbúrdia e desencontro de opiniões, que Deus, por um golpe de estado, dissolveu a câmara e criou a rosa por um decreto especial. Este apólogo traz à lembrança aquela piedosa alegoria de Gerson sobre a criação da formosíssima Rosa Mística do Céu, alegoria que será a chave destas considerações sobre a Beleza de Maria no conceito tradicional. Quando o Altíssimo se determinou a formar Maria diante do seu sólio aurifulgente apresentou-se uma formosa dama acompanhada de suas servas. E ela assim falou: “Ó Deus que eu adoro e canto, permiti que ofereça os meus humildes préstimos para a formação daquela que é a ansiedade dos povos; nada farei para embelezar a sua alma candíssima porque isto não está em meu poder, mas eu juro e comigo juram as minhas dedicadas servas que havemos de torná-la a rainha inigualável da formosura.
Eu derramarei no seu rosto o encanto duma simplicidade, duma majestade ternura tal como jamais se verá; hei de compor tão bem o seu olhar, as suas palavras, os seus gestos, que ela será um modelo perfeito e admirável; ao vê-la todos hão de exclamar: esta mulher merece em verdade ser a imperatriz do mundo, a rainha triunfante dos céus. Era a natureza que assim falava, cortejada pelas influências e causas naturais. Falava ainda a poderosa princesa, quando se adiantou uma outra dama que tinha o ar e o porte duma verdadeira rainha.
Deslumbrante séquito a rodeava. Era a Graça. Ela desejava rematar esplendidamente a obra-prima do Criador. Por ela falou a sua irmã — a Sabedoria — implorando ao Onipotente o favor da concessão. E foi assim que dos prodígios da natureza e da graça brotou a rosa branca e virginal que Deus criou para o enlevo do céu e êxtase da terra”.
A alegoria do religioso chanceler coroa magnificamente a prova testemunhal do conceito de tradição da beleza mariana. Diz Santo Agostinho, que as palavras são vasos de ouro que contém o licor do pensamento. O licor do pensamento tradicional é finíssimo, mas eu lamento profundamente que as minhas desluzidas palavras não tenham sido essas taças de ouro para a libação de tão precioso néctar.
Conceito Litúrgico
Não é infrutífero o labor de quem escava as entranhas ricas duma mina. Não é! Não é improfícuo o mourejar de sol a sol do nosso lavrador a abrir nos seios da terra virgem sulcos para o plantio. O seu suor não é como a gota de suor de Buda guardada num templo da Coréia, suor que esteriliza, diz a lenda, a vegetação circunjacente.
Não, o suor do trabalho fecundo é germe, é arbusto, é árvore, é fruto, é flor e, mais tarde, pão e vida. Eu também me fiz de mineiro e fui buscar lá nas antigas liturgias o ouro precioso de uma confirmação em favor do meu asserto; fiz-me de solerte lavrador e abri o sulco nesse terreno opulento do ritual cristão, não para plantar mas para descobrir entre os esplendidos tesouros joias de preço real para prestar homenagem à fascinante beleza externa de Maria. E podia dizer como Arquimedes: “Eu achei”. Na verdade, achei. Ouvi, senhores. Não há aqui lugar nem há tempo para uma dissertação profunda sobre tão importante estudo. Limitar-me-ei a uma singela exposição. As pinturas das catacumbas e as imagens são o que se chama a Liturgia muda.
Mas deixá-la-ei para algumas considerações que dizem respeito à arqueologia e à iconografia mariana. Agora apenas uma ligeira síntese dessas pérolas espalhadas na liturgia marial de todos os tempos porque o culto de Maria tem as suas origens na idade apostólica, para não dizer que é eterno como Deus. [11]A liturgia grega canta assim: “justos alegrai-vos; regozijai-vos, ó céus; exultai, ó montes; o Cristo nasceu; a Virgem está sentada semelhante a um querubim... E mais: Ó vós que sois o brilhante palácio do Senhor, como vindes num miserável estábulo dar ao mundo o Rei, o Senhor encarnado por nós, ó Virgem toda santa esposa do grande Deus? ” “Salve, Virgem Mãe de Deus, exclama a Liturgia Abissínia, Vós sois o turíbulo de ouro que trazeis o carvão de fogo, o verbo encarnado...”
O rito Moçárabe é deste modo que celebra a Virgem Santíssima. “É a lâmpada que o Espírito acendeu e em que fez aparecer a verdadeira Luz”. Ouvi algumas estrofes escolhidas desta encantadora sequência:
Salve, Mater Salvatoris,
Vas electum, vas honoris,
Vas caeleste gratiae.
E na décima e undécima estrofes:
Tu caelestis paradisus,
Libanusque non incisus,
Vaporans dulcedinem.
Tu candoris et decoris...
Tu dulcoris et odoris,
Habes plenitudinem.
Que encanto! Tu tens toda a beleza, a plenitude — habes plenitudinem.
A décima sexta nos pode dar um excelente coronal:
Sol, luna lucidior,
Et luna sideribus,
Sic Maria dignior
Creaturis ormnibus.[12]
E quantas vezes tendes repetido no Breviário ou no Ofício parvo aquela antiguíssima antífona:
Ave Regina coelurum,
Ave Domina angelorum.
Virgem gloriosa que a todos venceis em beleza — Super omnes speciosa. A Deus, ó Soberana da Beleza, reza a Cristo por nós:
Vale, o valde decora,
Et pro nobis Christum exora.
A hinologia, o antifonário, prosas e ladainhas, Missas e Ofícios, nos forneceriam as expressões mais poéticas da Beleza de Maria, num religioso lirismo de encantar.
Como podeis ver, é impossível a Liturgia mariana em todas as suas surpreendentes manifestações. Mas, para exemplo, tomai o Breviário ou o Missal.
Abri-os: 15 de agosto. Muito bem! É a festa de hoje — A Assunção de Maria.
Ofício vesperal. Cantaste-lo há pouco. Última antífona: tu es bela e formosa, ó filha de Jerusalém. Antífona ad magnificat: “Ó Virgem Prudentíssima para onde tu te elevas como uma aurora rutilante? ”
“Filha de Sião, toda formosa e meiga, tu és bela como a lua e brilhante como o sol”. Que quereis mais? Lede as lições do primeiro noturno: “Eu sou negra, mas sou formosa, ó filhas de Jerusalém, como os tabernáculos de Cedar... Tu és bela — os teus olhos são como os da pomba”.
E assim a Liturgia vai aplicando à figura angélica da Virgem todo o fulgor dos tropos bíblicos e das eloquentíssimas palavras dos Padres da Igreja, cujo testemunho em favor da Beleza exterior da Imperatriz Celeste é tão claro e peremptório. Aqui poderiam objetar dizendo que o senso litúrgico se refere à maravilha de sua alma sobrenatural e não à formosura corporal.
Bem que em muitas das citações vê-se claramente compreendida esta beleza e máxime na festividade da Assunção, em que se celebra a miraculosa subida de Maria ao Céu, corpo e alma, como se pode ainda responder dizendo que a Liturgia canta uma plenitude de Beleza, que não é estranha ao sentido bíblico, à tradição e ao bom senso que sobre tal ponto não hesita. E, para concluir essas modestíssimas reflexões sobre a Liturgia mariana, recordemos a bela e encantadora Ave-Maria em que está o completo panegírico de nossa celestial e carinhosa Mãe: cheia de graça.
No mês de maio entre todas as flores realça a Rosa — símbolo místico — Beleza sobre-humana que maio em flores saúda, como canta harmoniosamente a musa italiana na peregrina música do verso:
Te del Signore piccoletta ancella
Sorrisa de um gentil nimbo d’amore,
Saluta com l’angelica favelia
Il dolce maggio in fiore:
Saluta l’aria deliziosa e plena
Di profumi, di canti, d’armonia,
E la balza fiorita e la serena
Convalle: Ave Maria.
E il bosco fondo mormorante a’ venti,
E la collina aprica e solatia
Sprigionano d’omaggio umili accenti
A Te, dolce Maria.[13]
Conceito Teológico
Dizem, meus senhores, que o Nemrod apresentou, um dia, três urnas fechadas aos três filhos. Os escravos seguravam-nas.
Ao seu primogênito disse o rei: “Escolhe meu filho, a urna que te parece conter maior tesouro”. O príncipe escolheu uma que era de ouro, na qual havia a palavra — Império. Abriu-a e estava cheia de sangue. Nemrod dirigiu-se ao segundo filho e disse: “Toma também uma delas e abre-a”. O mancebo obedeceu e na sua urna de âmbar tinham gravado — Glória.
Nela estavam guardadas as cinzas dos grandes da terra. “Filho meu, falou o monarca ao terceiro, toma a urna de barro e abre tu também”. Ele abriu-a; estava vazia, mas no fundo se via escrita esta palavra: Deus.
Qual das urnas vale mais? perguntou o rei. Os ambiciosos disseram que era a de ouro; os poetas e conquistadores que era a de âmbar; os sábios responderam que era a de barro, vazia porque uma só letra do nome de Deus valia mais que o globo da terra.
Pois bem, meus senhores, por mais humilde que seja o barro humano, por mais frágil que seja a estátua de argila em cuja fronte o Eterno acendeu os lumes da razão, esse barro que vive, que sente e pensa, torna-se maior que a sua própria natureza, quando em seus misteriosos abismos, a Fé gravou indelével o nome sacrossanto da Divindade. O seu coração é o santuário de Deus, de conformidade com a palavra do Apóstolo: toda a edificação construída em Cristo cresce como um templo consagrado ao Senhor — sanctum in Domino.
Sobre os escombros dos ídolos antigos erguem-se os altares do Deus vivo, sobrenaturalmente iluminados. Pois bem, meus senhores, Maria é o tabernáculo por excelência do Altíssimo, tabernáculo debaixo de cujo pavilhão Deus habitaria não espiritualmente, mas ainda corporalmente.
Digo mais: o Corpo de Deus humanado, templo augusto, tiraria a sua matéria da preciosa matéria do corpo de Maria, santuário divino.
Senhores, os templos materiais dedicados à glória de Deus, ostentam e devem ostentar na sua fisionomia arquitetural uma beleza, uma feição estética admirável, eles que são destinados à suprema Beleza-Deus.
Que dizer da formosura da decoração externa do mais digno, do mais grandioso dos templos divinos?
O Artista excelso não se deixou vencer pelos artistas humanos e de Maria fez a sua obra-prima de sua divina Arte. As afirmações teológico-racionais ou melhor, a razão teológica robustece desse modo os dados fornecidos pela Bíblia, pela Tradição e pela Liturgia.
Eu quisera dispor de mais tempo e traria à tela desta modesta discussão muitos outros argumentos. Limitar-me-ei a apresentar mais um que não poderei desenvolver completamente.
Há uma lei fisiológica que determina a reprodução dos tipos: a lei chamada hereditariedade. A hereditariedade e a verificação da “lei pela qual, diz Mercier, o ser vivo possui um princípio de finalidade imanente, em virtude do qual tende naturalmente à formação, à conservação, à reprodução dum tipo determinado”. Em virtude desta lei herda-se não somente o caráter da espécie, mas ainda se transmite os caracteres individuais.
Baseados nessa lei, procuram certos filósofos destruir o livre arbítrio sustentando que o vício e a virtude são heranças.
Nada mais falso em psicologia, porque o vício e a virtude — não são produtos materiais. Em virtude do fenômeno hereditário dá-se algumas vezes retrocesso nos tipos dos avós, o que se chama atavismo.
A fortiori, o tipo imediato imprime os seus caracteres físicos. Daí a lei ordinária que os pais são semelhantes aos filhos e vice-versa. E ainda mais o sexo masculino, é o ensino dos autores e uma coisa vulgar, reproduz ordinariamente as feições maternais: filii matrizant.
Ora, meus senhores, Jesus Cristo é o mais belo dos homens — speciosus prae filiis hominum; é o filho de Maria. Logo Maria de quem Jesus, como Filho, reproduz as lindíssimas feições, foi ornada das galas de uma formosura sem rival.
A lei supramencionada admite exceções; aqui, porém, não se verificam, porque em Maria, segundo ensina um autor, a semelhança entre o Filho e a Mãe deve ser mais acabada em virtude da ação do Espírito Santo, que não podia ser perturbada pela causalidade de influências subalternas.
A razão teológica une, pois, a sua nota vibrante ao hino universal em honra da beleza daquela de quem cantou Leão XIII na inspirada poesia — Prece à Virgem:
Maria Dulce melos dicere mater ave:
Dicere Dulce melos, ó pia Mater ave,
Tu mihi delicia, spes bona, castus amor,
Rebus in adversis tu mihi praesidium.
Senhores, perdoai a tirania de minhas palavras e vinde contemplar comigo a Beleza de Maria no conceito artístico.
Sob este ponto de vista um novo horizonte de considerações descortina-se à visão de nossa alma embebida neste esplendor sobre-humano que nimba a figura doce, meiga, imaculada da Rainha do Céu.
Conceito Artístico
A arte, meus senhores, é a encarnação do ideal. Filho das visões do espírito, o ideal projeta sobre a obra de arte um raio de sublime concepção. Com razão disse Castelein: “A obra de arte deve ser original, harmoniosa, evocadora do ideal”.[14] O Belo criado, que a arte auxiliada pela ideia luminosa, genial e pelas formas concretas e sensíveis da imaginação, procura traduzir e encarna, é um reflexo do ideal Supremo.
É o que disse Kant: “O belo é um reflexo do infinito sobre o finito: é Deus entrevisto”
O Eterno fez as coisas como expressões do seu ser, de sua bondade, de sua beleza essencial, de suas perfeições; elas são o espelho da Divindade. Ora os seres exprimem as perfeições divinas segundo o grau de sua perfeição material; são espelhos mais ou menos luminosos e perfeitos.
Pois bem, meus senhores, os artistas cristãos conceberam um ideal grandioso e sublime da beleza de Maria, considerando-a como a obra prima das mãos do artista divino, feitura plástica, perfeitíssima do poder do Criador. E como o ideal se materializa na forma sensível, eles procuravam imprimir nos tipos de arte mariana — uma perfeição estética inigualável.
Não foi somente pelas prerrogativas espirituais, que a Fé lhes mostrou em Maria, que eles a esculpiram, a cantaram sobrenaturalmente bela. “A voz da tradição e da sua razão lhes revelaram também a Virgem em todo o fulgor de sua formosura sensível. Nas criptas das catacumbas a arte primitiva cristã deixou as suas pinturas de Maria; e séculos afora a Virgem tem recebido as homenagens dos eleitos do gênio artístico. Como não admitir essas magníficas Madonas de Rafael, de Vinci, em sua “Santa Família”, de Fra Angélico; a “Assunção” do Ticiano e a de Murilo? O gênio arrematado pela fascinação do ideal, sentiu-se muitas vezes apoucado diante do sublime.
Eu cito um laureado orador:[15]
“Como traduzir estas maravilhas?
Ah! A obra é difícil, porque, como muito bem disse Dante, “a forma não se harmoniza sempre com as instruções da arte; porque a matéria é surda para responder”.
“Angélico de Fiesole derramou mais de uma vez lágrimas; Leonardo de Vinci quebrou os pincéis; Miguelangelo criticou as suas obras; grandes artistas se sentiram invadidos pela tristeza todas as vezes que tentaram representar a divina realeza do Cristo e as graças celestes de sua Mãe; e sobre as obras primas que nós admiramos hoje eles ousavam apenas lançar os seus olhares desanimados”
Que vos direi, senhores, da iconografia Mariana? Seria uma lista infindável a enumeração desses primores da estatuária e escultura dos mestres cristãos.
Os dicionários iconográficos nos fornecem um compte rendu minucioso das belezas de mármore e de gesso, que sorriem na própria insensibilidade da matéria, que, mudas, são duma eloquência que admira, dum encanto que seduz e hipnotiza o olhar.[16]
Vede, meus senhores, esta esplendida imagem da Virgem da Assunção, dádiva preciosa da generosidade do nosso venerando Prelado[17]. Vêde-a nesse belo monumento enfeitado de garridas flores. Não há um que de celeste e de divino na expressão de seu olhar, na peregrina formosura de suas faces cor de rosa? O artista arregaçou-lhe delicadamente o manto azul-celeste sobre a túnica de ouro. É só assim, meus senhores, que a arte pode conceber a Maria.
A numismática também quis render o seu respeito à Virgem inefável. Na exposição marial realizada no Palácio de Latrão a 26 de novembro de 1904, havia uma soberba coleção de 12 mil medalhas, sinetes e moedas de Maria, enviadas pelo Padre Corbiére de Saint Louis des Français.[18]
Quantas harmonias o anjo da arte divina tem atirado aos pés de Maria? Porventura a alma musical não tem sofrido os tormentos da inspiração para saudar a Beleza da Mãe de Deus?
Senhores, eu sou constrangido a resumir para não fatigar a vossa benevolente atenção. Mas, como esquecer os surtos do gênio da poesia, celebrando as graças da Rainha dos Anjos?
As liras de todos os povos com a tristeza dos seus trenos o com a vivacidade dos seus júbilos celebraram os encantos da Senhora.
Permita-me o autor[19] algumas de suas lindas estrofes, feitas à beira do túmulo: — In hora mortis:
Maria, dulce Signora,
eletta como il sole,
per cui il cielo s’infiora
di rose e di viole;
Maria, Vergine pura,
aurora sempiterna
alta piú che criatura
sui ciecli ove s’eterna
La Somma Sapienza;
vedi quant’é l’errore
che incombe e la demenza
che ci ottenebra il cuore!
Assim a poesia toma parte no harmonioso e universal congresso das artes em louvor da Virgem a quem a humanidade implora um olhar que, como diz o poeta espanhol, é:
Bello fulgor que al sacro Eden nos guia
Dulce Maria!
Para citar poesia nossa, da terra brasileira, ouvi como no Caramuru, S. Rita Durão descreve a formosura de Maria:
“Todos suspendem em pasmo respeitoso
O amável formosíssimo semblante;
E mais nele se ostenta poderoso
O soberano autor do céu brilhante:
Quanto a angélica luz de rutilante,
Quanto dos serafins o ardente incêndio,
De tudo aquele rosto era um compendio”
Meus senhores, na solenidade inaugural da exposição mariana em Roma, o Cardeal Ferrata, num discurso admirável sobre o tema “Maria foi a sublime inspiradora da arte cristã”, enunciou entre outros estes belos pensamentos: “Maria é o gênio mais fecundo, o ideal mais puro da arte cristã, desta arte que tem por objeto a harmonia da fé e da razão, do natural e do divino das maravilhas deste mundo e dos esplendores revelados”. Maria é bela como o sorriso de Deus, nela se encontram o sublime, o verdadeiro, o belo e o bem.
Falando de Rafael, disse estas palavras: “Ele pode ser chamado o pintor por excelência da Rainha do Céu. Das belas tradições da Escola de Umbria, do estudo dos mestres precedentes, mas sobretudo do seu coração, de seu gênio, de sua natureza tão delicada, o jovem artista tirou a inspiração que deu à fisionomia de Maria esta forma tão pura e bela, esta pose majestosa e atraente, esta expressão suave e venerável de Virgem e de Mãe, que nos arrebata e nos enche de amor como uma visão do paraíso”[20]
A Virgem, meus senhores, que tem recebido em todos os séculos tão brilhante consagração de sua real beleza parece dizer aos marechais da arte, na frase de Monsabré, estas palavras que o grande dominicano põe nos lábios virginais de Maria:
“Amantes da verdadeira beleza que procurais o divino na Criação, contemplai-me, pedi-me inspiração e conselhos: Eu sou o Senhor das Artes”[21]
O ideal artístico de Maria abraça o conjunto de todas as suas belezas espirituais e naturais, que o Artista exprime nas formas mais resplandecentes da matéria, porque não pode conceber que uma alma tão peregrina e celeste fosse a inquilina eterna duma moradia vulgar.
Permiti, senhores, que eu termine esta última parte de minha humilde conferencia com chave de ouro: é a homenagem de um príncipe da arte, da inteligência eleita de um grande poeta à Beleza de Maria.
É o primoroso soneto de Luís de Camões, orgulho imortal das duas pátrias que falam a Língua Portuguesa:
Para se enamorar do que criou
Te fez Deus, sacra Phenix, Virgem Pura.
Vede que tal seria essa feitura
Que para si o seu Feitor guardou.
No seu alto conceito te formou
Primeiro que a primeira criatura,
Para que única fosse a compostura,
Que de tão longo tempo se estudou.
Não sei se diga eu tudo quanto baste
Para exprimir as raras qualidades
Que quis criar em ti quem tu criaste.
És filha, Mãe e Esposa: e se alcançaste
Uma só, três tão altas dignidades,
Foi porque a Três de Um só tanto agradaste.
“Deo Gratias” é o grito que a vossa delicadeza acaba de sufocar.
“Deo Gratias” também digo eu porque hei de levado até o Calvário a minha Cruz. Mas ainda, senhores, uma dose de paciência e eu desaparecerei daqui.
Não quero terminar sem levar os meus parabéns a essa mocidade levítica que tão filialmente festeja a subida gloriosa de sua Mãe ao país das eternas alegrias — O Céu.
Filhos de Maria, este vosso esforço vos honra em demasia e é uma segurança ao mesmo tempo que uma credencial junto ao trono da Mãe de Deus.
Nos prélios do vosso futuro apostolado, no campo aberto da batalha universal, haveis de recordar-vos, saudosos, destes momentos felizes, verdadeiros paraísos volantes na terra; haveis de recordar-vos, jovens (e com lágrimas nos olhos), e esta recordação por si só seria um bálsamo, porque, no vosso peito há de brotar a flor da esperança naquela que não se deixa vencer em amor, nem deixa homenagem sem recompensas!
Meus parabéns!
Eu li, senhores, que um saltimbanco assistia a uma grande festa em honra de Maria. Essa história que li numa revista francesa — Lectures pour tous, a encontrei mais[22] desenvolvida numa conferencia mariana do nosso ilustre e católico patrício o Sr. Conde de Afonso Celso. Diz ele que a imagem era da Virgem da Glória, das que tem o menino Jesus no braço.
Todos, ávidos de homenagear a Virgem, traziam, cada um a sua oferta. Este levava o lírio branco; esse o seu perfumoso incenso; aquele atirava flores; mais além na salva tiniam as moedas de ouro e de prata.
Só o nosso acrobata não se movia. Coitado! Era tão pobre o palhaço da feira! Mas ele se afligia muito.
Que poderei dar?
De súbito na sua alma de pobre e de simples, mas devoto de Maria, relampejou uma ideia. E ele disse com seus botões: “Eu sei fazer cabriolas, eu tenho os meus jogos. Quem sabe se ela não aceitará isto oferecendo-o de coração? É tão boa! ” E, rompendo o povo, aproximou-se do altar, estendeu um tapete no chão e começou a fazer toda a sorte de ginástica e de cambalhotas de sua arte diante do nicho.
Foi um escândalo. O povo gritava, quase o agarravam como um louco.
E ele, o bom saltimbanco, teimava. “Deixem-me, senhores. A intenção é que vale. Ao menos o menino há de gostar. As crianças gostam disso”
Consentiram, cheios de emoção. O pelotiqueiro, diz Afonso Celso, fez o que de mais fino contava o seu repertório.
E então, rezam as crônicas, houve um milagre. O Menino Jesus que estava nos braços da Virgem, sorriu, quase aplaudiu o acrobata.
O pelotiqueiro entusiasmado, oh! Se o tivésseis visto imaginai, senhores, fez prodígios de ginástica, empregando todas as forças possíveis.
Extenuado, esgotado, nadando em suor, ele rolou por terra. Coisa nunca vista!
O Menino sorria e a Mãe Celeste, sorrindo, desceu do altar, devagarinho, cheia de doçura, com nívea mão enxugou, com a ponta do manto cor do céu, a fronte suarenta do acrobata.
Senhores, eu sou como o saltimbanco da Virgem da Glória.
Não tinha vela, não tinha ouro, nem incenso, nem flores. Pobre como palhaço de feira, eu toquei a minha indigência.
Que oferenda lançar aos pés de minha Mãe?
Vi os meus irmãos com as mãos cheias de mimos e eu não os tinha.
Como o pelotiqueiro da lenda vim para aqui, ao pé do deslumbrante monumento, fazer o que sabia.
Não vos importuneis com as minhas peloticas sem arte e sem estilo, porque a intenção é que vale.
Se não mereço que a Virgem enxugue o meu suor, com a fimbria azul do marchetado véu, ao menos tenho a confiança de ir juntamente com os meus indulgentes ouvintes contemplar no Céu a Beleza deslumbrante de sua peregrina face.
Dom José Pereira Alves - Discursos e Conferências, Imprensa Nacional 1948.
[1] Cf. Terrien Jourdain.
[2] Cf. Terrieu Jourdain. Escrip.
[5] Cântico dos Cânticos.
[7] Cf. Terrien – Nicolas.
[9] Vid. Terrien, Jourdain.
[13] Leonardo Mascello, Foglie al vento.
[16] Vid. Dicc. Iconographique, Migne.
[17] D. Luiz de Britto, Arcebispo de Olinda.
[21] Discurs et Panegiriques.
Pe. Garrigou-Lagrange, OP
A vida desta brava irmã conversa da Visitação de Chambéry, nascida em 1841, falecida em 1907, foi escrita em 1928 com muito zelo, precisão e piedade pelas religiosas desse convento, conforme as notas deixadas pelas superioras. Este livro, que traz nas páginas iniciais a autorização e um precioso elogio de Mons. Castellan, arcebispo de Chambéry, contém sobretudo exemplos de piedade e virtude, e apresenta uma vida profundamente marcada à semelhança de Jesus crucificado, com algumas imperfeições involuntárias, que subsistem até o fim na serva de Deus, a fim escondê-la.
Julgamos útil assinalar aqui alguns traços desta fisionomia espiritual: as graças dos primeiros anos; aquilo que parece bem ser sua missão especial: fazer recordar ao mundo a devoção às santas chagas do Salvador; suas virtudes cristãs, particularmente, a mortificação, a humildade, a obediência, a simplicidade e as virtudes teologais. Há nesta vida uma grande lição para os nossos tempos.
Primeiros anos e vocação
Françoise Chambon nasceu em Croix-Rouge, pequenina aldeia verdejante situada perto de Chambéry, em 6 de março de 1841. Neste mesmo dia, tornou-se ela filha de Deus pelo santo batismo. Pobreza extrema, mesmo miséria, reinava no lar onde sua mãe lhe deu à luz, semelhança notável com a penúria de Belém. Destinada a seguir o divino Mestre em suas humilhações, esta criança privilegiada reproduzia-lhe os traços desde a aurora de sua vida. Pequenina, o pensamento de Deus lhe absorve, lhe invade, ao ponto de deixar fugir a única cabra confiada aos seus cuidados. Seus pais, honestos, piedosos e trabalhadores, transmitiram aos seus filhos os sentimentos de fé profunda, o espírito de dever, o amor do trabalho. Seu pai, homem simples e reto, trabalhador rude, dedicava-se à agricultura ou trabalhava na pedreira das proximidades. Pelo trabalho, sua família atingiu certo bem estar material.
Sua mãe tinha gosto em levar a pequena primogênita às cerimônias da Via Sacra. Uma tia estimulava igualmente seu pendor pela oração. Numa Sexta-feira Santa, levou-a à adoração da Cruz. Françoise tinha oito ou nove anos. Solicitada pela tia, e apesar do grande cansaço, diz os cinco Pater com os braços em cruz. Neste momento, Nosso Senhor aparece-lhe pela primeira vez, crucificado, a carne em pedaços, coberto de sangue. Esta visão causou-lhe grande impressão e acendeu na sua alma ardente caridade. Comungar tornou-se, a partir de então, seu maior desejo. Logo aprende oralmente seu catecismo, pois jamais soube ler nem escrever. Foram a estas poucas noções elementares que se restringiu toda sua instrução. Françoise, possuída do amor de Jesus, sente nascer nela a necessidade de mortificar-se...o amor quer comunicar-se! “Mãe, roga ela, dá-me a sopa antes de pôr-lhe manteiga” (p. 11). De noite, quando todos repousam, ela levanta-se para rezar longo tempo, joelhos sobre a terra nua.
Os sacrifícios preparam-na para sua primeira comunhão, que foi para ela um acontecimento decisivo. “Ao comungar, dizia ela, foi o menino Jesus que vi e recebi... Oh! Como fiquei feliz!... Ele me disse que sempre que eu comungasse seria assim... Era o céu! Tem-se o paraíso no coração”(pp 12-13).
Aquele que se regozija com os humildes manifestar-se-á a esta alma predestinada, quer carregando sua cruz, quer sob a forma de uma adorável criança. Ele mesmo se incumbirá da direção de sua vida interior, e purificará, instruí-la-á e imprimirá nela os traços de sua Infância e Paixão.
A Paixão do Salvador é o grande motivo de Françoise. Ela só pensa em Jesus, quer “ocupar-se somente dele, viver como os anjos... não considerar mais as coisas do mundo...” (p. 15).
Não demora a aspirar à vida religiosa. Sua saúde, de aparência pouco robusta, foi um obstáculo a sua admissão ao Carmelo. Encaminha-se à Visitação de Chambéry, onde ingressa no ano de 1862. Françoise tinha vinte e um anos. Era aí que Deus a queria, entre as filhas da Visitação, cuja vocação é a de reproduzir a vida escondida de Nosso Senhor, adorá-lo e imitar a humildade do Verbo Encarnado. “Erigidas no Monte Calvário, devem crucificar-se com Nosso Senhor” (Constituição XLIV). Veremos a que ponto Nosso Senhor realiza este programa nessa alma de elite.
A nova postulante foi inicialmente admitida entre as moças do serviço de pensionato. Foi aí, na prática dos mais humildes trabalhos, um pouco à margem da comunidade, que a veremos levar uma vida de sofrimento e apostolado. Sua tomada de hábito ocorreu no dia 29 de abril de 1863, quando recebeu o nome de Irmã Maria-Marta. O ano seguinte foi o da sua profissão.
É preciso reconhecer que a Irmã Maria-Marta não possuía as graças da natureza, os charmes do espírito, que atraem a simpatia e favorecem as relações. De caráter rude e pouco refinado, temperamento vivo, vontade tenaz e pensamento limitado, suas características exteriores pouco amáveis tornavam a pobre irmã, por vezes, fatigante. Apesar dos esforços que fazia, suas imperfeições subsistiram até o fim de sua vida: Nosso Senhor servia-se delas como de um meio para mantê-la na obscuridade. Queixava-se delas ao divino Mestre: “Com todas as vossas graças, não me tirastes todos os meus defeitos” – “Tuas imperfeições, respondia-lhe, são a grande prova de que vem de Deus aquilo que se passa em ti. Jamais as tirarei; são o manto que esconde meus dons. Tens desejo de se ocultar? Muito mais o tenho eu” (p. 30). Contudo, como soube modelar essa alma a seu gosto, cultivá-la em sua tão simples inteligência, ocupando-a com as verdades eternas, encher esse coração de desejo do divino, de sede de sacrifício, de amor pelas almas!
O tesouro das Santas Chagas
Nosso Senhor fê-la conhecer os tesouros infinitos guardados nas suas Chagas, e instava-a a oferecê-los sem cessar a Deus Pai pelas necessidades da Igreja e de sua comunidade, para a conversão dos pecadores e para retirar almas do purgatório. “Com minhas Chagas, disse-lhe, tens todas as riquezas do céu para distribuir na terra”. “Deves fazer valer as riquezas de minhas santas Chagas”. “Tua riqueza é minha santa Paixão” (pp. 54-55).
Nosso Senhor queixa-se do esquecimento por parte das almas de suas sagradas feridas; elas não sabem colher-lhes os frutos, e chegam a menosprezá-las. E seu amor misericordioso elegeu uma pobre religiosa, Irmã Maria-Marta, para fazer lembrar as almas da devoção às suas Chagas. Não é ela particularmente conveniente nesses tempos tão atribulados? Não é chegado o momento de espalhar nesse pobre e confuso mundo os méritos infinitos do sangue redentor?
“Eu te escolhi, diz a Irmã Maria-Marta, para fazer despertar a devoção à minha santa Paixão no tempo infeliz em que vives” (p. 61). Quantas almas meditam na Paixão de Cristo? Quão pouco são os que estimam a Cruz, ou, se a contemplam, querem carregá-la! No entanto, é ela a verdadeira escola de amor, escola austera na qual Nosso Senhor formará sua fiel discípula.
“Eu te escolhi, diz ainda Jesus, para fazer valer os méritos de minha santa Paixão para todos; mas quero que tu mantenhas-te escondida. A mim caberá mais tarde de dar a conhecer que é por este meio que o mundo se salvará – e pelas mãos de minha Mãe Imaculada” (p. 61). “Minha filha, o mundo será mais ou menos atribulado conforme tu cumpras teu dever. Tu és escolhida para satisfazer minha justiça” (p. 61)
Mostrando-lhe suas Chagas: “Não desvies os olhos de cima deste livro e aprenderás mais que os grandes sábios. A oração às santas Chagas compreende tudo” (p. 61).
Segundo os testemunhos recolhidos de sua vida, Nosso Senhor fez com que ela participasse da sua crucifixão, imprimiu-lhe na carne os sagrados estigmas, alimentou-a unicamente com a Eucaristia por mais de quatro anos, enquanto seu amor a crucificava, na alma e no corpo, associando-a a sua obra redentora. Veremos como, por sua vez, Irmã Maria-Marta responde ao apelo do Mestre com todo o fervor e generosidade do seu amor.
Via Crucis
Bem parece que esta alma eleita, transparente como o cristal, não teria tanta necessidade de purificação para si mesma, mas as provações serão proporcionadas à sua missão apostólica e reparadora.
O divino Mestre convida-a a passar as noites estendida sobre o assoalho da sua cela. Tendo obtido de sua superiora permissão para tanto, que lhe fora inicialmente negada, dorme sobre a terra nua, e isto ao longo dos anos. Nosso Senhor vai além: é um rude cilício que ela deve usar noite e dia, que lhe causa muito sofrimento. A pedido e conforme as indicações do Mestre, faz uma coroa de espinhos muito pontiagudos e usa-a de noite. Doravante, carregada de vivas dores, não tem mais onde repousar a cabeça. Uma noite, no fim das forças, a esposa do Crucificado queixa-se ao seu Salvador. “Minha filha, persevere com mais força”, diz-lhe. Irmã Maria-Marta obedece corajosamente. Desta vez, Aquele que não se deixa vencer em generosidade, contenta-se com um simples aquiescer: e ela já não sente dor nenhuma. O dia em que Nosso Senhor disser-lhe: “Tua coroa não te faz mais sofrer o bastante” (p. 193), ela a trocará por um cinturão com pontas de ferro. Ei-la, estendida sobre o assoalho, coroada de espinhos, os braços em cruz, viva imagem do divino Crucificado. Nosso Senhor uniu desse modo a Irmã Maria-Marta à sua Paixão, que não pode fazer mais do que como Ele, com Ele. Seu coração abrasa-se de amor. Não realiza em si mesma o desejo do Salvador? “Gostaria de ver todas as minhas esposas como crucifixos!” (p. 76). Contudo, em certos momentos, a natureza se desespera; a pobre religiosa sente a tentação de abandonar essa intolerável coroa. Nosso Senhor aparece-lhe então em sofrimentos atrozes, a fronte traspassada de espinhos. “Minha filha, não abandone a minha coroa”, reprova-lhe amorosamente o Salvador (p. 194). Confusa, Irmã Maria-Marta retoma-a; cura-se de toda a recaída. Esposa, deve compartilhar a vida de seu divino Esposo, vida de sofrimentos e imolações; deve morrer a si mesma para viver somente para Ele.
“Elege em tudo e por onde for o que mais mortificar-te”, diz-lhe Jesus (p. 190). Sempre dócil, esta alma heróica escolhia, em tudo, o menos agradável, o mais penoso.
Nosso Senhor assedia a Irmã Maria-Marta com exigências, convida-a a sacrificar seu sono para velar perante o Santo Sacramento. Exausta, vemo-la solicitar um pouco de repouso aos seus superiores, mas eles, conhecendo o desejo formal de Nosso Senhor, conduzem-na a seu posto de oração, à tribuna.
Nosso Senhor aparece-lhe um dia em seu estado de crucificado, embebido em vinagre e fel. Irmã Maria-Marta afligiu-se tanto que jamais pôde esquecer. “É preciso, dizia o Mestre, que me mates a sede com tua mortificação” (p. 191). Contudo, a brava religiosa só tinha pensamentos para Jesus, desejava salvar almas para Ele. Apesar das suas vigílias, dos sofrimentos contínuos, permanecia fiel a todos os seus deveres, a ponto das superioras julgarem que fazia o trabalho de duas pessoas. Deus era toda a sua força. A esta mortificação exterior, juntava a mortificação de uma minuciosa fidelidade à Regra: sempre modesta, silenciosa, recolhida, percebia-se que estava ela mergulhada em profunda contemplação.
“Ele é tudo”
Nosso Senhor deliciava-se com esta alma límpida: “Tu não conheces mais o mal do que a criancinha antes de chegar à idade da razão”, dizia-lhe (p. 206). Aquele que se compraz com os lírios conservou este coração puro, sem o menor conhecimento do mundo. Ela podia dizer a uma de suas companheiras: “Ah, sim! Ele é todo amor, o bom Deus! Quando era pequenina, já me fazia compreender. Ele me deu tanto! Do mundo, não conheço nada, só conheço a Ele. Ah! eu o amo tanto!” (p. 209).
Todo seu pensamento era para Cristo. Por Ele, evitava toda reflexão inútil. Por ele, guardava seu coração desapegado. Certo dia, Jesus repreendeu-a severamente por procurar uma pequena satisfação do coração: “Ser religiosa, minha filha, significa ter banido de seu coração todo o criado... significa ver Jesus em tudo, seu Esposo, significa procurá-lo unicamente...Teu objetivo tem de ser o de estar face a face comigo” (pp. 210-211). A uma das irmãs que lhe indagava a razão das predileções divinas, respondeu: “Ah, minha irmã! eu sou ignorante, tenho um coração simples, sem estofo... tenho, portanto, um coração desapegado: Ele é tudo! Não busco nada... nada... não quero nada, não preciso de nada, não desejo nada, meu coração é livre” (pp. 209-210).
Puro, livre, o coração da Irmã Maria-Marta pertencia somente a Deus, seu pensamento ocupava-se apenas de seu objeto de amor. Semelhante a chama pura que sobe sempre, a alma desta esposa de Cristo eleva-se, degrau por degrau, rumo à perfeição do amor.
Combates
Nosso Senhor ensinara à Irmã Maria-Marta a fórmula para oferecer as santas Chagas; mas fazer com que a comunidade a adotasse não foi coisa fácil para as superioras. Descobre-se a origem destas invocações. O zelo da regra faz com que todas se alarmem. Não se podia tolerar que uma jovem noviça conversa se impusesse de tal modo. Quantos sofrimentos, vexações para Irmã Maria-Marta e suas devotadas superioras! Ela não demonstrava senão paciência, humildade, mansidão. Nosso Senhor encorajava, tranquilizava-a: “Maiores os obstáculos e dificuldades, mais abundantes as minhas graças” (p. 92). Nosso Senhor amava muito esta comunidade de Chambéry, apesar das críticas levantadas pela pretensa inovação. Críticas compreensíveis, diga-se. As religiosas da Visitação tinham suas Regras e Constituições como um legado sagrado de seus santos Fundadores. “Não lhes é permitido absolutamente, sob qualquer pretexto que for, incumbir-se de orações outras das que estão aqui assinaladas” (Constituição XVIII). Não se poderia ir contra isso. Deus permite, pois, essas contradições para lançar à luz do dia a virtude de sua privilegiada e aumentar seus méritos.
Uma vida tão extraordinária faz-nos compreender igualmente a atitude reservada dos superiores, e os defeitos que se verificavam sempre na humilde noviça conversa não deixam de espantar. Daí os murmúrios, recriminações. Irmã Maria-Marta sofria muito. Sustentada pelo dom da força, suportava tudo em silêncio: jamais uma alusão, uma queixa, e isso por quarenta anos! Mas quão mais dolorosa a provação que lhe veio de um superior mal informado por relatos imprudentes de algumas religiosas. O golpe foi duro. Entre outros, a comunhão quotidiana foi negada à Irmã Maria-Marta. Humildemente, ela se submete às ordens recebidas.
O Selo de Deus
Recordava-se ela da palavra de seu Mestre: “A vós (religiosas) só perguntarei uma coisa: o quanto obedeceram” (p. 204). A exemplo daquele que foi obediente até a morte, Irmã Maria-Marta conforma-se em tudo heroicamente à vontade divina, sancionada pela obediênca. Sua perfeita docilidade foi notável. Sacrificou sua vontade inteiramente às exigências de Nosso Senhor. Mestre absoluto, podia exercer sobre ela todos seus direitos. A Santíssima Virgem diz-lhe um dia: “Não quero que faças ato algum, por melhor que te pareça, fora desta obediência” (p. 110).
Se suas superioras recusam-se a conceder o que lhes pedia, a humilde Irmã inclinava-se sem insistir. “A obediência, para ela, é tudo” (p. 45), afirma sua superiora. Nunca uma réplica, nunca uma discussão diante dos mais duros sacrifícios. Somente esta palavra, obediência, poderia tirar-lhe de suas longas contemplações. É o sentimento unânime de seus confessores: “Ela seguia sempre literalmente as opiniões que lhe eram dadas” (p. 218). À luz das instruções divinas, Irmã Maria-Marta aprendera a pronta e simples obediência. Um dia, doente e acamada, sua superiora lhe diz: “Amanhã estarás boa” (p. 216). A dócil menina tomou o encorajamento por uma ordem. Nosso Senhor, contente com esta fé tão simples, curou-a no mesmo instante. Alimentou-se e retornou, no dia seguinte, a suas ocupações.
Quantas vezes as superioras recorreram à sua intercessão diante de Nosso Senhor! O vinho se avinagrava nos tonéis, as batatas apodreciam no porão, por obediência Irmã Maria-Marta incumbia-se de buscar a solução. Fazendo o sinal da cruz, ela invocava a Santíssima Trindade, as santas Chagas e tudo se restaurava: o vinho tornava-se bom, o bolor sobre as batatas secava. O Senhor atendia a todos seus desejos.
E era nas coisas espirituais, assim como com nas materiais; as superioras sempre experimentavam a eficácia das suas orações. Ela tinha o culto da autoridade – nela via Deus. Nosso Senhor lhe havia frequentemente repetido: “Minha filha, em tua superiora estou eu” (p. 215).
A abertura de coração, a confiança para com sua superiora, são traços distintivos de uma filha da Visitação. Para Irmã Maria-Marta Chambon, assaltada por dúvidas e temores, a palavra de sua superiora era infalível e sobremaneira eficaz. O demônio tenta-a a esse respeito; persuadindo-a de que era uma cruz para suas superioras, e por isso começa a evitá-las. Irmã Maria-Marta chega a experimentar repugnância extrema por sua superiora; não ousa mais aproximar-se e queixava-se disso a Nosso Senhor. “Se te afastares de tua superiora, errarás e perderás a verdadeira luz” (p. 217).
Amava muito sua regra, suas constituições. O temor de afastar-se delas por suas austeridades causava-lhe grande sofrimento. O santo Fundador da Visitação quis, com efeito, que o espírito de sacrifício interior e de perfeito abandono à vontade de Deus substituísse jejuns e outras mortificações exteriores do tipo, salvo em casos muito raros, desejados particularmente por Deus. São Francisco de Sales veio reconfortar sua estimada filha: “Segue o caminho que Jesus te traçou, esta é a Regra” (p. 85).
“Mestre, eu sou vossa pobre”
Irmã Maria-Marta não escreveu nada, não manteve conversações sábias, mas soube humilhar-se. Nosso Senhor pergunta-lhe um dia: “Minha filha, queres ser crucificada ou antes ser glorificada?” – “Bom Mestre, mais desejo ser crucificada”, responde, com ímpeto de coração (p. 76). Não busca a sua glória, mas o desprezo e a cruz. Pequenina, penetrada de sua insignificância, de sua indignidade, lançava-se no abismo do seu nada, querendo desaparecer. Viveu segundo a palavra de sua santa Fundadora: “O principal cuidado da alma deve ser o de humilhar-se”. Sua grande preocupação é sempre o temor de ser notada: vida escondida, humildade, esta é sua marca característica. Ademais, Nosso Senhor inclinava-a a isto. Ele humilhava-a severamente, repreendia as menores faltas: “Tu não serás uma verdadeira esposa se não amares a humilhação”. (p. 174)
“... A fim de te preparares a receber minhas graças, precisarás te aniquilar muito, pois só tenho olhos para o coração humilde!” (p. 174). Certo dia, extenuada de fadigas, após uma noite de sofrimentos, Irmã Maria-Marta para na porta do coro: “Bom Mestre, eu sou vossa pobre, dai-me esmolas, dai-me forças”, suplicava (p. 175). A humilde irmã não falava dos favores divinos que recebia senão com extrema repugnância. Tanto mais o Senhor cumulava-a de dons, tanto mais se apequenava. Mostrava-se ela ávida de correções, sempre a primeira a humilhar-se, a reconhecer e reparar seus erros, pois seu exterior guardara suas asperezas; daí os desencontros, os pequenos tropeços de sua natureza, tantas ocasiões de humilhações, de méritos. Por outro lado, as superioras não a poupavam. Irmã Maria-Marta, ao desprezar profundamente a si mesma, compreendia todo o benefício que daí tirava para sua alma e alegrava-se da glória que rendia a Deus.
O Espírito Santo, pela iluminação dos dons de ciência e de inteligência, esclarecia-a mais e mais. Então, sentia-se como que esmagada sob o peso da grandeza divina e de sua própria miséria, sob a visão cada vez mais profunda de seus defeitos.
“Ó meu Jesus, dizia a Irmã, espero tudo de Vós somente, pois não sou senão miséria” (p. 171).
A mesma luz faz descobrir manchas nas nossas melhores ações. “Somos cheios de imperfeições, dizia ela, não há, na verdade, nada de bom em nós. – Quando nos vemos diante de Deus, não somos mais que pecado, miséria... mesmo aquilo que julgamos fazer bem, mesmo as ações mais santas, tudo é corrompido por nosso amor próprio...” (p. 186). Para retirar-lhe todo o amor próprio, Nosso Senhor mostrava-lhe por vezes, como num quadro, as qualidades bem superiores de suas irmãs, depois, humilhando-a: “Ser humilhada e tratada como mereces, eis o único desejo que deves ter” (p. 174), “Meu coração só age no selo da humildade” (p. 175). Um dia, lavando a louça, Irmã Maria-Marta viu-se de repente rodeada das Visitandinas do céu e de uma falange de santos. Cheia de alegria, falou-lhes: “Quereis transmitir uma palavra a Nosso Senhor? Dizei-lhe que sou... pecadora” (p. 175). Consciente de sua própria fraqueza, confiava totalmente no Salvador, esperando tudo dele pelos méritos infinitos de suas santas Chagas. Assim também, durante uma conversa com Nosso Senhor, Irmã Maria-Marta viu-se transportada ao céu e os santos, colocando-a num lugar de honra entre eles, cantavam em coro: “O menor torna-se o maior” (p. 188). Deus exalta os humildes!
Vida Teologal
Irmã Maria-Marta, enquanto imitava Jesus crucificado, trilhava a via da infância espiritual, tão propícia ao progresso e ao perfeito desenvolvimento das virtudes teologais. Com a simplicidade da criança, ela crê em Deus, espera nele e ama-o de todo seu coração.
Este espírito de fé espontânea inspira todos seus atos, todas as circunstâncias da sua vida: doenças, contradições, provações de todo gênero. Vê Deus em todas as coisas e não desperdiça parcela alguma da cruz.
A santa Missa, para ela, é a renovação do calvário. Irmã Maria-Marta vive do drama que se desenrola no altar, une-se à divina Vítima que recebe na santa comunhão com um fervor, com um amor cada vez maior. Deus faz com que ela viva dos mistérios da Santíssima Trindade, da Redenção, da Eucaristia. Ela vai o mais longe. Imersa em contemplação, é-lhe penoso voltar-se às coisas da terra. Contudo, chega o dia em que o divino sol dos espíritos se esconde, se obscurece. Desamparada, Irmã Maria-Marta sofre, busca seu Senhor e seu Deus. Estes abandonos torturam-na. Jesus, enfim, retorna: “purifiquei-te inteira ao abandonar-te” (p. 266). Outras vezes, após dias de sofrimento inauditos, Nosso Senhor, tendo-a unido a sua agonia e a seu abandono na cruz, diz-lhe: “Minha filha, chorei no jardim das Oliveiras e sobre a cruz em meu grande abandono” (p. 267).
Frequentemente, recebe rudes assaltos do espírito das trevas. Apresentando-se certo dia cinco vezes a ela sob uma forma corporal, Satanás diz-lhe: “Não há Deus!... De que servem tuas orações, não há Deus”. Irmã Maria-Marta responde-lhe: “Creio que há um Deus e que Ele é meu Esposo! Ele é meu Esposo! Meu alimento...” (p. 269). Ditas estas palavras, o demônio some numa fumaça. Perturbava-lhe também de mil maneiras com sugestões contra a autoridade, contra a humildade, contra a eficácia da oração, sempre tentando desencorajá-la, desviá-la de seu caminho. Mas esta humilde religiosa mantém-se firme no meio das trevas e lutas; fiel à sua missão, orava sem cessar com espírito de fé cada vez maior. Sua oração era ouvida, como demonstram-no as muitas conversões alcançadas.
“A terra nada é, minha filha, dizia Jesus a sua esposa, a terra inteira é um nada... olha para o céu! O céu é o único digno de teus desejos! Lembra-te da tua morada e não te esqueças de que pertences à grande família do céu...” (p. 292). Irmã Maria-Marta deseja sobretudo partir para ver a Deus. O inimigo de todo o bem aproveita-se para procurar desviá-la do único objeto de sua esperança. “O céu não é para ti”, diz-lhe (p. 265). A serva de Deus tem sua réplica, tão pronta como ingênua. Lança mão de mil astúcias para confundi-la: “bruxa hipócrita! enganas aos demais e és enganada...” (p. 264). Debocha de sua prática de oferecer as santas Chagas, chega até ao ponto de agredi-la. Irmã Maria-Marta sofre tormentos horríveis, julga ser joguete de ilusões. Torturada em sua alma e em seu corpo, embora sempre valente, repete com confiança invencível as invocações às santas Chagas. Tudo espera pelos méritos infinitos de seu Salvador. Fixando o olhar em Deus somente, abandona-se nos seus braços como uma criança, sem deixar de cumprir fielmente a missão que o Senhor lhe confiara. Como o Mestre não haveria de responder a tanta generosidade? Conduzindo-a ao seu Coração, sua doce voz lhe diz: “Minha bem-amada, estarás aqui agora e na eternidade” (p. 266)
Irmã Maria-Marta compreendera esta palavra de seu adorado Mestre: “Minha filha, ama-me acima de tudo, por mim mesmo” (p. 71). Com grande generosidade, respondia a este amor infinito que a atraía cada vez mais fortemente.
“Ensinar-te-ei a amar-me, dizia Jesus, pois não sabes como fazê-lo: a ciência do amor é dada à alma que considera o divino Crucificado e lhe fala, do coração ao coração” (p. 231). Com tocante bondade, ensina-a a rezar: “Descobre meu segredo de amor a alma que se une e entretém-se comigo no fundo se seu coração” (p. 231). “Minha união contigo é teu único bem: aqui é o teu progresso...” (p. 233). Toda sua vida foi um martírio de amor. Jesus crucificado possuíra seu coração. Podia Ele dizer-lhe: “Modelei teu coração para mim e segundo minha vontade. Tirei toda a consideração pelas criaturas... Coloquei nele a simplicidade da criança” (p. 168). “És a bem-amada de meu coração. Doravante, só amarás e respiraras pelo meu coração” (p. 72). Inteiramente livre, isenta de todo entrave humano, consumida pelo amor que a transforma, experimenta cada vez mais a fome de Deus: “Beati qui esuriunt et sitiunt justitiam”.
O chamado torna-se mais insistente: “Filhinha, suba o calvário comigo” “Quero-te vítima de pé” (p. 234) “Também tu, carrega os pecados dos homens” (p. 271). O amor busca a semelhança, e a união com o Salvador só se realiza na cruz. O amor transformante realizou sua obra. Marcada à imagem do Cristo, associada à sua missão redentora, a doce vítima segue, passo a passo, as pegadas de seu Mestre. Como Ele, oferece-se pelos pecadores, roga por eles, vive suas lutas, experimenta, nela mesma, suas dores e angústias. Certo dia, dá à sua superiora o nome do doente da paróquia que tantos sofrimentos lhe custava. Após sua morte, julgou ouvir dele as seguintes palavras: “Foi por mim que tanto sofrestes. O demônio trabalhava pela perda da minha alma. Devo-te minha salvação: meu lugar era o inferno e, se estou no céu, é pelos méritos das chagas de Jesus que invocaste por mim” (p. 270).
A alma de Irmã Maria-Marta irradiava caridade ao seu redor. Interessava-se por cada uma de suas Irmãs. Sua dedicação não conhecia cálculos nem limites. Sabia às suas custas realizar o desejo de Jesus: “Jamais preocupar-se contigo, jamais recusar um serviço” (p. 236). Nosso Senhor pedia mais: “Deves a cada dia pagar as dívidas de cada alma desta comunidade para com minha justiça... Serás a vítima que expiará cada dia o pecado de todas” (p. 140). Que amor desinteressado não seria preciso para cumprir sua missão reparadora? O aproximar da morte de uma Irmã era sempre marcado por maior intensidade de sofrimentos: Irmã Maria-Marta, pela oração e pela imolação, supria o que lhe restava reparar.
Seu zelo apostólico levava-a a rezar constantemente e a sofrer pelas intenções do Vigário de Cristo e por todos os fiéis. Quantas almas do purgatório não se beneficiaram de suas orações? Um dia, na vigília da Ascensão, Nosso Senhor diz-lhe: “Não contes descansar hoje, pois muitas almas devem, pelos teus sofrimentos, chegar ao céu para ver o meu triunfo” (p. 256). Outro dia: “Minha filha, pela rude tentação que sofreste e por teu abandono interior, muitos pecadores se converteram e muitas almas do Purgatório foram para o céu... teu sofrimento era necessário para isso” (p. 268). Quantas noites não passou ela em oração pelos agonizantes! Nosso Senhor mostrava-os à Irmã: “Estás incumbida de todas estas almas, é preciso que lhes obtenha uma boa morte” (p. 253). Buscar a glória de Deus, a salvação das almas, tal era sua única ambição: “Meu Jesus, tenho sede das almas por vossa glória” (p. 253).
Verdadeira filha da santa Igreja, ultrapassava os muros de seu estreito claustro para cultivar os campos do Senhor. Sentindo-se cumulada dos pecados dos homens, esmagada sob o peso da justiça divina, clama: “Deus meu, não olheis nossa miséria, mas a vossa misericórdia!” (p. 251).
Jesus, por sua vez, instava-a: “Vem, conquiste almas!” (p. 248) Mostrando os pecadores por todo o mundo: “Mostro-os a fim de que não percas tempo algum” (p. 250). E a fervente missionária passava suas noites a colher almas. O sangue divino era o preço. Com firmeza dizia sua grande oração: o oferecimento das santas Chagas de nosso Salvador, que prometera renovar a cada dez minutos (p. 75).
Não se encontram aqui a heroicidade das virtudes teologais e morais, tanto quanto podemos julgar, até que a Igreja se pronuncie?
*
Conformada na sua vida a Jesus crucificado, a humilde esposa também o foi na sua morte. Combate supremo, em que as súplicas angustiadas à Mãe do céu nos permitem adivinhar o isolamento do coração, o abandono com Jesus na cruz, faz-nos lembrar a palavra que o Senhor um dia lhe dirigiu: ”Na cruz, no auge de meus sofrimentos, estava só... Eis por que quis que tu sofresses assim” (p. 267)
Por Maria, ela obteve esta última vitória sobre o inimigo, sobre o pecado. Esta Mãe celestial veio enfim buscá-la em 21 de março de 1907, nas primeiras vésperas de sua Compaixão.
*
Por meio de sua humilde serva, o divino Mestre dirige-se a nós: “Uma única gota do meu Precioso Sangue basta para purificar a terra, e não pensais nisso!” (p. 62). “A Chaga de meu Sagrado Coração abre-se largamente para conter todas as vossas necessidades!” (p. 79).
Toda esta vida é um apelo para lembrar-nos dos dons de Deus. O sangue redentor é de valor infinito.
Repetindo-nos isto a cada página, esta vida heróica nos faz sentir que nossa fé, que deveria nutrir-se cada vez mais desta verdade revelada, na maioria das vezes, é superficial. Ultrapassa pouco as fórmulas conservadas na memória e repetidas respeitosamente. Não atinge suficientemente as realidades divinas que exprimem.
Dignai-vos, ó Senhor, pela intercessão desta brava religiosa, conceder-nos algo ao menos de sua fé tão penetrante, tão estimulante, de sua contemplação do mistério da Cruz, perpetuada em substância sobre o altar durante a Missa!
Desta fé procede a firme esperança, o amor ardente de Deus e das almas, do qual precisamos nas tristezas da hora presente.
No momento em que o espírito de independência absoluta, de orgulho, levado até ao ateísmo, procura espalhar-se sobre a terra e sobre os países mais católicos, o Senhor sugere a muitas almas interiores rezar como o fazia a humilde conversa da Visitação de Chambéry. Ele as convida a pedir uma inteligência mais profunda do mistério da Redenção e o desejo de participar, na medida desejada para cada um de nós pela Providência, de suas santas humilhações, remédio a todos os orgulhos. O Senhor faz entrever a estas almas, como o fez a esta de que acabamos de falar, que encontrarão neste sincero desejo a força, a paz e, por vezes, a alegria, para suportar os sofrimentos que sobrevirem e encorajar os demais.
( La vie spirituelle, LIII, 150-168, 1937. Tradução: Permanência)
São Roberto Bellarmino
Caríssimos irmãos, quando contemplo o início e o crescimento da religião de Cristo e recordo os sinais e prodígios do Redentor, duas coisas me parecem admiráveis e quase inacreditáveis: a primeira, que existam pessoas que se recusam a abraçar a Santíssima Fé; a segunda, que aqueles que a abraçaram persistam no pecado.
Muitas foram as predições dos profetas, e quase unânime o consenso dos povos, e sem conto o número dos milagres, e imensa a esperança depositada em nossa Fé. Fomentou-a a caridade, fixou-a a antigüidade, confirmou-a a sucessão dos bispos e, enfim, fortificou-a a autoridade da Igreja Católica Romana. Por isso, quem não se assombraria com o fato de que, desde o início da pregação da fé, ainda se encontrem pessoas para as quais a doutrina da Igreja Católica Romana é inconsistente, pessoas essas que não temeram endossar os atos dos autores das novas seitas e, portanto, do Mestre dos Erros? Semelhantemente, como se é capaz de escutar que certos indivíduos acreditam na punição eterna para quem viole as leis de Deus, mas não se abismar que tais indivíduos – os que aderem a essa crença – não obstante pecam contra Deus com a mais descarada tranqüilidade e audácia?
Ora, se a certa hora a ninguém se permitisse meter os pés para além dos portões da cidade – em razão dum edito do rei – sob pena de morte por enforcamento, quem haveria de ser tão descuidado e negligente da própria segurança a ponto de, à hora proibida e na presença de inúmeras testemunhas, aventurar-se a pôr o pé para além dos portões? E se acaso, por um motivo qualquer, alguém o fizesse, não lhe invadiria mais tarde o medo, não apenas das testemunhas mas também do portão, como se tal objeto estivesse cônscio do crime que se cometera? Por seu lado, estão todos os cristãos persuadidos de que Deus Onipotente proferiu uma sentença irrevogável, em cujo teor se lê que, quem partisse desta vida culpado de violação [grave] à lei de Deus, como condenado que é, seria ligado às correntes eternas e sofreria tormentos inauditos e infindos, [caso não se arrependesse dos pecados antes da morte] . Todavia, observamos dia após dia muitos que ofendem a Deus, sem que para isso sejam coagidos, instigados, e muitas vezes até sem serem convencidos, mas por iniciativa própria, de boa vontade e com boa consciência. Decerto, eles buscam as ocasiões de pecado, regozijam se as encontram e, se não, lamentam. Que haveríamos de apontar como causa disso?
Caríssimos, parece-me que há três causas principais: falta de meditação, ignorância e amor-próprio, a última das quais os gregos com maior propriedade e acerto chamam de filáucia. A falta de meditação não é a menor das causas; pelo contrário, talvez seja a principal razão por que o risco do tormento eterno, que está sempre a nos acossar a todos, não nos afasta do pecado. Para muitas pessoas não lhes falta a fé, mas antes a meditação atenta e diligente do que a Fé propõe e ensina. Por isso, acredito que empreenderia uma tarefa agradabilíssima a Deus e útil a vós se hoje, como prometi no sermão anterior, eu lhes puxasse pela memória e exibisse diante dos vossos olhos o quão horrível, atroz e inexorável são as torturas que Deus preparou para a gente ímpia e perversa. Mas antes de falar dos tormentos do inferno, convém fazer algumas refutações, apoiado em dois elementos que mencionei há pouco.
De início, porque ignoramos a gravidade e a magnitude do pecado, mal conseguimos acreditar nos tormentos infernais com que as Santas Escrituras admoestam os homens nefandos. Afirma Santo Agostinho, nestes termos: “Para a razão humana, a pena eterna parece dura e injusta, pois que nesta [nossa] enfermidade da razão carecemos do conhecimento da sabedoria pura e soberana, pela qual é possível sentir a grandeza da afronta cometida na prevaricação originária.” Se de fato entendêssemos a gravidade da falta, só com muita dificuldade alimentaríamos dúvidas acerca da severidade da pena. Gostariam de saber de mim a imensidão da gravidade do pecado? Caríssimos, é ele tão imenso que a consciência não consegue abarcá-lo, visto que sobrepuja as faculdades da alma humana e derrota a inteligência dos seres mortais. Será o pecado certamente um mal imenso e infinito, se medirmos a magnitude da ofensa com a medida da dignidade e da nobreza do ofendido, que são infinitas.
Bem sabereis o perigo e a gravidade da doença do pecado se a comparardes com a excelência e a dignidade do Médico e dos remédios necessários para a cura. Quando ouvimos dizer que há uma pessoa tão doente que, insatisfeita com os médicos das redondezas, manda chamar cirurgiões de lugares distantes e estranhos, e que necessita de drogas preparadas a primor e com grande custo, então nos seria lícito a nós – que não somos médicos – afirmar que tal pessoa padece duma enfermidade gravíssima. Que se há de pensar, pois, da doença do pecado, a qual nem a sabedoria, nem o gênio, nem o poder e nem as faculdades de todos os homens e de todos os anjos seriam capazes de curar? Se não descesse a mesma Sabedoria do seio de Deus Pai, e preparasse um remédio perfeito a partir do Sangue do seu Santíssimo Corpo, decerto a doença destruiria a humanidade inteira.
Verdadeiramente, caríssimos, não tivesse eu outro argumento para demonstrar a gravidade do pecado, este só bastaria para persuadir todos os homens de que qualquer falta cometida contra Deus é um crime tão incomensurável que – ao considerar a pena devida à falta – com muita justiça poderíamos afirmar: “Olhos ainda não viram, ouvidos ainda não ouviram, nem jamais penetrou em qualquer coração humano as torturas e tormentos que Deus tem preparado para aqueles que O ofenderam.” Por que Deus, a própria Sabedoria, desejaria fazer-se homem, ser levado a Cruz, morrer e destruir o reino do pecado, senão para derrotar o poder e o domínio [de satã] e se tornar Ele mesmo o exterminador do pecado? Se por vezes meditássemos nestas coisas, não nos inclinaríamos ao pecado com tanta facilidade, e teríamos uma opinião diferente das torturas do inferno. Mas voltemos às causas da persistência do nosso torpor.
Caríssimos irmãos, é assombrosa a força persuasiva do amor, do maldito amor-próprio. Ele é, por assim dizer, a persuasão encarnada; essa alcoviteira – poderosa por natureza – é tão aduladora que, com as suas manhas, convence quase todas as pessoas a cortejarem a crença de que não sofrerão nenhuma pena ou, se as sofrerem, hão de ser breves e parcas, mesmo que vivam vidas desonestas e iníquas. Esta é a origem da opinião célebre entre alguns filósofos que, segundo Aristóteles, atribuem a si mesmos a excelência dos seus feitos, esperando que o próximo lhes dê o crédito e a admiração pela autoria deles, ao passo que atribuem a causas externas toda a sorte de crimes e injúrias que não raro cometem. Por isso, se agem bem, desejam recompensa e, se mal, o perdão da dívida.
Um após o outro, os erros dessa raiz germinaram até na pena de escritores cristãos, erros que Santo Agostinho enumera e refuta no Livro XII d’A Cidade de Deus. Havia quem acreditasse que não existem penas reservadas para católicos, mesmo para os de vida corrupta. Já outros, de iniciativa própria, deram o veredito de que não apenas os católicos, mas até os hereges – se tivessem sido outrora católicos – estariam dispensados da pena eterna! Outros ainda afirmaram que nem os católicos, nem os hereges a que se conferisse o Sacramento do Batismo, padeceriam as torturas eternas. Há outros que, indo mais longe ainda, conceberam que todos os homens – fossem cristãos, judeus ou pagãos – seriam salvos no Julgamento Final, quer pelos próprios méritos, quer pela intercessão e sufrágios de outrem. Já chegaram a existir pessoas que prometeram a esperança do perdão e a salvação eterna não só aos homens, mas até aos demônios do inferno! Quem mais seria capaz de baralhar nestas pessoas o senso de compaixão e causar nelas a adesão a opiniões tão insensatas sobre as torturas do inferno, senão o amaldiçoado amor-próprio? Assim sendo, não nos deve espantar que o amor-próprio atualmente dissemine tais idéias entre indivíduos que só com lentidão e dificuldade compreendem que o perigo das insuportáveis torturas eternas também pairam sobre elas. Deveras, raciocina e diz entre si essa gente tola: “É claro que Deus não me teria resgatado a um preço tão alto, nem padecido tantos males aqui na terra, se Ele planejasse me jogar eternamente na masmorra, por causa duma simples blasfêmia ou outro crime qualquer!”
Em verdade, caríssimos irmãos, devemos nos insurgir contra essa opinião falsa e perniciosa e expor os frágeis fundamentos sobre que está assentada. Digamos que o nosso rei venha a se afeiçoar de certo homem obscuro, regalá-lo com cargos públicos e enfim alçá-lo ao governo duma bela e aprestada cidadela do seu império. Agora imaginemos que este tal conspire com inimigos contra o seu rei e lhes entregue a cidadela confiada aos cuidados dele. Se fosse o caso de que no curso dos acontecimentos esse homem fosse capturado e levado à presença do rei, que pensais que faria com ele o rei? O fato de que um dia o rei tivesse afeição pelo traidor lhe impediria de pronunciar as penalidades estabelecidas para a traição? Certamente, as penas seriam atrozes, e tanto mais quanto maiores os precedentes benefícios conferidos. Assim é conosco. Embora Deus nos tenha amado com amor sumo, enviado o Seu Filho até nós, disposto que Ele sofreria e padeceria muitas agonias para a nossa libertação – apesar de tudo isso, se desertássemos para o campo do inimigo e entregássemos as cidadelas da alma aos demônios, Ele ainda nos puniria com tormentos eternos.
Há alguém que ainda não ouviu a história do patriarca José? Venderam-lhe os seus irmãos como escravo, e quando lhe conduziram ao Egito, lá o comprou o mordomo de Faraó, que passou a lhe querer bem, nomeou-o supervisor de toda a sua casa e lhe confiou a administração de todos os negócios; porém, mal suspeitara que José houvesse seduzido a sua esposa e tivesse adulterado com ela, não se contentara em lhe arrancar a dignidade da prefeitura da casa, mas o mandou lançar no mais pestilento dos calabouços.
Que dizer dos anjos condenados? Não fora o Príncipe dos Demônios outrora o Príncipe dos Anjos? E como foi! Segundo ensinava São Gregório Magno, e bem antes dele Tertuliano, além de muitos outros escritores eclesiásticos, era ele o mais nobre e principal dos anjos, tanto assim que o grau da sua preeminência entre as obras de Deus passou a ser o de sua humilhação, desgraça e degradação. Donde na Sagrada Escritura é chamado de “Lúcifer” (Is 14.12), “O principal entre as obras de Deus” (Jó 40, 14), “o selo da semelhança (de Deus), cheio de sabedoria e perfeito na beleza.” (Ez 28, 13). Dele ainda Ezequiel: “teu vestido estava ornado de toda casta de pedras preciosas.” (Ex 28, 13). E ainda: “No jardim de Deus não havia cedros mais altos do que ele.” (Ez 31, 8). E igualmente: “tiveram dele emulação todas as árvores deliciosas que havia no jardim de Deus.” (Ez 31, 9).
Então, se o maior e o mais sábio e eminente dos anjos foi expulso do Paraíso, em razão dum único pecado, e arremessado no abismo, que há de acontecer conosco, que nos apegamos ao lodo dos inúmeros pecados, e nos indulgenciamos na benevolência e bondade de Deus? Como é possível fazer objeções a isso, se Deus afligiu não apenas os anjos mas até ao Seu Filho por causa dos pecados? Meus caros, Deus ama ao Seu Filho verdadeiro e dileto acima de tudo e, ainda assim, quando Ele carregou nos ombros todos os pecados e manifestou o desejo de satisfazer a ofensa deles, Deus o esmagou e, como apregoava o profeta Isaías, consumiu-o “com sofrimentos” (Is 53, 10). Deus O destinou para aflições e torturas que nunca nenhum ser humano provara nesta terra. Grande e implacável se mostrou o ódio de Deus contra o pecado, quando o Filho provou em Si a vingança severíssima dos crimes alheios! Mas “se isto se faz no lenho verde, que se fará no seco?” (Lc 23, 31). Nosso Senhor foi adornado com as primícias da salvação e iluminado com toda a graça e beleza espiritual. Se a raiva de Deus, incitada por crimes alheios, O vergastou com a chama da Paixão, de modo a reduzi-l’O ao “último dos homens, um homem de dores” (Is 53, 3), que se fará com a madeira seca, i. e., com os seres humanos desprovidos do orvalho da graça e da virtude? Ao que irá reduzi-los a fornalha do inferno, inflamada por tantos crimes, ultrajes e transgressões? Porque as coisas são assim, meus caros, não devemos sequer pensar em duvidar de que os castigos do inferno são insuportáveis e inenarráveis.
Entretanto, parece que escuto uma voz se levantar e objetar-me: “Já alguém retornou do inferno e confirmou que tais coisas são verdade?”. Ah, pergunta tola! Tanto mais temível é esse calabouço, justamente porque ninguém jamais conseguiu sair de lá! Se alguém retornasse do inferno, todos depositariam esperança em tal retorno. Como de lá nunca ninguém voltou, isso só prova que o inferno é um poço profundíssimo, donde não há saída possível.
Este bom-senso, se não tivéssemos outras fontes, aprenderíamos até nas fábulas. Por certo, narra a fábula que a raposa viu muitas criaturas entrando no covil do leão, mas nenhuma delas saindo de lá. Não se perguntou a raposa: “Ninguém vem para fora anunciar os riscos que existem no covil do leão; logo, não haverá nenhum risco.” A fábula, dizia eu, não nos conta que ela tenha dito isso, mas antes, ao contrário, conta-nos que a raposa se atemorizou ainda mais de aproximar-se do covil do leão pelo só motivo de que vira muitos entrarem e nenhum sair. Precisamos de mais confirmações? O poder divino já restaurou a vida a muitos mortos, que com palavras e atos nos referiram a magnitude das penas do inferno e, demais a mais, afiançaram de que elas excedem em muito qualquer coisa imaginável. São Gregório Magno, São João Clímaco e vários outros santos e doutores documentaram tais casos.
Deixai-me agora retornar ao ponto crucial do meu sermão. Em todo pecado existem duas malícias: uma é voltar as costas ao Sumo Bem Incriado, e a outra é voltar-se ao miserável bem criado [se comparado ao primeiro]. Semelhantemente, existem duas tristezas na pena correspondente à falta: a primeira se origina da perda da beatitude eterna, e a segunda das torturas e tormentos que assolarão igualmente a alma e o corpo. Chamam os teólogos a essas duas torturas de pena do dano e pena dos sentidos.
Falemos em primeiro lugar da perda da felicidade, que é das penas a mais rigorosa. Caríssimos, não é possível existir nenhuma punição inventada ou até imaginada tão monstruosa que não seja superada pela perda do Sumo Bem. O calor do fogo infligido ao corpo provoca dores insuportáveis, mas só lesiona a boa constituição e o temperamento do corpo, que no todo é um bem mediano e modesto. Quão brutal, então, será a tortura que há de afastar e separar [as almas] de Deus, cuja simples face é um bem tão incomensurável que santifica e contenta qualquer pessoa num instante! Entre os romanos [considerava-se] que dentre todas as punições a pior era de longe o exílio – i. e., quando obrigavam o cidadão, por causa de grandes crimes, a deixar a cidade, sendo assim despojado da convivência dos seus compatrícios, e a viver entre os bárbaros em ilhas ainda meio selvagens. Por isso afirmava Cícero, quando o exilaram, que havia ingressado como que num mundo novo; chegou ele a espantar-se e, por assim dizer, a confundir Céus e terra: “Contemplai a beleza da Itália!, exclamava ele, contemplai a celebridade de suas cidades e a delícia de seus territórios! Contemplai os prados, os frutos e a beleza de Roma! Contemplai a benevolência dos cidadãos e a dignidade e a majestade da República!” Que pesar imenso sentirá então quem for privado dos palácios do Paraíso, da Comunhão dos Santos, das regiões venturosas onde reinam a paz, o amor, a alegria e a tranqüilidade, e ressoa o hino de louvor e o júbilo, e se entoa o aleluia eterno e, acima de tudo, onde mora a Luz Puríssima, cuja face santifica e contenta quem a contempla! Que pesar imenso sentirá então quem for compelido a habitar para todo o sempre em calabouços infectos e em sentinas repletas de toda a imundície, “onde habita a sombra da morte, onde não há nenhuma ordem, mas um sempiterno horror” (Jó 10, 22), onde só se ouvirá a voz dos lamuriantes e blasfemadores, onde só se escutará o clangor dos malhos e o estalo dos açoites, na companhia da hoste dos demônios, monstruosos e bárbaros, e da escória dos pecadores!
Mas bem sei o que dirão os amantes desta vida presente: “Já não nos falta, nesta vida presente, tudo quanto mencionaste? Quem de nós reside em palácios celestiais? Quem de nós contempla luz puríssima? Mas nos entristece ou atormenta a falta disso? Pelo contrário: se nos fosse permitido sempre residir neste corpo e gozar dos bens da vida presente, pensaríamos ainda de leve nos bens do Paraíso?”
Caríssimos irmãos, esta é uma ilusão costumeira dos ignorantes, os quais não concebem que, após a morte, estimaremos as coisas que agora possuímos com outros olhos e outras idéias. São João Crisóstomo expressou essa mudança com estas belas palavras: “Quem arde no inferno perde para sempre o Reino dos Céus, e a perda do Reino é certamente uma pena maior que o tormento das chamas. Ora, sei que muitos temem o inferno, e sei também que a perda da glória celestial é uma punição muito mais amarga que o próprio inferno. Não é de espantar que eu não consiga descrever tais punições neste sermão, pois, assim como desconhecemos a bem-aventurança das recompensas divinas, naturalmente ignoramos de todo quais os efeitos de sua perda. Não obstante, certificar-nos-emos da magnitude desta perda, quando a experiência começar a nos instruir. Só então abriremos os olhos e retiraremos o véu; só então que os ímpios conhecerão – para a sua profunda aflição – qual é a diferença entre o Sumo e Eterno Bem e os bens frágeis e perecíveis deste mundo mortal”.
Para fins de ilustração deste tópico, tenham a bondade de aceitar a seguinte comparação, que foi a melhor que conseguimos. Existia certa vez um rei poderosíssimo, que não tinha filhos que o sucedessem na administração do reino. Um dia ele ouviu falar dum menino airoso e agradável de aparência, mas de origem humilde e meios parcos. Ordenou o rei que lhe trouxessem o menino, cuja instrução a partir daí foi confiada a tutores. Estipulou o rei que, se o menino quando chegasse à maturidade fosse educado, sábio, ajuizado e adornado de bons modos e de todas as virtudes, sendo assim pessoa conveniente para assumir a direção do estado, ele haveria de ser proclamado rei e soberano legítimo, instalado no trono real com cetro e diadema, e incumbido do governo de todo o reino; mas, ao contrário, se se transformasse num homem cruel, seria atado em correntes e condenado às galés, com toda a ignomínia e a desgraça da penalidade. Os ministros reais deram cumprimento imediato às ordens do rei: convocaram o menino e o confiaram aos tutores, que usaram de muita diligência ao educá-lo nas letras e costumes. Contudo, o menino deixou-se levar pelos outros meninos, sem notar os benefícios de que gozava. Mal o professor punha os pés fora da casa, o menino escondia o livro no canto mais escuro do quarto e vagabundeava o dia inteiro, construindo casinhas de cacos de vaso e brincando de piques. Já perto do pôr do sol o professor retornou e lhe fez uma sabatina das lições, mas o menino sequer se recordava onde pusera o livro. Irado o professor sovou o menino e apisoou as casinhas de caco; disse enfim ao pupilo: “Oh, se soubesses o que desperdiças com essas tuas criancices! Talvez aprendas mais tarde, mas só quando tal conhecimento já te não servir de nada.” Ora o menino, como menino que era, chorou com o castigo e a repreensão do professor, mas lamentou ainda mais as casinhas quebradas. Nem as palavras do professor, nem a vontade e o testamento do rei lhe pesaram no espírito. Decerto, no dia seguinte ele esqueceria a surra e a admoestação recebidas, e novamente construiria casinhas de cacos e voltaria aos jogos infantis. Quando o menino crescesse, os testamenteiros do rei se deparariam com uma pessoa rude e ignorante, e de modo geral incapacitada para governar o reino. Leriam para ele o testamento do rei, e então o poriam a ferros e o enviariam às galés na pior das degradações. Ora que pensais que mais lhe penalizou com lágrimas e amargura: a labuta das galés ou a perda do reino? Talvez escuteis de mim que ele lamentou amargamente a condenação às galés, porque não sou capaz de conceber um estado de vida mais desgraçado nesta terra. Certamente, a única esperança de quem foi sentenciado às galés é fartar-se de açoites. No entanto, tenho plena certeza de que o seu coração se angustiou e afligiu muito mais quando o despojaram da honra de governar o maior e mais suntuoso dos reinos, pois existe alguma coisa mais miserável e desgraçada para se dizer ou pensar do que a notícia de alguém que perdeu o mais esplêndido e nobre dos reinos, por causa de ninharias infantis?
Caríssimos irmãos, para quem de nós não se aplica essa parábola? Enquanto vivemos na terra, somos crianças. Não conhecemos nada de elevado, nem contemplamos nada de sublime. Estamos todos ocupados com assuntos burlescos e ninharias infantis. Quão ansiosos somos em amontoar casas de lama! Em que diferem elas das casas de cacos dos meninos, salvo serem algo maiores em tamanho? Assim é o entusiasmo dos mercadores, as ambições dos governadores e dos cortesãos, as obras dos arquitetos, as contendas dos reis e dos príncipes por cidades, províncias e reinos; assim também os processos judiciais dos cidadãos em torno de posses, limites e cursos d’água. Isso mesmo: são tudo ninharias! São ninharias só um pouquinho maiores que as das crianças, e por essa razão, escreve Santo Agostinho, são chamadas de negócios. Apesar de tudo quanto mencionei serem ninharias, se comparadas aos negócios da vida futura, não por isso elas ainda ocupam a maioria esmagadora das pessoas, de forma que não consigam dedicar um pensamento sequer aos negócios do reino celeste, que é único negócio sério e verdadeiro [desta vida]. E tudo acontece sob a vigilância do Professor Celeste, que se encarregou de nossa instrução; talvez ele nos encontre merecedores de tomar posse do Reino dos Céus. Ele lamenta continuamente nossa inconstância e deplora: “Até quando amareis (à maneira de) crianças, a infância? (Até quando é que) os insensatos cobiçarão as coisas que lhe são nocivas?” (Pr 1, 22). “Por que amais a vaidade e buscais a mentira?” (Sl 4, 3). Então, com Seu pé Ele destrói nossas casinhas de cacos.
Deus confunde amiúde os nossos desejos. O mercador espera o navio cargueiro abarrotado de mercadorias do Oriente, e eis que escuta a notícia de que a embarcação naufragou e a mercadoria submergiu no oceano! Já outros depositam toda a esperança no filho e confiam que em breve ele há de se tornar doutor em teologia, canonista, até Papa! Constroem sobre ele as torres altaneiras de seus planos, mas eis que chega a notícia de que uma leve febre acometeu o filho, e que depois de alguns dias o filho chegou ao termo da vida! Outro homem é convidado a um casamento, a um elegante repasto, a uma ilustre recepção. Ele está pronto para ir, mas eis que fica indisposto e, para que se consume a cura, deve abster-se de vinho e comida!
Quem é esse, pergunto-vos, quem é esse que faz isso conosco? Quem é esse que frustra os pensamentos e conselhos dos homens? Caríssimos irmãos, quem faz tais coisas é o nosso Professor, e as faz não porque nos odeie, mas porque nos ama com ternura! Porquanto é Seu desejo limpar os obstáculos que nos impedem de avançar no caminho do Paraíso que Ele nos preparou. Deveras, quais crianças tolas, suportamos contrariados a destruição das nossas casinhas de cacos, a perda dos bens da terra e outros castigos do Senhor. E eis que de novo amontamos nossos caquinhos, mas não dedicamos nenhum pensamento ao Reino dos Céus, que está nos chamando quando nos flagela.
Mas virá o tempo, acreditai-me, virá o tempo em que teremos de passar pelos portões da morte para o outro mundo, mundo onde reconheceremos num instante que já somos homens adultos; neste novo lugar não é possível encontrar crianças. A passagem desta para a outra vida, pelo simples fato de ser passagem, já nos torna a todos nós homens crescidos! Ouviremos então a seguinte declaração: “O Reino dos Céus e as suas lindas moradas estavam sendo preparadas para ti. Se ao menos tivesses dado ouvidos à verdadeira sabedoria! Mas porque preferiste às tolices infantis, e desprezaste a voz e as admoestações de teu professor, serás lançado com ignomínia e vergonha nas trevas exteriores, onde ‘haverá choro e ranger de dentes’ [Mt 25, 30]”, e outras torturas e punições eternas.
Caríssimos irmãos, que diremos então? Que pensaremos dessas casinhas de cacos, dessas honrarias ridículas, desses negócios infantis, quando percebermos com a clareza dos raios do sol que por causa de sombras e sonhos fomos persuadidos a abrir mão de bens duma bondade inexplicável, bens realmente duráveis e imperecíveis? Oh, com que pesar o espírito do homem pecador irá lamentar: “De que nos aproveitou a soberba? De que nos serviu a vã ostentação das riquezas? [Sb 5, 8]. De que nos aproveitou correr terras e oceanos, a fim de juntar riquezas? De que nos aproveitou esgotar-nos de tanto trabalhar, a fim de sustentar nosso fausto no palácio dos príncipes? De que nos aproveitou empregar todas as finezas da arte para cortejar as honrarias, i. e., para cortejar terra e cinzas, a fim de alcançar as honrarias por nós mesmos? De que nos aproveitou atormentar a cabeça e gastar noites a fio em estudos, a fim de compreender os autores mais obscuros e deles captar algum raio de luz? Portanto, vede que tudo passa como sombra, ao passo que ignoramos a verdadeira honraria, a verdadeira riqueza, o verdadeiro prazer, a verdadeira sabedoria da verdade e o Eterno e Soberano Bem. E uma vez perdidas, já não há esperança de recuperá-las!” Caríssimos, há de ser tão grande o pesar de espírito que, apesar de todos os condenados saberem perfeitamente que os portões da beatitude eterna estão encerrados para eles e um imenso precipício se cavou entre eles e a morada dos bem-aventurados, a força do desejo natural os compelirá a implorar: “Senhor, Senhor, abre-nos” (Mt 25, 11).
Por isso, o sapientíssimo doutor São João Crisóstomo afirma: “Certamente o inferno é algo de intolerável. Quem desconhece que a pena do inferno também é horrível?” Ora, ainda que alguém postulasse a existência de milhares de infernos, não seria capaz de dizer nada que transmitisse com exatidão o que é ser excluído das honras da glória bem-aventurada do Paraíso, o que é ser odiado por Cristo e o que é ouvir Dele estas palavras: “Nunca vos conheci” (Mt 7, 23), sendo assim condenado porque negara comida e bebida a quem tinha fome e sede. Melhor seria agüentar a descarga de milhares de raios, do que ver aquele rosto cheio de gentileza e piedade desviar-se de nós, e aqueles olhos cheios de tranqüilidade incapazes de suportar a visão de nossa presença. A perda do Soberano Bem acarreta [também] a perda de todas as coisas boas. Que isso significa? Apenas que os olhos dos condenados nunca mais apreciarão belas paisagens, nem os ouvidos escutarão cantos suaves, nem o paladar provará sabores aprazíveis, nem o tato sentirá objetos macios. Uma vez excluído do consórcio com Deus, o homem ficará de uma vez para sempre mergulhado num oceano de sofrimentos e calamidades, sem esperanças de fuga.
Deixai-me terminar neste ponto o que tenho para contar sobre o Soberano Bem e prosseguir agora discorrendo sobre aquela tortura que os teólogos denominaram pena dos sentidos. Denominaram-na assim porque ela deve incidir sobre os sentidos e as forças, exteriores e interiores, no corpo e na alma. Comecemos com a tortura dos sentidos interiores.
Existem quatro faculdades espirituais, pertinentes ao assunto de que tratamos, que no inferno padecerão tormentos espantosos. A primeira dessas faculdades, os gregos a chamavam de “fantasia”, mas nós a chamamos de “pensamento”; a segunda é a memória; a terceira, a inteligência; e a quarta, a vontade.
A faculdade do pensamento padecerá de certos tormentos gravíssimos e opressivos, que o corpo e o espírito terão de aturar. Se, pois, nesta vida uma dor intensa pode subjugar e reprimir o pensamento dum homem a ponto de ele não conseguir parar de pensar nela, embora o queira com ardor, o que as penas do inferno – em comparação, muito maiores – farão às almas? Assim, o pensamento aguçará as dores, e as dores excitarão o pensamento; e ambos se estimularão mutuamente, de modo que as almas ou os corpos dos condenados não repousarão jamais. Essas dores serão objeto de perpétua contemplação de quem poderia ter meditado frutuosamente nestas coisas, mas se recusou a pô-las em prática, ou de quem despreza nesta terra utilizar seus pensamentos mais profícuos como rédeas contra a luxúria. Na vida futura, tais pensamentos serão os cruéis verdugos a atormentá-lo.
Também a memória será uma pesada cruz para as almas condenadas, quando ela lhes patentear a felicidade dos velhos tempos e os prazeres passados, pelo bem dos quais vieram a se abismar naqueles tormentos. Só aí conhecerão o verdadeiro sabor do sal generoso e da pimenta picante que se esparziam nos banquetes, que outrora lhes eram tão aprazíveis. Mas muito maior sofrimento haverá quando elas compararem a brevidade dos prazeres passados com a eternidade das tristezas presentes; quem poderia topar com um matemático tão erudito que fosse capaz de nos calcular a extensão do abismo que separa o tempo e a eternidade? Por isso, quantos brados não irão lançar? Quantos suspiros não irão arrancar do imo peito quando, ao meditarem com cuidado, descobrirem que os prazeres, que mal duram um instante, passaram qual sombra ou sonho, enquanto a tristeza não terá fim nem termo!
A inteligência, porque é a faculdade mais eminente e perspicaz, padecerá uma cruz mais intolerável, pois nesta faculdade habitará o verme com que a Sagrada Escritura ameaça tão amiúde os pecadores: “O seu bicho não morrerá, e o seu fogo não se extinguirá” (Is 66, 24). Assim como o verme brota da madeira e rói o mesmo pau donde foi gerado, assim o verme nasce do pecado e trava com o pecado uma guerra eterna. Este verme nada mais é que a penitência perpétua, cheia de cólera e desespero, cheia da dor que se origina dos pecados e crava as unhas nas almas dos condenados, tão logo percebam que perderam o Reino dos Céus e atraíram para si torturas indescritíveis por causa de seus pecados. Lemos no livro do Gênese que certa vez os egípcios gozaram sete anos de tanta fertilidade e abundância que abarrotaram os silos onde armazenavam os grãos. A estes sete anos se seguiram outros sete de tanta esterilidade e penúria que os egípcios foram obrigados a trocar dinheiro, campos, gado e até a si mesmos por grãos. Quem poderia descrever o profundo arrependimento que sentiram nesta época, ao se darem conta da negligência em armazenar os grãos no tempo em que o frumento transbordava dos celeiros? Quem poderia descrever sua aflição, porque não acumularam para o tempo da futura penúria, quando o diligente armazenamento de grãos não apenas os livraria da pobreza e da fome, mas também torná-los-ia muitíssimo mais ricos.
Caríssimos irmãos, o verme dos condenados é de tal natureza, que não descansa nem de dia nem de noite, pois rói, mastiga, devora e se alimenta das entranhas dos desgraçados pela eternidade afora. E os desgraçados tampouco esquecem a oportunidade esplêndida, que tiveram cá nesta terra, de evitar essas penalidades a um custo baixo, e de assegurar o Reino dos Céus por um preço módico. Nessas circunstâncias, injuriar-se-ão uns aos outros para sempre, e dirão: “Ai de nós! O Reino dos Céus se ofereceu a nós, e se ofereceu grátis. Mais ainda, quase que implorou para que o recebêssemos, mas recusamos. Se nós nos tivéssemos arrependido dos pecados e confessado, tudo haveria de ser perdoado! Por acaso, eram suplícios colossais a penitência e a confissão? Se implorássemos misericórdia, ser-nos-ia dada quase de imediato! Se implorássemos pela bondade divina, ei-la ali a nosso dispor! Ora, se oferecêssemos um copo de água fria em honra de Deus, lograríamos encontrar a vida eterna! Mas agora vamos jejuar para sempre, vamos ser afligidos para sempre – e não haverá frutos disso. Oh, precioso tempo, que já passaste e nunca retornará, eternamente! Que nos oferece o mundo para que ousemos provocar a terrível cólera de Deus? Sim, se nos oferecessem todos os reinos e impérios do mundo, e se nos afiançassem que deles gozaríamos por milhares de anos, que seria isso tudo, comparado à menor destas penas eternas? Mas o mundo não nos oferece reinos, nem impérios, nem duração certa, mas a mera sombra dum prazer miserando. E é por isso que nos obrigamos a suportar o fardo das torturas eternas? Oh, por que somos tão tolos e tão cegos? Quem nos roubou o entendimento? Quem nos cerrou os olhos e entupiu os ouvidos? Quem nos traz tão enfeitiçados, que não refletimos sobre essas torturas, nem dedicamos um pensamento a esse novíssimo? Quem nos traz tão enfeitiçados, que nunca nos precavemos contra tal pobreza, nem atentamos naqueles que nos deram bom conselho?” Se a faculdade da inteligência há de sofrer tudo isso, que diremos da vontade, que é a causa principal dos pecados?
A vontade sofrerá a tortura duma inveja furiosa, que afrontará a glória e a honra de todos os santos e do próprio Deus; pois, como canta o salmista: “Ve-lo-á o pecador, e se indignará; rangerá os dentes, e se consumirá” (Sl 111, 10). Os danados também não possuirão aquilo que desejam, pois “o desejo dos pecadores perecerá” (Sl 111, 10). Daí levantar-se-á na vontade dos pecadores um ódio implacável contra Deus, e do ódio por sua vez originar-se-ão maldições horrendas e blasfêmias inauditas, que nunca hão de sair de seus lábios e bocas; não terão eles a menor esperança de salvação redentora, mas saberão com toda a certeza que nunca voltarão às graças de Deus, e que as torturas nunca hão de findar ou mitigar-se; compreenderão que é Deus quem os mantém atados em cadeias, por assim dizer, às penas eternas, e que é Ele quem – desde o alto – ateia sobre eles o fogo, e que é Ele quem atiça as fornalhas do inferno com seu hálito poderoso. Os réprobos ficarão encolerizados como cães raivosos, latindo blasfêmias e injúrias sem cessar; amaldiçoarão a Deus porque os criou e os condenou à morte; amaldiçoarão a Deus porque Ele os matará para sempre, não consentindo em que morram; amaldiçoarão Seu poder porque os tortura imensamente; amaldiçoarão Sua sabedoria porque nenhuma infração escapa dela; amaldiçoarão Sua bondade, porque se transformou para eles em ferocidade e condenação; amaldiçoarão Sua Cruz e o Sangue derramado sobre eles, porque os beneficiou muitíssimo; amaldiçoarão a Rainha dos Céus, porque ela foi para muitos pecadores a Porta da Vida e da Misericórdia, mas para eles se converteu agora em cruel madrasta. Enfim, amaldiçoarão todos os santos, porque em meio aos tormentos observá-los-ão regozijando e exultando em triunfo. Essas maldições serão a eterna sinfonia de seus ouvidos, suas matinas e vésperas, os salmos e cânticos entoados no templo tenebroso dos demônios, onde o incenso será de enxofre, e os círios poços donde sobem fumo e fogo e, em vez das harpas e órgãos, rangido de correntes e rumor de malhos e chibatas.
Verdadeiramente, se a simples menção de coisas tão horrendas incute terror e impõe respeito, que será então aturar realmente, naquele lugar de eternidade, as coisas que se escutaram e disseram? Que devemos fazer para que não sejamos compelidos a participar dessas solenidades tenebrosas?
Recorda o profeta Jeremias que o Senhor lhe mostrou dois cestos cheios de figos. Um deles continha figos bons, muito bons mesmo; o outro continha figos ruins, muito ruins mesmo, que não se poderiam de jeito nenhum comer. A não ser que eu esteja enganado, o profeta nos está ensinando que os dois tipos de figo são figura dos dois tipos de pessoas que haverá após esta vida. Por isso, todos chegaremos àquele estado que é bom, muito bom mesmo – ou que é ruim, muito ruim mesmo. Não há estado intermédio entre o estado dos bem-aventurados – que é bom, muito bom mesmo – e o dos condenados – que é ruim, muito ruim mesmo, porquanto o fogo do Purgatório, que alguns consideram um estado intermédio, arde até um tempo certo e definido, do que se depreende que todas as almas que agora estão lá ou que lá estarão [no futuro] serão partícipes da glória e felicidade eterna, alcançando aquele estado que é bom, muito bom mesmo. E com a ajuda de Deus lhes apresentaremos no próximo sermão o quão bom, muito bom mesmo, será o estado dos bem-aventurados; por sua vez, o estado dos condenados, que é ruim, muito ruim mesmo, ficará claro com o que já dissemos e ainda resta por dizer.
Assim manifestamos, com toda a nossa habilidade, que a tristeza decorrente da perda do bem supremo e que atormenta as faculdades da alma interior, é fortíssima e indescritível. Demonstraremos agora que as penas e torturas infernais que incidirão nos sentidos externos dos condenados são as mais atrozes de todas.
A recompensa dos bem-aventurados não é um bem particular em especial, separado e distinto doutros bens, mas um bem generalizado e comum, que contém em si todos os bens, prazeres e delícias. Assim a define Boécio: “Estado de perfeição, que consiste em possuir todos os bens.” De modo análogo, a pena dos condenados não é um pesar específico, que afetasse a cabeça ou os rins, os dentes ou os olhos, mas um mal generalizado que dissemina todos os sofrimentos pelos membros, articulações e sentidos do corpo. Nesta terra nunca provamos do sofrimento generalizado dos condenados, bem como nunca provamos o bem generalizado dos bem-aventurados, porque uma pessoa com dor nos olhos não sofre desta feita dos dentes, nem com dor de dentes sofre por isso dos olhos; esse padrão se aplica a todas as demais dores corporais. Porém, no inferno a dor atrocíssima há de ser uma só e simultânea, e acometerá rins e peito, e cada articulação, centro nervoso, medula, sentido e faculdade do corpo. Assim como o pecador usou os membros para ofender a Deus, assim não haverá parte, ou antes, não haverá a menor parte sua que não tenha torturador e algoz específico. Pergunto-vos: Que sentiria aquele de nós que, durante apenas um dia, fosse submetido à tortura geral dessa pena? Qual seria para ele a duração desse dia? Não lhe pareceria que cada momento dura mais que vários meses, e que cada hora, mais que vários anos? Sem dúvida, caríssimos, se víssemos na rua um cão sofrendo essa dor generalizada, não duvido de que ficaríamos comovidíssimos. Se for possível dalgum modo descrevê-las, eis aí a pena e eis a dor com que serão torturados os seres humanos condenados ao inferno, não apenas por um só dia, mas pelos séculos dos séculos. Mas procedamos a partir daqui a uma investigação mais atenta e diligente das várias espécies de penalidades.
Os olhos, porque observam todas as coisas, com muita justiça se oferecem como os primeiros à nossa consideração. Estes nossos olhos, aqui e agora, não os sacia o prazer: eles fitam avidamente as belas formas; quais depositários de curiosidades, voam ligeiros para assistir a espetáculos mesquinhos e ridículos; quais mulherengos impuros, levam amiúde imagens vulgares para a alcova do coração. A única coisa que não conseguem fitar é o infortúnio catastrófico dos pobres e miseráveis. Qual a cruz que há de torturar os olhos no inferno? Decerto, a primeira coisa que lhes aparecerá são as formas horrendas dos demônios: olhar um demônio é experiência tão horrível que dizem que algumas pessoas perderam a sanidade e outras a vida. Comentando o Salmo IX, conta São Bernardo de um de seus monges a quem certa noite lhe visitou uma figura pavorosa. Durante todo o dia seguinte, esse monge quase perdeu o tino por causa da visita, imaginando-se sempre em perigo. Até que, numa hora em que calhou de todos os monges estarem dormindo, ele deu um tal grito que os acordou a todos e os encheu de pavor. Cassiano, nas Colações, também relata que entre os antigos anacoretas [ermitões] às vezes assomava um temor tão forte do demônio – o qual fazia questão de lhes aparecer, mas sempre com formas horríveis – que ninguém tinha coragem de ficar só; tampouco os que compartilhavam celas ousavam dormir ao mesmo tempo: enquanto uns dormiam, outros faziam vigília, entoando salmos e hinos sem parar. Se neste mundo nosso os demônios podem reivindicar para si um poder tão grande sobre nós, e se aqui os tememos imensamente, que farão, pergunto-vos, que farão quando estiverem em seu próprio território, onde não precisam temer exorcismos, água benta, nem os méritos e as orações dos santos? Se eles vagueiam por aqui, donde são expelidos com tanta violência, que hão de fazer no país onde governam e dominam? Imaginem um homem andando pelo cemitério; se a mera suspeição da presença dos demônios o assaltasse, talvez fosse o suficiente para que ficasse de cabelos em pé e a voz se afogasse na garganta. Qual não será a confusão dos pecadores, quando naquele comum “Cemitério dos Condenados” encontrarem face a face com a multidão dos monstros, fantasmas e quimeras!
Além disso, que cruz os olhos dos condenados sofrerão, quando virem as suas esposas, pais e filhos nos mesmos tormentos! Hegesipo nos legou um relato da destruição de Jerusalém: Alexandre, filho de Hircano e capitão dos hebreus, quando quis infligir a algumas pessoas uma penalidade atrocíssima, ordenou a crucificação simultânea de oitenta prisioneiros na praça da cidade. Enquanto estivessem vivos, as esposas e filhos de cada um seriam cruelmente vergastados diante de seus olhos. Deste modo, os desgraçados padeceriam não uma mas muitas mortes. No inferno também não há de faltar essa punição: com imenso pesar, ali os filhos verão os seus pais e os pais verão os seus filhos, os maridos as suas esposas e as esposas os seus maridos; além disso, todos os que tiverem sido causa dos pecados de outrem, suportarão na companhia deles as torturas infernais!
Caríssimos irmãos, sei que nesta notável universidade [i. e., Lovaina, na Bélgica, onde se proferiu o sermão] a maioria dos moços – moços de fato modestos, pacatos, estudiosos e religiosos – está sendo cultivada e instruída. Estou ciente desse fato, em parte pelo que ouvi doutras pessoas, em parte pelo que observei em pessoa. Eu me regozijo imensamente com isso, e assim dou graças ao Senhor de todos nós. Mas o meu coração ficou muitíssimo contristado ao ouvir que, entre tantos moços direitos, existem corruptores e corrompidos, que circulam entre vós e assediam os simples de coração, seduzindo-os a freqüentar as bebedeiras, os bailes e outros estímulos à luxúria. Ai de vós, homens impuros, imitadores do diabo e flagelos da juventude! Ousais então invejar e roubar a dignidade dum bem tão excelente? Que hão de fazer quando, em meio à combustão das labaredas abrasadoras, virem-se na companhia daqueles a quem enganaram? Oh, quantas vezes não ireis repetir: “Morra o dia em que te vi pela primeira vez, morra o dia em que me empenhei em te manipular e enganar! Quando te jogava no vício da bebedeira e noutros crimes e escândalos, estava eu me jogando nestes tormentos!” Por sua vez, objetará o outro: “Morra o dia em que pela primeira vez te trouxe à minha companhia, ladrão e carrasco de minha alma; morra o dia em que pela primeira vez dei ouvidos aos teus discursos envenenados!” Eis o dueto e a sinfonia desses amaldiçoados, e tal sinfonia agora nos admoesta para que passemos dos olhos aos ouvidos.
Os ouvidos que outrora se deleitaram em canções licenciosas, regozijaram ao escutar infâmias e detrações contra vizinhos, ouviram indolentemente por horas a fio os mascates na praça pública, ao passo que se agastavam com um sermão de apenas uma hora na igreja – esses ouvidos, no inferno, só escutarão gemidos, urros, choros, contumélias, blasfêmias e maldições; pois, se no Reino dos Bem-Aventurados há de se entoar para sempre louvores divinos e aleluias melífluos, já no calabouço dos condenados há de ressoar para sempre gritos e blasfêmias; alguns desses hinos serão cantados no tom dos malhos e açoites.
Lembro-me de ter lido no livro Vida de Sula, de Plutarco, a seguinte história: certo dia esse cruel ditador ordenou se juntassem seis mil homens num pequeno círculo. Ao mesmo tempo, ordenou que o Senado deveria reunir-se num templo não muito distante dali. Daí então instruiu os soldados que, enquanto estivesse discursando, massacrassem os seis mil homens o mais rápido possível. Assim, quando Sula começou o discurso ao Senado, ouvia-se o estrépito e o fragor contínuo de inúmeras espadas, cujos sons se misturavam aos gritos e gemidos dos massacrados. O ditador advertiu os senadores para que escutassem os procedimentos na câmara, e não fossem curiosos nem prestassem atenção ao que acontecia do lado de fora. Entretanto, como todos os senadores ficassem apavorados e fora de si, mal puderam concentrar-se no discurso. Daqui é possível conjeturar qual “sinfonia” e quais “órgãos e harpas” escutaremos, se nos fosse permitido encostar o ouvido nos portais do inferno, onde não seis mil porém um sem conto de pessoas que choram, gritam e vociferam, serão massacradas, flageladas e golpeadas para sempre.
Que diremos sobre o sentido do olfato? Não existe sentina mais imunda, nem esgoto mais pestífero que se compare ao lago do inferno, onde se há de lançar toda a imundícia do mundo. São Vítor Africano descreve os tormentos que os vândalos arianos infligiram aos santos mártires, e assegura que um dos piores sofrimentos era o fedor da masmorra. A descrição do santo se refere aos Quatro Mil Novecentos e Noventa e Seis Mártires que juntos foram torturados no mesmo calabouço; ele relata que os vândalos jogaram literalmente os confessores de Cristo uns sobre os outros no recinto estreito do cárcere, como uma fieira de caranguejos ou, para falarmos com mais propriedade, como preciosos grãos de milho. Naquele amontoamento não havia lugar retirado para que alguém atendesse às necessidades da natureza. Premidos pela necessidade, deixavam as fezes e a urina num só canto, de forma que o fedor e o nojo superou todo o sortimento das punições. Os vândalos, por sua vez, sofreram severa punição na mão dos mouros, que eclipsaram aquela raça: os mouros conduziram publicamente ao mesmo calabouço os vândalos que, mal entrando lá, atolaram-se até os joelhos numa verdadeira voragem de lama. Assim os vândalos provaram na carne o cumprimento da profecia de Jeremias: “Os que se nutriam ente púrpuras, abraçaram o esterco” (Lm 4.5).
Meus caros, comparai a pena dos mártires com as torturas dos condenados. Havia poucas pessoas nas masmorras onde prenderam os confessores de Cristo; já nas masmorras do inferno haverá muitíssimas pessoas. Naquela, apenas a imundície humana exalava fedor; nesta, reunir-se-á em montão a imundície, o excremento, a carniça, a impureza e o fartum do mundo inteiro. Então, se o fedor do calabouço terrestre superou toda casta de punições, quem haverá de suportar o fedor do inferno, incomparavelmente mais impetuoso e horrendo? Quem consegue ler sem horror sobre aquela nova variedade de tormento que, seja verdade ou ficção, descreve o poeta latino ao cantar:
Vivos ligava a mortos, contrapondo
Mãos a mãos (que tormento!) e boca a boca,
E em triste abraço e pútrida sangueira
Nesta agonia longa os acabava.
Virgílio, Eneida.
Livro 8, linhas 485-488.
(Tradução de Manuel Odorico Mendes).
Que diremos perante esse quadro? Que um homem vivo e saudável será atado ao cadáver frio; que o desgraçado definhará, porque aspirará o abominável odor, a bicharia e o chorume que porejam do corpo; que um homem vivo há de ser assassinado por um homem morto – e quem não se aterraria apenas ao escutar isso, e quanto mais quem o testemunhasse? Mas se tais métodos de punição nos parecem severos e monstruosos – como de fato o são – que dizer do fedor do inferno, que se levantará das pilhas de corpos putrefatos?
Mas se o sentido do olfato sofre tais punições, ficaria imune à pena o sentido do paladar, que de praxe é causa de crimes muito mais numerosos e graves? Meus caros, os beberrões e os glutões impuros não hão de conhecer – e conhecer de fato, pela primeira vez – a que custo adquiriram pratos e licores delicados, cujo preço de compra nesta terra estimavam de pouquíssima monta? Verdadeiramente, o sentido do paladar será torturado com fomes e sedes indescritíveis. Quem hoje não suporta um jejum de dois dias – e acha que a natureza não estará saciada, a não ser que beba ao ponto de se intoxicar e vomitar – há de ser torturado com fome e sede tais, que é impossível conceber ou excogitar pena mais dolorosa. Quem não se comoveria com as palavras do homem rico do Evangelho: “Pai Abraão, compadece-te de mim, e manda Lázaro que molhe em água a ponta do seu dedo, para refrescar a minha língua, pois sou atormentado nesta chama” (Lc 16, 24). Que pobreza maior que essa poder-se-ia imaginar? Que coisa mais insignificante poderia desejar um rico, que outrora “se banqueteava esplendidamente todos os dias” (Lc 16, 19)? Ele, que não se satisfazia nem com vinhos preciosíssimos, não busca sequer um copo d’água, nem implora a Lázaro – o que é mais incrível – que mergulhe a mão inteira n’água: pede tão-somente que Lázaro umedeça a pontinha do dedo em água – e nem isso lhe é concedido! Deram-nos a conhecer essas coisas, para que saibamos que os efeitos da sentença de excomunhão e interdição que o Senhor proferiu contra os condenados são tão universais que ninguém é capaz de levar-lhes o mais leve conselho ou auxílio: para onde quer que os condenados voltem os seus olhos ou estendam as suas mãos, saberão que todos os canais de conselho ou auxílio lhes foram interditos.
Os náufragos em alto-mar amiúde retesam pés e mãos, como estivessem se sufocando e pelejando com a morte; todavia, não deparam nada além de água, o que frustra todo o empenho que intentam para se agarrarem em alguma coisa. Eis o que acontecerá com quem se tenha abismado naquele derradeiro Mar de Misérias, sufocando-se ali para todo o sempre. Implorarão todos os tipos de auxílios, chegarão até a pedir socorro à própria morte, mas em vão, pois lá não existe ninguém que possa dalguma sorte lhes prestar o mínimo socorro.
Caríssimos irmãos, são de fato verdade tais coisas? Donde as aprendemos? Quem no-las contou? Foi Homero? Platão? Virgílio? Quem no-las contou foi a Verdade em Si, a Sabedoria de Deus em pessoa, que não pode mentir! Ainda existe fé no mundo? Ainda usam os homens a razão? Podem formar julgamentos sobre qualquer coisa? Como sobreveio esse torpor nos homens que costumavam acreditar em tais coisas? Somos diligentíssimos em repelir outros males menores; por que motivo então nos não dispomos a encontrar um modo de evitar as torturas infernais?
Entretanto, as penalidades que temos mencionado nem de longe são as piores: existem outras ainda mais gravosas. O parecer da justiça divina exige que o sentido do tato, pelo qual se cometeram tantos crimes, ultrajes, sacrilégios, impurezas e adultérios, sofra torturas ainda mais atrozes que os demais sentidos. O algoz desse sentido será o fogo, um fogo tão poderoso, intenso e eficaz que, comparado a ele, o nosso fogo terrestre parece não ser fogo verdadeiro mas pintado. Não podemos duvidar de que o fogo há de causar imensa aflição e tormento, porque foi Deus quem o destinou para executor de Sua justiça. Meus caros, imaginai um homem lançado vivo numa fornalha ardente, cuja portinhola se fechasse enquanto ficasse ele lá durante uma hora inteira. Se fôssemos contemplar atentamente qual seria a sua dor, não teríamos um entendimento claro, mas a mera impressão, por assim dizer, do que é viver no inferno. Pergunto-vos: quais ombros suportarão as chamas ardentes? Quais peitos se não despedaçarão na eternidade das torturas? Como indagava o profeta Isaías: “Qual de vós poderá habitar em um fogo devorador” (Is 33, 14)?
Precisamos dizer mais alguma coisa? Além dessa punição, acrescentar-se-á outra – e, decerto, não das menores – para que os condenados sejam atormentados não apenas com o calor do fogo, mas também com o frio intolerável! Se nos estearmos nas palavras de São Basílio Magno, nenhuma das torturas se comparará com a dor resultante da amaríssima rispidez do frio.
São Basílio nos deixou a história dos Quarenta Mártires. Queria um tirano crudelíssimo e ferocíssimo supliciar esses mártires com tormentos indescritíveis. Chegou à conclusão de que o melhor tormento seria a morte de inverno, porquanto habitavam numa região fria por natureza. Era tão intenso o frio que lá vigorava que certos lagos congelavam, a ponto de as pessoas andarem por sobre eles com carroças e animais de carga; a torrente dos rios mais caudalosos se petrificava no leito, e de rios que eram se transformavam em estradas pavimentadas de mármore. O tirano escolheu uma noite em que o setentrião soprava com todo o ímpeto, e ordenou que se expusessem os mártires nus ao relento, permitindo que morressem dum tormento prolongado e indescritível.
Esses, caríssimos, serão os jogos dos condenados, e essas as suas partidas, nas quais – como lamenta Jó – serão compelidos do excesso de calor aos chuveiros de neve, e dos chuveiros de neve ao excesso de calor. Não se tratam de invenções nem fábulas dos poetas. Escutai o que diz o Senhor a Jó: “Entraste, porventura, nos depósitos de neve, ou viste os depósitos de saraiva, que eu preparei para usar contra o inimigo, no dia da guerra e da batalha?” (Jó 38, 22,23). Escutai o salmista: “Fará chover sobre os pecadores carvão ardente e enxofre; um vento abrasador será a porção do seu cálice” (Sl 10, 7). E se essa “porção” é amaríssima, que seria então ter de beber o cálice inteiro? Ah, infelizes, quão melhor ser-vos-ia se nunca tivesses nascido! Ah, olhos miseráveis, que serão aterrados com as horrendas formas demoníacas e torturados com fumo espessíssimo, e que sempre estarão abertos para observar as próprias misérias! Ah, ouvidos miseráveis, que escutarão pela eternidade o ruído dos açoites e blasfêmias, e o lamento dos malditos! Ah, nariz desgraçado, que sentirá pela eternidade o fedor dos ambientes infectos e dos corpos putrefatos! Ah, barrigas e bocas miseráveis, que serão atormentadas com fome e inanição perpétuas e sede intolerável! Ah, membros ignóbeis, que habitarão no poço que vomita flamas sulfurosas! Quanto tempo durará: dez anos, vinte anos, cem anos? De jeito nenhum, pois isso ainda seria uma espécie de consolação. Verdadeiramente, há de durar pela eternidade e além – se fosse possível chegar a um além. Eternidade. Ó mundo fugaz, que nos prenuncia uma realidade tão durável!
Caríssimos fiéis, a natureza dessa eternidade é tal, que sem ela nenhuma punição se julgaria severa, e com ela nenhuma se julgaria branda; não obstante, será este o sal que irá condimentar as penas dos condenados, porquanto os anos de torturas serão tão numerosos quanto as estrelas brilhantes do céu, os grãos de areia da praia e as gotas d’água no oceano. E quando se houver esgotado este abismo de eras, será tão-somente o recomeço das dores. A roda irá girar infinitamente. Canta o salmista: “Como (um rebanho de) ovelhas são postos no inferno; a morte os apascenta” (Sl 48, 15). Os cordeiros pastam as folhas das plantas, mas não arrancam as raízes, de modo que as plantas cresçam novamente e por sua vez os tornem a alimentar. Assim será nas pastagens do inferno, onde se acharão os rebanhos dos condenados, o pasto dos tormentos e a Morte, o pastor da manada. A Morte conduzirá os condenados aos pastos, onde pastarão tormentos para sempre; a forragem nunca acabará, nem o cálice do Senhor, que terão de beber, esgotar-se-á. Enquanto o Reino dos Céus existir, as masmorras infernais perdurarão; enquanto os bem-aventurados regozijarem, os condenados padecerão; enfim, enquanto o próprio Deus viver, no inferno os réprobos morrerão. A não ser que Deus deixe de ser o que Ele é, não cessarão eles de ser o que são. Ó vida de morte, ó morte imortal! Que nome afinal te daremos a ti, Morte ou Vida? Se és vida, porque matas? Se morte, porque deves perdurar? Não nos é lícito chamá-la nem morte nem vida, pois que cada um desses estados comporta algum bem: a Vida tem sossego, e a Morte tem um fim – mas tu não terás sossego e nem um fim. Que diríamos que és tu, senão a totalidade do mal contido na vida e na morte? Da morte herdaste o tormento, e da vida a duração. Verdadeiramente, despojou Deus a vida e a morte do bem que nelas havia, e o que sobrou Ele colocou em ti! Ó poção envenenada, ó droga amarga! Todos os pecadores hão de tragar o cálice do Senhor!
Caríssimos irmãos, decerto seria algo excelente se pudéssemos entender um pouquinho que fosse a eternidade das penas, pois essa meditação por si só – qual uma rédea – refrearia toda a nossa luxúria e moderaria as nossas vidas, de forma que todos nos pareceríamos não apenas cristãos, mas monges e anacoretas santíssimos! Pensai na cruz que um homem acometido dalguma moléstia suportasse no decorrer duma única noite. Quantas vezes não irá revirar-se daqui para acolá? Quão longa não lhe parecerá a noite! Quantas vezes conta as horas, e qual a duração de cada uma, segundo o julgamento dele? Que ansiedade não o acometerá à luz da alvorada! Quantas vezes se indaga quanto já se passou da noite e se o arrebol não tardará a aparecer! Se tal aflição nos parece enorme, qual não será a aflição dos que se deitarão não em leito macio, mas em labaredas ardentes e resplendentes, no decorrer duma noite sem aurora nem esperança de dia? Ó escuridão profundíssima! Ó noite, eterna noite! Ó noite, que a boca de Deus em pessoa amaldiçoou! Ó noite, que não há de ver o arrebol nem o esplendor da alvorada!
Caríssimos irmãos, se o mero pensamento dessa eternidade nos terrifica a nós, que será não [apenas] contemplá-la, mas abismar-se realmente nas penas eternas? O tormento eterno é uma coisa tão horrenda que, se tal pena incidisse apenas num só dos filhos de Adão, todos teríamos motivos para temer e tremer. Por que então não ficamos comovidos, quando sabemos com toda a certeza que o número dos tolos é infinito; quando sabemos que o caminho que nos conduz à vida é estreito e poucos são os que o encontram, e que o caminho da perdição é largo e muito são os que o percorrem [Mt 7, 13]? Se não acreditamos nessas coisas, onde está a nossa fé? Se acreditamos nelas, onde o [nosso] bom senso? Se temos boa cabeça e damos crédito às Escrituras, como é possível que ainda estejamos adormecidos, quando um perigo tão horrendo paira sobre nós? Como é possível que ainda nos agradem a bebedeira e a libertinagem, que ainda nos deleite a vida indolente? Por isso, cobremos ânimo. Sacudamos o torpor em alguma hora, para que assim alcancemos as dádivas da graça aqui nesta terra e depois da morte, na glória do Senhor, que para sempre seja santificado. Amen.
(Traduzido por Permanência a partir da tradução americana. Hell and its torments, TAN Books and Publishers, Inc; Rockford, Illinois, 1990.)
Pregado na Capela Real, no ano de 1655.
Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII, 11.
I
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes de medir a semeadura e hãolhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos: Exiit seminare.
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e: propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: «Uma vez que iam, não tornavam». As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar,não tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim arguis com muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. «Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade»: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. «Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves»: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro gé neros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa).
Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e pregai a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos vão pregar ar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraça!
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? -- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, «quando iam não tornavam»: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco»: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar, é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-seão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram es pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também? Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
II
Semen est verbum Dei.
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? -- Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregandome a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.
III
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? -- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? -- disse o mesmo Deus por Isaías.
Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.
Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.
Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpa nossa.
IV
Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? -- No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa.
Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores eram santos eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e outros como eu? -- Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que saneia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? -- o conceito que de sua vida têm os ouvintes.
Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa de David lançavam fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram em palavras? -- Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? -- Mandou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros.
Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de pinhos e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? -- Porque então era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? -- Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores? -- Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam. «Homens, fazei penitência» -- e o exemplo clamava: Ecce Homo: «eis aqui está o homem» que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo Clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador e outra o que semeia, como se há-de fazer fruto?
Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras. Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. «Caía o trigo nos espinhos e nascia» Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae «Caía o trigo nas pedras e nascia»: Aliud cecidit super petram, et ortum. «Caía o trigo na terra boa e nascia»: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo.
Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: Cecidit. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de cair com cadência há-de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.
Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? -- O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum -- diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais são estes sermões e estas palavras do céu? -- As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: -- estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.
Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios, porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Ceptro Penitente dizem que é David, como se todos os ceptros não foram penitência; o Evangelista Apeles, que é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerónimo; a Boca de Ouro, S. Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há-de ser discrição no púlpito?
Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que desejáramos nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de nossa queixa?
VI
Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste género. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria.
Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la, para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão; há-de confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.
Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.
Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S. Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco.
VII
Será porventura a falta de ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa razão parece também esta. O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e não o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para semear, ainda que o furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce. Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há-de deitar raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.
Fez Cristo aos Apóstolos pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores; e que faziam os Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes retia sua: «Refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não eram alheias. Notai: Retia sua: Não diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam; não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a malha; quem não enfia nem ata, como há-de fazer rede? E quem não sabe enfiar nem sabe atar, como há-de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a pregação, até o chumbo é cortiça.
As razões não hão-de ser enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento.
Veio o Espírito Santo sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois por que na cabeça e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador, não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento. Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um, e não todas sobre todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E senão vedeo no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali estavam, e achareis o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; «suas, e não alheias», como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa.
Contudo eu não me firmo de todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S. Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João Crisóstomo.
VIII
Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o Evangelho que começou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a parábola, porque era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.
Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto: Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores «nuvens»: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há-de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o Mundo.
Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum: Desça minha doutrina como chuva do céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? Não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma. Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat: nem a do estilo: Seminare; nem a da matéria: Semen; nem a da ciência: Suum; nem a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós tinha grosseiro estilo; Salamão multiplicava e variava os assuntos; Balaão não tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?
IX
As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: «Quem semeia ventos, colhe tempestades». Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto?
Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demónio. Tentou o Demónio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentença era tirada do capítulo VIII do Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo XC, diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: «Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal.» De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.
Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver cabecear o auditório a estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.
Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número! Que muito logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!
Miseráveis de nós, e miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: Virá tempo, diz S. Paulo, «em que os homens não sofrerão a doutrina sã. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: Mas para seu apetite terão grande número de pregadores feitos a montão e sem escolha, os quais não façam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: Fecharão os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas». Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes, sobre cristão, religioso!
Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia, são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei veste como rei, e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio, e fala como lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina, já que me falta o seu espírito?
X
Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demónios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit Diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho: Conculcatum est ab hominibus: Pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se teme. Dessoutros conceitos, dessoutros pensamentos, dessoutras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão-de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam: daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trivial: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho e em via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o Demónio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do Mundo; e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam, diz S. Paulo: O pregador há-de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: Há-de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama?, isso é ser pregador de Jesus Cristo.
Pois o gostarem ou não gostarem os ouvintes! Oh, que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia, conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito, sem saber parte de si, então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia.
Enfim, para que os pregadores saibam como hão-de pregar e os ouvintes a quem hão-de ouvir, acabo com um exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei-de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade qual dos dois fosse maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: «Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim.»
Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de nós. Si hominibus placerem, Christus servus non essem, dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há-de julgar. Que conta há-de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.
Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.
Pe. Hervé Gresland,FSSPX
Nesse ano do centenário [o artigo é de 2014 - N. da P.], a fim de nos remetermos à escola da pura e luminosa figura de Pio X, estudemos um pouco a santidade do único papa canonizado desde o século XVI. A atualidade nos obriga a começar por emitir sérias reservas no que diz respeito às canonizações recentes. Após as pretensas “canonizações” dos Papas João XXIII e João Paulo II, o presente estudo nos permitirá recordarmos o que é a verdadeira santidade.
O programa do seu pontificado
O filho do agente comunal de Riese conheceu uma “prodigiosa ascensão desde a pequenez da aldeia natal e desde a humildade do nascimento aos cumes da grandeza e da glória sobre a terra e no céu” ; foi-lhe dado conhecer a vida da Igreja de ponta a ponta, se assim podemos dizer, visto que foi, sucessivamente, vigário, cura, cônego, professor, chanceler, bispo, cardeal e, finalmente, papa. Em todas essas funções, pôde demonstrar a sua grande alma, em particular no papado: o povo via nele um santo, e dizia: “Il Papa Sarto, il Papa santo.”
Na sua primeira encíclica, São Pio X anunciou o programa do seu pontificado, declarando que seu único fim era o de “instaurare omnia in Christo”, ou seja, restaurar tudo em Cristo, reconduzir tudo à unidade de Cristo. Ele retornará incessantemente a essa idéia: os ensinamentos e os atos do seu pontificado resumem-se inteiramente nessa firme vontade de reconduzir tudo a Cristo, para render a Cristo o primado que lhe pertence de direito. Mas, como realizar esse programa? Pelos padres, pois eles são o meio instituído por Jesus Cristo para estabelecer o seu reino. “Para fazer Jesus Cristo reinar sobre o mundo, nada é mais necessário do que a santidade do clero, a fim de que, pelo exemplo, pela palavra e pela ciência, seja o guia dos fiéis que, conforme um antigo provérbio, sempre serão tais como forem os padres: Sicut sacerdos, sic populus”.
“Ele via no sacerdócio, com razão, o fundamento indispensável para a realização do seu programa de restauração de todas as coisas em Cristo (...). Essa convicção era tão viva nele, que, quando foi diretor espiritual do seminário de Treviso, ou bispo de Mântua, ou ainda patriarca de Veneza, estava como que obcecado por essa ideia” . Pode-se escrever que “o aspecto mais evidente da santidade de Pio X era, antes de tudo, sacerdotal. Ele teve realmente o gênio do sacerdócio” .
Os padres foram, portanto, o objeto privilegiado das suas solicitudes, sobretudo porque compreendia a ameaça que o mundo moderno representava especialmente para o padre (pois o demônio sabe bem onde atacar para destruir a Igreja). Bispo, zelava pessoalmente pela formação dos seminaristas. Papa, desde o início do seu pontificado, recomendou instantemente aos bispos de pôr todo o seu empenho em formar Cristo naqueles cuja missão é a de formar Cristo nos outros: “Se assim é, Veneráveis Irmãos, quão grande não deve ser a vossa solicitude para formar o clero na santidade! Não há negócio que não deva ceder o passo a este. E a consequência é que o melhor e o principal do vosso zelo deve aplicar-se aos vossos Seminários” . Ele demanda que, nos seminários, zele-se pela integridade da doutrina: cuidado com “uma certa ciência nova que se enfeita com a máscara da verdade e onde se não respira o perfume de Jesus Cristo; ciência mendaz que, com o favor de argumentos falazes e pérfidos, se esforça por abrir caminho aos erros do racionalismo ou do semi-racionalismo”.
O documento que revela melhor a sua alma de padre, pai dos padres, é sua comovente exortação Haerent animo, que ainda guarda toda a sua atualidade, pois o sacerdócio permanece e permanecerá sendo aquilo que é desde que Jesus Cristo o instituiu. O papa recorda aos bispos o seu dever primordial de se ocupar dos padres e, aos padres mesmos, a necessidade de trabalharem para a sua própria santificação, de modo a se assemelharem mais e mais com Jesus, o Padre eterno. O que é mais necessário ao padre é a santidade, pois a Igreja tem necessidade, sobretudo, de padres verdadeiramente santos, de padres que rezam, que oram: isso é algo de importância capital. Podemos constatar a mediocridade espiritual e a fragilidade de um padre sem oração. Um padre sem fervor tem pouca eficácia apostólica. Ao contrário, um padre verdadeiramente santo possui uma eficácia impressionante.
Paralelo entre São Pio X e Dom Marcel Lefebvre
É muito interessante constatar que encontramos o mesmo pensamento no nosso fundador, Dom Marcel Lefebvre. Para ele, o diagnóstico era claro: “A causa fundamental da crise é o embotamento do sacerdócio” . Ele indica o remédio, que é o seu pensamento profundo, no prefácio do seu Itinerário espiritual:
“Diante da degradação progressiva do ideal sacerdotal, transmitir, em toda a sua pureza doutrinal, em toda a sua caridade missionária, o sacerdócio católico de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como Ele o transmitiu aos seus apóstolos e tal como a Igreja romana o transmitiu até meados do século XX”.
“Como realizar este que me parecia então o único caminho para a renovação da Igreja e da Cristandade? (...) O desejo de fundar as vias da verdadeira santificação do padre nos princípios fundamentais da doutrina católica e da santificação católica e sacerdotal sempre me absorveu (...) É pela razão do reinado de Nosso Senhor não estar mais no centro das preocupações e das atividades daqueles que são nossos “praepositi” que eles perdem o senso de Deus e do sacerdócio católico, e que nós não os podemos mais seguir”.
Percebemos que nosso fundador está perfeitamente alinhado com São Pio X. Para ambos, o fim a ser perseguido é o reinado de Nosso Senhor, que deve estar no “centro das nossas preocupações e das nossas atividades”; o caminho para atingi-lo é o autêntico sacerdócio católico, a santidade dos padres. Esse parentesco das visões de São Pio X e de Dom Marcel Lefebvre sobre o lugar central do padre é uma das razões que levaram o bispo a escolher o santo papa como patrono da sua Fraternidade: “A Fraternidade coloca-se sob o patrocínio de São Pio X, porque a preocupação primordial dessa santo papa foi a integridade do sacerdócio e a santidade que dele decorre” .
Uma ação impregnada do sobrenatural
Como todo bom papa, Pio X procurou santificar o rebanho que Jesus Cristo lhe confiou. Sua grandeza vinha de que ele mesmo estava repleto de vida sobrenatural, e seu pontificado não tinha outro fim que o de transmitir essa vida às almas. Ele recordou pela palavra e pelo exemplo que o primeiro dever de cada um é de tender à santidade: é sempre ao buscar a santidade na intimidade das almas que a Igreja encontra uma juventude renovada. O segredo da reforma estará sempre na união com Nosso Senhor pela oração, pelos sacramentos, pela fidelidade, pela mortificação. Ao invés de buscar inventar novas teorias, novas espiritualidades, ao sabor da fantasia de cada um, é preciso se aplicar a encontrar a santidade tal como a Igreja nos ensina na sua tradição e no exemplo dos seus santos. Não há santidade sem a graça; não há apostolado verdadeiro e eficaz sem vida interior, sem uma vida interior fundada na autêntica tradição espiritual da Igreja, isto é, à base de oração. Não poderia haver espiritualidade verdadeira onde falta o senso de adoração ou o espírito de sacrifício.
É a preocupação de ir às fontes da vida sobrenatural que levou São Pio X a conduzir o povo fiel à Eucaristia. Coube a ele ser, em nosso tempo, o papa da Santa Eucaristia. Se ele quis que os católicos vivessem mais desse sacramento, é que ele mesmo viveu intensamente dele. “A Eucaristia é o centro da fé”, dizia, e sua fé ardente encontrava nela o seu alimento. Seus decretos sobre a comunhão das crianças representaram uma revolução na Igreja, a ponto de provocar algumas resistências. Ele “deu Jesus para as crianças e as crianças para Jesus” e foi o promotor da Cruzada eucarística, suscitando assim santos no meio das crianças.
São Pio X conhecia a importância da beleza do culto para elevar as almas, em particular, a importância da música sagrada, pois a música tem um poder sobre as almas que as demais artes não tem: pode lhes rebaixar como pode lhes abrir as portas da contemplação. É por isso que ele restabeleceu o canto litúrgico na sua pureza e na sua primitiva beleza, foi o restaurador do canto gregoriano. O canto gregoriano é, a um tempo, arte popular e uma arte que nos introduz nos mais altos mistérios da fé pelo seu caráter sobrenatural. É o melhor educador da vida espiritual.
É preciso dizer, portanto, que, para São Pio X, importava sobretudo o conhecimento da doutrina católica, o ensino do catecismo, tanto aos adultos como às crianças. Por toda a sua vida deu a isso uma importância primordial, e sempre deu o exemplo: mesmo quando era papa, em certos domingos, após o almoço, ele mesmo comentava o evangelho do dia para os fiéis das paroquias de Roma. Por isso foi muito justamente chamado de papa da doutrina cristã.
A santidade de Pio X
Com relação aos santos de épocas mais distantes, cuja fisionomia mal conhecemos, quando conhecemos, temos a felicidade de possuir muitas fotografias de São Pio X. “Quando estudamos uma série de retratos desse grande papa nas diferentes idades da sua vida, ficamos impressionados com a harmonia cada vez mais radiante que deles depreende. É preciso que essa alma tenha sido constantemente fiel às inspirações do Espírito Santo para que emane dela um charme tão sobrenatural” . O rosto é enérgico e ponderado, com uma grande distinção. Os traços são amáveis, o olhar paternal e bom. Esse rosto irradia uma bondade envolvente e uma mansidão impregnada de força. Assim, a vida de Deus na alma se manifesta exteriormente.
O que caracteriza um santo são as virtudes, e as de Pio X foram, ao longo da sua vida, cada vez mais arrebatadoras. Seu espírito eminentemente sobrenatural vivia da fé, na dependência da Providência. Assim como nasceu em uma família modesta, quis viver e morrer pobre. Era a um tempo firme e doce, simples, afável e acessível a todos. Sua caridade foi atestada por uma quantidade de testemunhos que nos revelam um coração inesgotável, transbordando de amor pelo próximo.
A oração da sua festa ressalta duas qualidades em especial com que Deus o dotou “para defender a fé católica e reunir todas as coisas em Cristo”: uma sabedoria celeste e uma força apostólica, isto é, digna dos apóstolos. Detalhemos essas duas qualidades.
A sabedoria divina com que Deus o cumulou lhe deu a luz nas conjunturas mais difíceis. Ela se manifestava por “uma amplidão e uma clareza de vista que são próprias dos santos”. E que força de persuasão!
“A sua palavra era trovão, era espada, era bálsamo; comunicava-se intensamente a toda a Igreja e estendia-se muito ao longe com eficácia; atingia o irresistível vigor, não só pela incontestável substância do conteúdo, mas também pelo seu íntimo e penetrante calor. Sentia-se nela ferver a alma de um Pastor que vivia em Deus e de Deus, sem outro objetivo senão levar para Ele os seus cordeiros e as suas ovelhas.”
Como um bom pastor vigilante, que cuida do seu rebanho, praticou de maneira eminente e mesmo sublime as duas virtudes necessárias a todo aquele que governa: a prudência e a força. “o formidável furacão provocado pelos que negam a Cristo e pelos seus inimigos, soube demonstrar desde o princípio uma consumada experiência no manejo do leme da barca de Pedro”, declarou Pio XII. A sabedoria do seu governo, que todos admiravam, mostrava que ele estava inspirado por Deus.
Ao mesmo tempo, o seu coração magnânimo lhe permitiu empreender numerosas reformas na Cúria romana, o direito canônico, o breviário... Diante da imensidade da tarefa, era preciso uma coragem e um zelo sobrenatural para se pôr a obra. Ele se mostrou intrépido na defesa da fé e da Igreja, e “demonstrou no seu espírito a indomável firmeza, a robustez viril, a grandeza da coragem, que são as prerrogativas dos Heróis da santidade.”
“Aos olhos do mundo moderno, viu-se surgir essa grande figura de doutor, de pai, de chefe. Esse santo monarca espantou pelo vigor extremo com que apoiou os direitos da verdade e da justiça, pela grandeza de alma que lhe permitiu afrontar o ódio dos homens para manter-se fiel a Deus, pela força que nele se unia à mansidão de uma caridade inextinguível.”
Seu equilíbrio, tanto na ordem natural como na sobrenatural fazem dele um papa modelo. É essa harmonia de virtudes no heroísmo que marca a verdadeira santidade, pois ela só pode ser encontrada numa estreita união com Deus. Entre os papas dos últimos séculos, não há nenhum que alcance tantos méritos e virtudes.
Que do céu a sua intercessão nos assegure a fé nesses tempos difíceis! Que seu exemplo suscite uma geração de padres que possuam todas as virtudes sacerdotais das quais ele deu um tão belo exemplo, e um devotamento sem reservas à Santa Igreja!
(Le Rocher, junho de 2014. Tradução: Permanência)
“Mudei eu ou mudou o Natal?” — perguntou Machado a seus botões que deixaram a pergunta famosa mas sem resposta. Por eles, ao longo do tempo sugeriram respostas várias em torno do eterno tema da não-eternidade das coisas, e creio que ninguém deu a única resposta aceitável: Não mudara o Natal nem mudara o homem. O Natal continua a ser o invariável, o inoxidável mistério da natividade de Jesus, o Natal embora engatado nas engrenagens das órbitas e dos calendários permanece imóvel, idêntico a si mesmo.
Também o homem não mudou na sua frágil versatilidade e assim permanece no incerto não permanecer, correndo atrás da própria sombra ou do próprio vento. E é aqui nesta coincidência de duas tão diversas permanências que reside toda a aflição do homem e todo o incompreensível mistério do Natal. Porque o Natal não muda para que o homem mude. Sim, esta é a primeira e fundamental mensagem do Natal trazida pelo Percursor. João Batista anunciava o advento do constante, do Permanente, do Imóvel, e chamava para que os homens mudassem.
Como assim? Então é preciso o profeta clamar para que o inquieto coração do homem mude de ritmo, de direção, de desejo? Não, em verdade ninguém precisa aconselhar o homem a ser cambiante e instável, por si mesmo ele não pára de dançar e mudar. Mas o que o Natal veio ensinar foi justamente a mudança do mudar. Sim, veio ensinar que não podemos parar, que não podemos interromper a conversão, a mudança de vida, a penitência ou metanóia ensinada pela voz que clamava no deserto. A permanência que o natal nos ensina é a permanente ascensão, a permanente conversão. Ou é a permanente e progressiva gestação do Menino Jesus que quer nascer em nós como nasceu no seio da Virgem sempre Virgem.
A verdadeira participação do Natal é essa em que, de uma incomparável maneira, realizamos no mesmo ato uma imitação de Cristo e uma imitação de Maria. Tudo o mais, ainda que multipliquemos todos os recursos da humana ternura, será de festa de solidariedade humana, será data planetária, será efeméride, mas não é Natal. Sem a dócil obediência de Maria não há receptividade para o nascimento de Jesus em nós. O solene Natal cantado pela Igreja, com ressonâncias de todos os séculos, com ecos dos brados de João Batista e do cântico de Maria, só deseja de nós o trabalho, a conversão que nos torne mais humildes e mais puros, ou mais filhos de Maria, para termos com ela parte do prodigioso mistério que nos torna de algum modo mães de nosso Pai.
Tudo isto resolve as arrumações habituais do mundo, e é para revolvê-las, para trazer a mais revolucionária notícia de uma outra ordem, de uma nova dimensão, que a Igreja anuncia a vinda do Senhor como outrora, João Batista anunciou.
É terrível pensar que o mundo inteiro, em grossa e maciça maioria, mesmo nos povos que se dizem cristãos, fizera do Natal de Jesus e Maria uma festividade espessa e grosseira. Por isso mesmo o clamor litúrgico de nossa Mãe tem, nos tempos que correm, o patético timbre do grande anunciador da mudança essencial, da única que entre tantas e tantas reviravoltas, não queremos fazer.
“Quem és?” perguntaram a João, filho de Zacaria. Disse-lhes ele: “Eu sou a voz que clama no deserto, endireitai os caminhos do Senhor”.
E aí está: o Natal não muda, para que nós mudemos o nosso vão mudar.
PERMANÊNCIA, N° 62, Dezembro de 1973.
D. José Pereira Alves
Conferência realizada em Buenos Aires
O nosso Brasil é uma pátria eucarística. Deus lhe concedeu essa predestinação histórica. A sua vocação cristã não foi apenas assinalada pela cruz erguida na terra virgem. Nas mãos de Frei Henrique de Coimbra, sob a verde umbela da mata rumorosa e selvagem, na primeira Missa da descoberta, a hóstia divina pairou como uma bandeira viva de Cristo proclamando a posse sagrada do território. Nosso Senhor armava na região desconhecida o seu pavilhão eucarístico. Alçava o pendão de sua realeza. O Brasil recebia o seu batismo na pia do altar. Desde aquele instante supremo seria o país do Coração Eucarístico, o Tabor do S. S. Sacramento.
A sua configuração geográfica seria quase a forma de um coração.
Cruzes e corações se encontrariam incrustados nos exemplares de sua flora e nas estrelas do céu. Deus o escolhera para ser o soldado do seu tabernáculo e arauto do Rei de Amor.
O culto da Eucaristia se irradiou por toda a nacionalidade com a aurora profética da primeira Missa.
O Cristo prometia a si mesmo operar uma nova transfiguração.
O Brasil se transfiguraria pela adoração e pelo amor da Hóstia Santa numa apoteose perene ao Cristo, Rei das nações que Ele recebeu em herança. Estão aí presentes em toda a sua visibilidade histórica os documentos desta fé eucarística que produziu, em nossa terra e sociedade, o milagre de uma unidade espiritual que serve de base indestrutível à unidade geográfica, racial e social de todo o nosso imenso país.
São os monumentos, as igrejas eretas desde o período colonial para a glória da Eucaristia. Há capitais, como Recife, em que as matrizes primeiras foram dedicadas ao S. S. Sacramento. Nas menores paróquias eram reservadas capelas especiais e mais ricas, as capelas do Santíssimo. O ouro, a prata, pedras preciosas enriquecem e constelam cálices, ostensórios, sacrários, altares, candelabros, lampadários-trabalhos riquíssimos de ourivesaria de talha, estatuária-primores de uma velha arte, saturada de inspiração religiosa e de piedade eucarística.
As belas artes se encontraram em piedoso rendez-vous para perpetuarem, através do tempo, a imortalidade da devoção nacional ao Deus velado no silêncio augusto da vida eucarística.
Em palanquins dourados ia o Viático, escoltado e seguido de multidão devota, aos moribundos ou sob umbelas vermelhas, o sacerdote a pé ou a cavalo, conduzia o Pai Nosso, como o povo ainda chama com ternura, ao Senhor, pelas fazendas, sítios agrestes, lugares rurais.
As festas do S. S. Sacramento sempre foram no Brasil custeadas por inúmeras confrarias e irmandades e pelo povo, festas excepcionais pelo esplendor do culto, pela afluência extraordinária, pelas procissões esplêndidas e triunfais, sempre coroadas por soleníssimo Te Deum.
E tão tradicionais o foram que municipalidades, como a Edilidade de S. Salvador da Baia, conservaram como uma honra celebrar com pompa, às expensas públicas, as solenidades do Corpo de Deus, mesmo depois da separação da Igreja do Estado. Tanto é verdade que a Nação só a contragosto se via oficialmente longe do altar!
Todas essas manifestações eloquentes do culto externo eram e ainda são expressões altissonantes do sentimento profundo dos brasileiros em relação à Sagrada Eucaristia.
Com a devoção à Virgem Santíssima da Conceição freme no sangue, na alma da raça, o amor crescente ao S. S. Sacramento, herança dos mártires.
Para citarmos apenas uma lembrança dos tempos da colônia, evoquemos tão somente o sangue do horrível morticínio de 3 de outubro de 1645 em Urussú, Estado do Rio Grande do Norte, em que os heróis da fé no Senhor Sacramentado eram trucidados e morriam gritando: “Louvado seja o S. S. Sacramento! ” Crônicas antigas nos falam da música celeste dos aromas do incenso e da conservação maravilhosa dos corpos dos cristãos, vítimas imoladas pelo furor herético e pagão, sementes eucarísticas de uma grande cristandade, consagrada ao Divino Coração Eucarístico.
Regada por um sangue tão generoso, cultivada com toda a solicitude pela ação missionária de Portugal bandeirante e católico, a árvore nacional não podia deixar de crescer, frondejar e produzir os mais abundantes frutos de vida eucarística, transformando o Brasil, como é hoje, um imenso altar do Coração Eucarístico.
A todas aquelas aparatosas manifestações do culto eucarístico de que tivemos ocasião de evocar, correspondiam já desde a época colonial o espírito de adoração eucarística, a oração do tabernáculo, a ascensão de almas, vítimas de amor. Já em 1750, um filho do nordeste brasileiro, o alagoano Felix da Costa, varão de grandes virtudes, fundava o Santuário Eucarístico de Macaúbas, hoje na Arquidiocese de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, recolhimento de religiosas clausuradas, consagradas à adoração do S. S. Sacramento, nesse laus perene brasileiro que é uma glória secular da nossa vida católica. É aí que o Cristo Redentor e Salvador, adorado e amado por almas virgens, simples e abrasadas de amor, recebia o beijo silencioso e a súplica incessante da alma cristianíssima da Pátria.
Desse cimo espiritual desceria a Benção eucarística da renovação social da nossa terra como uma aurora das apoteoses nacionais ao S. S. Sacramento.
Com o despertar religioso provocado pelo grito libertador da seráfica e heroica figura de D. Frei Vital Maria de Oliveira, com o rejuvenescimento das ordens religiosas e dos seminários e renascimento da vida paroquial, a organização da catequese infantil e a fundação de associações católicas, imunes da contaminação maçônica, a vida eucarística nacional começou a tomar um desenvolvimento prodigioso que se tornou universal e profundo em todo o país, graças especialmente à instituição providencial do Apostolado da Oração, que popularizou e intensificou com a Missa da primeiras sextas-feiras, a adoração solene e as comunhões reparadoras, à Devoção ao Sagrado Coração de Jesus e deu a todas as suas festas um cunho altamente eucarístico. O povo brasileiro, em décadas sucessivas, ficou saturado de amor pelo Coração Divino que nos deu o presente supremo da Eucaristia.
Pois bem, essa saturação eucarística, ao impulso vigoroso da hierarquia, guiada por esse bispo providencial — o Bispo da Eucaristia —, como o chama o povo, que é o nosso querido Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, essa saturação de amor transbordou na vida pública e social do Brasil, como uma torrente restauradora da consciência, mesmo política, da nossa pátria cristã. Os grandes Congressos Eucarísticos, como o de São Paulo em 1915, o inesquecível Congresso Nacional do Centenário, em 1922, e o recente e extraordinário Congresso Eucarístico Nacional de S. Salvador da Bahia, promovido com enorme brilho pelo Exmo., Primaz do Brasil e presidido pelo Eminentíssimo Legado Pontifício, o Sr. Cardeal Dom Sebastião Leme, tem sido no Brasil verdadeiros “pentecostes” de graças e retumbantes e profundos plebiscitos de amor ao Deus escondido, à Hóstia Divina dos nossos altares.
As semanas eucarísticas se sucedem em todas as dioceses com uma intensa repercussão espiritual. Hoje, pode dizer-se que não há solenidade, semana católica ou congresso que não culmine numa afirmação de fé na Eucaristia.
Esse movimento ascensional para o sacrário arrastou e arrasta multidões nos retiros, nas missões populares, é a alma das organizações paroquiais e se constitui sangue de toda a circulação religiosa brasileira.
As Horas Santas são hoje ansiosamente frequentadas pelo povo nas mais modestas paróquias do interior e, em muitos lugares, inúmeras velas, símbolos de favores alcançados estrelam as noites eucarísticas.
As classes superiores foram também dominadas pelo Cristo do tabernáculo. Nas capitais e cidades importantes, sobretudo na metrópole do Rio de Janeiro, num crescente edificante, centenas de intelectuais, homens de cultura geral e especializada, professores eminentes e estudantes das Escolas Superiores se aproximam da mesa da Santa Comunhão: é a Páscoa da inteligência.
As classes armadas, em verdadeira parada de fé, depõem cada ano suas espadas aos pés do altar do Cordeiro e em linhas de paz e de amor bebem a força, a coragem e o sacrifício no cálice eucarístico da redenção.
Essas páscoas benditas se renovam em vários setores da vida social, da vida brasileira. É um movimento consolador.
S. Eminência, o Sr. Cardeal D. Sebastião Leme pondo uma cúpula monumental sobre estas colunas erguidas pelo espírito nacional criou a corte suprema do Rei do amor: A Adoração Perpétua Nacional, no templo de Santana. E já hoje na Bahia e em São Paulo se instalam outras cortes perpétuas, em que é adorado e servido o Divino Senhor dos corações.
Diante desse panorama eucarístico não há senão exclamar: Cristo reina na sociedade brasileira pela Eucaristia.
A Eucaristia é a chave do nosso progresso na hierarquia, pela multiplicação rápida de nossas dioceses e pelo esplendor e fecundidade de nosso cardinalato, cuja púrpura é o cérebro de nossa irradiação espiritual, e nossa ação católica é o segredo de nossa expansão de vida interior e sobrenatural, não só em nossas comunidades religiosas, seminários e colégios, mas na floração exuberante de nossos grupos católicos na rede, hoje, tão alargada de nossas associações e obras de interesse espiritual, na coordenação de todos os valores da Santa Igreja no Brasil. É ela ainda que anima, encoraja e informa o esforço de tantos católicos que pelejam pelo Reino de Cristo com as armas da luz e da inteligência, da palavra e da pena, da ação cultural e do rádio.
Na sua tese recente sobre LES RENOUVEAU RELIGIEUX D’APRÉS LE ROMAN FRANÇAIS, Mme. Elisabete M. Frazer oferece uma contribuição importante ao estudo desse fenômeno contemporâneo que é o ressurgimento católico da mentalidade cultural.
Já hoje a Religião não é apenas considerada como uma organização social admirável, uma força de disciplina humana. Ela surge no romance, na literatura, com um aspecto do mistério e do sobrenatural.
A guerra fez a humanidade pensar no além diante das ruínas acumuladas nessa horrível tragédia da História.
Esse renascimento mundial do pensamento religioso não podia deixar de ter extensa repercussão na sociedade brasileira. Encontrou felizmente o movimento católico desencadeado pela Igreja nas massas e nas elites sob a forma providencial da ação eucarística no indivíduo, na família, nos grupos organizados e nas multidões pelas grandiosas manifestações de amor a Nosso Senhor Jesus Cristo no S. S. Sacramento.
Os homens católicos de pensamento, a mocidade católica que estuda e os expoentes de várias classes sociais são hoje sentinelas do Sacrário e apóstolos da Realeza Eucarística de Jesus.
Foi assim que se preparou esse magnífico estado d’alma que nos permitiu a vitória apolítica, consagrando a Constituição de 16 de julho, arejada de espírito cristão, que pôs a sua confiança em Deus, nos deu o Ensino Religioso, o Matrimônio indissolúvel, a assistência às Forças Armadas, o serviço militar eclesiástico sob a forma hospitalar, e criou no Direito Internacional o princípio novo da colaboração da Igreja e do Estado, apesar da separação; em suma, consagrou as aspirações cristãs da Liga Eleitoral Católica, constituída pelo Episcopado Nacional com um caráter supra e extra partidário, visando apenas o Reinado Social do Rei do Amor, na pátria brasileira.
Cristo reina e reinará no Brasil.
Cumpre-nos, a nós, soldados de Cristo, defender por todas as formas da Ação Católica, conservar o patrimônio eucarístico da pátria pela educação eucarística da nossa infância no lar, no templo, na escola, pela formação eucarística de nossa mocidade, pela penetração eucarística cada vez mais profunda da mentalidade nacional.
No obelisco de São Pedro se leem estas esplêndidas palavras de Sisto V: Cristus vincit, regnat, imperat, ab omni malo plebem suam defendat.
Já não será nos granitos do Corcovado, mas no Coração vivo da Pátria Eucaristica que escreveremos aquelas palavras: Cristo vence, reina e impera, defende de todo o mal o seu Brasil.
Desta gloriosa e hospitaleira Argentina, Grande Dama-Nobre de Cristo, transformada nestes dias magníficos na Metrópole Eucarística da Cristandade, no Ostensório do mundo, voltaremos incendidos da Divina Caridade, com a bênção maternal da Virgem de Lujan, Padroeira do Congresso, e apaixonados pela salvação de nossa pátria, iremos realizar no Brasil os votos paternais do grande pontífice Pio XI, expressos no último telegrama ao Presidente Justo: conseguir que o Evangelho de Cristo seja a inspiração na vida de todos os povos de maneira que todos possam gozar dos benefícios da paz e da Civilização cristã.
Dom José Pereira Alves - Discursos e Conferências, Imprensa Nacional 1948.
Conferência de D. José Pereira Alves pronunciada no
Congresso Eucarístico do Centenário, no Rio de Janeiro
Taine conta que um dia procurou o Superior de uma ordem religiosa de Paris, e lhe perguntou: “Por quê? Não faz ainda um século que a Revolução Francesa destruiu todas as ordens religiosas. Por quê? Não faz ainda um século e a França tem mais de 160.000 religiosas e religiosos. Qual o segredo dessa vitória? Qual o princípio de ação e utilidade que explica essa maravilha? ”
O Superior respondeu-lhe: “Acompanhai-me”. Taine seguiu-o. Ele conduziu o escritor à capela e disse-lhe: “Está ali naquele sacrário, naquela hóstia, o segredo do nosso triunfo”.
O grande escritor continuou a fazer as suas pesquisas e, depois de algum tempo escreveu estas palavras: “A fé na Eucaristia é, incontestavelmente, o par de asas que ergue a humanidade do seu lodo e a atira às regiões do devotamento e do amor. Se há alguma salvação para a sociedade, sem dúvida essa salvação está lá”.
Sim, minhas senhoras e meus senhores, a salvação está lá, na hóstia, na hóstia cuja função histórica e divina foi manter a Igreja Católica na sua unidade, na sua santidade, na sua catolicidade, no seu caráter apostólico.
O Tabernáculo é a barquinha de Jesus. Se o furacão acorda nas entranhas do oceano, a humanidade poderá gritar confiante: Domine! Senhor! Salvai-nos, senão perecemos!
Mas agora, diz eminente sacerdote, não são simplesmente os ventos mansos de Tiberíades; são também os ventos selvagens do ódio, do capricho e do interesse que ameaçam o mundo. Jesus, desperta! Acorda, Jesus! Ergue-te, Jesus! Abre a porta deste sacrário e apresenta-te ao mundo de pé e terrível! Faze o teu largo gesto e aplaca as ondas, serena as tempestades.
Senhores, o Congresso Nacional do Brasil é esse clamor agoniado de tantas almas e de tantos espíritos. O Congresso Nacional é o brado do nosso Brasil gigante, ajoelhado junto à hóstia de misericórdias para pedir perdão pelo pecado da nossa grande Pátria.
Minhas senhoras e meus senhores, já em 1864, venerável Padre dizia: “É preciso soltarmos a Jesus, não a Jesus em espírito, não a Jesus glorificado no céu, mas a Jesus no Tabernáculo; é preciso obriga-lo a sair do seu retiro e tornar à frente das nações cristãs que Ele pode dirigir e governar”.
Nós, católicos brasileiros, neste Congresso, queremos obrigar a Jesus a sair do Tabernáculo, e pôr-se à frente do Brasil para fazê-lo marchar, para fazê-lo marchar para a vitória, marchar para o céu, para Deus, do qual, como Nação, está tão deslembrado e esquecido.
Minhas senhoras, meus senhores: essas palavras são proféticas para o nosso Congresso Nacional Eucarístico. A cidade do Rio de Janeiro, como uma profetiza sublime, se debruça nesta noite memorável sobre seus montes seculares e atira aos ventos do Brasil a palavra incomparável que ouviu nesta Assembleia: “Cristo ou Morte! ”
Minhas senhoras, meus senhores: Olinda, Olinda senhoril, reclinada à sombra das palmeiras, a Veneza Americana, boiante sobre as águas remansadas do Capiberibe galante, Olinda e Recife respondem a esta palavra incomparável: “Cristo ou Morte! ” Como ela ecoa bem no nosso coração pernambucano! Sim! Cristo ou Morte!
Senhores, somos de uma terra de bravos que batalharam, não só pela Pátria, mas pela Fé! Somos de uma terra eucarística. As principais matrizes da nossa cidade são dedicadas às glórias de Jesus Eucarístico; somos de uma cidade que vibrou numa incomparável semana eucarística, na qual o povo e os sacerdotes choraram. Pois bem: Pernambuco eucarístico não pode deixar de aceitar estas palavras incomparáveis: Cristo ou Morte!
E eis-me, senhores, embaixador humilde da Arquidiocese de Olinda e Recife, inclinado diante da figura venerável deste filho querido dos nossos flancos, o primeiro cardeal da América do Sul. Inclino-me diante deste velho para beijar-lhe, reverente, a púrpura, em nome do Leão do Norte.
Fazendo-o, curvo-me, também reverente, diante da coroa magnífica dos príncipes brasileiros que vieram abrilhantar e abençoar o Primeiro Congresso Nacional do Brasil.
Trago o meu abraço fraterno a esse clero venerando, respeitável e respeitado, sob a orientação do nosso inesquecível Dom Sebastião, cujo zelo apostólico improvisou a beleza surpreendente desta festa magnífica.
Senhores, eu vos trago a saudação irmã da Arquidiocese de Olinda e Recife. A todos vós, congressistas, senhoras e senhores, a saudação do povo pernambucano. Aceitai-a. É a saudação de um povo irmão! Trago-vos o ósculo fraterno daquelas praias alvas e quentes, o ósculo fraterno dessa amizade indissolúvel que há de cimentar para sempre a integridade nacional, pela qual os pernambucanos derramaram o seu sangue — seu sangue não somente — o sangue de suas próprias esposas.
Senhores, diante desta Assembleia tão venerável, deveria apoucar-me; diante desta Assembleia em que refulgem a mentalidade católica do Brasil e a graça apostólica da mulher brasileira, eu deveria apoucar-me. Mas, bem ao contrário, sinto-me cheio de coragem, porque me sinto cheio de confiança em vós, no coração da vossa cidade. Quero dizer: o vosso coração se me afigura uma taça palpitante, estuante de amor e de carinho.
Permiti-me, pois, que eu, humilde pétala arrancada pelas lufadas do Norte, possa boiar tranquilamente sobre a bondade carinhosa de vossos corações.
A EUCARISTIA NA HISTÓRIA DA IGREJA
São quatro as leis essenciais que determinam e distinguem a Igreja — as leis de unidade, de santidade, de catolicidade e de apostolicidade. Et unam sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam, creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica. Os grandes e profundos espíritos tendem à unidade, não é novo. Só é verdadeiramente sábio aquele cuja inteligência conseguiu construir poderosas sínteses, reduzir fatos ou fenômenos a leis ou princípios supremos.
Só é verdadeiramente grande poeta aquele que pode em versos esplêndidos encerrar uma ideia máxima e fecunda, ideia mater e diretora de todos os surtos e ímpetos do gênio.
Grande cabo de guerra, general da vitória, só aquele que teve o talento de saber unir e organizar batalhões inteiros em ordem de peleja com olhos postos na ideia comum — a Pátria — flutuante nos trapos gloriosos da bandeira.
É assim que se tem escrito e divulgado. Pois bem! Jesus Cristo, meus senhores, não foi simplesmente um grande espírito, um pensador arguto, um incomparável artista, o marechal da vanguarda divina. Jesus Cristo é Deus. É sábio e infinito, e sublime bardo da epopeia cristã e glorioso Leão de Israel; Jesus Cristo marcou a fronte da sua obra divina, poema do seu amor e troféu imorredouro, com o selo eterno da unidade.
A Igreja de Cristo é una. Por esta lei de unidade que esplende na sua fronte nobremente erguida, só ela produziu e produz a unidade dos espíritos. Que semearam os sistemas e as filosofias? A anarquia mental. Que tem feito a política e a violência? Cavar um abismo no seio das almas. Jesus Cristo fundou uma sociedade espiritual que impôs aos espíritos mais diferentes uma só fé e uma só lei, com uma força de convicção irresistível. Senhores, aí está a marca do divino. Esta unidade resulta da sua doutrina imutável. Espalhou por todas as inteligências ideias graníticas, eternas, mas cheias de vitalidade e de energias prodigiosas, ideias fundamentais e comuns, únicas capazes de criar uma perseverança intelectual até o sacrifício e a morte.
Os séculos invejosos dessa glória, disse Lacordaire, vieram bater à porta do Vaticano, bateram com o coturno ou com a bota; saiu a doutrina sob a figura frágil e gasta de algum septuagenário e disse: “Que me quereis? — Mudança. Mas eu não mudo. — Mas tudo mudou no mundo. A astronomia mudou, a química mudou, a filosofia mudou, o império mudou. Porque sois sempre a mesma? — Porque eu venho de Deus e Deus é sempre o mesmo. — Mas pensai: somos os senhores, temos em armas um milhão de homens, puxaremos da espada, a espada que esfacela os tronos, também pode decepar a cabeça de um velho e rasgar as folhas de um livro. — Podeis fazê-lo, o sangue é o aroma em que sempre encontrei a minha juventude. — Pois bem, eis aqui a metade da minha púrpura, fazei um sacrifício à paz e dividamos. — Guarda a tua púrpura, César, amanhã será a tua mortalha e nós cantaremos sobre ti o Aleluia e o De Profundis que nunca mudam! ”
Senhores, a Igreja não pode mudar, deixaria de ser una, de ser verdadeira, porque a verdade é fundamental e essencialmente una e imutável na realização de sua finalidade histórica, a Igreja manteve integrais os seus gloriosos caracteres de unidade, de santidade, de catolicidade e de apostolicidade, sem os quais não seria no mundo reconhecida como a verdadeira Esposa do Cristo.
E na verdade, senhores, a santidade é o seu manto de sol. “Vi um grande sinal no céu. Uma mulher vestida de sol”. As virtudes irradiam do seu misterioso ser e, quando a franja iluminada de sua régia veste roçou pela fronte do mundo, o gênero humano sentiu uma virtude estranha, uma força ignorada e extraordinária que começou a renovar a face da terra. Et renovabis faciem terrae.
Uma floração de anjos e de crucificados cobriu os desertos da sociedade, inebriando-os com o aroma de sua inocência e o suave odor dos seus sacrifícios. Pentecostes inaugurava no mundo os milagres da graça. A grande benção do Espírito de Deus pairou sobre o oceano misterioso das almas — Spiritus Dei ferebatur super aquas. A vida sobrenatural jorrava dos penedos sagrados do Gólgota ao contato da Cruz — o cajado do novo Moisés. Nos séculos mais negros da história eclesiástica, em que Deus parecia demonstrar que a fé não depende nem da ciência nem da probidade dos homens, nesses séculos atrozes, a santidade da Igreja surgiu, como uma estrela esplendidamente luminosa, de todos os eclipses morais que encheram de sombras as cúpulas sagradas.
E o fenômeno católico nesta Igreja una e santa, através da História se acentuou tanto e por tal forma que o nome de Católica lhe ficou como o seu designativo especial e incomunicável desde os primeiros séculos. A Igreja contém em si, na sua constituição íntima, na sua essência; uma irreprimível força expansível. Esta força é como uma projeção da verdade cristã que Jesus Cristo trouxe para toda a humanidade. A expansão da Igreja é católica, isto é: universal por destino, por lei, pela vontade imperativa do Divino Mestre — Praedicate Evangelium omni creaturae. Compreende-se bem como a doutrina do Evangelho é naturalmente cosmopolita e democrática. A sua realeza intelectual é a realeza do povo: é grande demais para ficar encerrada no salão dos magnatas ou argentários.
E essa Igreja, depositária dessa energia miraculosa, galgou as montanhas, vadeou os rios, atravessou os mares, conquistou o universo, consolidou a sua soberania nas coisas e nos espíritos. A sua bandeira recebe o beijo de todos os ventos, e o seu chefe, assentado há vinte séculos sobre um solitário rochedo, açoitado de vez em quando pelo tufão, dá leis a todos os povos, dentro de fronteiras de nações soberanas, estabelece a sua hierarquia, a sua legislação, a sua política e os seus tribunais, e ninguém, senhores, ninguém ousa deter-lhe o braço desarmado de Soberano e Pastor.
Hoje, depois de tantos séculos de lágrimas e vitórias, contemplando essa visão branca que fala a mesma verdade de vinte séculos, que semeia na terra as mesmas sementes de graça e de forças, de abnegações e sacrifícios — as mesmas de outrora — contemplando este ancião da Nova Lei que conserva sobre a fronte enrugada o triregno imortal — a tríplice coroa da universalidade cristã, vós, senhores, vós todos, tomados do respeito que as coisas verdadeiras e divinas inspiram, vós podereis dizer: A Igreja una, santa, católica é a Igreja apostólica; descende desta dinastia popular de pescadores que, revolucionando o mundo, foram os apóstolos e os fundadores da Civilização Cristã, os pregadores de um dogma e uma moral integrados no Magistério infalível da Igreja Católica. Et unam sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam. A finalidade histórica da Igreja una, santa, católica, apostólica era conservar essa mesma unidade, essa mesma santidade, essa mesma apostolicidade, impressa na sua fronte por Jesus Cristo para salvação do homem. E eu vos pergunto: Por que a Igreja, na sua evolução histórica, não aberrou das suas leis essenciais, não deixou de ser una, santa, católica, apostólica? Por causa da promessa de Cristo? Não somente, meus senhores. Cristo quis que sua Igreja tivesse, não só a promessa infalível, mas também, sob o pavilhão sagrado, sob uma nuvem santa, a realidade permanente ou palpitante do seu Coração eucarístico na hóstia sacrossanta do altar.
É por causa desta hóstia, mistério central da Igreja, que essa Igreja se mantém, una, santa, católica, apostólica, através de todas as vicissitudes históricas.
Meus senhores, quem faz a História não é só o homem, quem faz a História é também a Providência. Não creio na fatalidade histórica; creio, como Bossuet, na Providência amorosa de Deus, que conduz os povos. Não deixam de ser beleza e verdade as palavras de Balzac: “No drama da História, Deus é o poeta; os homens os atores; as peças que se jogam na terra são compostas no céu”. Sim, meus senhores, é Deus quem rege a história dos indivíduos e a história das nações. Cristo perpetuou-se na história da sua Igreja pelo mistério da Eucaristia.
Meus senhores, o homem sentiu logo na sua origem a necessidade de um Deus e em sua alma o tormento do infinito. Escutara durante a noite aquela harmonia de que nos fala Platão, a harmonia silenciosa das estrelas; escutara as vozes misteriosas dos seus mares; escutara o rumor sagrado das suas florestas. Escutou mais. Entrou em si mesmo e escutou vozes estranhas em seu ser, vozes que reclamavam formas excelsas de verdade, formas perfeitas e indefiníveis de amor e beleza. E o homem se tornou sacerdote — rezou, suplicou, começou a confessar a Divindade. Mas Deus espírito estava tão longe dele, verme luzente que se arrastava na terra.
O homem precisava de um Deus que tivesse as palpitações da matéria, um Deus sensível. O homem queria sentir em si, não somente os surtos do infinito, do espiritual, mas também sentir uma febre de vida sensível, elevada, uma febre também sentida por um Deus. Que fez Deus? Que fez o Senhor?
Deus respondeu a essa estranha angústia humana com um coração de carne, com o mistério augusto da Encarnação. Fez mais: perpetuou no mundo este Coração de carne, perpetuou o dom régio no mistério real da hóstia pura. Foi além: ficou nos altares como um monge, monge suplicante pelos pecados da humanidade; ficou para ser o Arcanjo zelador da sua esposa dileta, da sua Igreja, depositária augusta da Hóstia.
E vede-a, essa Igreja, vede-a descer as escarpas do Gólgota, envolta, como disse o nosso Nabuco, envolta no sudário do grande Redentor. E que trazia a Peregrina debaixo desse sudário? Que trazia ela? Trazia, senhores, a hóstia eucarística, trazia a hóstia para conquistar o mundo.
Para abalar os impérios romanos não trazia armas; trazia a hóstia. E seus primeiros apóstolos com a hóstia eucarística, com a hóstia santa, anunciaram ao mundo uma boa nova. Os deuses tremeram sobre os seus pedestais; os oráculos se contradisseram; o mundo pagão ruiu. E sobre os escombros do Capitólio da Roma Imperial antiga, drapejou a flâmula do Deus eucarístico, a Cruz do Cristo Redentor. E assim é que a hóstia conduziu a Igreja nas suas primeiras investidas contra o mundo pagão.
O paganismo reagiu diante da hóstia do altar. Os cristãos escondiam-se à sombra das catacumbas e lá comiam a fração do pão, a fração do pão divino da hóstia no idílio espiritual das ágapes. Aqueles que não puderam fugir à sanha dos seus inúmeros inimigos foram presos, torturados. No silêncio da noite, sombras penetravam nas catacumbas, nas prisões e, num beijo, num abraço irmão, davam aos pobres prisioneiros de Cristo a hóstia.
Tendo saído das perseguições, a Igreja encontrou os bárbaros que, como uma avalanche, se precipitaram do Norte. A Igreja não suprimiu logo os excessos dos bárbaros. Transformou-os pouco a pouco. E aqueles altivos senhores feudais se ajoelhavam, reverentes, diante da hóstia branca, e se reconciliavam aos pés do altar.
Meus senhores, as Cruzadas e as grandes descobertas se fizeram em nome do Santíssimo Sacramento, em nome da hóstia católica. Colombo trouxe no peito a hóstia divina para surpreender a jovem América. E quando a viu surgir — a América, como uma ninfa, da espuma dos nossos belos mares, sentiu na alma católica as vibrações do Coração Eucarístico, ansiando por alcançar novos mundos. Os missionários católicos, por toda a parte onde levantavam a Cruz do Salvador, desfraldavam a bandeira da Eucaristia e saudavam a terra que iam evangelizar com o sangue do Cordeiro Imaculado.
Assim, meus senhores, nossa terra brasileira, a terra do Brasil, é por destino a terra da Eucaristia. Devemo-nos lembrar de que sob as umbelas verdes de nossas florestas, entre as matinas de nossas belas alvoradas, devemo-nos lembrar de que Frei Henrique ergueu a Hóstia divina sobre a terra virgem descoberta por Cabral, consagrando-a de maneira definitiva, ao Coração Eucarístico do nosso Divino Salvador.
Meus senhores, uma terra assim dedicada desde a sua origem à glória da hóstia, conservadora da unidade, da santidade, da catolicidade, da apostolicidade da Igreja, uma terra assim só pode pertencer ao Coração Eucarístico do nosso Divino Salvador.
Pio XI, no Congresso Eucarístico Internacional da Paz, em discurso magnífico, disse: “Daqui a poucos momentos verei desdobrar o vosso cortejo pelas ruas históricas da vossa cidade eterna e no meio do vosso cortejo avançará o Cristo, o Rei imortal dos séculos. Violentastes o Coração de Deus; obrigastes Deus a sair do seu Tabernáculo. Ele avança e vai reinar por toda parte, reinar em vossos corações e, por meio dos vossos corações, vai reinar pelo mundo inteiro. Seus olhos eucarísticos tornarão a ver essas ruas, tão cheias de lembranças; seus olhos eucarísticos tornarão a ver esses lugares banhados do sangue de tantos mártires, e Ele, o Cristo, verá na glória da hóstia, a santificação da vossa cidade”.
Continuando o seu discurso, disse Pio XI: “Agora e no futuro, onde quer que seja, numa grande cidade ou numa simples aldeia, onde se celebrar um congresso eucarístico, o Cristo entrará na vida humana, na vida pública, na larga corrente dos acontecimentos humanos”.
Meus senhores, estas palavras de Pio XI são proféticas para nós. Ele disse: “E em qualquer parte onde se celebrar um congresso eucarístico, numa grande cidade ou numa simples aldeia, o Cristo entrará na sua vida pública”.
Eu tenho certeza de que o Cristo eucarístico vai entrar, por este Congresso, na vida pública do nosso estremecido, do nosso querido Brasil.
Sim, meus senhores, aquelas palavras de Pio XI são, verdadeiramente, uma conclusão histórica. A Hóstia é o elemento renovador das sociedades humanas. O Padre Gratry escreveu muito bem: “Fala-se por toda parte no rejuvenescimento da vida cristã; fala-se por toda parte numa grande unidade”. Historiadores profundos como Ranke, dizem que veremos uma exposição nova que reunirá todos os fiéis, que reduzirá os próprios incrédulos. Agora adivinho. Na minha ciência, no meu espírito, na minha fé, essa exposição é o catolicismo bem compreendido. Não é só isso. O que há de reunir todos os fiéis, seduzir os próprios incrédulos não é o catolicismo compreendido, é o catolicismo servido e vivido na hóstia de todos os nossos altares. É a Hóstia, portanto, que vai salvar a humanidade, que vai salvar o nosso querido Brasil.
Bendito o coração patriota que realizou a ideia de um Congresso Nacional! Benditos vós todos que trabalhastes, que trabalhastes com tanto ardor e veemência para o êxito desse Congresso! Fazeis obra essencialmente patriótica. Precisamos de uma reação do sobrenatural, quando a invasão do naturalismo ameaça as nossas ciências, nossas artes, nossa literatura, nossa consciência nacional. Precisamos, como nação, de uma reação do sobrenatural cuja plenitude podemos encontrar na Hóstia — o mistério central do catolicismo. Pois bem. O que ditou este Congresso foi o amor da Pátria. Não somente este instinto sagrado, se assim me posso expressar, que nos faz amar as nossas searas, os nossos regatos, os nossos campanários, e os túmulos dos nossos avós; não somente este amor consciente que nos faz morrer pela bandeira, mas o amor da Pátria que se sublima na fé e se sublima no amor a Jesus sacramentado; é essa piedade altíssima que trouxe ao Brasil a felicidade dessa comemoração nacional de um Congresso Eucarístico.
O Brasil inteiro está sentindo, tenho certeza, uma comoção enorme.
Senhores, nesta noite gloriosa para esta cidade, nesta noite há alguma coisa que irrompe do peito azul da vossa linda Guanabara; há alguma coisa que se está desentranhando das vossas montanhas protetoras, do silêncio augusto das vossas florestas e do rumor das vossas cascatas; há alguma coisa que impressiona de vaporoso e indeciso como o fantasma desta vigília noturna; há alguma coisa que me parece a alma do Brasil católico, do Brasil inteiro a despertar. Penso que esta alma há de despertar neste santuário que é a vossa cidade, santuário em que se exerce a soberania do meu Brasil. Pois bem; esta sonâmbula há de acordar ao eco das vossas trombetas.
Sim, entoai as vossas trombetas eucarísticas e, ao seu eco sagrado, a sonâmbula despertará. Está sorrindo a esta orgia de luz, a esse encantamento feiticeiro do vosso Rio maravilhoso. Mas tem de despertar para a glória cristã.
Desperta, alma do Brasil.
Olha! A cidade do Rio de Janeiro é a tua sacerdotisa magna. Ela vai colocar nos cimos alcantilados dos seus rochedos a imagem do Cristo.
Ela vai fazer mais: vai erguer acima dos seus píncaros sagrados e levantar sobre as águas da sua baía, sobre suas montanhas, sobre o Brasil, a hóstia branca e repetir novamente a palavra incomparável: Cristo ou Morte!
Dom José Pereira Alves - Discursos e Conferências, Imprensa Nacional 1948.