Espiritualidade (180)
Pe. Matéo Crawley-Boevey
Nota da Permanência: O Padre Matéo proferiu estas conferências às superioras de diversas comunidades religiosas do Canadá, na província do Québec, em 1945. Embora endereçadas às almas consagradas, estas conferências são utilíssimas aos leigos, havendo estes tão-somente de fazer as devidas substituições, como “almas consagradas” por “almas batizadas”, “comunidade” por “família”, “vida religiosa” por “vida cristã” e assim por diante.
Inclinar-se à santidade
Como vocês são religiosas, falemos sobre a vida religiosa; comecemos pelo começo. A vida religiosa é uma pedra angular. O padre não é um homem como outro qualquer, mas é um super-homem, um homem divinizado. Uma religiosa como vocês não é uma dama fina e inteligente, de forma nenhuma, mas sim uma pessoa consagrada a Deus; vocês são esposas e rainhas do rei Jesus, não servas, e muito menos escravas. Bem sei que vocês são insignificantes grãos de areia, mas Jesus as escolheu, de modo que a consagração é um casamento, não porque vocês o tenham pretendido, mas porque Jesus o quis assim. Essa união com Jesus é um casamento divino.
Certa feita uma religiosa ensinava a uma princesa a quem teve de repreender; a princesinha, irritada, recusava-se a obedecer e encolerizada disse: “Esqueceu-se de que sou filha do rei de França?”, ao que a religiosa respondeu: “Esqueceu-se de que sou esposa do rei dos reis, diante de quem o seu paizinho se ajoelha?”
A quem muito foi dado, muito será cobrado: o milionário não será cobrado como o servo. Vocês não serão julgadas como escravas mas prediletas. Cobrará o rei: “Recebeste tesouros, por isso vem prestar contas do diadema e do manto real.” Essa frase lhes deve provocar calafrios. A principal glória da vida religiosa é a de que vocês são as minhas prediletas, lhes diz Jesus, minhas pombas e filhinhas do coração. Quando morrerem, Jesus não perguntará se vocês instruíam cinqüenta alunas ou administravam um grande hospital, mas: “Amaste-me tu como uma rainha? Agiste como minha predileta?” Ele não dirá: “Vê as minhas mãos e os meus pés, que os impuros, os maus e os ímpios machucaram”; não, o primeiro sofrimento lhe virá das almas consagradas! “Tu me juraste que serias santa: que fizeste do juramento?”
Não pensamos o suficiente nessa queixa de Nosso Senhor em Paray-le-Monial. Normalmente se reclama de que as obras não vão para frente, de que há algo de errado com as irmãs, mas Nosso Senhor bem que poderia perguntar: “Recordas-te da tua profissão? Prometeste ser santa e, depois de quarenta anos, ainda não és.” Profissão significa convento e religião; por que entrei no convento? Vocês afirmam: “Para salvar a minha alma ou salvar almas.” Salvar a minha alma? Quem lhes disse que os três votos são necessários para ir ao céu? Então, papai e mãe vão ao inferno, pois eles não fizeram os três votos! O batismo, a penitência e a comunhão são suficientes para que papai e mamãe se salvem, bem como milhares de cristãos pelo mundo. Mas vocês insistem: “Vim para salvar as almas.” Pois bem! Salvar almas é conseqüência, pois as salvarão à medida de sua santidade.
Vocês entraram no convento para se tornarem santas: eis o princípio e o cerne da vida religiosa. Vocês são religiosas para que sejam santas e mais nada, o resto já está contido nisto. Ninguém está aqui para se instruir ou curar as feridas, mas para se transformar em santo; o único ideal da vida religiosa é amar como amaram os santos, ou seja, ser um santo com S maiúsculo a todo o custo. A pobreza, a castidade e a obediência são os três votos que me ajudarão; diariamente, com a graça de Deus, subirei, subirei e me tornarei santa. Se alguém já lhes disse isso, bem-aventuradas são; se esta é a primeira vez, mãos à obra. Ninguém está aqui para brincar de teatro, música, literatura e quejandos, mas para ser santa. Esta é a instrução que vocês devem transmitir às noviças. Não se tornar uma pessoa má não é um ideal, mas é o mínimo; se a mulher é religiosa apenas para evitar o pecado, está perdendo tempo.
“Senhor, dai-nos a vitória”
Quando visitei o papa, ele me perguntou: “Padre, que mais o inquietou nas suas palestras pelo mundo?” Fiquei hesitante. “– Fale, fale. – A falta de santos, a falta de santos.” Só o céu canoniza, só ele o rei que sabe de tudo; mas onde estão os seus santos canonizados? Agora chegou o momento: abandonem tudo o mais e se tornem santas!
Vou citar-lhes um episódio ocorrido durante a 1ª Guerra Mundial [1914-1918]: uma boa irmã, mas não santa, que tinha dois irmãos de sangue oficiais, repetia sempre entre gemidos: “Senhor, dai-nos a vitória! Nossa vitória, Senhor!” Certo dia escutou ela uma voz que saia do tabernáculo: “De que vitória falas? – Da vitória das nossas forças armadas. – Deixa isso comigo, disse Jesus; eu sou o Mestre, por isso suplique antes a minha vitória. – Que vitória, Senhor? – Quê? Tu, que és religiosa, não sabes qual é a minha vitória? A minha vitória é que tu sejas uma santa, pois boas irmãs como tu tenho para dar e vender.”
Como os santos nos fazem falta, o mundo definha porque estão faltando santos!
O primeiro dever da religiosa é santificar-se e oferecer ao próximo algo da própria fartura santificando-o. Não sejam modernistas: é errado aceitar moças para enfermeiras ou instrutoras. Necessitamos de noviças, assim se constitui erro grave a falta de rigor na escolha delas. A melhor religiosa, essa será a melhor instrutora e enfermeira; o resto vem em acréscimo. Perguntar-se-ão as religiosas: “Nós, santas? Não passamos de um fardo de misérias.” Pobre Jesus! Quando ele as escolheu, não sabia que eram miseráveis? Estava ele cego, sonolento, com a vista embaçada? Jesus não dorme, pois ele é justiça e sabedoria; Jesus as enxergou tais quais eram, sabia o que eram e, porque nunca se engana, as escolheu, para que se tornassem santas.
Acompanhando o chamado vêm as graças de estado; se a moça a quem chamei não consegue aumentar o resplendor das estrelas, eu, Jesus, que sou o guia dela, consigo. Ele nos concedeu milhares de graças para que sejamos santos! Quantos grandes santos receberam menos que nós! Nasceram com três centavos e morreram milionários; foram generosos e se tornaram sóis gloriosos. Talvez São Francisco de Assis e Santa Margarida Maria tenham sido menos favorecidos que nós, porém foram fidelíssimos ao capitalizar os dons de Deus! Sejam exigentes com as meninas que acolherem; quiçá percam umas cinco ou dez, mas seriam cinco ou dez noviças em demasia. Uma moça de dezenove anos costumava travar relações com religiosas não santas; convidaram-na a ingressar ao convento, contudo ela respondeu: “Ser religiosa é só isso? Vou ficar com a minha família.” Por vezes é assim que as boas almas se afastam.
A graça, a generosidade e a educação
Antes de tudo, é a graça que faz os santos. Jesus não pede mais do que podemos dar; mas se ele nos pede nos dá. Dá dez vezes mais que o necessário. O purgatório ficará cheio até a boca com almas que viveram vinte, trinta, quarenta anos no convento sem saber que a graça de Deus as ajudava e sem haver feito frutificá-la. Vocês são capazes de serem muito maiores que a singela Teresinha, apesar de serem apenas singelas cristãs. A santidade se baseia em graças superabundantes. Ninguém exige que uma pedrinha voe, mas com a graça de Deus é possível.
A santidade se baseia em generosidade: elevemo-nos cada vez mais, não fiquemos parados, nunca. Criemos asas, quais pássaros, que começam a voar aos poucos, e nos elevemos sempre. Teresinha, que se alçou tão alto em apenas vinte e quatro anos, dá-nos uma lição. Que fez ela? Escutem: “Nunca recusei nada ao bom Deus, desde a idade de quatro anos.” Talvez ela tenha recebido um capital menor que o de vocês e o meu, mas ela aumentou esse capital. Se vocês têm remorsos de haverem recusado muitas coisas do bom Deus, bem, a partir deste retiro vocês já não recusarão nada, progredindo no caminho de Teresinha: doação total, coração em troca de coração. Não ingressamos nas ordens apenas para que não sejamos impuros ou maus, porque, passado bastante tempo, conseguimos renunciar o pecado; de fato, renunciamos coisas excelentes: o casamento, a vida de família; mas nós nos limitamos, e porque nos limitamos, limitando a doação total, não somos totalmente de Jesus, e só dele.
A santidade se baseia na educação religiosa. Para que se formem os jovens nessa doação total, força é lembrarem-se dos santos: é essa a sua responsabilidade. Uma barra de ouro tem de ser purificada e cinzelada, a fim de que se transforme em cálice. O esforço e a labuta da boa vontade, diariamente, é o que faz os santos. Vocês precisam amar o esforço e torná-lo amável.
Um de nossos padres, provincial durante alguns anos – e morto em odor de santidade, envolto numa atmosfera de humildade e paz –, fora um moço altivo e orgulhoso, cheio de defeitos. Aos pouquinhos se transformou em santo, pelo esforço cotidiano. Aquele moço colérico, que tinha enormes defeitos e qualidades enormes, ao fim da vida se tornara um repositório de bondade e tranqüilidade, amado por todos e lamentado com soluços pelos religiosos que lhe assistiram à partida para o céu.
Sim, a santidade se baseia na educação também. Não basta ser uma boa irmã e contentar-se com isso, mas tentar imitar Teresinha. Eu lhes imploro, em nome do Sacratíssimo Coração de Jesus, para que vocês se tornem santas, pois é este o seu único dever, e só este.
Se vocês confiam mais na menina que tem vocação para boa mestra do que para boa religiosa, expiarão tal erro.
Vivemos aos trancos e barrancos, por isso desejaríamos sempre diminuir as exigências da religião, deixar a vida correr frouxa. Que pena! Há cem anos éramos mais religiosos. Que fazem vocês, se não trabalham na santidade? Deste modo se perde a glória de Deus, a de vocês e a das almas. Os padres devem ser o Cristo da paróquia, e também vocês devem ser um pouco como ele, sendo assim muito mais religiosas. Convençam-se em ser religiosas acima de tudo, e ainda assim considerem que talvez não estejam entre as primeiras almas da paróquia. É impossível Jesus reinar contra mim e vocês, pois vocês e suas comunidades são a guarda real do rei; portanto, despertem a luz e o calor nos corações e nas comunidades... Jesus não nos exige milagres, senão o milagre do amor, que é a ambição de ser santo custe o que custar. Quem salvará o nosso país? Não serão os políticos mas os santos. Um Cura d’Ars é mais glorioso para a França que mil Napoleões.
Realizaram vocês os esforços amorosos que lhes espera o rei, a exemplo de Teresinha ou Bernadete? Nem todos podem ser artistas, mas podem ser santos. Se não há santos nos conventos, onde encontrá-los? Se não há água nas fontes, onde bebê-la? Se não há flores nos jardins, onde colhê-las? Se não há árvores das florestas, onde buscá-las? Se não há estrelas no firmamento, onde fitá-las? A fonte é o convento, o jardim é o convento, a floresta é o convento, e o céu é o convento. Catarina Tekakwitha se elevou bastante; ela era uma pequena iroquesa; quiçá ela será considerada santa antes de vocês, mesmo sendo uma selvagenzinha! Se Deus quiser, tomara que ela as ultrapasse; Catarina não era religiosa, mas um passarinho da floresta. Já vocês são estrelas do firmamento. De direito, a santidade é sua; de fato, é dela.
Deus lhes está chamando, assim tratem de se elevar com asas de águia, pois Jesus, o rei, quer o milagre de sua santificação. O único objetivo de vocês serem religiosas é a glória de Deus. Urge que todas e cada uma sejam santas, e eduquem as suas filhas, pois ninguém dá o que não tem: sejam santas para transmitir a santidade.
“A missa na intenção de vocês é a minha grande pregação”
A doutrina do Sacratíssimo Coração de Jesus é uma teologia inteira por si só; reparem bem: o amor do Cristo é o dogma, o meu amor é a moral. Essa teologia se resume em três cenas: a manjedoura, a cruz e o altar. O quadro da missa que está neste local é obra de um padre belga; ele suprimiu os pormenores que distrairiam o fiel da missa: não há flores nem anjos, mas somente o sacrifício.
Suplico-lhes a esmola de uma oração ou de uma via crucis em favor das almas pecadoras dos consagrados, que precisam de luz imensa para retornarem a Deus; depois, durante o retiro, o Rosário da Santíssima Virgem. Celebro a missa durante a comunhão para ajudá-las a dar graças a Nosso Senhor. A missa na intenção de vocês é a minha grande pregação; só aí espero fazer alguma coisa pelas suas comunidades. Aqui, uso a minha língua; mas a melhor pregação é a do Senhor na missa. Essa pregação cala mais e melhor nos corações, pois quem lhas dá é o Sacratíssimo Coração de Jesus. Supliquem ao Sacratíssimo Coração de Jesus para que lhes deem luzes.
(Tradução: Permanência / Revista Permanência 274)
Pe. Gabriel Billecocq, FSSPX
Caros amigos e benfeitores,
A seguir, um sermão do Pe. Gabriel Billecocq, FSSPX, no último domingo depois de Pentecostes, 21 de novembro de 2021, na Igreja de São Nicolas-du-Chardonnet em Paris. É um texto bastante equilibrado, um aviso salutar para que evitemos os excessos aos quais podemos nos inclinar eventualmente nestes tempos difíceis, e um aviso ainda mais salutar para que foquemos na única coisa necessária: Deus e Sua vontade.
In Christo Sacerdote et Maria,
Pe. Yves Le Roux
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.
Meus queridos fiéis,
Hoje, a Igreja nos dá uma visão verdadeiramente apocalíptica no Evangelho, com Nosso Senhor descrevendo o que, aparentemente, é o fim dos tempos -- tempos difíceis, dolorosos, aqueles dias, que serão abreviados em consideração dos eleitos, como Nosso Senhor mesmo nos diz.
Todos nós temos uma pequena curiosidade de saber como essas coisas vão acontecer, como o fim dos tempos vai se dar, e talvez alguns de vocês tenham sido curiosos o suficiente para apanhar o Livro do Apocalipse e tentar lê-lo e adivinhar de maneira mais concreta, mais material, como essas coisas acontecerão. Vocês devem ter lido sobre as famosas bestas do Apocalipse e sobre a "marca da Besta", o sinal da Besta.
Meus queridos fiéis, nossa curiosidade sobre essas coisas pode ser mórbida às vezes. A curiosidade mórbida existe: uma curiosidade que nos inclina mais ao pecado do que ao que é belo e bom. Nós podemos constatar com nossos próprios olhos, há exemplos em abundância ao nosso redor. É triste ver quantos jovens se inclinam a más imagens, ao invés de ler o Evangelho ou de se interessar pelo que Nosso Senhor fez durante Sua vida. E temos que reconhecer que nós, também, podemos ser afetados por essa curiosidade mórbida quando pensamos no fim dos tempos, imaginando como o Anticristo será, como ele nascerá, quem ele será, como poderemos reconhecê-lo, qual será a marca do Anticristo... E vocês sabem que as pessoas, hoje, estão fazendo todo tipo de especulação sobre essas coisas. E também está dito no Apocalipse que cada um dos eleitos estará marcado com o sinal de Deus -- e nenhum dos fiéis jamais veio me perguntar qual será o sinal de Deus. Todo mundo só pergunta "Qual o sinal do demônio? Qual a marca da Besta?" Ninguém se pergunta "Qual será o sinal de Deus?" Meus queridos irmãos, isso é apenas um exemplo de como nossa curiosidade facilmente se inclina em direção ao mau e feio do que ao bom e belo, e isso é uma coisa triste.
Então, para aquietar essa curiosidade toda um pouco, vamos hoje falar sobre esse sinal da Besta, como ele aparece no Apocalipse e como alguns Padres da Igreja o compreendem. Ouvimos falar muito dessas coisas hoje em dia, infelizmente, graças a tudo que está havendo no mundo.
É verdade que o Apocalipse inclui aquela famosa passagem segundo a qual aqueles que seguem a Besta terão uma marca na sua testa e no seu braço, e que eles não poderão comprar nada se não tiverem essa marca. Muitas pessoas estão imaginando que a vacina pode ser a marca da Besta -- da mesma maneira que essas mesmas pessoas imaginaram que os cartões de crédito eram a Besta, e, depois, se perguntaram se os códigos de barras eram, talvez, o sinal da Besta.
Então, o Apocalipse acrescenta o nome da Besta, dizendo que é um nome de homem, e o número do seu nome é 666 (seiscentos e sessenta e seis). As pessoas também especulam sobre essas expressões encontradas no Apocalipse.
Primeiramente, a marca a Besta é um selo na mão e na testa, e Santo Agostinho explica o que isso significa. Santo Agostinho não descreve esse selo como uma marca visível ao olho, como uma tatuagem ou um chip inserido no nosso corpo. Ele diz que a marca na mão e o caráter na testa significam dois modos de pertencer ao demônio.
O primeiro modo de pertencer é a marca na testa, que representa pertencer através da confissão aberta. O primeiro modo de pertencer à Besta é a marca na testa, ou seja, ao proclamar, abertamente, que a Besta é toda-poderosa e, ao mesmo tempo, negar que Deus é todo-poderoso. Outro Padre da Igreja dá a mesma interpretação, a de que uma das marcas da Besta é a negação: a negação de Deus, a negação de Sua onipotência, a negação de que Deus criou o mundo, a negação de Sua Encarnação, negação da Redenção... Em uma palavra, essa marca na testa significa a apostasia, a apostasia do coração. A testa é aquilo que aparece abertamente, e Santo Agostinho explica que o que aparece em nossa testa é o que mostramos no exterior daquilo que está no nosso interior, da mesma maneira que o sinal do cristão é o sinal da cruz, que começamos na nossa testa com nossa mão. Então, assim como o sinal do cristão é o sinal da cruz, através do qual o cristão mostra exteriormente que ele pertence a Jesus Cristo, que ele quer seguir Jesus Cristo, Seu Mestre, e carregar sua cruz; da mesma maneira, o primeiro sinal do demônio, aquela marca na testa, significa que um homem nega Deus abertamente e afirma que o demônio é todo-poderoso.
A segunda marca é aquela na mão. Novamente, aqui Santo Agostinho explica que essa marca não é algum tipo de tatuagem ou um chip inserido na mão da pessoa. Explica que, na Escritura, as mãos representam as obras. A segunda marca de pertencimento à Besta são as ações más, as obras do pecado. Aquele que pertence à Besta é aquele que segue o demônio fazendo o mal, praticando o mal, a obra do pecado.
Meus queridos fiéis, aí está para vocês o significado dessas marcas, dos sinais da Besta.
A nossa salvação não é mais material do que nosso combate, mas sim espiritual. Então, nosso pertencimento a Deus ou ao demônio não é, em essência, algo material. Essencialmente, não é ao inscrever algo em nosso corpo que pertencemos ao demônio, da mesma maneira que não é essencialmente ao inscrever algo em nosso corpo que nos faz pertencer a deus. A primeira marca do nosso pertencimento a Deus é um caráter, um caráter indelével, impresso em nossa alma pelo batismo. Essa é a primeira marca do pertencimento do cristão a Deus. E é esse caráter que lhe dá acesso aos demais sacramentos. A marca do pertencimento à Besta também é um caráter da alma, não um caráter indelével, graças a Deus, mas o caráter de uma vontade que se inclina ao mal e comete o pecado.
Nosso combate é espiritual, assim como nosso pertencimento a Deus é espiritual. E pertencer ao demônio também é um fato espiritual. Pertencemos a Deus através da graça, e esse é o sinal pelo qual reconhecemos os eleitos de Deus. Os eleitos são aqueles marcados pelo sinal da graça, em outras palavras, o sinal da caridade, do amor de Deus e da vida de Deus. Pertencer ao demônio significa o pecado. Pertence ao demônio aquele homem que não tem o amor de Deus nele, mas apenas o amor das coisas terrenas, materiais, sensíveis, ou mesmo simplesmente humanas, sem nada além disso.
Quanto a esse número, 666 (seiscentos e sessenta e seis), do qual o Apocalipse fala, o Apocalipse também diz que esse número da Besta é "o número de um homem". Santo Irineu talvez seja quem dá a melhor explicação para esse número. Muitas pessoas tentaram encontrar esse número literalmente, ou encontrar o nome que ele contém, da mesma maneira que os rabinos faziam, pois os números na Escritura sempre têm algum tipo de simbolismo. Há até mesmo uma ciência que dá a interpretação dos números. Santo Irineu vai além disso.
Os Padres da Igreja estão em consenso quanto ao fato de que esse nome nos permanecerá desconhecido até que o Anticristo apareça. Essa profecia do Apocalipse é como qualquer outra profecia: ela só se tornará clara quando cumprida. Mas Santo Irineu ainda explica que o número 666 está cheio de simbolismos, assim como o número de 144 mil eleitos contados no Apocalipse, 12 mil de cada tribo, como ouvimos na Festa de Todos os Santos. Os números na Escritura, realmente, são simbólicos. O número 7 representa uma perfeição, 8 representa uma plenitude, e 6 representa uma imperfeição. Não apenas qualquer imperfeição, mas os Padres dizem que parar a contagem em seis representa impedir o número de atingir a Deus [que seria a perfeição, representada pelo número 7]. Então o número seis indica não algum tipo de imperfeição natural inerente à criatura, mas um direcionamento do homem a ele mesmo. E Santo Irineu vai além, explicando que o 6 triplo representa um triplo direcionamento do homem a si mesmo: não apenas um pecado da alma, isto é, do intelecto e da alma, mas também um terceiro pecado, que ele chama de pecado do espírito.
O pecado do corpo, como sabemos, são todos aqueles pecados que se encontram espalhados hoje em dia -- não há necessidade de nos alongarmos nesse ponto -- [como] os pecados contra a natureza, aqueles pecados que pedem vingança aos Céus. O pecado da alma, isto é, o do intelecto e da vontade, corresponde ao pecado do homem de hoje, que evita que o intelecto atinja a verdade. -- E aqui, meus caros fiéis, precisamos agradecer àqueles que se devotam aos nossos filhos e a dar-lhes uma educação genuína nas verdades que os levam a Jesus Cristo. Mas esse pecado da alma, o de fazer tudo para evitar que a criança atinja a verdade, também afeta a vontade. É outro aspecto daqueles programas de educação modernos, evitar que a criança conheça a verdade, conheça o bem e como ela pode praticar o bem.
O último dos três "seis" representa o pecado do espírito, o pecado de nos fecharmos a Deus; é o pecado através do qual o homem recusa a Deus. Esse pecado corresponde à abominação da desolação no Templo Sagrado, talvez como vemos hoje nessa Missa nova, na qual a adoração está completamente direcionada ao homem.
Meus queridos fiéis, vocês podem ver como os Padres da Igreja explicam essas palavras misteriosas do Apocalipse, que permanecem misteriosas nos dias de hoje. Precisamos parar de correr atrás de interpretações, uma mais assustadora que a outra. Não importam as dificuldades que estamos enfrentando hoje, não importa as mentiras e erros que nos são apresentados -- e muitos erros e mentiras nos são apresentados! -- não importa quão perigosos sejam alguns produtos que os homens querem injetar em nós, não esqueçamos que a marca da Besta é algo espiritual: ela é o pecado. Pertencemos ao demônio pelo pecado; pertencemos a Deus pela graça e pela caridade.
Aí está, meus queridos fiéis. Nosso Senhor é muito claro nesse ponto e nos diz: "Não temais aqueles que podem matar o corpo" -- e disso nós temos, hoje, uma aplicação direta -- "não temais aqueles que podem matar o corpo; ao invés, temei Aquele que tem o poder de atirar ao fogo eterno". E, novamente, Nosso Senhor diz isso a Seus Apóstolos antes de os deixar "Tende coragem; eu venci o mundo". Não temos nada a temer das coisas materiais deste mundo. Devemos temer o pecado. Não devemos temer a morte do corpo; devemos temer a morte eterna.
É verdade, meus queridos fiéis, que o futuro nos é desconhecido, e ele pode parecer bastante sombrio. Ainda assim, há coisas que sabemos com certeza absoluta: Deus é nosso Pai, Deus não esquece Seus filhos, Deus protege Seus filhos, Deus alimenta Seus filhos.
Não importa as provações que tenhamos de enfrentar, tenhamos uma confiança perfeita: não sabemos os sofrimentos que estão vindo, mas sabemos com certeza absoluta que a graça jamais nos abandonará. Essa é a nossa esperança e a nossa alegria nesse mundo de tristezas.
Amém.
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.
S. Leonardo de Porto Maurício
Preparação
De joelhos ao pé do altar, o oficiante recita em voz alta as orações seguintes:
Oração
Actiones nostras, quaesumus, Domine,aspirando praeveni, et adjuvando prosequere., ut cuncta nostra oratio et operatio a te semper incipiat et per te coepta finiatur. Per Christum Dominum nostrum. Amen.
Ato de Contrição
Ó meu Jesus Cristo afável, porque sois infinitamente bom e misericordioso, eu Vos amo acima de todas as coisas; arrependo-me de todo o coração de Vos haver ofendido, Vós que sois o soberano bem. Por isso Vos ofereço este exercício piedoso, em memória do percurso doloroso a caminho do Calvário, o qual fizestes por amor a mim, pecador indigno.
Eu me proponho a lucrar todas as indulgências anexas a este exercício e, para tanto, tenho a intenção de rezar pelas finalidades em razão das quais foram concedidas tantas benesses.
Humildemente imploro a Vossa assistência, ó meu Divino Salvador, para terminar este santo exercício de modo a que obtenha a misericórdia nesta vida e a glória no século vindouro. Amém.
Ao sair do altar, entoa-se o Stabat ou outro cântico.
1ª Estação - Jesus é condenado à morte
V. Adoramus te, Christe, et benedicimus tibi;
R. Quia per sanctam Crucem tuam redemisti mundum.
A primeira estação representa a casa e o pretório de Pilatos, onde Jesus Cristo foi condenado à morte.
Consideremos a submissão admirável com que Jesus, a inocência em pessoa, recebe a injusta sentença. Lembrai-vos de que foram os vossos pecados que ditaram a decisão, que foram as vossas blasfêmias, malícias e licenças as palavras deicidas que convenceram o juiz iníquo a proferir a condenação. Voltemos nosso olhar ao Deus cheio de amor, e com a alma repleta da mais viva dor, digamos a Ele por lágrimas mais do que por palavras:
Jesus amável, a que excessos Vos levou o Vosso amor por nós! É mesmo verdade que quisestes ser encarcerado, acorrentado, vergastado e condenado à morte infame em benefício de criaturas tão indignas? Ah, tamanho sacrifício comove meu coração insensível e me faz detestar os pecados, em particular os pecados da língua! Sim, Jesus amado, eu os detesto! Enquanto durar esta via dolorosa, diante de Vós eu sempre hei de chorar e lamentar por eles, repetindo: Ó meu Jesus, tende piedade de mim! Jesus, misericórdia!
Pater. Ave. Gloria
V. Miserere nostri, Domine;
R. Miserere nostri.
V. Fidelium animae per misericordiam Dei requiescant in pace.
R. Amen.
Quanta maldade sofre o autor da vida,
De Quem eu testemunho a crua sorte!
Mas pior que dos judeus a perfídia
É o meu pecado, que o condena à morte.
2ª Estação - Jesus toma a cruz aos ombros
V. Adoramus te, Christe, etc.
A segunda estação representa o lugar onde o Divino Salvador tomou o pesado fardo da cruz.
Consideremos com que enlevo Jesus abraça a cruz, com que mansidão suporta os cruéis tormentos dos carrascos e os ultrajes do populacho em fúria. Vós, porém, não sabeis suportar a pena mais suave; vós fugis à vista dos menores sofrimentos. Esqueceis que, sem a cruz, não sereis admitidos na morada gloriosa? Ah, lamentai a vossa cegueira e, prostrados aos pés do Divino Redentor, declarai:
Cabe a mim, ó Jesus, e não a Vós, carregar essa cruz tão opressiva e dolorosa, fabricada com as traves dos meus pecados. Meu amável Salvador, dai-me forças para, daqui por diante, abraçar as cruzes que tanto mereci, por causa da minha infidelidade; concedei-me a graça de morrer aninhado na cruz e de repetir, osculando com afeto o Santo Lenho, as palavras de Santa Teresa: “Sofrer ou morrer! Sofrer ou morrer!”
Pater. Ave. Gloria etc.
Vejo Jesus sob o madeiro
Levar golpes do Pai exasperado;
Deus sentencia Nele o meu erro;
Ele sofre mas eu que sou culpado.
3ª Estação - Jesus cai pela primeira vez
V. Adoramus te, Christe, etc.
A terceira estação representa a primeira queda de Jesus sob o peso da cruz.
Contemplemos Jesus na via dolorosa; o sangue escorria das Suas feridas e enfraquecia-O; por isso, Ele cai no chão pela primeira vez. Com que furor os carrascos Lhe puseram de pé, empurram-n’O e redobraram os golpes! E Jesus amável não abria a boca, mas sofria em silêncio; já vós, diante da mínima contrariedade, vós vos entregais aos murmúrios e aos queixumes amargos, até mesmo às blasfêmias. Detestai, de uma vez por todas, as impaciências e o orgulho, e pedi ao benévolo Salvador que Ele perdoe as vossas quedas:
Ó bom Jesus, amável Redentor, vedes a Vossos pés um grande pecador, o pior dos pecadores que há sobre a terra. Oh, são muitas as quedas culpáveis de que posso me acusar! Quantas vezes não me precipitei no abismo das iniqüidades! Dignai-vos, ó Jesus, estender-me a mão firme para retirar-me deste precipício; ajudai-me, estou implorando, ajudai-me, a fim de que eu, pelo resto da vida, evite a recaída no pecado mortal e mereça, pela graça de uma santa morte, ser feliz convosco pelos séculos dos séculos.
Pater. Ave. Gloria etc.
Jesus se inclina e tomba sob o fardo;
levantam-n’O entre gritos de furor.
Esta queda me cura do pecado,
me encoraja e me infunde mais fervor.
4ª Estação - Jesus se encontra com Sua mãe santíssima
V. Adoramus te, Christe, etc.
A quarta estação representa o lugar onde Jesus encontra Sua Divina Mãe mergulhada em profundíssima aflição.
Ah, quantos acréscimos de penas nos corações de Jesus e de Maria, quando o Filho e a Mãe se entrecruzam no caminho do Calvário! – Alma ingrata! Que fizeram contigo, meu Jesus? Vos diz a mãe aflita. – Que fizeram contigo, Minha pobre mãe? responde o benévolo Filho. Ah, renuncie ao pecado quem seja a causa de Nosso sofrimento! – Qual a vossa resposta? Rendei-vos a estas sentidas reprimendas e confessai:
Ó adorável Filho de Maria! Ó Divina Mãe de Jesus! Eis-me aqui prostrado a Vossos pés, confundido e atormentado pela dor. Confesso a minha perfídia: sou eu o infeliz que forjei com meus pecados a espada cruel que atravessou os Vossos corações. Ah, arrependo-me do fundo do coração e imploro o perdão a um e a outro. Misericórdia, ó Jesus amado, misericórdia, ó Maria, misericórdia! Protegido sob o manto da Vossa misericórdia, não cairei mais em pecado, mas meditarei dia e noite nos Vossos sofrimentos e nas Vossas dores.
Pater. Ave. Gloria etc.
Ó Mãe suave e terna e generosa!
Vós O encontrais num hórrido momento!
Sofreríeis u’a dor menos penosa,
Se vós compartilhásseis Seu tormento.
5ª Estação - Simão o Cirineu ajuda Jesus a carregar a Cruz
V. Adoramus te, Christe, etc.
A quinta estação representa o lugar onde o Cirineu foi obrigado a carregar aos ombros a cruz de Jesus.
Colocai-vos no lugar do Cirineu que, apegado demais às comodidades passageiras desta vida, leva com repugnância e pesar a cruz de Jesus. Espantai de uma vez por todas o torpor indolente e consolai o vosso Salvador do peso a esmagá-l’O; abraçai de boa vontade as provações que vêm das mãos de Deus, e declarai a vossa disposição em sofrê-las com paciência, rendendo graças a Ele. Dirigi ao Salvador esta oração:
Ó Jesus amável! Eu Vos agradeço as inúmeras e proveitosas ocasiões que me destes para sofrer por Vós e para me enriquecer com méritos; ó meu Deus, fazei-me ganhar os bens verdadeiros e eternos do século vindouro, suportando com paciência os aparentes males desta vida, e que chorando convosco nesta terra, seja eu considerado digno de partilhar Convosco a felicidade do Paraíso.
Pater. Ave. Gloria etc.
Gozo maior não há para um mortal
Que mitigar as dores de Jesus;
Nossos pecados são todo Seu mal,
Que se consola ao levarmos a cruz.
6ª Estação - A mulher piedosa enxuga a face de Jesus.
V. Adoramus te, Christe, etc.
A sexta estação representa Sta. Verônica a enxugar o adorável rosto de Jesus com um pano de linho.
Considerai os traços desfigurados do Senhor que se imprimiram no linho; enlevados com tal visão, esforçai-vos em reproduzir bem dentro d’alma a misteriosa imagem. Felizes sereis se levardes Jesus impresso n’alma! E ainda mais felizes, se vós morrerdes carregando este precioso penhor de salvação! Para conseguirdes graça tão excelente, dirigi-vos a Ele requerendo:
Ó meu Salvador! Eu imploro que Vos digneis imprimir em meu coração a Vossa imagem sagrada, para que eu pense em Vós sem parar, e chore sem parar as minhas iniqüidades, tendo sempre diante dos olhos a Vossa paixão dolorosa. Faço votos de alimentar-me com o pão das lágrimas até o último suspiro, e de detestar para sempre e cada vez mais os meus erros passados.
Pater. Ave. Gloria etc.
Com meus pecados, manchei-lhe a figura
De escarros vis, de sangue e de suor
Mas a minha alma retrata a pintura
Do Seu semblante que eu lavo com dor.
7ª Estação - Jesus cai pela segunda vez
V. Adoramus te, Christe, etc.
A sétima estação nos recorda o lugar onde Jesus caiu pela segunda vez sob o peso da cruz.
Contemplai o Divino Salvador estendido sobre a terra, aniquilado de sofrimentos, calcado aos pés dos carrascos, insultado pelo populacho, e tende em conta que foi o vosso orgulho que O derrubou, e que foi a vossa arrogância e altivez que O humilhou até o chão. Ah, baixai a vossa fronte soberba, e com sincera contrição do passado, fazei votos de, daqui por diante, pôr-se abaixo de todas as criaturas; instai pois a Jesus:
Ó meu adorável Redentor! Ainda que Vos veja deitado na poeira, reconheço a Vossa onipotência, e Vos imploro a destruição dos meus pensamentos de orgulho, de ambição e de autoestima; fazei que, a partir de agora, eu aceite de bom grado a abjeção e o desprezo, sem nunca perder de vista a lembrança dos meus pecados, que me deveriam cobrir de confusão. Por meio da humildade sincera e verdadeira, a única agradável a Vós, possa eu Vos consolar das humilhações que por mim suportastes!
Pater. Ave. Gloria etc.
Fraco, esgotado, grande fardo O arrasta,
Cai sob a cruz nosso Cristo esmagado;
Pobre de mim, se Sua mão régia e casta
Só removesse uma vez meu pecado.
8ª Estação - Jesus responde à compaixão que Lhe testemunham as filhas de Jerusalém.
V. Adoramus te, Christe, etc.
A oitava estação representa o local onde Jesus testemunhara Sua compaixão às filhas de Jerusalém, que lamentavam aqueles sofrimentos.
Considerai que tendes duas razões para chorar: deveis chorar por Jesus, que tanto sofre por vós; e deveis chorar por vós mesmos, que só sentis prazer quando O ofendeis. Todavia, diante de tanto sofrimento, vós, homens ingratos, permaneceis insensíveis! Pelo menos, ao ver Jesus testemunhar tamanha compaixão com as pobres mulheres de Jerusalém, recuperai a confiança e, impregnado de dor e arrependimento, suplicai a Ele:
Ó meu Salvador amável! Por que não se quebra o meu coração nem se derrete em lágrimas? Ó Jesus, são lágrimas o que Vos peço, lágrimas de arrependimento e de compaixão! Possa eu, com água nos olhos e dor no fundo do coração, merecer a compaixão que testemunhastes às filhas de Israel! Ah, dignai-Vos, como única consolação, lançar sobre mim, durante a minha vida, um olhar benfazejo, a fim de que eu possa Vos contemplar cheio de confiança na hora da morte.
Pater. Ave. Gloria etc.
Força é sofrer, e falta-me valor;
Mas a cruz paga ao crente grão salário:
Um pranto amargo aos passos do Senhor,
Estilado a caminho do Calvário.
9ª Estação - Jesus cai pela terceira vez
V. Adoramus te, Christe, etc.
A nona estação representa o lugar onde nosso bom Salvador caiu pela terceira vez sob o peso da cruz.
Quão dolorosa deve ter sido a terceira queda do Salvador! Considerai com que ódio os carrascos, semelhantes a tigres furiosos, rasgavam-Lhe as carnes e O arrastavam na poeira do chão; vede como eles vergastam e pisam este Manso Cordeiro, que não abre a boca para reclamar. Ah, pecado maldito, que maltratou assim o Filho de Deus! Não merece as vossas lágrimas, pecador, um Deus esmagado de ultrajes e opróbrios? Dizei a Ele, chorando:
Ó Deus Todo-Poderoso, que com um só dedo sustentais os céus e a terra! Quem vos derrubou de rosto no chão? Ah, eu sei: foram as minhas recaídas e as minhas iniqüidades sem conta; a cada pecado que cometo, acrescento-Lhe um novo tormento. Mas eis que estou aqui prostrado a Vossos pés, decidido em acabar com esta vida desordenada, e com lágrimas e suspiros repetirei cem, mil vezes: Daqui em diante, sem mais pecados, ó meu Deus! Não, pecado nunca mais!
Pater. Ave. Gloria etc.
Cheio de dor Jesus inda tropeça;
Parece aniquilá-l’O a exaustão;
Mas esta queda é cheia de promessa,
Ele a oferece em prol do meu perdão.
10ª Estação - Jesus é despojado dos vestidos e bebe o fel
V. Adoramus te, Christe, etc.
A décima estação representa o lugar onde Jesus foi despojado dos vestidos e bebeu o fel amargo.
Considerai todos os tomentos que Jesus suporta de uma só vez: a Sua carne colada às vestes é arrancada aos pedaços, e a Sua boca está infectada com um fel amargo e nojento. Às dores se junta a vergonha de se ver exposto naquele estado, à vista da multidão que O insulta. Eis aí como o Salvador expia a vossa imodéstia e vaidade, o vosso ciúme cheio de fel e a vossa intemperança. Como ainda não vos pungiu a compaixão? Ah, lançai-vos aos pés de Jesus despojado por amor a vós e lamentai:
Ó Jesus, vítima inocente, sofreis um horrível aniquilamento! Vós estais coberto de sangue e feridas, embebido em amargura, e eu mergulhado nos prazeres, na vaidade e nas amenidades. Ah, eu não estou no bom caminho. Forçai-me a mudar de vida: misturai amarguras aos prazeres da vida presente, para que daqui em diante eu beba com avidez as águas amargas da Vossa Paixão dolorosa, e assim mereça um dia desfrutar convosco as delícias do paraíso.
Pater. Ave. Gloria etc.
Quem se quer vencer, tome uma atitude:
Suporte mudo todo o sofrimento!
Jesus quis se alcançasse tal virtude
Pelas dores de Seu despojamento.
11ª Estação - Jesus é pregado à cruz
V. Adoramus te, Christe, etc.
A décima-primeira estação representa o lugar onde Jesus foi pregado à cruz, sob o olhar de Sua Mãe Santíssima.
Considerai as dores excessivas que o Salvador teve de suportar, quando os cravos Lhe perfuraram os pés e as mãos: rasgaram-se as carnes, deslocaram-se os ossos e contraíram-se os nervos com sofrimentos indizíveis. Como vossas entranhas não se comovem, diante de um suplício tão cruel e da lembrança das vossas iniqüidades, que são a causa destes sofrimentos? Ao menos, exprimi o vosso arrependimento, recitando entre lágrimas:
Ó Jesus, crucificado por mim, abrandai este coração endurecido, e infiltrai nele o amor e o temor. Visto que os meus pecados enterraram os cravos em Vossos sagrados membros, fazei que a penitência e a mortificação, tal como um carrasco, crucifique todas as minhas paixões desregradas, a fim de que um dia, após ter a felicidade de viver e morrer pregado à cruz convosco, o Senhor me admita, para que eu reine junto a Vós na glória celeste.
Pater. Ave. Gloria etc.
Cravado no patíbulo que infama,
Jesus sofre um suplício nunca ouvido;
Tu podes Lhe acalmar a angústia d’alma,
Se assentires sofrer com teu Amigo.
12ª Estação - Jesus morre na cruz
V. Adoramus te, Christe, etc.
A décima-segunda estação representa o Calvário, onde elevado na cruz Jesus expirou.
Levantai os olhos e contemplai o vosso amável Salvador suspenso entre o céu e a terra por três cravos; escutai as palavras que saem da Sua boca moribunda: Ele reza por quem o ofende, dá o paraíso a quem o pede, confia a Sua Divina Mãe a São João e encomenda a Sua alma ao Pai – depois inclina a cabeça e expira. Jesus morreu! E morreu na cruz por amor a mim! E vós, o que estais experimentando? Ah, não queirais sair desta estação sem vos comover e converter. Abraçai a cruz de Jesus e declarai a Ele:
Meu amantíssimo Jesus, eu reconheço e confesso: foram as minhas inúmeras iniquidades que executaram a Vossa pena e retiraram a Vossa vida; sim, o traidor que Vos crucificou fui eu, por isso não mereço perdão. Mas quando Vos escutei rezando por Vossos carrascos, a minha alma ficou num instante cheia de consolação! Que farei eu por Vós, que tanto fazeis por nós? Eis-me aqui disposto a tudo, sobretudo a perdoar a quem me tenha ofendido. Sim, meu Deus, por amor a Vós eu perdoo todos os meus inimigos, acolhendo-os e desejando-lhes todo o bem, para que eu tenha a esperança de escutar de Vós, no meu último momento: Hodie mecum eris in paradiso. “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso.”
Pater. Ave. Gloria etc.
Se Jesus Cristo expira em sacrifício,
Por Ele tenho muito que sofrer;
Se é impossível segui-lo no suplício,
Ao menos no amor Dele hei de morrer.
13ª Estação - Jesus é descido da cruz
V. Adoramus te, Christe, etc.
A décima-terceira estação representa o lugar onde Jesus foi descido da Cruz e deposto entre os braços da Sua aflita Mãe.
Considerai a espada dolorosa que traspassou o coração desta Mãe inconsolável, tão logo Ela recebeu entre os braços o corpo inanimado do Seu Divino Filho. Ela contempla uma a uma as chagas que O cobrem, e a visão das úlceras punge o sangue das feridas do Seu coração maternal. Qual foi o mais mortal e cruel dos punhais para este brando coração? Foi o pecado, que tirou a vida do seu bem amado Filho. Por isso, detestai o maldito pecado, e misturai as vossas lágrimas com as da Virgem desolada, declarando a Ela:
Ó Rainha dos Mártires, quando serei digno de compreender Vossas dores e de compartilhá-las, trazendo-as sempre no meu coração? Ah, ó Mãe das Dores, dai-me lágrimas para chorar dia e noite os desregramentos criminosos que Vos causaram tanto sofrimento; e depois de passar a minha vida a chorar, a amar e esperar, que eu expire de dor para viver convosco por toda a eternidade.
Pater. Ave. Gloria etc.
Coração generoso, que na vida
Crucificou-se até o desenlace!
Ó Filho de Maria, tua guarida
Espero, inda que a morte me chamasse.
14ª Estação - Jesus é depositado na tumba
V. Adoramus te, Christe, etc.
A última estação representa o santo sepulcro onde foi depositado o adorável corpo de Jesus.
Considerai os gemidos inexprimíveis de São João, de Maria Madalena, das outras santas mulheres e de todos os discípulos do Salvador, logo que O encerraram na tumba; considerai sobretudo a desolação extremada do Coração de Maria, quando se viu privada do Seu Filho bem amado. Diante de tantas lágrimas e suspiros, vós experimentais pouquíssimos sentimentos de piedade e compaixão. Reanimai o vosso fervor, beijai com humildade a pedra que fecha a tumba sagrada, esforçai-vos em deixar ali depositado o vosso coração e, soltando profundos gemidos, rogai ao Salvador para que o guarde junto ao Dele:
Ó Jesus misericordioso! Que só por amor a mim quisestes percorrer o doloroso caminho do Calvário, eu Vos adoro dentro deste sepulcro em que vos encerraram, mas antes quisera eu vos amortalhar bem dentro do meu coração, a fim de ressuscitar convosco para uma vida nova e de perseverar até o final na Vossa graça. Concedei-me, rogo-Vos pelos méritos da Vossa paixão que acabei de meditar, concedei-me seja o meu último alimento, antes de expirar, a Divina Eucaristia, e sejam as minhas últimas palavras “Jesus e Maria”; confunda-se o meu último suspiro com aquele que exalastes por mim na cruz para que, animado de uma fé viva, esperança firme e caridade ardente, morra eu convosco, a fim de ser convosco admitido a reinar por séculos de séculos. Assim seja.
Morta pra si, enterrada pro mundo,
No corpo uma alma em vil, triste estadia;
Com Jesus goza um silêncio profundo,
E humilde espera ver a glória um dia.
*
* *
Se se fizer a Via Sacra fora da Igreja, ao retornar a ela os fieis podem cantar algumas estrofes do Stabat Mater. Assim que a procissão chegar ao pé do altar, termina-se com a seguinte oração:
V. Ora pro nobis, Virgo dolorosissima,
R. Ut digni efficiamur promissionibus Christi.
Oremus: Interveniat pro nobis, quaesumus, Domine Jesu Christe, nunc et in hora mortis nostrae apud tuam clementiam beata Virgo Maria, cujus sacratissima animam, in hora tuae passionis, doloris gladius pertransivit. Qui vivis et regnas Deus in saecula saeculorum. Amen.
Apesar de constar em alguns livrinhos, não é necessário recitar ao final os cinco Pai-Nossos e as cinco Ave-Marias. Depois da oração precedente, o padre voltando-se aos fieis adverte que todos os que fizeram a Via Sacra com devoção lucraram as indulgências anexas a ele, exorta-os a retornar no dia em que acontecerá de novo o exercício e os despede abençoando-os com o sinal da cruz.
Irmão Michel André
Uma das últimas aparições de Cristo, antes de Sua Ascensão, é relatada por São João no último capítulo de seu Evangelho e aconteceu às margens do rio Tiberíades. Aqui estão alguns versos sobre ela:
“Após comerem (após a segunda pesca milagrosa, Jesus os fez fritar peixe no fogo), Jesus disse a Pedro: ‘Simão, filho de João, tu me amas mais que estes?’ Ele respondeu e Lhe disse: ‘Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo’ Ele perguntou uma segunda vez: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ Pedro Lhe respondeu: ‘Sim, Senhor, Tu sabes que Te amo’ Ele perguntou uma terceira vez: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ Pedro se contristou por Ele ter perguntado a terceira vez e respondeu: ‘Senhor, Tu sabes todas as coisas, Tu sabes que Te amo’ E Jesus lhe disse: ‘Apascenta minhas ovelhas’” (Jo 21,15-17). O que significa dizer: sede Pastor, o chefe de todos os Bispos e Padres, representados pelas ovelhas.
Nesse comovente diálogo, não sabemos o que é mais admirável: o tato de Jesus ou a humildade de seu apóstolo.
Voltemos um pouco no tempo. Os quatro evangelistas escrevem sobre a tripla negação de Pedro, embora nenhum deles a tenha testemunhado. Poderíamos sequer jamais saber desse acontecimento! Portanto, foi de Pedro (e apenas dele) que tomaram conhecimento de sua queda!
E isso explica por que os detalhes são relatados de maneira diferente pelos quatro evangelistas. É interessante notar que as maldições só se encontram em Mateus e Marcos (discípulos de São Pedro). O Evangelho de São Lucas é mais discreto; o de São João é mais ameno ainda.
Pedro não conseguiu guardar sua queda em segredo. Ainda que apenas para mostrar sua tristeza profunda, teve de confessar esse triste acontecimento.
A narração, então, foi feita de maneiras diferentes pelas pessoas por 10, 20, 40 anos. Uma coisa é certa: em três ocasiões, Pedro negou ser discípulo de Jesus! Assustador!
E ele quis que sua negação fosse conhecida por toda a Igreja, pois ela tinha sido uma das maiores causas dos sofrimentos de Cristo!
Imaginemos a dor atroz que Pedro sentiu após a morte do Salvador; ele, o apóstolo escolhido entre os doze para ser o líder, havia negado seu Mestre!
Agora, foi porque ele O amava mais que tudo que Pedro seguiu Jesus para o palácio do Sumo Sacerdote. Se Pedro tivesse amado Jesus menos, teria permanecido escondido, teria fugido junto com os outros apóstolos após a prisão no Getshêmane e jamais teria ido ao palácio para tentar ouvir alguma novidade.
Sabemos de São Lucas que, após a terceira negação, o Salvador olhou para Pedro, perdido na multidão. A gentileza desse olhar, cheio de misericórdia, foi mais insuportável que qualquer admoestação verbal. Pedro saiu do palácio imediatamente e chorou copiosamente!
Mas era tarde demais: não podemos apagar o passado. E Pedro havia cometido uma falta irreparável!
Ele estava inconsolável: “A última coisa que Jesus viu de mim foi minha negação; as últimas palavras que me ouviu proferir foram: ‘não conheço este homem!’ Minha covardia aumentou o horror de Seu sofrimento. Ela foi mais cruel para Ele que os sofrimentos atrozes de Suas mãos e Seus pés traspassados pelos cravos na cruz!” Pedro não teria como consertar sua queda!
Reparemos que o apóstolo não mostrou a extensão de sua humildade ao admitir a seus amigos e companhias sua tripla ofensa.
O tamanho de sua humildade reside no fato de que, apesar de indigno – e ele estava ciente de sua indignidade – permaneceu no posto que seu Mestre lhe havia confiado.
O que teríamos feito em seu lugar? Teríamos renunciado; teríamos fugido de Jerusalém e nos escondido em algum lugar remoto, para esconder nossa vergonha...
De acordo com os critérios do mundo, Pedro deveria ter desaparecido para pagar por seu pecado...
Um exemplo típico da falsa honra humana, que é hipnotizada e centrada em si mesmo até no arrependimento. Ao invés de enxergar no pecado o ultraje feito a Deus, só enxergamos a confusão, a degradação, que é orgulho puro; orgulho ferido e rancor! O oposto do arrependimento.
Pedro, o traidor, lembrou-se da advertência de seu Mestre: Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como o trigo; mas eu roguei por ti, para que a tua confiança não desfaleça; e tu, por tua vez, confirma os teus irmãos (Lc 22, 31-32).
A fé e o amor de Pedro não foram obscurecidos por seu pecado, pois ele era humilde. Ele permanece em seu posto, cheio de tristeza, mas fiel.
Quando, portanto, vamos reconhecer que mesmo nossos pecados estão abarcados pela misericórdia de Deus?
Pedro não mentiu quando declarou, no cenáculo, que estava pronto para morrer por Jesus. E veio a morrer de forma terrível no martírio.
Mas, enquanto isso, Deus preparou para ele uma morte mais difícil: morrer para si mesmo! Sua honra humana precisava ser quebrada, e era necessário que não restasse mais nada nele que enxergasse como sendo sua lealdade, sua coragem, sua grandiosidade.
Ele não poderia ser mais que um pobre homem sem méritos. Então, morto para si mesmo, viverá apenas por Jesus e para Jesus.
Foi assim que Nosso Senhor o reabilitou publicamente: Simão, filho de João, tu me amas mais que estes?
“Estes” são seus irmãos de apostolado, dos quais ele errou ao dizer no cenáculo: “Ainda que estes Te abandonem, eu jamais O abandonarei!”
Portanto, que falta feliz que o purificou de seu orgulho. Ele responde de maneira simples agora, sem se comparar com os outros: “Senhor, Tu sabes que eu Te amo”
Ele aprendeu a lição, e o Mestre, agora, não mais fará referência aos outros em sua segunda pergunta.
Mas por que uma terceira vez? Nosso Senhor não duvida de sua sinceridade, pois, em duas ocasiões, o confirmou em seu papel de pastor.
Pedro entende. Seus olhos mal conseguem conter as lágrimas. Mas, sem revolta, abandona-se ao Seu Juiz: “Senhor, Tu sabes todas as coisas; Tu sabes que Te amo”
Que exemplo para nós! Nossos pecados, irreparáveis em si mesmos, foram abarcados pela morte de Cristo!
Tomemos nota de que com gentileza e clemência Jesus tornou Seu perdão conhecido.
Se as três perguntas representam as três negações nunca foi mencionado.
Nós, quando ofendidos, só sabemos falar de admoestar o ofensor. Nosso Senhor ofendido só pensa em resgatar o amor do culpado.
Outra coisa: Jesus não tenta obter promessas para o futuro. Ele não fala a Pedro do passado ou do futuro.
Que diferença comparado com os julgamentos dos homens que, para perdoar, exigem promessas, condições, garantias!
Pedro, publicamente reabilitado, agora está apto a viver novamente como apóstolo fiel, mas Jesus não busca a garantia de sua fidelidade no futuro: Ele a busca no presente, nos sentimentos presentes de Seu discípulo.
Seríamos os desgraçados mais ingratos se concluíssemos, diante desse caso, que o pecado é uma ninharia e que tudo estaria perdoado assim que mudássemos de comportamento.
Não: entre a negação de Pedro e seu perdão algo capital, maravilhoso aconteceu, que alguns tendem a esquecer até na Missa...
A morte e a ressurreição de Cristo aconteceram.
Todos os nossos pecados, todas as nossas negações resultam no Calvário e só são perdoadas pela morte de Cristo. E só temos a garantia dessa reparação na ressurreição de Jesus Cristo.
Lembremos o que dizia São Paulo: “Se Cristo não tivesse ressuscitado dos mortos, vós ainda estaríeis em pecado”
O pecador só é reabilitado porque condena completamente seus pecados, que causaram a morte de Cristo e porque Cristo o absolve de seus pecados e o lava em Seu sangue.
E só podemos estar mortos para o pecado se Jesus Cristo viver em nós através de Sua graça.
Portanto, evitemos fazer promessas a Deus baseados apenas na nossa coragem: quantas vezes fracassamos nessa seara!
Ao invés, escutemos Jesus fazer a cada um de nós a mesma pergunta que fez a Pedro: não “Vós fostes ingratos e não Me amastes”, nem “Vós Me amareis para sempre?” mas “hoje, aqui e agora, vós Me amais?”
Trata-se de imitar a humildade e Pedro e não confiar em nós mesmos; trata-se de substituir nossa presunção por um amor humilde e fervoroso a Ele, que nos trouxe o perdão – por Sua Cruz – porque Ele nos ama com um amor divino.
Trata-se de dizer a Jesus toda manhã: “Senhor, Vós somente sabeis o futuro; Vós me conheceis melhor que eu mesmo, Vós sabeis que eu quero, hoje, amar-Vos com todo o meu coração e trabalhar e viver para Vos agradar por Vosso amor”
(Rector´s letters - St. Thomas Aquinas Seminary, set/21)
Gustavo Corção
Como vimos no artigo anterior, todas as fontes visíveis da salvação para a vida eterna nasceram do Coração vulnerado de Jesus. E agora é no coração do Coração de Jesus que todos nós, tão sobrecarregados, devemos procurar alívio, paz e doutrina que nos norteie para a Casa do Pai.
A consciência mais viva do culto do Coração de Jesus nos aparece com a manifestação revelada a Lutgarda d’Aywières, que esperava sentada o moço com quem iniciara um namoro quando de repente viu diante de si a figura de Jesus a lhe mostrar o peito vulnerado e o sangue fresco e a lhe dizer: “Não procures mais os agrados de um vão amor. Olha, vê, contempla para sempre o que deves amar e porque deves amá-lo”. “Hic jugiter contemplare quid diligas, et cur diligis”.
A jovem Lutgada tornou-se monja beneditina e hoje, embora esquecida, permanece na galeria dos santos canonizados que a Igreja nos propõe como primeiros degraus da imitação de Cristo. Santa Lutgarda, ora por nós.
Um século mais tarde é no mosteiro beneditino de Helfta, em Saxe, que uma grande e sábia abadessa chamada Gertrude de Hackeborn (1231-1292) teve perto dela uma irmã Matilde, e foi nesse mosteiro tão santamente preparado que ambas tiveram a alegria de receber outra Matilde e outra Gertrude que se tornaram grandes santas, famosas pela intimidade que tiveram com o Coração de Jesus.
No fim de sua vida, Matilde, que não tinha a educação apurada das monjas, e só escrevia, e mal, em baixo-alemão, deixou esta página de um diálogo que teve com o Senhor Jesus:
— Dize-me o que me trazes tu, minha rainha.
— Senhor, trago-vos uma joia maior do que as montanhas, mais vasta que o mundo, mais profunda que o mar, mais alta do que as nuvens e mais bela do que o Sol, mais rica do que todas as estrelas, e mais pesada do que a terra inteira.
— E como se chama essa joia, ó filha, imagem de minha divindade, honrada por minha humanidade, ornada pelo Espirito Santo? Que joia me trazes?
— Senhor, a joia que vos ofereço se chama: alegria de meu coração. Arranquei-a do mundo, guardei-a comigo recusada a todas as criaturas, mas agora já não aguento carrega-la. Onde devo depositá-la Senhor?
— A alegria de teu coração não pode pousar senão no meu Coração divino que bate em peito de homem. Somente aí serás consolada e abrasada por meu Espírito.
Gertrude recebeu os mesmos favores do céu, e deixou-os consignados no Arauto do Amor divino, que foi um registro de toda a vida espiritual do mosteiro, mais do que história de sua própria alma. E vemos brilhar, no mais belo dos séculos, essa casa religiosa que o Coração de Jesus visitou com tanta intimidade.
Na família franciscana encontramos, ainda no século XIII, Margarida de Cortone e Ângela de Foligno que viveram a fundo a devoção da chaga aberta sobre o Coração de Jesus.
No século XIV, tão agitado e perturbado, arrefece a lembrança do Coração de Jesus, mas no meio das tormentas do Cisma vê-se passar a figura inflamada de Catarina de Sena, e ouve-se sua voz inesquecível a gritar que segue um rastro de Sangue. Ao seu próprio confessor ela escreve dizendo seu ardente “desejo de vê-lo sufocado, afogado no doce Sangue do Filho de Deus” e acrescentando: “Quero vê-lo inserido no flanco aberto do Filho de Deus, esse flanco que é um jarro aberto cheio de odor e até capaz de perfumar o pecado. Ali repousa a doce esposa num leito de Sangue e Fogo. Ali se vê e se manifesta o segredo do Coração do Filho de Deus. Nesta botelha de tampa perfurada se dessedenta e se inebria todo desejo enamorado, e ela nos dá alegria, nos ilumina o entendimento, nos enche a memória que aí se satura, a tal ponto, que já não poderá mais reter, entender e amar outra coisa que não seja o doce e bom Jesus, sangue e fogo, amor sem preço”
Nos tempos modernos é João Eudes (1601-1680) que retoma a devoção do Coração de Jesus associando-o ao Coração de Maria. Mas é Margarida Maria Alacocque (1647-1690) quem dará ao mundo o que chamaríamos de “mensagem” do Sagrado Coração. De 27 de dezembro de 1673 a 21 de julho de 1675, Margarida Maria é cumulada de revelações e é incumbida da difusão universal dessa devoção, que deverá ter suas práticas mensais, e festa anual celebrada com solenidade litúrgica. As dificuldades dessa difusão eram enormes para uma religiosa enclausurada, mas é preciso que o mundo inteiro possa escutar os queixumes e os pedidos de reparação de um Coração divino vulnerado por nossas ofensas, e por nós apaixonado.
A Igreja, porém, é vagarosa; e é melhor que o seja porque, se aos seus missionários convém correr como escravos de Deus e dos pobres, à Igreja hierárquica convém o vagar majestoso dos reis.
Dois séculos passaram até que Pio IX, em 1856, estendesse o culto do Sagrado Coração à Igreja Universal. Gradativamente o culto atingiu os mais altos graus da solenidade ritual. Leão XIII, em 1899, por instigação da irmã Maria Droste zu Vischering, do Bom Pastor de Porto, consagrou o gênero humano ao Coração de Jesus, com uma bela fórmula que se recomendava à recitação pública. Pio XI, em 1928, inseriu a festa no ciclo do temporal e concedeu-lhe uma oitava privilegiada.
Associou-se ao culto do Sagrado Coração a prática da comunhão em cada primeira sexta-feira do mês. E assim se vê que a Igreja solicitamente multiplicou os modos de nos unirmos melhor ao Coração de Jesus. Santa Catarina de Sena fez a experiência mística da troca de corações. São João Evangelista, o discípulo tão amado, teve o privilégio de reclinar-se no peito de Jesus e ouvir o seu Coração. A Virgem Santíssima de cujo coração nascera Jesus, “guardava todas aquelas palavras no seu coração” e, portanto, abrira para todo o gênero humano o caminho de volta ao Paraíso, que é o Coração de Jesus.
E a sorte do mundo depende essencialmente da presença catalisadora da Igreja, e da presença, na Igreja, de um pequeno rebanho que seja o sal do mundo e que se mantenha unido, consciente e fervorosamente unido ao Coração de Jesus.
Sem isto o mundo conhecerá dias de crueldade e de degradação inimagináveis, ainda que os ativistas multipliquem seus programas sociológicos e seus pronunciamentos temporais. Nosso torturado e transviado mundo não precisa de padres e bispos que se ocupem de problemas temporais com esquecimento do “único necessário”; e por mais forte razão não precisa de padres e bispos que, nos problemas sociais e políticos, correm atrás das mais perversas soluções. Há muita gente cuidando da máquina do mundo, e por isso precisamos de uns poucos que deem o testemunho de outra ciência e outra sabedoria que transbordam do Coração de Jesus. “Cor Jesu, in quo sunt omnes thesauri sapientiae et scienciae, miserere nobis”.
(O Globo, 26/06/71)
São João Crisóstomo
Todos nós, irmãos, sabemos que Nosso Senhor Jesus Cristo é bom, clemente, misericordioso, e não deseja a morte do pecador, mas que este se converta e viva. Vigiai, todos, e estai preparados, pois não sabeis a hora em que Nosso Senhor virá. Vinde, escutai suas palavras: arrependei-vos, pois se aproxima o reino dos céus. De resto, irmãos, o Juízo Final está às portas; haverá muitas lágrimas, gemidos e preces; sendo a oração necessária não apenas hoje, mas também amanhã.
A oração é, pois, o tesouro infinito de todo o bem, porto de calmaria, causa de tranquilidade, remédio do espírito, santificação do corpo e da alma; a oração abre as portas do céu, aproxima de Deus todos os homens, pequeno e grande, rico e pobre, e todo aquele que, com todo o coração, rezar todos os dias, tornar-se-á tão grande quanto os anjos.
Contudo, que dizem muitos com indiferença?
Sou pecador – um diz – oprimido e coberto de desonra. Não me atrevo a contemplar a grandeza do céu, pois pequei muito por pensamentos, palavras e obras, desperdiçando todos os dias, todas as horas de minha vida em coisas vãs. Com que liberdade posso me aproximar da igreja? Como abrirei minha boca indigna e impura? Como moverei meus lábios e pedirei perdão pelas minhas indignas ações perante Deus?
Assim vos fala satanás? Aprendei isto: Cristo não veio para chamar o justo, mas o pecador, pois assim diz: não vim para chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento.
Sou pecador – outro diz – como aproximar-me-ei da igreja e lá me tornarei justo? Dizes belas palavras que ouço, mas não as guardo. Que vantagem há para mim? Pois eu vos digo: se guardais ou não, apenas vinde à igreja e ouvi a leitura da Palavra Divina. Asseguro-lhes que se vós vos aproximardes da igreja, ouvirdes o Santo Evangelho e o ensinamento dos Apóstolos, ainda que tenhais o coração duro como pedra e o espírito selvagem como fera, sereis convencidos.
Sois pecador? Vinde à igreja, prostrai-vos, lamentai-vos, chorai. Pecastes? Confessai a Deus vossos pecados. Dizei consigo mesmo ‘pequei’; falai a Deus, que vos conhece antes mesmo de nascerdes, sobre o exame do vosso coração. Confessai aqui, sozinho, para não serdes acusado diante da miríade dos anjos e dos homens no dia do Juízo. Dizei-me o que vos parece melhor: confessar os pecados ao vosso pai espiritual estando sozinho na igreja, ou tê-los públicos no dia do Juízo diante dos anjos?
Sois pecador? Dizei apenas ‘pequei’ e nada mais vos será exigido além do arrependimento e da confissão. Que dificuldade sentis em dizer convosco mesmo ‘pequei’? Acaso vos envergonhais? Estais arrependidos e quereis ser salvo e disso vos envergonhais? E quando pecáveis, não vos envergonháveis? Quando praticáveis a impureza, não vos envergonháveis? Quando cometíeis adultério, não vos envergonháveis? Quando cobiçáveis a mulher do próximo, quando oprimíeis a viúva e desprezáveis o pobre não vos envergonháveis? Quando tomáveis o nome de Deus em vão, e levantáveis falso testemunho, quando fazíeis falsos juramentos, quando vos ocupáveis de toda espécie de obras más, odiadas por Deus, não vos envergonháveis?
Ó, amigos, como, tendo um Deus tão bom, negligenciai-o e não vos converteis? Cristo diz: não roubeis, não forniqueis, não cometeis adultério, não mateis, não levanteis falso testemunho, honrai vossos pais, amai vosso próximo como a vós mesmos, sede mansos, piedosos, pacientes, pacíficos e sereis julgados dignos do reino dos céus. Entretanto, quem segue tais mandamentos? Quem os dá ouvidos? Quem presta atenção? O diabo aconselha exatamente o contrário, e mesmo que saibamos que ofendemos a Deus dando ouvidos ao inimigo, ainda assim caímos nas tentações. Como escravos, atados nas mãos e nos pés, caminhamos, nos sujeitando à carne.
Eis que todos desperdiçamos a juventude da nossa alma; eis que envelhecemos e nos acostumamos ao pecado. Esforcemo-nos em praticar o bem para que sejamos achados dignos do reino dos céus, porque o diabo leva para o fogo e o castigo eternos e nós estamos caminhando para ele toda vez que pecamos.
O que quereis vós? Ser como Cristo ou como o demônio? Desejais ser como Cristo? Então cessai de viver licenciosamente, cessai com as extravagâncias, com a luxúria, com os roubos, com a glutonaria, com os prazeres da carne, com os adultérios, com as zombarias, com as mentiras, com as bajulações. Não vos enganeis: nada disso entra no reino dos céus. Mas, se por outro lado, desejais ser como o demônio, e ir para o fogo da geena, vivei como quereis, nada vos impede. Trocareis os bens celestiais por desejos maus, impurezas, adultérios, glutonarias, imoralidades, e toda sorte de prazeres demoníacos. Pois se o Evangelho não vos convence, se a lei não vos corrige, se não confiais nos profetas, se não acreditais nos apóstolos, se não vos aproveitais dos conselhos dos patriarcas, então afrontais a Igreja de Deus e vos tornais semelhante à prostituta, trocando todo o Bem pelo mundo. Assim, já não desejais a salvação, nem a herança futura no dia do Senhor. Fugirão de vós naquela hora quando comparecerdes despido e constrangido no tribunal de Cristo diante dos anjos e dos homens, cobertos de vexame. Ali, o que será revelado? O que será exposto sobre vossa injustiça? Deus não pode ser escarnecido. Então ouvireis: atai-lhes as mãos e os pés e atirai-lhes nas trevas exteriores. Lá haverá choro e ranger de dentes. Quem, portanto, não lamentará? Quem não chorará por causa dos prazeres efêmeros após o castigo eterno?
Não vos enganeis. Deus não pode ser escarnecido. Está escrito: nem os devassos, nem os adúlteros, nem os maldizentes, nem os soberbos, nem os bêbedos, nem os injustos, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os idólatras, nem os blasfemos, nem os avaros terão parte no reino dos céus. Considerai todas essas coisas, irmãos, afastando-vos dessas práticas indignas, e que não tarde a ser derretida a frieza dos vossos corações para que fujais da ira futura e vos aproximeis do céu e da bem-aventurança eterna. Que possa descer sobre todos nós a graça e o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, que vive com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.
Tradução: Vanessa Almeida
Fonte: CRISÓSTOMO, João. De Oratione. In: J.-P. Migne, Patrologiae cursus completus (series Graeca) (MPG) 62, Paris: Migne, 1857-1866: 737-740.
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Pe. Bertrand Labouche, FSSPX
Por estes vos darei um Nuno fero,
Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço
(Lusíadas, canto 1, 12)
No dia 6 de novembro, é festejado em Portugal e na Ordem do Carmelo, Nuno Álvares Pereira, herói português e santo do século XV, nomeado aos 25 anos general-em-chefe do reino, vencedor de todas as suas batalhas, um homem de oração e de união com Deus.
Certamente, todos vocês que já estiveram em Fátima notaram as belas estátuas de santos que se erguem sobre a grande colunata em frente à basílica do santuário.
Estes santos distinguiram-se pela devoção a Nossa Senhora (São Bernardo, São Luís Maria, São João Bosco...) ou/e fazem parte das glórias de Portugal: Santo António de Lisboa, Santa Beatriz, Beato Nuno Álvares etc. Retenhamos esse nome.
Beatificado por Bento XV em janeiro de 1918, sua missão era semelhante à de Santa Joana D'Arc: salvar a independência da pátria, sob a bandeira dos santos nomes de Jesus e de Maria, e pelo exemplo católico levado ao heroísmo.
Morreu no mesmo ano em que ela, no dia 1 de novembro de 1431. Suas armas foram a oração e a espada.
Sim, este homem, cavaleiro armado aos 13 anos, vencedor de todas as batalhas, ilustre estrategista da "Batalha dos Atoleiros", nomeado aos 25 anos general-em-chefe do reino, aquele que possuía, após as suas vitórias , a maior fortuna da época em termos de terras e bens, era essencialmente um homem de oração, de união com Deus.
A 15 de agosto de 1423, a Ordem Carmelita deu-lhe as boas-vindas em Lisboa, aos cinquenta anos, como humilde irmão porteiro; tornar-se-á irmão Nuno de Santa Maria (imagine um Foch, um Duguesclin com o hábito de irmão leigo para sempre).
Exatamente, a ação desse homem foi compatível com sua oração. Foi um verdadeiro homem de ação, porque a sua ação, alimentada, engendrada pela oração, foi aquela desejada por Deus “que tudo faz com ordem, peso e medida”.
ORAÇÃO, AÇÃO: o mundo vê entre ambas não mais que um contraste ridículo; enquanto, na realidade, o que há é harmonia, uma maravilhosa harmonia, que conquista o próximo ... Pensemos o que poderia ser a união da oração com a ação em Nosso Senhor Jesus Cristo!
Na biografia do Beato Nuno, lemos que os soldados inimigos vinham à noite ao acampamento do grande general português, simplesmente "para ver quem ele era!" "quem era aquele que não hesitava em distribuir trigo ... ao inimigo faminto!...”
À pergunta: "Por que você nunca perde uma batalha?" Respondia: "Para me derrotar, basta impedir-me de receber antes a Comunhão! "
Um dia, no auge da batalha, quando tudo parecia perdido, Nuno Alvares desapareceu por detrás de algumas pedras e começou a rezar. Quando um soldado perturbado veio procurá-lo, saiu como um leão e, arrastando seus homens, derrotou o inimigo.
A ação (poderíamos substituir: o exemplo, o apostolado, o cumprimento do dever do Estado) exige necessariamente a oração, senão se transforma em agitação, enfraquecemos a nós mesmos.
E a verdadeira oração, por exemplo, o nosso Rosário quotidiano, engendra um “bom trabalho”, uma ação profunda, benéfica, duradoura, mais rica, porque então é Deus que age como quer.
São Francisco de Sales, prevendo que teria um dia seria particularmente agitado, aumentava o tempo da oração matinal.
Hoje, o homem destrói e não edifica, porque não reza; uma alma que não reza condena sua ação à esterilidade, perde seu tempo, antes de se perder. A oração é exatamente o oposto de perder tempo.
“Batalha de Aljubarrota”: foi o combate decisivo que o nosso santo cavaleiro venceu, salvando Portugal da colonização espanhola. D. João I mandou erigir então um ex-voto, segundo a sua promessa, no mesmo local, um magnífico mosteiro, dedicado à Nossa Senhora da Vitória: trata-se do mosteiro da "Batalha", ao lado do qual se encontra a imponente estátua equestre do invencível Condestável. A vitória foi conquistada a poucos quilómetros de Fátima, onde Nossa Senhora do Rosário, "mais forte que um exército alinhado em batalha", veio, 500 anos depois das lutas do Beato Nuno para suscitar outros cavaleiros...
Cardeal Pie
Meus irmãos (...)
Nosso século clama: “tolerância, tolerância”. Tem-se como certo que um padre deve ser tolerante, que a religião deve ser tolerante. Meus irmãos, não há nada que valha mais que a franqueza e eu aqui estou para vos dizer, sem disfarce, que no mundo inteiro só existe uma sociedade que possui a verdade e que esta sociedade deve ser necessariamente intolerante. Mas antes de entrar no mérito, distinguindo as coisas, convenhamos sobre o sentido das palavras para bem nos entendermos e assim não nos confundiremos.
A tolerância pode ser civil ou teológica. A primeira não nos diz respeito e não falarei senão uma pequena palavra sobre ela. Se a lei tolerante quer dizer que a sociedade permite todas as religiões porque, a seus olhos, elas são todas igualmente boas ou porque as autoridades se consideram incompetentes para tomar partido neste assunto, tal lei é ímpia e atéia. Ela exprime não a tolerância civil como a seguir indicaremos, mas uma tolerância dogmática que, por uma neutralidade criminosa, justifica nos indivíduos a mais absoluta indiferença religiosa. Ao contrário, se, reconhecendo que uma só religião é boa, a lei suporta e permite que as demais possam se exercer por amor à tranqüilidade pública, esta lei poderá ser sábia e necessária se assim o pedirem as circunstâncias como outros observaram antes de mim.(...)
Deixo, porém, este campo cheio de dificuldades e volto-me para a questão propriamente religiosa e teológica em que exponho estes dois princípios:
A religião que vem do céu é verdade e ela é intolerante com relação às doutrinas errôneas
A religião que vem do céu é caridade e ela é cheia de tolerância quanto às pessoas.
Roguemos a Nossa Senhora vir em nossa ajuda e invocar para nós o Espírito de verdade e de caridade: “Spiritum veritatis et pacis”. Ave Maria.
Faz parte da essência de toda verdade não tolerar o princípio que a contradiz. A afirmação de uma coisa exclui a negação dessa mesma coisa, assim como a luz exclui as trevas. Onde nada é certo, onde nada é definido, pode-se partilhar os sentimentos, podem varias as opiniões. Compreendo e peço a liberdade de opiniões de coisas duvidosas: “in dubiis, libertas”. Mas logo que a verdade se apresenta com as características certas que a distinguem, por isso mesmo que é verdade, ela é positiva, ela é necessária e por conseqüência ela é uma e intolerante: “in necessariis, unitas”. Condenar a verdade à tolerância é condená-la ao suicídio. A afirmação se aniquila se ela duvida de si mesma, e ela duvida de si mesma se ela admite com indiferença que se ponha a seu lado sua própria negação. Para a verdade, a intolerância é o instinto de conservação, é o exercício legítimo do direito de propriedade. Quando se possui alguma coisa é preciso defendê-la, sob pena de ser despojado dela bem cedo.
Assim, meus irmãos, pela própria necessidade das coisas, a intolerância está em toda parte; porque em toda parte existe o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, a ordem e a desordem. Que há de mais intolerante do que esta proposição: “2 e 2 fazem 4”? Se vierdes me dizer que 2 e 2 fazem 3 ou fazem 5, eu vos respondo que 2 e 2 fazem 4. (...)
Nada é tão exclusivo quanto a unidade. Ora, ouvi a palavra de São Paulo: “Unus Dominus, una fides, unum batisma”. Há, no céu, um só Senhor: “Unus Dominus”. Esse Deus cuja unidade é seu grande atributo, deu à terra um só Símbolo, uma só doutrina, uma só fé: “una fides”. E esta fé, esta doutrina, Ele confiou-as a uma só sociedade visível, uma só Igreja, cujos filhos são, todos, marcados com o mesmo selo e regenerados pela mesma graça: “Unum batisma”. Assim, a unidade divina que esplende por todos os séculos na glória de Deus, produziu-se sobre a terra pela unidade do dogma evangélico cujo depósito foi confiado por Nosso Senhor Jesus Cristo à unidade hierárquica do sacerdócio: Um Deus, uma fé, uma Igreja: “Unus Dominus, una fide, unum batisma”.
Um pastor inglês teve a coragem de escrever um livro sobre a tolerância de Jesus Cristo e o filósofo de Genebra (Jean-Jacques Rosseau) disse, falando do Salvador dos homens: Não vejo que meu divino Mestre tenha formulado sutilezas sobre o dogma”. Bem verdadeiro, meus irmãos. Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma, mas trouxe aos homens a verdade e disse: se alguém não for batizado na água e no Espírito Santo; se alguém, recusa-se a comer a minha carne e a beber o meu sangue, não terá parte em meu Reino. Confesso que nisso não há sutilezas, há intolerância, a exclusão a mais positiva, a mais franca. E mais, Jesus Cristo enviou seus apóstolos para pregar a todas as nações, isto é, derrubar todas as religiões existentes para estabelecer em toda a terra a única religião cristã e substituir todas as crenças dos diferentes povos pela unidade do dogma católico. E prevendo os movimentos e as divisões que esta doutrina vai incitar sobre a terra, Ele não se deteve e declarou que tinha vindo para trazer não a paz, mas a espada e acender a guerra não somente entre os povos, mas no seio de uma família e separar, pelo menos quanto às convicções, a esposa fiel do esposo incrédulo, o genro cristão, do sogro idólatra. A afirmação é verdadeira e o filósofo tem razão. Jesus Cristo não formulou sutilezas sobre o dogma.(...)
Falam da tolerância dos primeiros séculos, da tolerância dos apóstolos. Mas isso não é assim, meus irmãos. Ao contrário, o estabelecimento da religião cristã foi, por excelência, uma obra de intolerância religiosa. No momento da pregação dos apóstolos, quase todo o universo praticava essa tolerância dogmática tão louvada. Como todas as religiões eram igualmente falsas e igualmente desarrazoadas, elas não se guerreavam; como todos os deuses valiam a mesma coisa uns para os outros, eram todos demônios, não eram exclusivos, eles se toleravam uns aos outros: satã não está dividido contra si mesmo. O Império Romano, multiplicando suas conquistas, multiplicava seus deuses e o estudo de sua mitologia se complica na mesma proporção que o da sua geografia. O triunfador que subia ao Capitólio fazia marchar diante dele os deuses conquistados com mais orgulho ainda do que arrastava atrás de si os reis vencidos. A mais das vezes, em virtude de um Senatus-Consulto, os ídolos dos bárbaros se confundiam desde então com o domínio da pátria e o Olímpio nacional crescia como o Império.
Quando aparece o Cristianismo (prestem atenção a isso, meus irmãos, são dados históricos de algum valor com relação ao assunto presente), o Cristianismo, quando apareceu pela primeira vez, não foi logo repelido subitamente. O paganismo perguntou-se se, ao invés de combater a nova religião, não devia dar-lhe acesso ao seu seio. A Judéia tinha se tornado uma província romana. Roma, acostumada a receber e conciliar todas as religiões, recebeu a princípio, sem maiores dificuldades, o culto saído da Judéia. Um imperador colocou Jesus Cristo assim como Abraão entre as divindades de seu oratório, como viu-se mais tarde um outro César propor prestar-lhe homenagens solenes. Mas a palavra do profeta não tardou a se verificar: as multidões de ídolos que viam, de ordinário sem ciúmes, deuses novos e estrangeiros serem colocados ao lado deles, com a chegada do Deus dos cristãos, lançam um grito de terror, e, sacudindo sua tranqüila poeira, abalam-se sobre seus altares ameaçados: Ecce Dominus ascendit, et commovebuntur simulacra a facie ejus. Roma estava atenta a esse espetáculo. E logo, quando se percebeu que esse Deus novo era irreconciliável inimigo dos outros deuses; quando se viu que os cristãos, dos quais se havia admitido o culto, não queriam admitir o culto da nação; em uma palavra, quando se constatou o espírito intolerante da fé cristã, é aí então que começou a perseguição.
Ouvi como os historiadores do tempo justificam as torturas dos cristãos: eles não falam mal de sua religião, de seu Deus, de seu Cristo, de suas práticas; só mais tarde é que inventaram calúnias. Eles os censuram somente por não poderem suportar outra religião que não seja a deles. “Eu não tinha dúvidas, diz Plínio o jovem, apesar de seu dogma, que era preciso punir sua teimosia e sua obstinação inflexível: Pervicaciam et inflexibilem obstinationem”. “Não são criminosos, diz Tácito, mas são intolerantes, misantropos, inimigos do gênero humano. Há neles uma fé teimosa em seus princípios, e uma fé exclusiva que condena as crenças de todos os povos: Apud ipsos fides obstinata, sed adversus omnes alios hostile odium”. Os pagãos diziam geralmente dos cristãos o que Celso disse dos judeus, com os quais foram muito tempo confundidos, porque a doutrina cristã tinha nascido na Judéia. “Que esses homens adiram inviolavelmente às suas leis, dizia este sofista, nisto não os censuro; eu só censuro aqueles que abandonam a religião de seus pais para abraçar uma diferente! Mas se os judeus ou os cristãos querem se dar ares de uma sabedoria mais sublime que aquela do resto do mundo, eu diria que não se deve crer que sejam mais agradáveis a Deus que os outros”.
Assim, meus irmãos, o principal agravo contra os cristãos era a rigidez absoluta de seu Símbolo, e, como se dizia, o humor insociável de sua teologia. Se só se tratasse de um Deus a mais, não teria havido reclamações, mas era um Deus incompatível, que expulsava todos os outros: eis porque a perseguição. Assim, o estabelecimento da Igreja foi uma obra de intolerância dogmática. Toda a história da Igreja não é outra que a história dessa intolerância. O que são os mártires? Intolerantes em matéria de fé, que preferem os suplícios a professarem o erro. O que são os Símbolos? São fórmulas de intolerância, que determinam o que é preciso crer e que impõem à razão os Mistérios necessários. O que é o Papado? Uma instituição de intolerância doutrinal, que pela unidade hierárquica mantém a unidade da fé. Porque os concílios? Para frear os desvios de pensamentos, condenar as falsas interpretações do dogma; anatematizar as proposições contrárias à fé.
Nós somos então intolerantes, exclusivos em matéria de doutrina: nós disto fazemos profissão; nós nos orgulhamos da nossa intolerância. Se não o fôssemos, não estaríamos com a verdade, pois que a verdade é uma, e conseqüentemente intolerante. Filha do céu, a religião cristã, descendo sobre a terra, apresentou os títulos de sua origem; ela ofereceu ao exame da razão fatos incontestáveis, e que provam irrefutavelmente sua divindade. Ora, se ela vem de Deus, se Jesus Cristo, seu autor, pode dizer: Eu sou a verdade: Ego sum veritas, é necessário por uma conseqüência inevitável, que a Igreja Católica conserve incorruptivelmente esta verdade tal qual a recebeu do Céu; é necessário que ela repila, que ela exclua tudo o que é contrário a esta verdade, tudo o que possa destruí-la. Recriminar a Igreja Católica sua intolerância dogmática, sua afirmação absoluta em matéria de doutrina é dirigir-lhe uma recriminação muito honrosa. É recriminar a sentinela ser muito fiel e muito vigilante, é recriminar a esposa ser muito delicada e exclusiva.
Nós ficamos muitas vezes confusos do que ouvimos dizer sobre todas essas questões até por pessoas de senso. A lógica lhes falta, desde que se trata de religião. É a paixão, é o preconceito que os cega? É um e outro. No fundo, as paixões sabem bem o que elas querem quando procuram abalar os fundamentos da fé, pondo a religião entre as coisas sem consistência. Elas não ignoram que, demolindo o dogma, elas preparam para si uma moral fácil. Diz-se com uma justeza perfeita: é antes o decálogo que o Símbolo que as faz incrédulas. Se todas as religiões podem ser postas num mesmo nível, é que elas se equivalem todas; se todas são verdadeiras é porque todas são falsas; se todos os deuses se toleram, é porque não há Deus. E se se pode aí chegar, não sobra mais nenhuma moral incômoda. Quantas consciências estariam tranqüilas, no dia em que a Igreja Católica desse o beijo fraternal a todas as seitas suas rivais!
Jean-Jacques Rosseau foi, entre nós, apologista e propagador desse sistema de tolerância religiosa. A invenção não lhe pertence, se bem que tenha ido mais longe que o paganismo, o qual nunca chegou a levar a indiferença a tal ponto. Eis, com um curto comentário, o ponto principal do catecismo genovês, tornado infelizmente popular: todas as religiões são boas; isto é, de outra forma, todas as religiões são ruins (...).
A filosofia do século XIX se espalha por mil canais sobre toda a superfície da França. Esta filosofia é chamada eclética, sincrética e, com uma pequena modificação, é também chamada progressiva. Esse belo sistema consiste em dizer que não existe nada falso; que todas as opiniões e todas as religiões podem ser conciliadas; que o erro não é possível ao homem, a menos que ele se despoje da humanidade; que todo o erro dos homens consiste em crer possuírem exclusivamente toda a verdade, quando cada um deles só tem um elo e que, da reunião de todos esses elos, deve-se formar a corrente inteira da verdade. Assim, segundo essa inacreditável teoria, não há religiões falsas, mas elas são todas incompletas umas sem as outras. A verdadeira seria a religião do ecletismo sincrético e progressivo, a qual ajuntaria todas as outras, passadas, presentes e futuras: todas as outras, isto é, a religião natural que reconhece um Deus; o ateísmo que não conhece nenhum; o panteísmo que o reconhece em tudo e por tudo; o espiritualismo que crê na alma, e o materialismo que só crê na carne, no sangue e nos humores; as sociedades evangélicas que admitem uma revelação, e o deísmo racionalista que a rejeita; o cristianismo que crê no Messias que veio e o judaísmo que o espera ainda; o catolicismo que obedece ao papa, e o protestantismo que olha o papa como o anticristo. Tudo isto é conciliável. São diferentes aspectos da verdade. Da união desses cultos resultará um culto mais largo, mais vasto, o grande culto verdadeiramente católico, isto é, universal, pois que abrigará todas as outras no seu seio.
Esta doutrina que qualificais de absurda, não é minha invenção; ela enche milhares de volumes e de publicações recentes; e, sem que seu fundo jamais varie, ela toma, todos os dias, novas formas sob a pena e sobre os lábios dos homens em cujas mãos repousa os destino da França. — A que ponto de loucura nós então chegamos? — Nós chegamos ao ponto onde deve logicamente chegar todo aquele que não admite o princípio incontestável que estabelecemos, a saber: que a verdade é uma, e por conseqüência intolerante, excludente de toda doutrina que não é a sua. E, para juntar em poucas palavras toda a substância deste meu discurso, eu lhes direi: procurais a verdade sobre a terra? Procurai a Igreja intolerante. Todos os erros podem se fazer concessões mútuas; eles são parentes próximos, pois que tem um pai comum: Vos ex patre diabolo est. A verdade, filha do céu, é a única que não capitula.
Sim, Santa Igreja Católica, vós tendes a verdade, porque vós tendes a unidade, e porque vós sois intolerante, não deixais decompor esta unidade. É este, meus irmãos, nosso primeiro princípio: a religião que desce do céu é a verdade, e por conseqüência ela é intolerante quanto às demais doutrinas.
Não nos peçais a tolerância em relação às doutrinas. Encorajai, ao contrário, nossa solicitude em manter a unidade do dogma, que é o único laço da paz sobre a terra. O orador romano disse: a união dos espíritos é a primeira condição da união dos corações. E este grande homem faz entrar na definição mesma da amizade, a unanimidade de pensamento em relação às coisas divinas e humanas: Eadem de rebus divinis et humanis cum summa charitate juncta concordia.
Nossa sociedade está sujeita a mil divisões; nós nos lastimamos disso todos os dias. De onde vem este enfraquecimento das afeições, este resfriamento dos corações? Ah! meus irmãos, como seriam os corações aproximados onde os espíritos estão tão distantes? É porque cada um de nós se fecha no amor de si mesmo. Queremos por fim a essas dissidências sem número que ameaçam destruir todo espírito de família, de cidade e de pátria? Queremos não ser mais estrangeiros, adversários e quase inimigos uns dos outros? Voltemos a um Símbolo e nós reencontraremos logo a concórdia e o amor.
(Trecho de sermão pregado na Catedral de Chartres)
D. José Pereira Alves
Conferência ilustrada com projeções
Meus senhores, não sou eu quem vai fazer conferência. O vivo das telas, o colorido dos quadros, tudo que há de impressionante nas projeções se encarregará de dizer à vossa alma o que a minha palavra não pode nem sabe.
Se algum raio de eloquência brilhar nesta palestra, será o raio de eloquência esmagadora do fato, estudado à luz da crítica sábia dos competentes. Dar-me-ei por imensamente remunerado se depois no santuário da minha alma a vossa consciência me disser: cumpriste o teu dever de padre, de semeador do Evangelho. O trabalho que ides ouvir não tem preocupações científicas: é o trabalho do vulgarizador religioso. Dividi esta palestra em duas partes: — uma histórica e a outra apologética. Na primeira parte ouvireis a narrativa dos acontecimentos de Lourdes, cidade do sul da França; na segunda, vereis que esses prodigiosos acontecimentos provam a existência do sobrenatural, a divindade e a verdade da religião católica que os possui. Ponde em ação as vossas nobres faculdades e contemplai este novo paraíso que Deus plantou na terra e no qual Maria, a nova Eva, a Mãe da vida, oferece o fruto fecundo de extraordinárias bênçãos, de incontáveis benefícios de um coração de mãe.
A GRUTA
Eis ali a gruta, a gruta abençoada, onde a Formosa Senhora aparece a Bernadete Soubirous! Eis ali a gruta selvagem, silenciosa e triste entrelaçada pelos ramos de uma roseira brava! Quem diria que esta solidão seria o lugar de tanta maravilha? Quem diria que a rocha bruta desses ermos seria o teatro das graças mais escolhidas do Altíssimo?
Falando da gruta, o peregrino convertido escreveu o livro Du Diable à Dieu. Adolfo Retté arranca da sua alma na sua obra Un séjour à Lourdes estes belos sentimentos: “Daí se irradiam através das brumas do materialismo, as claridades deste astro fixo: o Sol da graça. Na gruta, o Sursum Corda realizado que se experimenta por toda a parte em Lourdes, toma todo o seu desenvolvimento.
A alma, embebida de oração, sente que aí é proibido ao mau girar em torno de si.
O influxo sobrenatural penetra-a, com uma imperiosa doçura e vivifica-a: é alguma coisa como uma Eucaristia de luz. Parece que se está numa estufa quente, onde pompeiam as palmas e as flores da vida contemplativa, enquanto o inverno reina lá fora.
Nesta tépida atmosfera, sente-se a presença da Santa Virgem. Os olhos do espírito se abrem, não é mais a estátua de Fabisch que ocupa a cavidade onde se deram as aparições: é a Imaculada mesma. Ela está lá: de suas mãos descem sobre as cabeças inclinadas as consolações e os ensinos. A gente se ajoelha e, como Bernadete, a gente beija o chão e fica-se num extase de uma inefável paz de espírito”
Meus senhores, a gruta selvagem e muda, nas rochas de Massabielle, vai em breve dourar-se de uma celeste e esquisita claridade.
A 1° de fevereiro de 1858, uma menina, acompanhada de sua irmã e uma amiga, se achava diante desta gruta agreste, silenciosa e triste. Era Bernadete.
BERNADETE
Vede, meus senhores: é a fisionomia, cheia de paz e de sinceridade, da eleita de Maria.
Mas quem era Bernadete? Era uma humilde filha de Lourdes, de 14 anos, o mais novo rebento do casal Soubirous. No lar paterno reinava a pobreza. Mais uma vez a lei ordinária da Providência que escolhe os fracos e os humildes para as grandes coisas, ia receber uma solene confirmação. A indigência dos Soubirous precisara de lenha e Bernadete, Maria, sua irmã, e Joana Abadie, sua companheira, partiram a busca-la. Fazia frio. Os cuidados da mãe de Bernadete, que sofria de asma, não permitiram que ela fosse sem meias.
Caminhavam elas ao longo do Gave que serpeava cantando a eterna queixa de suas águas e se viram na extremidade da ilha de Chalet, formada pelo Gave e pelo canal de Savy que se atirava à corrente fluvial ao pé da gruta selvagem, rodeada de silvas.
Maria e Joana tiraram os seus tamancos e atravessaram o raso canal do moinho. Bernadete de saúde delicada, temeu passar a corrente.
As companheiras se negaram a transportá-la; Bernadete esforçou-se inutilmente para passar o canal a pé enxuto. Resolveu tirar as suas meias. Já havia soado o meio-dia. Uma calmaria grande pairava no ar. O silêncio das margens do Gave era apenas interrompida pelo gemido da corrente. As folhas das árvores, imóveis, pendiam dos ramos tranquilos. Dir-se-ia que a natureza pressentindo um mistério se recolhera em uma solene e grandiosa meditação.
Ingênua e descuidada camponesa, tira as tuas meias que a terra que vais pisar, é santa. A calma da natureza que te envolve, não te impressiona? Meus senhores, o céu se aproximava da terra e a escolhida de Deus e da Virgem de nada suspeita em plena posse da mais perfeita tranquilidade do espírito, sem a excitação nervosa de espécie alguma, despreocupada. Apenas Bernadete tira uma das meias, um ruído de ventania forte quebrou a monotonia do campo. A menina ergueu os seus lindos olhos e nada viu. Dominava o mesmo silêncio de morte. Enganar-se talvez.
De súbito, um outro ruído, semelhante, apavorou a criança. Contemplou a paisagem em volta. Reinava a mesma calma nas bordas do Gave. Do lado oposto do canal, porém, a roseira brava que abraçava a gruta cavada na rocha abrupta era agitada por um vento forte. A rocha começou a iluminar-se. Um nimbo dourado se forma no rochedo e acima da moita agreste da roseira brava, uma visão deslumbra os olhos ofuscados de Bernadete. Era uma mulher de estranha e inigualável beleza, augusta e nobre.
A APARIÇÃO
Moisés se quedara, cheio de assombro, diante da sarça ardente do Horeb, donde trovejava a voz de Jeová.
Do centro duma sarça luminosa se erguia agora diante de uma simples camponesa o perfil celestial de uma mulher no viço da juventude, olhar de bondade e de expressão soberana. “Ela era jovem e bela, conta Bernadete, sobretudo bela, como eu nunca vi. Ela olhava-me, sorria, fazia sinal para que me aproximasse sem receio. E com efeito, eu não tinha mais medo, mas parecia que não sabia mais onde estava”
A Bela Senhora, de branca túnica, como a neve da montanha, cingida de azul, tinha sobre os alvos pés nus uma brilhante rosa de ouro. Das mãos postas em divinal atitude caiam as contas de um lindo terço alvíssimo.
Bernadete, instintivamente, de joelhos, começou a recitar o terço e a Formosa Aparição, sorrindo e aprovando, começou a passar entre os dedos angélicos as contas do seu terço, sem dizer palavra. Abria apenas os lábios purpurinos para dizer com Bernadete: — Gloria Patri, et Filio et Spiritui Sancto.
“Quando o terço acabou de ser recitado, diz Bernadete, a Senhora tornou a entrar no rochedo e a nuvem de ouro desapareceu com ela”
O espetáculo grandioso da visão mergulhava a menina privilegiada num êxtase e a lembrança doce e profundamente viva da deslumbrante e graciosa jovem não deixava o espírito de Bernadete.
Foi nesta doce contemplação que de joelhos a acharam suas companheiras que riram muito de encontrá-la em oração numa paragem tão deserta e triste.
Bernadete levantou-se e ajudou Maria e Joana a trazerem os três feixes de varas secas que tinham reunido.
O coração de Bernadete, porém, não pode resistir e contou tudo em segredo, à sua irmã. Em casa, debaixo da pressão de sentimento causado pelo maravilhoso fato começou a chorar. “Que tens Bernadete? ” Perguntou-lhe Mme. Soubirous. Maria revelou todo o segredo de sua irmã. “São ilusões, minha filha, disse sua mãe, expulsa essas ideias e sobretudo não voltes a Massabielle”. 12 e 13, sexta e sábado, foram para Bernadete dias de tortura. Ela ansiava por voltar à gruta. Um não sei que de misterioso a atraia. Meus senhores, iam principiar as grandes cenas desse drama divino que abalou e abala o mundo inteiro. No dia 14, Mme. Soubirous permitia que a filha fosse a Massabielle. As suas amigas tinham-na aconselhado a levar água benta. Diante da roseira brava ajoelhou Bernadete, orou e, pouco depois, rompeu o seu silêncio religioso, gritando: — “Lá está ela! Lá está ela! ”. Depressa, gritou-lhe uma companheira, atira-lhe água benta. Bernadete obedeceu e a Virgem luminosa sorriu. Foi a segunda aparição. Mme. Soubirous repreendeu sua filha e a ameaçou. Dias depois, a pedidos instantes de várias pessoas, Bernadete obteve autorização de ir à Gruta que exercia no seu espírito de criança uma sedução irresistível. Era o dia 18 de fevereiro. “Ei-la, exclamou Bernadete, e rindo, sem agitação apresentou à Senhora uma folha de pape. “O que tenho a dizer não é preciso escrever”, disse a visão, e pedindo a Bernadete que voltasse durante 15 dias, ajuntou: “Prometo tornar-te feliz, não neste mundo, mas no outro”. A notícia espalhou pela cidade como o raio. A curiosidade popular agitou-se, as opiniões dividiram-se. Entretanto as aparições sucederam-se na presença de milhares de testemunhas. Já na quarta houve 500 pessoas. A vidente foi examinada, interrogada pelo médico de Lourdes, Dr. Dozous, pelo Sr. Dufo, advogado, pelo Sr. Pougat, presidente do tribunal. Suas respostas simples, precisas, claras, cheias de verdade e sinceridade, deixaram-nos estupefatos.
Na 6ª aparição, estudada cientificamente pelo Dr. Dozous, que nada verificou de anormal no organismo de Bernadete, a visão pediu que ela rezasse pelos pobres pecadores, pelo mundo tão agitado. “Deixando estes lugares onde a emoção geral era tão grande, narra o Dr. Dozous, testemunha ocular interessada, Bernadete retirou-se como sempre, na atitude mais simples, mais modesta, sem prestar atenção à ovação pública de que era objeto”. Os poderes públicos julgam prudente intervir; intentam dissuadi-la de ir a Massabielle e ela tem para dar-lhes uma resposta de heroína: “Não vo-lo prometo”. A franqueza lutava com a força e venceu-a.
Ameaçada de prisão, resiste. Não tinha ela prometido à Bela Senhora voltar durante 15 dias? Daí em diante gendarmes acompanhavam a vidente à gruta.
No dia 24, renova-se a aparição. No dia 25, depois de alguns minutos de meditação, Bernadete levanta-se, afasta os ramos da roseira brava e beija a terra debaixo da rocha além da sarça. E voltando continua a sua prece. Levanta-se de novo, indecisa, adianta-se para o Gave, recua, parece escutar alguém. Volta para a gruta e depois de ter levantado a cabeça como para interrogar a Visão começa a cavar a terra. A cavidade que fizera, enche-se de água: ela bebe desta água e com ela lava o rosto. O fio d’água se avoluma, torna-se um jorro potente e transforma-se nesta fonte maravilhosa que abastece as nove piscinas de Lourdes, produzindo 122 mil litros de água por dia. Na 11ª aparição, Bernadete recebeu esta mensagem: “Ide dizer aos padres que aqui se deve edificar uma capela”. Vinte dias depois do dia 4 de março, entre 15 a 20 mil pessoas assistiram ao êxtase, a branca Aparição já esperava no seu nicho de pedra a sua predileta. Era o dia 25 de março, dia da Anunciação. Bernadete partira para Massabielle à primeira alvorada. Contra a sua expectativa, a rocha já estava banhada pelo suave e divino resplendor da Visão que, jovem e radiante, pousava sobre a sarça da roseira selvagem. Bernadete caindo de joelhos pediu-lhe que dissesse quem era. A Bela Senhora deixou aflorar nos lábios um sorrido.
“Ao meu terceiro pedido — conta Bernadete — a Senhora juntou suas mãos, elevou-as até o peito, olhou para o céu, depois, separando lentamente as mãos e inclinando-se para mim, me disse: Eu sou a Imaculada Conceição”
Na poesia virgiliana, em formoso hexâmetro, se encontra este belo verso do cisne mantuano: — Incessu patuit Dea — A Deusa revelou-se pelo andar.
Bem mais luminosa, bem mais bela, de maior candura de mais augusta majestade que a Deusa olímpica — fantasia de poeta — sois Vós, ó Imaculada. Nos revelastes pelas palavras, cheias de emoção e de virtude, com que confirmas com tanta solenidade o dogma de vossa Imaculada Conceição, proclamado pela voz infalível de Pio IX. Ah! Meus senhores, o véu do mistério que envolvia a gruta, caíra e nesta onda de luz reveladora como numa visão apocalíptica fulge no céu da História da Igreja um grande sinal. Era uma mulher vestida de sol! Depois de sua morte, Maria ainda não se revelara tão solenemente à sua grande família humana!
A multidão, ao saber da celeste resposta, delirante e transportada de entusiasmo, caiu de joelhos e fez ressoar pelas margens do Gave murmurante, a invocação da Imaculada: — “Ó Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós”
O MILAGRE DA VELA
A 7 de abril, a doce e graciosa visão iluminou a rocha de Massabielle. Foi então que se deu o célebre milagre da vela. Damos a palavra ao Dr. Dozous, testemunha do fato que assim o descreve:
“No momento em que ela começava a fazer de joelhos a sua ascensão ordinária, sobreveio de repente um tempo de suspensão neste movimento, e sua mão direita, aproximando-se então da esquerda, pôs a chama da grossa vela debaixo dos dedos desta mão, bastante afastados uns dos outros para que esta chama pudesse passar facilmente entre eles. Ativada nesta ocasião por uma corrente de ar assaz forte, não me pareceu produzir na pele que atingia nenhuma alteração. Cheio de pasmo diante deste fato estranho, impedi que alguém o fizesse cessar, e, tomando o meu relógio, pude, durante um quarto de hora, observá-lo facilmente. Concluída a sua oração e havendo desaparecido de sua face a transformação, Bernadete levantou-se e dispôs-se a retirar-se da gruta. Retive-a um momento e lhe pedi que me mostrasse a mão esquerda que examinei com o maior cuidado. Não encontrei vestígio nenhum de queimadura. Dirigindo-me então à pessoa que havia tomado a vela, roguei-lhe que a acendesse e me desse. Imediatamente coloquei muitas vezes, continuadamente a chama da vela sob a mão esquerda de Bernadete que a retirou, dizendo-me: Não me queimeis. Este fato refiro-o como o vi e como muitas pessoas, colocadas como eu perto de Bernadete, o verificaram perfeitamente; refiro-o tal como se deu, sem explica-lo”
Meus senhores, o milagre da vela desafia a ciência humana a explica-lo dentro das leis que regem a natureza. Ele permanecerá inexplicável, senão apelarmos para Deus que assim vinha autenticando irrefragavelmente os assombrosos acontecimentos de Lourdes. A décima-oitava e última aparição realizou-se no dia de N. S. do Carmo. “A Virgem sorriu a Bernadete, diz um orador, como para confirmar o passado e iluminar o futuro”. Desse dia em diante Bernadete volta à sua vida ordinária, frequentando a escola, simples, de uma ingenuidade adorável. Viveu depois destas maravilhas mais 20 anos. Em Nevers tornou-se Soror Maria Bernard. Ela escondeu-se na dobra de sua grande humildade. “Não se a imagina casada, mãe de família; perdida nos tumultos e nas algazarras do século”, diz Adolpho Retté. Deve-se-lhe aplicar o belo verso de Luiz de Cordonell.
Radiante por ter desposado o silêncio; ela sepultou-se num mosteiro. Escolheu a melhor parte e renunciando a si mesma, acabou de merecer a felicidade eterna cuja segurança a Santa Virgem lhe tinha dado. Bernadete cumprira a sua missão, abrira para a humanidade enferma, um caminho de vida, de benção, de paz, o caminho trilhado pelos peregrinos de todo o mundo, que conduz a Lourdes, a humilde cidade transformada pela celestial predileção da Virgem no paraíso de suas graças e no grande empório de fé para onde convergem as multidões que vão suplicar à Imaculada a cura do seu corpo e a luz de sua alma.
Lourdes é a cidade de Maria, é a nova Jerusalém, é a Canaã, onde mana leite e mel perenemente.
Tendes diante de vós, um panorama de Lourdes.
Lourdes, envolvida no manto azul da Virgem luminosa, Maria escolheu-te entre as tuas irmãs para seres a urna sagrada do seu coração de Mãe. Salve, Lourdes!
Lourdes é a cidade da Virgem. Depois que o clarão de Massabielle se projetou sobre ela como uma benção de luz, Lourdes tornou-se o centro da atração universal das almas, um foco interno de vida e de salvação.
Lá está a nova piscina de Siloé, onde os doentes deixam as suas muletas e os seus bordões, as suas compressas e os seus catres. Maria aí pronuncia um contínuo — surge et ambula — a todos que vão implorá-la na sua gruta bendita. Ela dissera: “Eu quero que aqui venham em procissão”
E de todo o mundo ali tem vindo, em imponentes peregrinações, a procissão de toda a Cristandade. Que dizem, senhores, as estatísticas? Ouçamos Bertrin: de 1867 a 1909 exclusivamente houve em Lourdes 5.207 peregrinações que tiveram 4.919.000 peregrinos. Naturalmente, os primeiros anos fornecem a parte mais modesta nesta espantosa estatística. Se, desprezando o ano excepcional do cinquentenário, tomarmos os dez que o precederam, veremos que há uma média anual de 155 peregrinações. Em dez anos 2.491 trens levaram 1.549 grupos, que compreendiam 1.636.000 peregrinos. A estas cifras pasmosas, ajuntemos o número incalculável de peregrinos isolados, de turistas e curiosos. A estação de Lourdes, ela só, recebe por ano mais de um milhão de viajantes.
De todos os países do globo afluem peregrinos. O Episcopado está a frente deste grandioso movimento. Os santuários de Lourdes onde drapejam as bandeiras dos povos em honra de Maria e que recordam pela piedade dos fiéis as bondades inexplicáveis da Virgem de Massabielle, têm sido visitados por 2.013 bispos, arcebispos, primazes, cardeais, vindos dos mais diversos e remotos pontos do mundo.
A nossa querida pátria enviou a Lourdes 36 bispos que depositaram aos pés de Maria a homenagem da terra do Cruzeiro que é também a terra da Imaculada! E Lourdes, cantada pela harpa da Cristandade, exaltada pelo episcopado, coroada de glória pelos Pontífices Romanos, achou pequena a França para contê-la e multiplicou-se pelo mundo inteiro nas pequenas grutas, representativas da sua, espalhadas pelo orbe. Leão XIII falando de sua gruta nos jardins do Vaticano dizia a um cardeal: “Que quereis? É o meu canto de França”. O Gave não rola mais as suas águas por deserta e solitária natureza, mas um Te Deum de gratidões eternas perpassa, vibrante de fé, pelas suas margens outrora despovoadas. “Que tiveste, ó Gave, exclama Mons. Pie para fugires, porque recuastes? E de ti, Montanha, que transportes se apoderaram para saltares como os carneiros suspensos dos teus cumes, e vós, colinas, para dardes pulos como os cordeiros presos aos vossos flancos? ”
O globo inteiro sentiu uma comoção desde que, pela virtude da ordem celeste, a pedra foi cavada em forma de bacia e de reservatório, desde que o rochedo foi convertido em uma fonte d’agua que não deixou de correr. Qui convertit petram in stagna aquarum et rupem in fontes aquarum”
Meus senhores, Lourdes é o grande hospital que a Providência abriu na terra para as chagas físicas e morais do gênero humano. Milhares de doentes ali desembarcam para merecerem o favor da Virgem. É um espetáculo vivo da dor humana gravada naquelas faces macilentas e cavadas pelas enfermidades, naqueles membros cobertos de chagas e paralíticos. O trem branco silva, levando o sofrimento da humanidade à Gruta miraculosa, às suas piscinas, aos seus santuários, erigidos pela fé e pelo amor. Seria infindável a lista das diversas enfermidades de toda a espécie, curáveis e incuráveis.
Em leitos, em catres, de muletas, em carros, os doentes invadem a cidade de Maria. E a palavra humana poderá dizer o delírio, o entusiasmo e sobretudo o hino de gratidão que rebenta do peito dos miraculados? E Lourdes está tão impregnada de fé, de esperança, de amor, sente-se ali tanto a presença maternal da Virgem que, coisa notável, ainda os não miraculados partem dali com a alma inebriada de uma paz reconfortante e de uma alegria viva e admirável. E a partida dos trens de Lourdes é para os que se ausentam daquele pedaço do céu, um aperto do coração, o despertar amargo de uma saudade que acabrunha.
As glórias de Maria não podem ser comparadas às glórias do seu Filho. Em 1888 o Santíssimo Sacramento começou a receber uma solene manifestação de fé. É a imponente procissão do Santíssimo Sacramento. Os círios tremem brilhantes. Os estandartes oscilam reverentes, no espaço. A voz grave da tribo sacerdotal é interrompida pelas aclamações dos fiéis. Sublime espetáculo!
Como tu és bela, como tu és grande, como tu és divina, ó incomparável religião que produzes tais maravilhas! E lá estão os enfermos que pedem ao Filho de Davi a sua cura, lá estão nos seus catres os grandes doentes esperando a passagem miraculosa do Filho de Maria. Dá-se uma cura e um frêmito eletriza a multidão. É o triunfo do Cristo, é o triunfo de Maria. Magnificat, cantam mil vozes; Magnificat, gritam mil peitos; e o Cântico da Virgem ondula por aquela massa iluminada que se agita, reboando ao longe. Lourdes, teatro de tão estupendos prodígios, apresenta ao mundo civilizado e à incredulidade sarcástica a prova científica dos seus milagres. Lá está Le bureau des constatations criado em 1887, dirigido a princípio pelo Dr. Saint-Maclou e depois pelo ilustre Dr. Boissarie. “Redige, diz um escritor, uma média de 140 processos verbais por ano. Aí houve em 1897, sobre 210 trens de peregrinações, 2.825 doentes hospitalizados; 5.053 em 1901; 5.502 em 1904, 5.618 em 1907”
Neste ofício de verificações médica, são as curas examinadas com o rigor dos processos científicos. Todos os médicos, quaisquer que sejam suas ideias e opiniões, podem estudar os fatos miraculosos. Em Lourdes tudo se faz às claras, como testemunham atestados de profissionais que não partilham das nossas crenças.
A GRUTA (estado atual)
Meus senhores, encerrando o quadro breve e imperfeito da história de Lourdes, eu vos peço mais um olhar para a gruta de Massabielle, não mais para a gruta selvagem e deserta das bordas do Gave, mas para a gruta, bruta e selvagem na sua natureza severa, transformada pela piedade reconhecida. Ei-la! Acima da roseira brava se destaca A Madona de Fabisch, em mármore Carrara, de formosura ideal.
Dezenas de muletas, ali deixadas pelos agraciados da Virgem, pendem como troféus de vitória. Os círios trêmulos que a mão do reconhecimento acende iluminam o sagrado recinto. “Eu poderia, diz Adolpho Retté, o anarquista convertido, descrever as multidões que se sucedem na Gruta, salientar as diversas maneiras porque revelam a sua devoção. Eu poderia dizer estes furacões de litanias e de invocações que reclamam às vezes o gesto e a palavra dum diretor de peregrinações. Eu poderia juntar os doentes e seus olhares e suas fisionomias transfiguradas pela esperança”. Sim, meus senhores, o mundo se precipita sobre Lourdes e se acotovela nas grades da Gruta abençoada. Ali todas as classes se misturam e se abraçam como irmãos. Lourdes promove a confraternização dos povos, prega o heroísmo da caridade com o exemplo de suas instituições de assistência cristã dos seus liteiros abnegados; desperta o sentimento religioso e estabelece a harmonia social unindo as nacionalidades num cosmopolitismo admirável e sublime.
A grua misteriosa, em cujas rochas a Virgem deixou para sempre o rastilho, a impressão luminosa de sua visão, a benção fecunda do seu amor, agasalhando-os debaixo de sua túnica de Mãe, cinge todos os corações num só halo de esperança, numa democracia bendita, a democracia de Maria Imaculada.
Meus senhores, Loures que é um foco de religião e de amor, é no meio da Igreja de Deus a apologética viva de nossa fé. Deus encarregou sua Mãe adorável de dar à audácia insultante da incredulidade a resposta esmagadora dos assombrosos milagres de Massabielle, que demonstram irrespondivelmente a existência do sobrenatural e a divindade da religião que a possui.
É o que vamos ver na senda parte desta palestra.
II PARTE
Meus senhores, as aparições de Bernadete foram reais? Este movimento universal, esta manifestação grandiosa é apenas uma forma de fanatismo que tem as suas raízes no embuste ou na ilusão? Meus senhores, a realidade das aparições de Massabielle trazem o cunho duma verdade indubitável.
As leis que regem o testemunho histórico dos fatos naturais são as mesmas que regem o testemunho dos fatos maravilhosos. Se o testemunho de Bernadete está revestido das condições devidas para arrastar o consenso, ninguém mais poderá negar a realidade de suas extraordinárias visões.
Ora, ele o está duma maneira soberana. Para que Bernadete seja digna de crédito, basta provarmos que ela não quis enganar-nos nem se enganou: a sinceridade e a ciência de Bernadete. Quem estuda a psicologia de Bernadete, quem observa a alma ingênua desta montanhesa, simples não pode duvidar da sua sinceridade.
A ignorância, a simplicidade, a modéstia, o desinteresse dessa menina, deixam à parte toda a suspeita.
Impossível que Bernadete fosse uma comediante.
Quanto a afligiam os interrogatórios!
Jamais quis focalizar na sua pessoa que mais escondia na solidão do claustro.
Menina, pobre, sem recursos jamais quis aceitar um real da generosidade pública. Os testemunhos abundam. As suas respostas em interrogatórios habilmente preparados e feitos por pessoas por responsabilidade social, foram sempre resposta claras, precisas, sem a mínima contradição. Bernadete, ignorante e simples camponesa, triunfou sempre de todas as provas de todos os laços armados para surpreendê-la. Na hora de sua morte, neste momento solene em que a alma vai comparecer ao tribunal do Deus vingador, vinte anos depois dos extraordinários sucessos. A Igreja quis fazer a Bernadete, então Soror Maria Bernard, um supremo interrogatório. Os delegados dos Bispos de Tarbes e Nevers, assistidos pelas religiosas, junto àquele leito já ensombrado pela asa da morte, ouviram da vidente risonha a confirmação formal das suas revelações. Bernadete morreu dizendo: — “Eu a vi, sim, eu a vi”. Mas se a sinceridade de Bernadete escapa a toda dúvida, não ter-se-á enganado ela, não teria sido vítima duma profunda alucinação mental? Sim, respondem os céticos. Não, respondemos nós, responde a ciência, responde a eloquência das circunstâncias desta grande história.
As influências nervosas supõem uma natureza nervosa. Ora, Bernadete, além de asma, não sofria doença. O seu temperamento era calmo, são, alegre e risonho. A ideia religiosa não lhe teria produzido no espírito uma agitação profunda? Nenhuma. A piedade de Bernadete era uma piedade simples que nada tinha de extraordinário. A sua cultura religiosa, a dificuldade que ela tinha a esse respeito, não a puderam preparar para um misticismo tão exaltado. Nem a exercícios espirituais a menina Soubirous assistia. Ainda não fizer a primeira comunhão. A natureza física e moral de Bernadete era contrária absolutamente a qualquer alucinação. Antes da visão, durante a visão e depois da visão, a conduta, as maneiras, as palavras de Bernadete, repugnam às leis da alucinação. Não me sendo permitido assinalar as provas abundantes da não alucinação de Bernadete, limito-me a salientar a explicação científica do Dr. Voisin, médico e notável e competente de Salpetrière.
A alucinação de Bernadete foi completa e deveria ter produzido o desarranjo cerebral, porque o cérebro de uma criança não pode resistir a uma alucinação de tal natureza. E, concluindo que tal era a alucinação de Bernadete, afirmou que ela ficara louca e por isso fora internada num convento. Ora, a loucura de Bernadete é uma calunia. Não há nada melhor provado do que o senso perfeito de Bernadete, o que é atestado pelos médicos e por todos. A conclusão do Dr. Voisin prova, pois, a não alucinação de Bernadete. Se fora alucinada teria perdido a razão; ora, tal não se realizou. E assim, meus senhores, o testemunho de Bernadete, cheio de sinceridade e pleno e real conhecimento, se impõe a todo o espírito reto e imparcial. Qual foi a atitude da Igreja diante das aparições de Massabielle? Foi a da prudência e da reserva. Para que recordar a severidade e a prudência de Mons. Peyramale, pároco de Lourdes, recebendo as declarações de Bernadete, as exigências de seu zelo talvez um tanto excessivas? Os fatos maravilhosos de Lourdes foram tomando tanto vulto que Mons. Peyramale se viu obrigado, cheio de emoção, a levar a seu Bispo o estado singular de sua paróquia. Mons. Laurence apelou para a ação do tempo até que veio o momento oportuno de nomear solenemente uma comissão episcopal de sindicância, composta de dezesseis membros. Depois de longas e paciente investigações, foi a 18 de janeiro de 1862 que apareceu o mandamento do Sr. Bispo de Tarbes dando julgamento sobre a aparição que se realizou em Lourdes.
“Nós julgamos que a Imaculada Maria realmente apareceu a Bernadete Soubirous a 11 de fevereiro de 1858 e dias seguintes, em número de 18 vezes na Gruta de Massabielle, perto da cidade de Lourdes; que esta aparição reveste todos os caracteres da verdade e que os fiéis têm motivos fundados para crê-la certa. Submetemos humildemente o nosso juízo ao juízo do Soberano Pontífice, que é encarregado de governar a Igreja Universal”. Os Sumos Pontífices, não se tratando de fé e de moral, não intervieram para confirmar o sentido diocesano. Mas pelas suas palavras, pelo seu exemplo, pela sua devoção, têm dado a equivalência desta aprovação pública.
Pio X, gloriosamente reinante, não estabeleceu como festa litúrgica da Igreja Universal a 11 de fevereiro, a Festa da Aparição da Imaculada?
Meus senhores, não há que duvidar, a realidade das aparições de Lourdes é um fato de solidíssimas bases históricas e a Virgem de Massabielle o continua a demonstrar com o argumento fulgurante dos seus milagres.
A crítica científica exige que nos tempos presentes fatos e fenômenos para construir os alicerces de suas verdades. Pois bem, Lourdes, se satisfaz plenamente. O projecionista vai fazer desfilar diante de vós, como numa procissão de dor e ao mesmo tempo de ventura, diversos mártires do sofrimento curados pela Virgem de Lourdes.
Eu quisera ter tempo de analisar e criticar cada um destes milagres para fazer ressaltar a intervenção do divino, do sobrenatural.
Mas ainda assim a sua simples exposição é impressionante e vale um argumento.
YVONNE AUMAITRE
É uma interessante criança de 23 meses. Tinha os dois pés aleijados. Seu pai que era médico mergulhou-a na piscina e, ao retirá-la, abraçou-a curada e sã.
VION DURY
É um velho soldado. Num incêndio as chamas lhe queimaram os olhos. Verificava-se um duplo descolamento da retina. Fez uma novena no Hospital de Anfort à Virgem de Lourdes.
Repentinamente sentiu uma grande dor. Maria restituiu a vista ao cego.
A sociedade francesa de oftalmologia proclamou que era um caso sem precedentes.
CONSTANCE PIQUET
Foi declarada incurável, afetada dum cancro horrível que a devorava há três anos, é miraculada em Lourdes pela divina e celeste “consoladora dos aflitos”. Dois minutos após a imersão, o cancro havia desaparecido.
Cura instantânea, verificada uma hora mais tarde por 15 a 20 médicos, inclusive o Dr. Regnauld, da Escola de Medicina de Reims.
VIUVA PECANTET
Atacada de lúpus é igualmente beneficiada pela misericordiosa Virgem de Massabielle.
CATHERINE LAPEYRE
Devorada por um cancro na língua, arrastada pela fama dos prodígios daquela que é a Mãe de Misericórdia e nossa esperança, teve um olhar de súplica para Maria que, bondosa e terna, lhe restituiu a saúde.
GABRIEL GARGAN
Para descrever este milagre de um grande valor apologético por causa da excepcional circunstancia em que se realizou, eu apelo para a pena brilhante do poeta, convertido acima citado: — “E que dizer daqueles que não possuíam a fé e que se vangloriavam de sua incredulidade e que vieram apenas a Lourdes a instância duma família crente ou para adoçarem o pesar duma mãe piedosa? ”
Estou perdido, dizem eles, pouco importa o que fizerem de mim. Foi o caso de Gargan. Sua história tem sido muitas vezes contada.... Recordo somente que, depois de um acidente da linha de ferro, Gargan, acometido de um traumatismo da medula espinhal, viu-se inteiramente paralisado. De mais, seu estômago apenas suportava quantidade ínfima de alimento; não dormia e sofria dores intoleráveis. Enfim, à sua chegada a Lourdes, a gangrena havia invadido os seus membros inferiores.
Resistiu por muito tempo as súplicas de sua mãe, que, vendo-o condenado pelos médicos, só esperava na Santa Virgem. Ele cedeu apenas para ter paz. Durante a viagem, recusou a orar e pouco antes de entrar na estação, como sua mãe lhe pedisse para levantar os olhos para o crucifixo que culmina a montanha chamada do Calvário, ele desviou a cabeça aborrecido.
Era um incrédulo total! A vinte de agosto de 1901, levaram-no numa padiola à esplanada para receber a benção do Santíssimo Sacramento. Tinha perdido os sentidos. Sua face apresentava uma coloração azul; seu corpo estava gelado. Parecia tão perto da morte que os assistentes estiveram a ponto de reconduzi-lo ao hospital para que a vista deste cadáver não atemorizasse os outros doentes. Não, deixai-o gritou a pessoa que o acompanhava, se ele morrer cobrir-lhe-ei a face e após a benção o levaremos.
O Santíssimo Sacramento passou no meio de cânticos e invocações. Apenas o sinal sagrado foi traçado sobre a cabeça de Gargan, este levanta-se, salta da padiola, dá alguns passos, gritando: — “Santa Mãe de Deus, eu vo-lo agradeço”. Estava curado.
Meus senhores, que há na terra de mais sublime? Que há de mais maravilhoso do que a Benção da Imaculada salvando a vida aos próprios incrédulos de um modo tão espantoso? Lourdes confunde a impiedade e Lourdes a salva.
Dupla cura: do corpo e do coração. Em Lourdes, agradecido, Gabriel Gargan, vai fazer todos os anos o serviço de carregar as padiolas e banhar os doentes na piscina!
CAROLINE ESSERTEAU
Era doente da medula espinhal. A cabeça, as pernas não podiam virar-se em todas as direções.
Foi declarada incurável. Mas a Virgem de Lourdes encontrou na sua divina terapêutica o remédio para os seus males.
CLEMENTINA TROUVÉ
Tinha uma doença dos ossos da cabeça. O seu lugar de moradia era protestante.
Curada, instantaneamente ao primeiro banho da piscina, ela foi na terra objeto de discussões. O médico que a examinou antes da partida não pode deixar de exclamar: fosse o bom Deus ou o diabo, a menina está curada.
MARIE LEBRANCHU
Tuberculose no 3° grau. Era um esqueleto vivo, diz Bertin; a tosse a sacudia de um modo deplorável. Ao sair da primeira imersão, escrevem os médicos de Lourdes, Marie Lebranchu experimenta um bem-estar instantâneo. Examinamo-la com cuidado no gabinete dos médicos. Não encontramos nem estertores, nem sopros, nem palidez. O Presidente do Bureau ajunta: — Não restava nem o menor traço de lesão no pulmão.
MARIE LEMARCHANEL
A sua cura pertence à classe das curas instantâneas. Eis o que diz uma testemunha ocular, o Dr. Homtres: “Lembro-me muito bem de ter visto Marie Lemarchanel diante das piscinas esperando a sua vez de tomar banho.
Seu aspecto, particularmente repugnante, tocou-me. As duas faces, a parte inferior do nariz, o lábio superior, estavam cobertos de uma úlcera inferior do nariz, o lábio superior, estavam cobertos de uma úlcera de natureza tuberculosa, e segregando um pus muito abundante. Os panos que cobriam esta face estavam cobertos de pus. Ao sair da piscina, eu dirigi-me imediatamente ao hospital, para junto dessa mulher.
Reconheci-a muito bem, ainda que o seu aspecto estivesse inteiramente mudado. Em lugar da repugnante chaga que eu acabava de ver, achei uma superfície, ainda vermelha, na verdade, mas seca e como recoberta de uma epiderme de nova formação. Os panos que tinham servido para prensar a chaga, antes de sua entrada na piscina estavam ao lado dela todos manchados de pus”. E o médico, atestando a cura de igual chaga na perna da doente, termina vivamente impressionado por uma tão súbita mudança, produzida por uma simples imersão na água fria, numa afecção, como o lupus, tão rebelde a toda espécie de medicamentos.
São estes últimos doentes as três personagens do célebre romance de Émile Zola, o blasfemador das obras de Maria.
Mas... adiante, meus amigos, não nos envenenemos na atmosfera deletéria de Émile Zola.
PIERRE DE RUDDER
A perna deste homem foi arrebentada por uma árvore. A cura deste miraculado ficou célebre. Os ossos quebrados, saíam das suas chagas que foram examinadas pelos médicos. Foi curado no santuário de Nossa Senhora de Lourdes, em Oostakker, na Bélgica. A sua cura foi instantânea. Os ossos fragmentados se soldaram, fechando-se a chaga. Depois da morte de Rudder, exumaram o seu cadáver e todo o mundo verificou a soldadura.
Que mais para o milagre?
Senhores, em Lourdes a intervenção do sobrenatural é uma evidência. Só os espíritos orgulhosos, pseudocientíficos, de parti pris, num apriorismo lamentável de incredulidade, ousam negá-lo.
As curas operadas pela Virgem de Lourdes, se operam na Gruta, na passagem do Santíssimo, nos trens e mesmo fora de Lourdes. Recebem o favor do céu crentes e incrédulos.
Apelaram para a sugestão e os apologistas católicos poderão responder com o Dr. Beruhens no seu livro “De la suggestion et de ses aplications á la therapeutique”. Muitas vezes opera maravilhas, mas não milagres. Não há remédio que possa restaurar o que foi destruído. A sugestão nunca poderá restabelecer uma função cujo órgão indispensável já não existe”. Apelaram para as virtudes terapêuticas da água de Lourdes, e a análise química não encontrou na fonte milagrosa qualidades curativas. Excelente água potável simplesmente. Charcot comparou os doentes de Lourdes aos seus internados de la Salpêtrière. Mas, oh! Que diferença! A placidez, a piedade, a resignação dos enfermos de Lourdes, estão em oposição com os fenômenos de alucinação e histeria dos doentes daquele hospício. Batidos, em todos os pontos, os inimigos refugiam-se nos redutos do agnosticismo. É a força desconhecida. A força desconhecida, meus senhores, é Deus, é Maria. Terminemos com as notáveis palavras do Dr. Varguez, inspetor das águas de Baséges, professor da Faculdade do Montpellier. Há aí certamente uma força contingente superior às que foram dadas à natureza, estranha à água de que ela se serve para a manifestação do seu poder. Se me perguntarem o que eu vi em Lourdes, disse o eminente professor, antes de morrer, eu posso responder: “Pelo exame dos fatos mais autênticos, colocados acima do poder da ciência e da arte, eu vi, eu toquei a obra divina, o milagre”
Meus senhores, Lourdes é o sobrenatural revelado em pleno século materialista e irreligioso.
Mas se existe o sobrenatural na Gruta de Massabielle, divina é a Fé que ilumina Lourdes, divina é a Igreja Católica em cujo seio Lourdes esplende como radiante estrela. Divino são os preceitos desta religião de maravilhas e, como tais, impõem à consciência na conduta moral dos indivíduos, das famílias e da sociedade.
Quando a impiedade ousou gritar: — Deve-se fechar Lourdes! 2.500 médicos uns em nome da religião, outros em nome da humanidade, diversos em nome da medicina, refutando as ridículas objeções, responderam: — Não!
Em Dr. Vicent se podem ler as suas abalizadas e doutas respostas.
Senhores, sob as abóbadas da basílica mariana continuam os cânticos da gratidão mundial. Das suas colunas tremulam, como homenagem dos povos, os pavilhões das nações de Maria, e ali, eu vejo ondular a bandeira de minha pátria, carregada, dos troféus de sua grandeza, como o símbolo auriverde do coração do Brasil, a terra da Imaculada. O mundo inteiro canta aos pés de Maria: Salve, ó Virgem Coroada, Salve! Doce visão de paz e de ternura inigualável a se destacar imaculada e branca, destes nimbos misteriosos, tu resumes o ideal da Beleza, da Verdade e do Amor. O Bardo dos cânticos já tinha cantado: — Pomba minha, mostra a tua face nas aberturas da rocha. Senhora, enquanto a harpa humana tiver uma corda, ela vibrará em tua honra, enquanto o coração dos teus filhos tiver uma fibra, ela soluçará o hino de sua gratidão, e o eco do seu gemido irá se juntar a esse Ave, Ave, Maria, que reboa, há mais de 50 anos pelas ilhargas das montanhas de Massabielle.
Dom José Pereira Alves - Discursos e Conferências, Imprensa Nacional 1948.
D. José Pereira Alves
Conferência realizada no Círculo Católico do Rio de Janeiro
Eminência
Exmo. e Revmos. Senhores
Minhas Senhoras,
Senhores.
O Exm°. Sr. Dr. Moreira da Fonseca acaba de ler a esta douta assembleia o seu magnífico trabalho em que nos deu a certeza da morte real de Jesus Cristo.
Cabe-me a honra de oferecer ao vosso elevado espírito, a consideração das provas da Ressurreição do Divino Salvador.
O SEPULCRO VAZIO
O túmulo, em que jazia o corpo de Jesus Cristo exânime, fora encontrado vazio. Eis um fato verificado pelos apóstolos, por Santa Maria Madalena, pelas santas mulheres e pelos discípulos. “Alguns dos nossos foram ao sepulcro, escreve S. Lucas, e acharam todas as coisas como as mulheres o tinham dito”
Esta mesma verificação foi feita pelos inimigos de Cristo. Não pode haver dúvida. Os guardas do túmulo não podiam deixar de comunicar os acontecimentos da noite aos seus chefes.
Os príncipes dos sacerdotes e anciãos que tinham espalhado pelo povo a notícia do furto do corpo, foram com toda a certeza e, com eles os habitantes de Jerusalém, examinar o sepulcro de onde desaparecera o corpo do Crucificado.
São milhares de testemunhas — as próprias testemunhas da morte — que podem ver e percorrer o túmulo do Cristo vazio.
O corpo de Jesus não está mais ali.
Que era feito, pois, do corpo de Jesus Cristo?
APARIÇÕES
Santa Maria Madalena volta ao Jardim de novo deserto, com o espírito agitado por mil pensamentos. O Divino Mestre morrera.
Havia só no meio de sua confusão mental um ponto evidente e desesperador. O túmulo estava vazio. Mais uma vez ela percorre com o olhar indagador o interior do sepulcro e certifica-se da sua desgraça. Não estava mais ali. Ela viu então dois anjos, dois enviados de Deus, vestidos de um manto branco, assentados um à cabeceira, outro no pé do túmulo no qual o Senhor repousara.
“Mulher, disseram os anjos, porque tu choras? ” — “Porque, respondeu ela, levaram o meu Senhor e eu não sei onde o puseram”
Subitamente, a um sinal ou ruído, Santa Maria Madalena se voltou e viu um homem de pé que lhe perguntou também: “Mulher, porque tu choras? A quem procuras? ” E ela pensando que falava ao jardineiro respondeu: “Se foste tu que o tiraste, dize-me onde o puseste e eu o levarei comigo”
“Maria”, disse o homem. Aquela voz tinha o timbre divino do Mestre e Santa Maria Madalena, sacudida nas profundezas da alma por aquele mistério de doçura e amor, reconheceu Jesus e gritou, lançando-se aos seus pés: “Rabboni! Ó meu Senhor! ”
Foi a primeira visão de Cristo.
Ela disse aos apóstolos: “Vi o Senhor”
É assim que Santa Maria Madalena, depois de receber a mensagem divina se tornou apóstola da Ressurreição.
EMAÚS
Há na minha catedral um pequeno e velho quadro onde certamente pousou a mão de um grande artista. A noite desce. Os dois discípulos de Emaús, atraídos pelo encanto misterioso do desconhecido que lhes revelava durante o caminho os segredos das Escrituras sobre o Cristo, insistem com o viandante para descansar e parecem dizer: “Já anoitece, fica conosco”
O peregrino daquela tarde primaveril florida e bafejada pela brisa perfumada da Palestina, tem o ar complacente de uma terna condescendência. Há por toda a cena, inspirada no Evangelho, uma cor natural, uma harmonia, todo um perfume cristão de sentimento, amor e de paz silenciosa que a alma se sente enlevada pelo êxtase da fé e pela sublime poesia do Evangelho.
É verdadeiramente cheio de emoções o episódio de Emaús. Durante toda a viagem, os dois discípulos são subjugados pelas palavras ardentes do inesperado interlocutor, mas não o conhecem. Sentam-se à mesa para a refeição frugal da noite. “No fim da ceia, escreve conhecido autor, Jesus ressuscitado, livre das tristezas da Quinta-feira Santa, longe da presença importuna de Judas, numa intimidade mais estreita, no meio do silêncio mais profundo e mais puro dos campos renovou o mistério da Ceia. “Tomou o pão, benzeu-o, rompeu-o e ofereceu-o aos discípulos”. Seus olhos se abriram. Mas Jesus desapareceu. Ainda não era hora do Céu, comenta um ilustre escritor. Quando eles, em transportes de alegria, voltaram para anunciar aos apóstolos a maravilha de que foram testemunhas oculares, souberam, antes de abrirem a boca, que o Salvador aparecera a Pedro.
APARIÇÃO AOS APÓSTOLOS
Os apóstolos, ouvindo a narrativa emocionante de Emaús, discutiram com calor os últimos estranhos acontecimentos. As portas da casa estavam cuidadosamente fechadas por medo dos judeus.
Naquelas horas de ânsia e de inquietações, Jesus aparece de pé no meio deles, dizendo: “A paz seja convosco, sou eu, não tenhais medo! ”
Foi um momento de espanto para todos. Que seria? Perguntavam interiormente a si mesmos. Um fantasma? Um espírito? Teriam sido vítimas de uma alucinação? Estavam vendo e, de medo, não ousavam proferir uma palavra. Então o Senhor lhes falou: “Por que vos perturbais. Por que todos esses pensamentos que se elevam em vossos corações”
“Vede minhas mãos e meus pés, sou eu mesmo: apalpai, examinai, os espíritos não têm carne, nem ossos. Vós vedes que eu tenho”.
E mostrou-lhes as mãos e os pés. Era bem uma evidência sensível para as testemunhas atônitas daquele espetáculo. E para dar-lhes uma prova fulminante da realidade pediu de comer e comeu com eles. Era demais. Os corações dos apóstolos saltavam de transbordamento, de imensa e inefável alegria. Foi, na frase de notável pensador, o primeiro Aleluia da Igreja. Nele se condensava todo o gáudio católico da universal festa da Páscoa que ainda hoje agita as almas e os sinos dos nossos campanários.
E Jesus, que atravessou a vida e a morte dando-se à humanidade, pensando nas circunstâncias vindouras, convivas da régia mesa pascoal, comunica ao sacerdócio, representado na culminância pontifical dos apóstolos, o privilégio divino, o poder, reservado ao Altíssimo, a faculdade suprema de perdoar: “A paz seja convosco! Como meu Pai me enviou, eu vos envio”. E, soprando sobre eles, acrescentou:
— “Recebei o Espírito Santo; àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, serão retidos”
Só Deus poderia restituir à matéria a glória e a liberdade da vida. Só um Deus pode atribuir a si e delegar a outros o poder sublime de restituir ao pecador a glória e liberdade do espírito, a ascensão sobrenatural para o Infinito.
As belas e empolgantes cenas da Ressurreição não deviam terminar em Jerusalém com a aparição de Cristo a São Tomé. As aparições hierosolimitanas destinadas à demonstração absoluta da ressurreição deviam suceder no plano divino as aparições da Galileia, destinadas à configuração definitiva da Igreja e ao supremo legado das palavras e da benção do Salvador.
A poesia, o esplendor e a paz do país da Galileia onde se refugiava a caravana apostólica, banhada de alegrias e de esperanças ofereciam uma moldura rica, florida, luminosa a esse último quadro da vida messiânica de Jesus.
As margens do Lago de Genesaré, de águas tão puras, Simão Pedro, o velho pescador, com saudades do mar, disse: “Eu vou pescar”. Os outros disseram: “Vamos contigo” e a barca de Pedro, a barca simbólica, vogou sobre a água durante a noite profunda.
Nada fizeram. As primeiras horas da manhã, um desconhecido lhes grita da praia: “Meus rapazes, tendes alguma coisa? ” “Não”, respondem. E o desconhecido ajuntou: “Lançai a vossa rede à direita da barca e achareis”
Uma nova pesca milagrosa. As redes estavam pesadas. “É seguramente o Senhor”, disse João a Pedro.
Era realmente Jesus. Eles não se atreviam, entretanto, a pergunta-lo, sabendo que era o Senhor. Só depois que Jesus lhes distribuiu o pão e o peixe, puderam aproximar-se e gozar da divina intimidade do Ressuscitado.
Os primeiros raios começaram a dourar as montanhas e iluminar aquele paraíso de recanto galileu enquanto Jesus, na plenitude da vida imortal e cheio de celestial doçura tomava parte no repasto frugal dos apóstolos, à beira do lago tranquilo e azul.
Como tudo isto é admirável de simplicidade! Nenhum artifício nessas narrativas evangélicas.
A beleza se irradia límpida e tocada da graça divina dessas páginas de verdade, de vida, de amor e de paz — promessas do Natal hoje transfiguradas numa realidade histórica, testemunhada e sentida por milhões de almas erguidas para o céu pela virtude divina do Redentor que, ressurgindo dentre os mortos e abandonando a solidão do seu túmulo, freme, palpita, esplende na vida para não morrer mais.
Nas diferentes aparições da Galileia o Salvador a quem foi dado todo o poder no céu e na terra, não só cria o poder supremo da Igreja instituindo, solene, o papado, mas faz profecias de glória; projeta as grandes linhas da sua obra divina através dos séculos e anuncia o Espírito, o Paráclito que lhes há de ensinar toda a verdade.
É impossível nos limites deste modestíssimo trabalho a particularização desse grandioso período da Ressurreição.
Finalmente sobre um pequeno monte vizinho do Lago de Genesaré Nosso Senhor aparece a mais de quinhentos galileus.
São testemunhas das quais muitas viviam no tempo de São Paulo, segundo a sua própria afirmação. O Salvador faz um discurso público aos onze apóstolos: “Todo o poder me foi dado no céu e na terra. Ide, ensinai a todos os povos, pregai a toda criatura. Batizai os homens em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-lhes a observar tudo o que eu mandei. Aquele que crer, e for batizado será salvo. Aquele que não crer será condenado. Eu estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos”
Jesus Ressuscitado dirige a sua fala de Soberano à Igreja Docente e à Igreja Discente, aos apóstolos e aos quinhentos discípulos em assembleia solene sobre o cimo sagrado, — cátedra do Mestre e do Fundador — criando e determinando a vida e as funções constitucionais da sua Igreja visível.
A última aparição do Divino Ressuscitado que durante quarenta dias, em horas diferentes, em lugares diversos e descobertos, a intervalos bem notados se mostra vivo e pessoal a testemunhas de categoria, condição, idade, sexo, espírito, caráter e interesses vários numa atmosfera de dúvida, hesitações e patente incredulidade, a última aparição se realiza no Monte das Oliveiras — de tanta recordação pungente.
É daí que o Cristo quis traçar a via triunfal, da sua glória, a Ascensão para o eterno Pai.
Depois de pronunciar o seu adeus supremo, últimas palavras de sua missão terrena, o seu programa de verdade e de amor. Nosso Senhor estende sobre todos, as suas mãos abertas em chagas de luz — em última benção — e começa lentamente a subir para o céu.
Eles olhavam no espaço ainda a nuvem em que se recolhera o Redentor triunfante quando dois anjos os arrancaram do êxtase, dizendo: “Galileus, que fazeis aí de pé olhando para o céu? Esse Jesus que acaba de deixar-vos para subir ao céu, voltará de lá como o viste subir”
Minhas senhoras, meus senhores. Que pensar de tudo isto?
O túmulo de Jesus estava vazio na manhã de domingo. Milhares de amigos, inimigos, indiferentes, o testemunharam.
Que corpo era esse, pois, que apareceu em tantos lugares e circunstância a tão diferentes pessoas durante quarenta dias? Que corpo era esse, que não só se deixava ver e tocar, mas que agia, falava e afirmava uma personalidade com uma consciência perfeita e clara do seu ser, da sua ação e das suas funções próprias e um sentimento vivo e determinado do seu Eu? Era um corpo? Era um fantasma? Era um espírito? Era uma projeção alucinatória de Santa Maria Madalena, dos apóstolos e dos discípulos de Cristo? Ou foi realmente a aparição miraculosa do Cristo que deixara vazio o sepulcro na alvorada esplêndida do domingo?
A hipótese do furto do corpo pelos discípulos do Cristo já está abandonada. Nenhum racionalista que se preze ou tenha probidade intelectual, prestigia nos nossos dias essa hipótese. O mesmo se pode dizer do espírito de impostura e má fé atribuído aos apóstolos. Reville presta uma homenagem magnífica à sinceridade profunda desses homens que se deixaram matar pelo Cristo Ressuscitado.
Picard nota muito bem: não foram os discípulos, dizem, foram os judeus que roubaram o corpo de Jesus. Esta hipótese é ridícula da parte da incredulidade. Os judeus teriam assim fornecido armas contra si mesmos. Destruíram a única peça de convicção que podia aniquilar o testemunho dos apóstolos...
A suposição de Strauss de que o corpo de Jesus Cristo foi atirado ao lixo, opomos este fato de notoriedade pública no tempo de São Paulo; foi sepultado. De resto, naquela maneira de agir não era conforme nem à lei romana nem à lei judaica. Segundo a primeira, o cadáver devia ser entregue logo que fosse reclamado. Quanto à lei judaica, esta estabelecia expressamente que o cadáver do supliciado devia ser sepultado antes do pôr do sol.
As hipóteses racionalistas, inventadas para explicarem a Ressurreição de Cristo, de Strauss, Renan, Harnak e de tantos outros hipercríticos ou romancistas modernos e contemporâneos, são evidentemente um esforço desesperado do racionalismo para negar a existência do sobrenatural.
As explicações dadas por Strauss, Renan, Noak, Ewald Lang, Hosten, são diversas, mas têm um fundo comum — as aparições são visões subjetivas. Já estão fora de moda e sem interesse pelo vão esforço que representam para tornar ilusória o fato da Ressurreição.
Outros não recusaram a realidade das aparições, mas negaram a Ressurreição física de Jesus Cristo. As alucinações dos apóstolos teriam sido alucinações verdadeiras. Aparições objetivo-subjetivas. Jesus sobrevivia num estado espiritual e capaz de agir espiritualmente sobre o sentido humano e assim tornou sensível a sua presença e a sua ação aos apóstolos que visualizavam, isto é, traduziam por visões objetivas o que percebiam, e oralizavam, isto é, interpretavam como verdadeiros discursos o que compreendiam.
Ora, meus senhores, minhas senhoras, lendo todos esses devaneios mascarados de cor científica ou filosófica, nós nos lembramos instintivamente do verso de Virgílio — Quis Deus vult perdere, prius dementat — e nos entristecemos sobre essas ruínas do orgulho humano, humilhado na tentativa insana de apagar as estrelas do céu.
As narrativas evangélicas documentam a realidade corpórea da Ressurreição. Os discípulos tocaram um corpo real, ainda que glorioso, com suas mãos e ouviram com seus ouvidos.
No texto evangélico também não se acha fundamento para as visões pneumáticas objetivas de Leim e Schweizer para quem as cristomanias são visões interiores do estado glorioso de Cristo no céu, interpretadas pelos apóstolos no sentido de sua Ressurreição corpórea.
Essa ilusão de ótica, necessária para reanimar a fé nos apóstolos nem satisfaz a consciência moderna, inimiga do sobrenatural, nem explica o contato sensível do Cristo em suas aparições diversas durante quarenta dias, nem o túmulo vazio atribui à divindade a causa direta do erro.
A Ressurreição é o fato fundamental do Catolicismo.
Os vinte séculos da verdade católica se apoiam no túmulo glorioso de Jesus Cristo. É o milagre que, por excelência, prova a divindade de Cristo. Ressuscitar um morto é um prodígio. Ressuscitar a si mesmo é o prodígio dos prodígios. Na sua vida e na sua morte o Divino Mestre multiplicou os fatos extraordinários que documentaram divinamente as suas afirmações absolutas sobre a sua personalidade divina.
Na Ressurreição, a demonstração do Salvador atingiu o seu apogeu de luz e de glória. Os inimigos da fé compreenderam muito bem que aceitar a ressurreição é aceitar toda a revelação cristã com todas as suas consequências doutrinais.
São Paulo escreveu claramente: Se Cristo não ressuscitou, vã é a minha pregação e inútil a vossa fé.
O racionalismo chegou ao cúmulo de negar a morte de Cristo. Cristo segundo alguns incrédulos, apenas desmaiara na Cruz. No repouso, ele voltou a si da frieza do túmulo e das resinas do embalsamento.
E esses espíritos orgulhosos não leram que Pilatos só deu autorização para a descida do corpo depois de se ter certificado de sua morte? E o divino supliciado poderia ter resistido após tão terríveis tormentos à lança do soldado romano que lhe abre o peito na largura de uma mão? E como esse Cristo desfigurado, arrastando-se, desgraçado, saindo penosamente de um sepulcro poderia ter fortalecido e transformado os seus medrosos discípulos?
A impiedade se torna ridícula na ânsia de repudiar o sobrenatural, custe o que custar.
A palavra do anjo continua a ser uma palavra de vitória:
“Procurais a Jesus de Nazaré que foi crucificado? Ressuscitou; não está aqui”
O túmulo está vazio. Os soldados romanos subornados dizem que estavam dormindo quando roubaram o corpo do crucificado.
E como esses pescadores tímidos, rudes, pobres, sem meios, sem influencia, sem nenhum interesse para eles, afrontando as consequências do seu ato, teriam violentado, corrompido ou enganado a guarda romana? Todas as explicações atingem o máximo do absurdo.
O túmulo do Cristo, vazio, apesar de todas as precauções tomadas, só tem uma explicação aceitável. É a palavra do anjo: “Ressuscitou; não está aqui”
Santa Maria Madalena, suas companheiras e os apóstolos foram vítimas de uma alucinação, gritam os céticos de todos os tempos.
A psicologia dessas gloriosas testemunhas do Cristo redivivo é o que há de mais contrário ao fenômeno da alucinação.
Nenhuma delas se mostra crédula. Nenhuma pensa na Ressurreição. Santa Maria Madalena corre ao sepulcro e quando vê a pedra derribada, diz: “Roubaram o Senhor e não sei onde o puseram”. Ela se lamenta junto do túmulo abandonado. Diante dela está um homem de pé. “Por que choras mulher? A quem procuras? Se tu o tiraste, responde Madalena, dize-me onde o puseste”
Maria! Disse o homem.
E a grande arrependida, reconhecendo Jesus naquela voz cheia de doçura, exclama: “Rabooni! ” É assim que Madalena se torna a apóstola da Ressurreição. Ela diz aos discípulos: “Vi o Senhor”. Os apóstolos foram duma incredulidade a toda prova. E eles tomaram as santas mulheres por visionárias. E quando o Senhor lhes aparece, eles julgaram-no um fantasma. Um deles, São Tomé, leva a audácia de sua incredulidade a querer tocar as chagas do Mestre. Sugestão e alucinação se tornaram na linguagem dos ímpios, palavras cômodas para explicarem os fatos sobrenaturais.
Bossuet, no seu famoso discurso sobre a história universal disse: “Ao terceiro dia, Jesus Cristo ressuscita; aparece aos seus que o haviam abandonado e se obstinavam a não crer na sua Ressurreição. Os discípulos o veem em particular, e todos o veem em conjunto; aparece uma vez a mais de quinhentos homens reunidos. Um apóstolo, assegura que a maior parte dentre eles vivia no tempo em que ele escrevia. A Ressurreição é um inabalável fato histórico. A sua certeza está acima de toda a dúvida. A sua certeza está acima de toda a dúvida. O Cristo ressurgiu. E, ressurgindo, ressuscitou o mundo.
Levantou todas as lousas que pesavam sobre o gênero humano, baniu todas as escravidões — a escravidão dos sentidos, do coração, da inteligência. Sobre a família humana raiou um novo sol. Todos os infelizes, todos os desgraçados puderam soltar um suspiro de alívio. Como um verdadeiro triunfador, o Cristo Ressuscitado invadiu a consciência da humanidade e criou uma mentalidade e uma civilização desconhecida.
Jesus transformou o homem com seu verbo, com sua graça, com seu amor. Ele semeou na alma racional essas verdades fecundas que produziram na sociedade uma total revolução nas ciências, nas artes, nas leis, na política, nos costumes e na vida dos povos, essas verdades que fizeram surgir do caos social antigo um novo mundo moral, iluminado pelas fulgurações e relâmpagos da Ressurreição.
São essas torrentes de luz que dobram os joelhos dos sábios e arramam dos seus lábios palavras como estas do grande matemático Cauchy: “Eu sou católico, e, se me perguntassem a razão disso, veriam que as minhas convicções são resultado não de preconceitos de família, mas de um exame aprofundado. Veriam como se gravaram para sempre no meu espírito verdades mais incontestáveis aos meus olhos do que o quadrado da hipotenusa”
A pedra do sepulcro do Divino Vencedor é o granito da Igreja. Há vinte séculos contra ela se despedaçam crânios. Mas é um granito de amor. Há vinte séculos ela recebe as lágrimas de todos os infortunados, as flores de todos os agradecimentos, as homenagens da inteligência e do coração.
Há vinte séculos sobre essa lousa augusta se repetem, num crescendo de amor, os beijos da gratidão genuflexa que bendiz, aclamam, canta por todos os júbilos de Páscoa, a alvorada cristã do Deus Ressuscitado.
A Ressurreição de Jesus Cristo tranquiliza o nosso espírito. Não estamos iludidos sobre o nosso futuro. O Cristo ressuscitado garante todas as certezas da Fé e todos os ensinamentos da Igreja. Ficamos na posse consciente de verdades eternas. Os ventos vários das filosofias humanas não poderão abalar a nossa confiança que repousa indefectível no rochedo iluminado do Domingo Pascal. A ressurreição física de Jesus é a prova decisiva.
Doravante estamos voltados para o céu donde esperamos Nosso Senhor Jesus Cristo que transformará o corpo de nossa humildade, segundo o modelo de seu corpo glorioso.
O Cristo, primogênito da vida e vencedor da morte, envolve na benção de sua ressurreição gloriosa a carne sofredora da humanidade. Nós cremos na imortalidade da alma e na perpetuidade radiosa da carne ágil, sutil, impassível, esplendente, como uma flor do espírito, no Reino da glória, forma suprema da beleza sensível, transfiguração pelo sopro criador do Artista Divino.
Na igualdade dos seres que a morte nivela é sempre a mesma devastação do corpo que se decompõe e vai alimentar a erva humilde depois devorada, talvez, por um animal estúpido.
Seja o cérebro de um sábio, — laboratório do pensamento seja a mais abjeta das criaturas, é sempre a mesma a humilhação da morte. Diante do sepulcro aberto não vemos mais que podridão, poeira e pó. Se perguntarmos ao materialista se o homem ficará reduzido à miséria do túmulo, ele responderá: “Ficará. A matéria será restituída à circulação da natureza”
E o pensamento? Os surtos de seu espírito? Os seus desejos? As vozes supremas de sua alma? Todos os seus movimentos transformados em sensações e ideias? Tudo ficará perdido para sempre, dizem os materialistas.
Coisa terrível é a morte do homem que só crê na matéria! Espanta, aterroriza!
Se perguntarmos a um ultra espiritualista se a matéria ficará reduzida à miséria do túmulo, ele responderá. “Ficará, porque vai ser restituída a circulação da natureza, somente a alma não sofrerá essas misérias”
É menos terrível essa concepção da morte.
Só a alma com os seus pensamentos, os seus surtos e os seus desejos não se poluiria no túmulo.
Mas o cérebro onde se elaboram as ideias, o coração onde se aninham os sentimentos, o corpo onde demoram as vibrações, tudo desaparecerá para sempre no conceito do espiritualista ingrato.
Nós católicos, porém, não podemos admitir essa poeira eterna do cérebro, do coração, do nosso corpo.
Deus não quis condenar o homem-fanal da criação à podridão eterna, à devastação completa do corpo que foi feito à sua imagem e semelhança.
Credo resurrectionem. Nós acreditamos na ressurreição da carne. Estamos convencidods de que esta há de florir.
Quando Deus, completou o plano da criação, do limo, formou o homem e lhe deu o sopro de vida, o espiráculo de vida não foi para reduzi-lo a nada, nem para inutilizar o encanto de sua obra, que formou os enlevos da criação.
Não foi inutilmente que colocou essa semelhança de sua imagem no meio de sua obra gigantesca.
Não foi inutilmente que criou para os seus olhos os encantos da vegetação e as maravilhas da luz e os esplendores dos quadros que a sua mão de artista formou onipotentemente.
Não foi inutilmente que criou par os ouvidos do homem a deslumbradora orquestração da natureza, a música das águas, o canto dos pássaros, a harmonia das esferas.
A carne é herdeira das liberalidades divinas.
Quando a alma quer rezar, os lábios murmuram, o coração palpita, as mãos se juntam e se erguem para o alto numa atitude magnifica. E não é possível que essa carne fique reduzida à podridão para sempre. Também ofereceu seu sangue, se sacrifica, se martiriza por Deus.
A Igreja saúda a carne irmã da carne de Jesus Cristo.
A nossa religião respeita o espírito e a carne criada, cuja ressurreição proclama.
Sendo divina a nossa religião, é eminentemente humana. Não se preocupa só com a alma, mas também com o corpo. Sem corpo não teríamos ressurreição completa. É um dogma da nossa Igreja a ressurreição da carne. O sepulcro não é só podridão. O nosso esquife é berço da imortalidade.
A própria natureza nos prenuncia a ressurreição da carne.
Ao pôr do sol, todas as tardes, segue-se a noite longa e silenciosa. À alvorada, o sol surge. É a ressurreição da manhã. O lavrador atira o grão humilde que vai apodrecer para nascer, reflorir e frutificar. A larva se transforma em crisálida e esta em borboleta que alça o voo em demanda do infinito, no anseio da liberdade.
Se Deus concede a vida ao vegetal que nasce da semente apodrecida, a vida que palpita na verdura dos campos, no coma verde das árvores, se dá essa vida que cintila na asa das borboletas, por que razão não a concederá à nossa carne, também?
A carne apodrecida é transfigurada e se preparará para ser a angélica farfala, de que nos fala Dante, em procura do sol divino.
A razão disso nos persuade, porque seria terrível essa separação eterna da alma e do corpo.
Deus criou do limo a carne e depois deu-lhe alma e disse-lhe: “Alma, tu és rainha, aqui está um trono; alma, tu és chama, aqui está um coração, onde tens sangue, paixão, amor, sentimento; alma, tu és vibração, aqui estão os nervos; alma, tu és luz, aqui está uma lâmpada; alma, tu és raio, aqui estão os olhos, através dos quais poderás esplender”. E a alma se precipitou para esse corpo para substituir a natureza.
A alma e o corpo constituem uma só substância. A natureza exige a ressurreição da carne.
O corpo não é lira, que a alma agite durante algumas horas, durante algum tempo, durante uma existência, apenas.
O corpo reza, chora, ri, geme, suspira, é feliz e é desgraçado com a alma. Separados na morte, voltam a unir-se na outra vida.
A alma celebra com o corpo e epitalâmio da terra e da eternidade. Vivem numa perfeita vida conjugal.
A razão e a fé nos mostram que assim tem sido compreendido sempre desde os tempos de Zend Avesta em que Ormuz se refere, sem nada que dúvida faça à ressurreição da carne. Platão, Sêneca, a crença mosaica, tudo nos convence do mesmo modo. São Paulo, nas suas Epístolas, afirma que o corpo será semeado na corrupção e ressuscitará incorruptível, ressuscitará na glória.
Senhores, há dois mil anos, Cristo reina. A cruz flutua em todos os continentes. A bandeira de Cristo Rei congregou todos os povos derrubando barreiras dos costumes. O mundo vivia de orgulho, e Cristo ensinou a humildade.
Foram por Ele transfigurados todos os costumes e todas as gentes se dobraram aos seus ensinamentos. Invadiu a trama e o tecido de todas as instituições e apareceu como o maior legislador da humanidade. Abateu as barreiras de todas as regiões até então existentes. Fez ruírem os deuses antigos de seus pedestais, extinguiu a casta sacerdotal antiga.
Ensinou o Pai Nosso, oração universal, recitado por todo o mundo, que vale como demonstração sublime da divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Eu sou o Bem, disse Nosso Senhor, e toda a humanidade enamorada segue-lhe os ensinamentos maravilhosos que afrontam a fúria dos tempos.
Envelhecem as repúblicas, passam as instituições, muda-se a face dos acontecimentos. Só o Cristo vive, só o Cristo atravessa as idades. Só o Cristo resiste a todas as mutações que se operam no mundo.
Se assim não fosse, Cristo seria um mentecapto ou um impostor, seria um velhaco ou um bandido, cuja pregação seria sem valor.
Mas a sublimidade do Evangelho bem atesta no vigor de suas indestrutíveis verdades que só um Deus seria capaz de nos dar tão grandioso monumento de sabedoria.
Não falta quem não tenha dito ter sido Cristo um visionário, um louco, um filósofo, um revolucionário.
Mas Cristo é realmente Deus, nosso Deus, força e fundamentos da verdade. No seu trono de glória, no mistério do tabernáculo, no último recesso do sacrário, ele exora misericórdia para toda a humanidade.
Em tão augusto silêncio, ele está trabalhando a obra imortal da Igreja, por toda a eternidade, porque Ele disse: “Estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos”
Aparecendo à Santa Margarida através do véu branco que cobre o sacrário, disse: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens e deles é tão pouco amado”
Glória, pois ao Cristo que ressurgiu dos mortos e preparou para a humanidade a glória da RESSURREIÇÃO.
Eminência.
V. Eminência com esta bondade que não cansa, se dignou vir a esta casa para prestigiar a ação dos bravos da União Católica; abençoar esta numerosa e brilhantíssima assembleia em que a fé, a ciência, a cultura, a graça cristã e o espírito católico desta Metrópole fulguraram; honrar e animar o modesto pregador do Divino Ressuscitado, enfim, emoldurar no esplendor da púrpura esta bela noite do Ano Santo, noite da Ressurreição.
Beijamos agradecidos esta Púrpura que já se doura dos raios romanos com a investidura de V. Eminência na alta Missão de Legado Pontifical ao Congresso Eucarístico Nacional.
Outra missão incumbe também a Vossa Eminência.
Dir-se-ia, senhores, que o nosso Cardeal leva enrolado na púrpura sagrada o bele e generoso Coração do Sul para uni-lo ao ardente Coração do Norte, fundindo-os num só Coração — O Divino Coração Eucarístico que no Ostensório da Bahia histórica vai abençoar a união dos brasileiros.
Boa viagem, Sr. Cardeal, para a descoberta cristã da República.
Cabral chamou Monte Pascal o primeiro cume descoberto, — o cume dos Aimorés, — entre os arrebóis de Páscoa. O Brasil nascia para a civilização, sob o sinal glorioso do Divino Ressuscitado da Galileia. Sua vocação histórica era sagrada pelas auroras da Ressurreição.
Quem sabe, Eminência, se à sombra do Monte Pascal, os sinos das velhas igrejas da colônia em repiques de aleluia nacional não irão saudar o ressurgimento cristão do ESTADO BRASILEIRO?!
Dom José Pereira Alves - Discursos e Conferências, Imprensa Nacional 1948.