Category: Pensamento
Quando não é filosofia por não ter uma conotação especulativa natural; quando não é teologia por não tratar de dogmas nem de um ponto preciso da doutrina católica. Quando exprime o pensamento católico na análise do mundo, da vida, das coisas que nos cercam e que nos afligem ou nos alegram.
Pe. Gabriel Billecocq, FSSPX
Com essas palavras — “Deus não castiga” — a mídia difunde os dizeres de muitos eclesiásticos, como Dom Éric de Moulins-Beaufort que, por exemplo, afirmou recentemente numa entrevista: “A coerência bíblica leva à convicção de que Deus, o Deus vivo, não age na história para punir.”
No entanto, a questão está em todos os corações. Nos deparamos nas ruas com dois tipos de homens: de um lado, os que nos insultam e negam Deus, mas que terminam por acusa-lo dos castigos presentes; de outro, os que, considerando esse vírus como uma punição, pedem nossa intercessão a Deus. Deus castiga? Não procuramos aqui saber se o coronavírus é um castigo de Deus, e sim examinar se Deus pode ou não punir.
O Antigo Testamento
O primeiro reflexo que nos vêm, quando essa questão vêm a tona, é o de abrir o Antigo Testamento. Deparamo-nos então com a revolta de Coré, Datan e Abiron. Os dois últimos, da tribo de Rubem, apoiavam o levita Corá contra os privilégios de Moisés e Aarão (na verdade, sentiam ciúmes da posição hierárquica dos dois irmãos e fomentavam uma revolta). Apesar de Moisés exortar à humilhação diante de Deus, o orgulho desses homens foi punido ostensivamente. A terra se entreabriu e engoliu as famílias de Datan e Abiron. Quanto à Coré e aos duzentos e cinquenta homens que o apoiavam oferecendo incenso, foram devorados por um fogo que desceu do Céu. No dia seguinte, toda a multidão dos filhos de Israel murmurou contra Moisés e Aarão de serem responsáveis pelas mortes dos das tribos de Rubem e de Levi. Um novo fogo celeste devastou o povo e foi preciso a intercessão do grande sacerdote para pôr fim a esse fogo.
Encontramos também o episódio da translação solene da arca da aliança para Sião nos tempos de Davi. A arca estava sobre um carro novo puxada por bois quando, de repente, ao chegar em uma eira, os bois escorregaram. Oza estendeu a mão para a arca de Deus e susteve-a. O Senhor indignou-se e Oza caiu morto ali mesmo. A razão? Somente os levitas estavam autorizados a tocar neste objeto sagrado e Oza não era da tribo de Levi. Trata-se claramente de um castigo.
Há muitos exemplos como esse no Antigo Testamento e não podemos citá-los todos. Mas a conclusão de impõe: Deus castiga! De resto, nosso contemporâneos fariam bem em se lembrar do episódio de Sodoma e Gomorra…
O Novo Testamento
Dir-se-á, talvez, que era assim na antiga aliança, quando Deus educava o seu povo; doravante, o castigo deu lugar à misericórdia. Com acerto, citarão o episódio da mulher adúltera: “vai, e não peques mais”, diz Jesus. O que apenas corrobora o que já dizia o Profeta Ezequiel: “Não quero a morte do ímpio, mas sim que se converta do seu mau proceder e viva” (Ez 33, 11).
Os numerosos milagres, as múltiplas remissões dos pecados (Maria Madalena, o bom ladrão etc) não devem ocultar outras páginas do Evangelho. Pense na figueira maldita por não carregar frutos. Releia parábolas como as do rico mau que está no inferno, ou a do homem que comparece às bodas sem a veste nupcial e é lançado no fogo eterno. Medite o capítulo 23 de São Mateus que relata as maldições de Jesus aos Fariseus. Que não se esqueça tampouco com que misericórdia Nosso Senhor expulsou do templo os vendilhões. O episódio de Ananias e Safira, nos Atos dos Apóstolos, também é eloquente!
Em resumo, é preciso dizer que a nova aliança é uma lei de amor, uma lei de misericórdia. Mas, seria compreender mal a misericórdia divina separá-la da justiça. Ocultar todos os atributos divinos para ficar apenas com a sua misericórdia seria, além de um erro teológico, tomar a Deus por um bonachão.
Justiça e misericórdia
Ser misericordioso significa inclinar-se sobre a miséria de outrem para aliviá-la. Ora, a verdadeira miséria do homem é o pecado. Deus, portanto, demonstra uma misericórdia eminente quando, inclinando-se sobre nossos pecados, nos desoprime e nos liberta deles. Mas, aí está: o pecado não é uma miséria como as demais. Não é apenas uma simples miséria do homem. É também uma ofensa feita a Deus. Há, portanto, esse duplo aspecto a ser considerado ao se falar da miséria moral do homem: o homem é miserável porque ofendeu a Deus.
Sendo assim, Deus não pode agir com misericórdia para com o homem sem que ele possua uma genuína vontade de pedir perdão e reparar a ofensa cometida. Ora, pedir perdão e reparar pelas ofensas são atos de justiça.
Só há misericórdia, portanto, se há justiça. E a justiça exige uma reparação à altura da falta. Esta reparação é, propriamente falando, um castigo, uma pena, ou ainda, uma penitência. Deus tem de castigar para fazer misericórdia.
Pode-se objetar que são muitas as almas que se beneficiaram da misericórdia divina sem que tivessem de sofrer um castigo. Mas isso seria esquecer que a obra de justiça por excelência é a Paixão de Jesus e a sua morte na Cruz. Trata-se de um castigo verdadeiro, de uma punição pelos nossos pecados. “Ele se fez pecado” diz São Paulo, e aplacou a ira divina com a sua morte.
A misericórdia de Deus com respeito ao homem decorre da Paixão e da Cruz de Nosso Senhor. Dito de outra maneira, decorre daquele ato de justiça pelo qual Deus tornou-se propício a nós. É a partir daí que Deus nos é misericordioso e alivia a nossa miséria, nos convida a segui-lo no caminho da Cruz.
São Paulo dizia ainda: “[Eu] completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Cl 1, 24) dando a compreender que a todo homem há um dever de viver na penitência em espírito de reparação. “Ou sofrer, ou morrer”, dizia ao seu modo a grande Santa Teresa.
Infeliz do homem que não quer se arrepender dos seus pecados. A esses corações endurecidos na sua miséria, é preciso temer a cólera divina. “Se isto se faz no lenho verde”, disse Jesus as mulheres de Jerusalém, “que se fará no seco?”
As vias insondáveis da Providência
Deus não quer a morte do pecador. Ele quer a sua conversão. Mas há pecadores que não querem se converter, que desejam a sua morte espiritual. A conversão de tais pecadores só se obtém — quando se obtém — pelo sofrimento do Justo e dos justos. É amiúde pelo castigo dos que lhe são agradáveis que Deus, vendo nos corações de tais santos uma generosidade de amor, inclina-se para a misericórdia para com as almas endurecidas.
O castigo dos justos aqui em baixo é muitas vezes o prelúdio de conversões extraordinárias. “O sangue dos mártires é sementeira de católicos”, já dizia em seu tempo Tertuliano. As almas religiosas e enclausuradas são muitas vezes almas reparadoras que atraem numerosas graças de conversão. Por onde se pode mensurar a loucura dos padres conciliares que abriram de par em par as clausuras monásticas.
Quanto aos que recusam a conversão, São Bernardo deplora muitas vezes a sua prosperidade material como sendo a justa recompensa da sua miséria moral: usufruem desde já da recompensa de que serão privados na eternidade. Sim, um dia serão castigados por seu pecado, mas nada impede que também o sejam aqui embaixo. Há, pois, um mistério, e é o mistério da unidade divina, na qual se encontram intimamente unidas a justiça e a misericórdia divina. Deus continua a castigar pois o pecado é para Ele uma ofensa incomensurável. Mas, esse castigo aceito pelos justos converte-se em misericórdia e perdão das ofensas.
Deus não castiga
Dizer que Deus não castiga é uma loucura de consequências portentosas. Equivale a tomar o nosso Bom Deus por um ser bonachão e fraco, voltado para o homem como para o seu fim; ao invés de tomá-lo como um Pai ávido pela nossa perfeição.
Dizer que Deus não castiga equivale a dizer o pecado não o atinge. É tornar supérflua a paixão e morte de Nosso Senhor sobre a Cruz, inútil o Santo Sacrifício da Missa, ociosa a vida religiosa, infecunda e fútil a penitência. Quem não reconhecerá nisso os frutos amargos da nova religião do homem? Como, então, se assombrar ao ver os próprios bispos ousando afirmar que Deus não castiga?
Sempre podemos responder-lhes que Deus não pune diretamente, mas se serve da estupidez e da perversidade dos ímpios para que se punam uns aos outros pelas descobertas científicas do seu incomensurável orgulho. A auto-destruição da Igreja engendrou a auto-destruição da humanidade…
[Apresentamos a seguir a primeira parte do trabalho do Padre Leonardo Castellani sobre Os quatro Evangelhos Canônicos (de Mateus, Marcos, Lucas e João), que constituem, como lembra o autor, os únicos documentos fidedignos que temos sobre os feitos e ditos de Cristo. Como aqui verá o paciente leitor, eles SÃO fidedignos.]
I. Composição
O conteúdo dos Evangelhos constitui a Catequese Apostólica, i. e., esse conteúdo permaneceu durante algum tempo na memória dos recitadores (os nabis e meturgemanes hebreus) antes de ser fixado por escrito. A memória desses recitadores é um prodígio, e a fidelidade lhes constitui um dever profissional, uma vez que nos chamados meios de estilo oral – onde não vige a escritura e o livro não existe ou é raro – constituem a imprensa viva e os depositários do Tesouro – espiritual e moral – da raça. Cristo foi um deles.
Estes recitatores hebreus (os rabis, os nabis e os meturgemanes) não são um fenômeno especial; existiram em todos os povos na segunda etapa da vida da língua: rapsodos gregos, brâmanes hindus, poetas árabes, guslares russos, ritmadores tuaregues, menestréis da Idade Média... até nossos payadores. Sua memória não é de modo algum um fenômeno inexplicável. É o que afirma Fr. S. Krauss, psicólogo alemão investigador das faculdades mnemônicas dos guslares, por exemplo:
Os guslares são os recitadores nômades – iletrados mas decerto não ignorantes – entre os eslavos meridionais... A opinião popular atribui a esses indivíduos uma memória a primeira vista surpreendente: fala-se de alguns que sabem 30.000, 40.000 ou ainda mais de 100.000 “esquemas rítmicos”. Agora bem, por mais surpreendente que seja, o povo diz a verdade. O fenômeno é explicável: os recitativos dos guslares – parecidos com os recitativos de Homero, dos profetas hebreus, das epístolas de Baruque, de São Pedro e São Paulo, dos delicados paralelismos chineses – são uma justaposição de clichês relativamente limitados. O desenvolvimento de cada clichê é automático, de acordo com leis fixas...
Um bom guslar é o que joga com os clichês como com um maço de cartas de baralho, ordenando-os de diversas formas segundo lhe dê na cabeça. Cada guslar ademais tem seu estilo pessoal. Um desses recitadores, que ajudaram Krauss, chamado Milovan, cuja memória era apenas “ordinária”, podia recitar 40.000 esquemas rítmicos em seqüência. Instrutiva também é a seguinte constatação: em 18 de março de 1885, Fr. S. Krauss mandou recitar na presença de Milovan um recitativo de 458 esquemas rítmicos, que Milovan repetiu palavra por palavra em 4 de outubro do mesmo ano, sete meses e meio depois; nove meses mais tarde, Krauss mandou-o recitar outra vez: as variantes foram insignificantes .
II. Datas.
Essa catequese apostólica e rítmico-mnemotécnica se fixou por escrito entre os anos 7 e 63 depois da morte de Jesus. A data da escrita de cada um desses Evangelhos foi larga e tenazmente investigada e discutida durante os últimos séculos, sob o estímulo da crítica racionalista, que propendia a fixar a data o mais distante possível [da época de Cristo].
Atualmente a data está fixada com bastante acurácia, a saber – segundo a sentença de Cornely –:
Evangelho de Mateus: cerca do ano 50;
Evangelho de Marcos: cerca do ano 55;
Evangelho de Lucas: cerca do ano 60;
Evangelho de João: cerca dos anos 95-100.
Vejamos por exemplo a composição do Segundo Evangelho, segundo o testemunho de Papías – séc. I – e São Clemente de Alexandria – séc. II –:
Marcos, que era o meturgeman de Pedro, escreveu palavra por palavra tudo o que retivera de cor; não obstante, não pôs na ordem em que aconteceram os ditos e feitos de Cristo, porque não ouvira o Senhor nem o havia seguido; só mais tarde ele seguiria Pedro, que ensinava os recitativos do Senhor segundo a necessidade mas sem ordem certa, de sorte que Marcos não cometeu nenhum erro ao escrever a catequese de Pedro conforme a aprendera de memória: sua única preocupação era não omitir nada nem alterar o menor detalhe [dos esquemas rítmicos]...
Quando Pedro predicou em público a Palavra em Roma e recitou a Boa Nova sob a inspiração do Espírito, muitos dos ouvintes suplicaram a Marcos – que já o acompanhava há muito tempo [como meturgeman] e sabia de memória os recitativos – que pusesse por escrito o que ele [por ofício] repetia. Logo, Marcos escreveu o Evangelho e o entregou a quem o pedia. Pedro, sabendo disso, não se opôs à obra de seu intérprete, embora também não a estimulasse.
Por sua vez Lucas fixou a catequese de São Paulo, mas completando-a com acréscimos doutros recitadores – para o quê viajou para a Palestina – e esforçando-se em seguir a cronologia, à qual os primeiros Evangelhos não prestam muita atenção, pois Mateus recitou para convencer os judeus e Pedro para ensinar os romanos, de modo que na catequese dos dois a ordem lógica predomina sobre a ordem cronológica.
Já Mateus e João foram discípulos desde o começo, e portanto só tiveram o trabalho de escrever o que haviam cuidosamente aprendido por ofício e missão, e de repeti-lo sempre, como fonógrafos vivos, em suas respectivas ecclesias.
Assim a Providência usou um instrumento adequado para nos conservar a Palavra de Deus. Cristo sabia escrever mas não escreveu nenhum livro – ditoso era ele, que não tinha editores! A breve e encantadora Carta de Nosso Senhor Jesus Cristo ao Rei de Odessa, Abgaro V, é um apócrifo dos primeiros tempos, que Eusébio traduziu do siríaco para o grego e espalhou que tinha sido encontrada nos arquivos públicos de Edessa. É provável que existisse uma resposta oral de Cristo ao rei Abgaro, contemporâneo seu, cujo conteúdo passou a essa carta apócrifa, conforme os testemunhos antigos e a leitura do Evangelho, no passo acerca dos “gentios que rogavam a Cristo para que fossem vê-los”; à época ele declinara da petição, prometendo enviar-lhes os discípulos, pois “fui enviado apenas para as ovelhas que pertencem à casa de Israel”.
Cícero tinha três escravos taquígrafos que o seguiam a todas as partes tomando nota de tudo quanto dizia; já Cristo lançou os recitativos ao vento, ao menos em aparência; em realidade os depositou em receptáculos vivos, mais fiéis que um taquígrafo. Várias obras escritas de Cícero se perderam; já a Palavra permaneceu.
A pregação do Evangelho foi e segue sendo oral em essência. Os protestantes, que enclausuraram a fé num livro sagrado, são pessoas de estilo escrito e erram por limitação. Ao dar a todo o mundo licença de improvisar a própria religião a partir da leitura dum livro – difícil e intrincadíssimo – de modo que para ser religioso é preciso ser “alfabetizado”, o protestantismo em vez de popularizar a religião – não há nada mais popular que o ensino oral – plebeizou-a: a rebelião de Lutero está no começo do que hoje chamam de “a rebelião das massas”. Lutero foi “o homem mais plebeu do mundo – disse Kirkegor com amargura; ao tirar o papa da cátedra, instalou nela a opinião pública”. Pode parecer exagero, mas existe uma ligação direta – embora invisível – entre o doutor Martinho Lutero, conhecedor do hebraico, do grego e do latim e forrado de textos paulinos, e German Ziclis, por exemplo: mistura de barbárie e bazófia. Os German Ziclis sempre existiram no mundo, mas não totalmente livres, leves e soltos como agora.
Não dissemos isso para que não se leia o Evangelho; ao contrário, aqui se lê muito pouco. Dissemos para deixar claro que a religião de Cristo não foi fundada sobre um livro – como de fato nenhuma outra religião – mas sobre a pregação e a ação dum soberano nabi, que por sorte se fixou por escrito com toda a fidelidade, no entanto sem nunca deixar de ser o que foi. De fato as principais igrejas protestantes retornaram à pregação oral como principal meio de cultivo religioso.
III. Os Apócrifos
Ao lado dos quatro Evangelhos Canônicos, chegaram-nos uma boa quantidade (uns 62 segundo Fabrício e o Pseudo-Gelásio) de evangelhos apócritos – sem contar com os que se perderam – de redação posterior e anônima, e muitas vezes confusa. Apócrifo aqui significa simplesmente que não estão no Cânon dos livros sagrados: a Igreja não os reconheceu como parte da revelação cristã.
Os mais importantes são o Evangelho segundo os Hebreus, o Evangelho segundo Felipe, o Evangelho dos Doze Apóstolos, o Protoevangelho de Tiago, o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Nicodemos, o Evangelho do Pseudo-Mateus, o Evangelho Arábico da Infância de Jesus, a História de José o Carpinteiro, os vários Trânsitos de Maria, a Morte de Pilatos, a Vingança do Salvador [?], e a Correspondência [apócrifa] de Cristo com o Rei Abgaro. Também existem vários Atos dos Apóstolos, Epístolas dos Apóstolos e Apocalipses apócrifos. O grande crítico Constantino Tischendorff publicou em 1853 em Leipzig uma abundante coleção grega desses interessantes documentos.
Alguns desses “evangelhos” são obras de heresiarcas, que pretendiam intercalar ou defender erros; o extenso Evangelho de Valentino, por exemplo – sécs. II-III –, não tem nada em comum com os nossos Evangelhos, afora o nome, a forma externa e as personagens (Cristo, os Apóstolos, Maria): não contém relatos mas uma série de discursos que expõem uma heresia gnóstica muitíssimo extravagante, e especulações abstrato-simbólicas, análogas às dos “teósofos” atuais: Wilder, Head, Mme. Blavatzski... Para dar uma idéia dele basta transcrever uns versículos do começo:
Jesus ascende aos céus e depois descende para doutrinar os discípulos.
1. Quando ressuscitou dentre os mortos, Jesus passou onze anos falando com os discípulos.
2. E lhes ensinava sobre os lugares, não somente do primeiro mistério, que está dentro dos véus e do primeiro preceito, que constitui o mistério dos primeiros preceitos e até dos lugares do vinte e quatro, mas também das coisas que estão mais além, no segundo lugar do segundo mistério, que está antes de todos os mistérios.
3. E disse aos discípulos: Vim do primeiro mistério, que é o último mistério, que é o vinte e quatro.
4. Mas os discípulos não o compreendiam, porque ninguém havia penetrado no primeiro mistério, que é o ápice do universo.
5. E pensavam que era o fim dos fins, porque Jesus lhes falava desse mistério que diz respeito ao primeiro preceito, e dos cinco moldes, e da grande luz, e dos cinco assistentes e de todo o tesouro da luz.
6. Jesus não falara aos discípulos de toda a emanação dos próbolos do tesouro da luz, nem tampouco de seus salvadores, segundo sua ordem e modo de existência. Não lhes falara do lugar dos três “amém”, que estão espalhados no espaço.
7. E não lhes dissera de que lugar brotam as cinco árvores, nem os sete “amém”, que são as sete vozes... e os cinco círculos... e os três tríplices poderes... e os vinte e quatro indivisíveis... e os eons, que são também os próbolos do grande invisível... e os arcontes, e os anjos, e os arcanjos, e os decanos, e os satélites e todas as moradas das esferas, etc.
E prossegue assim indefinidamente por uma selva escura de mitologias extravagantes e incoerentes enfileiradas num vago esquema de filosofia neoplatônica, que deixam a impressão de que o egípcio Valentino foi tão-só um delirante atacado de mitomania religiosa. Mas o crítico (?) Edmundo González Blanco considera esse evangelho (?) superior aos evangelhos canônicos, diz que o gnosticismo foi o fundo primitivo da religião (!) e o que chamamos de Igreja – “que só existiu a partir do séc VII” – foi no começo uma confusa aglomeração de seitas gnósticas... O papel aceita tudo, e a imprensa é indiferente às baboseiras.
Nem todos os apócrifos são disparatados ou maus, embora nenhum ostente a majestade, a dignidade e a vívida realidade dos canônicos. Os Santos Padres se valeram de alguns deles, e vários pormenores plausíveis, que a tradição popular cristã conserva, deles provêm, como os nomes de Joaquim e Ana, a Apresentação da Virgem ao Templo, o Trânsito de Maria Santíssima, as legendas sobre seus desposórios com os detalhes novelescos que Rafael imortalizou, a história de Verônica, etc. Quiçá algumas das sentenças de Cristo recolhidas ali são autênticas. Emile Jacquier , depois de examiná-las, considera que existem dezessete espúrias, uma duvidosa e seis históricas.
Os melhores entre os apócrifos são reduções ou antes glosas ingênuas dos canônicos, com a intercalação de pormenores pitorescos, nem sempre dignos e verossímeis. Assim por exemplo o segundo Trânsito de Maria, cuja versão e transcrição se atribui a São Vicente de Beauvais, narra a morte da Santíssima em cinco breves capítulos piedosos e dignos, embora imaginários:
No segundo ano depois da Ascensão, estava um dia a Virgem chorando, e eis que o Anjo de Deus estava diante dela.
E a saudou e disse “Da parte de Deus, que me manda a ti, dou-te uma palma do Paraíso”.
“E a levarás contigo quando, daqui a três dias, entrares no Paraíso”.
E tendo Maria pegado a palma, que resplandecia com grande luz, foi ao Monte das Oliveiras, orou e voltou.
E eis que num domingo, quando João pregava em Éfeso, aconteceu um terremoto.
E uma nuvem levantou João e o conduziu à casa onde a Virgem estava.
Mas ele disse: “Meus companheiros e irmãos ainda não chegaram para fazer as exéquias”.
E eis que subitamente, por mandato de Jesus Cristo, todos os apóstolos foram arrebatados em belas nuvens dos lugares onde pregavam e levados ao lugar onde estava Maria...
E entre eles estava Paulo, que com Barnabé evangelizava os gentios.
E no terceiro dia, na terceira hora, abateu-se sobre todos um grande sono, de modo que só os apóstolos e três virgens ficaram acordados.
E eis que Nosso Senhor veio com grande resplendor e um sem conto de anjos.
E disse Nosso Senhor a Maria: “Vem e entra no tabernáculo da vida eterna”.
E ela se ajoelhou no solo, adorou a Deus e disse: “Bendito seja, Senhor, o nome de tua glória”.
E acabando de falar Nosso Senhor, ela se recostou no leito e entregou o espírito com ação de graças.
E os Apóstolos viram que sua alma era de tal brancura que a língua humana não poderia descrever.
E Nosso Senhor disse aos Apóstolos: “Tomai o corpo, levai-o à direita da cidade, ao Oriente”.
“E ali encontrareis um sepulcro, e a sepultareis, até que eu retorne a vós...”.
Esse poema ingênuo não menciona a Assunção; por sua vez, o Trânsito da Bem-Aventurada Virgem Maria árabe descreve a Assunção em meio a um cenário fantástico, bem como a entrada no Céu, além de alguns milagres subseqüentes, igualmente fantásticos. Trata-se duma espécie de novelinha devota, de não muito bom gosto, apesar de reverente e repleta de textos dos quatro Evangelhos. “O humilde José, filho de Khalil Nunnak, transcreveu esta história”, diz ao final; não sabemos quem foi nem quem fez a história... que é romance.
É possível afirmar que os apócrifos, embora todos se considerem histórias, são a primeira manifestação da novelística em torno de Cristo; exceto os escritos com intenção heretizante, respondem eles à curiosidade dos fiéis em conhecer detalhes que a narração séria e substancial dos autênticos calou. Não é um gênero muito recomendável: “O romance é o gênero híbrido por antonomásia”.
O último apócrifo que conhecemos é o livrinho em três tomos, de Heredia: Memórias dum repórter nos tempos de Cristo, glosa desbotada duma concordância evangélica qualquer, cujo objetivo ou proveito não se consegue vislumbrar por nenhum ângulo; talvez sirva para algo.
Selma Langerlöf explorou os detalhes ou os fragmentos poéticos dos apócrifos em Cristus-legenden, começando pelo milagre dos pardais de barro, que está no Evangelho Árabe da Infância, no cap. XXXVI, e que se transmitiu ao folclore cristão. Nesse evangelho árabe não há mais nada de aproveitável: está repleto de milagres grotescos (como o da “Mula transformada em homem”, no cap. XXI), irreverentes e absurdos. Mas a romancista sueca escolheu suas onze legendas com apurado bom gosto e sentido cristão.
Os principais evangelhos apócrifos saíram em espanhol na Colección de Bolsillo, do comunista Bergua, sob a direção de E. González Blanco, traduzidos – bem mal – da coleção francesa de Michel Peeters, se não nos enganamos. Um deles, o Evangelho de Taciano, não passa duma das primeiras tentativas de organizar uma concordância evangélica, mui tosca, com grandes supressões e lacunas, e uma ordem descuidosíssima, de maneira que não é propriamente um apócrifo mas um resumo e harmonia tosca dos evangelhos autênticos.
O editor e o tradutor lhes entestam de trezentas páginas da mais desordenada, indigesta e disparatada “introdução” que conhecemos: “rudis indigestaque molis – Quam dixere Chaos”. O sedizente “crítico” derrama nela uma erudição indigesta e inútil, vazada numa verborragia implacável e numa absoluta falta de verdadeiro sentido crítico – em suma, de qualquer ciência; e está recheada com as afirmações mais peregrinas e com o furor demolidor do típico anticlerical galego. Não honra muito a ciência espanhola, ao contrário. Se Franco a suprimiu, como me dizem, velou pela honra nacional .
IV. O Cânon
Chama-se cânon o elenco dos livros da Bíblia que a Igreja recebeu e conserva como de revelação divina, ou seja, inspirados. Para conhecer o cânon, basta tão-só abrir qualquer Bíblia católica: 46 livros no Antigo Testamento, e os quatro Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, 21 Epístolas Apostólicas e o Apocalipse, no Novo Testamento. Algumas Bíblias católicas acrescentam três apócrifos muito respeitados pelos Santos Padres: a Oração de Manassés, rei de Judá, e o 3º e o 4º Livro de Esdras, que são um livro histórico, e um apocalipse. Algumas Bíblias protestantes suprimem a Epístola do Apóstolo São Tiago.
Dentre os livros do Novo Testamento existem alguns chamados protocanônicos que são aceitos, desde o início e por todos, como inspirados; e os deuterocanônicos – ou posteriores – dos quais algumas Igrejas ao princípio duvidaram, e se incorporaram ao cânon posteriormente. São estes sete:
- Epístola aos Hebreus;
- Epístola de São Tiago;
- II Epístola de Pedro;
- II e III Epístolas de João;
- Epístola de São Judas Tadeu;
- Apocalipse.
Para comprovar o cânon recorre-se ao critério da unanimidade das primeiras Igrejas e do testemunho dos Santos Padres antiqüíssimos, às citações de textos reconhecidos como inspirados, e aos elencos ou listas de algumas Igrejas que chegaram até nós, embora múltiplas ou fragmentárias, como o famoso Fragmento Muratoriano. O trabalho acerca do cânon – três séculos de pertinaz investigação e discussão – já está encerrado; já não cabem dúvidas acerca do sentimento da Igreja Primitiva em relação aos livros que estão em nossas Bíblias. Lutero repeliu a Epístola de São Tiago, chamando-a “nec divina nec apostolico stylo digna” de forma arbitrária e sem prova nenhuma, pois era flagrante que ela contradizia sua teologia da justificação pela fé e não pelas obras, conforme o Apóstolo diz ali ore rotundo: “A fé sem obras é morta”. Do mesmo modo repeliu como não canônicos o Apocalipse, as Epístolas ad Hebraeos e a de São Judas Tadeu. Já outros livros, como os três sinóticos, os Atos dos Apóstolos e algumas epístolas de Paulo, declarou-os “semicanônicos”, o que – significando “meio-inspirados” – é contraditório.
Quanto aos quatro Evangelhos, não resta a menor dúvida de que a Igreja sempre os considerou livros inspirados, citando-os com tal autoridade; os Primeiros Padres já citavam os quatro, chamados Apostólicos, desde o primeiro século: Clemente Romano cita os quatro nos anos 96-98; o escrito chamado Didaquê (Ensinamento), que é ainda anterior, cita três; e assim por diante até o séc. II com Santo Inácio Antioqueno, São Policarpo, Papías, São Justino, o Pastor de Hermas e outros; e também nos escritos dos hereges daquele tempo: Basilíades, Marcião e o nosso conhecido Valentino, que cita os quatro.
Talvez o documento mais importante para se comprovar o cânon seja o Fragmento Muratoriano, um códice latino do séc. VI encontrado na Biblioteca de Milão pelo erudito Ludovico Muratori, que é a transcrição dum documento eclesiástico mais antigo, cujo autor afirma ter vivido durante o Pontificado de Pio I, ou seja, entre os anos de 140-150. O documento está mutilado no começo e no fim, e escrito em latim tosco, provável obra dum gaulês; ele manifesta a crença das Igrejas ocidentais nos livros do Novo Testamento. Todos os livros do Novo Testamento estão enumerados ali – e os Evangelhos com grande distinção – exceto as Epístolas de São Tiago, a 3ª de João, a 1ª e a 2ª de Pedro, e a Ad Hebraeos, os quais poderiam constar no fragmento final do catálogo, que se perdeu. O documento distingue os livros sacros doutros escritos daquele tempo, mui venerados mas não inspirados, como o Pastor de Hermas; e professa que eles provêm do Espírito Santo: “Embora cada um desses livros evangélicos ensine coisas diversas, não são diferentes para a fé dos crentes, uma vez que um mesmo Espírito principal [autor] as proferiu” (lin. 16-20) .
Existem apenas três pequenos fragmentos dos Evangelhos que se podem chamar deuterocanônicos, porque faltam nalguns códices antigos e alguns críticos os puseram em dúvida:
1) O fim do Evangelho de Marcos (16, 9-20).
2) A narração do “Suor de Sangue” por Lucas (22).
3) O episódio da “Adúltera Perdoada” em João (7, 53- 8, 11).
Sabemos por Santo Agostinho a razão da omissão desta última perícope nalguns códices latinos: a antiga moral romana era tão severa com o adultério que a leitura do perdão generoso de Cristo à adúltera nalguns auditórios produzia um “choquezinho”, e talvez o que se chama de “escândalo farisaico”, motivo por que alguns sacerdotes a eliminavam, a fim de não “chocar as pessoas”... e de dar trabalho aos críticos futuros. Esse costume ainda não se perdeu, pois ainda hoje em dia vemos que alguns padres retiram partes do Evangelho que se lhes afiguram pouco “populares”; e queira Deus se contentem apenas com isso, e não ponham de escanteio todo o Evangelho e passem a pregar “sociologia”.
Não cabe aqui tratar do excelente conjunto de textos e análises com que se comprova o cânon, pois somente a conclusão nos interessa aqui. Quem queira conhecê-los pode abrir qualquer boa Introdução, das quais as melhores que conhecemos são Clodder, H.J., Unsere Evangelien (B.I, Herder, Friburgo); Zahn, Th., Geschichte des neutestamentlichen Kanons (B. i, Herder, Friburgo); E. Jacquier, Le nouveau Testament dans l’Église Chrétienne (t. I, Paris, 1911); Levesque, Nos Quatre Évangiles (Beauchesne, Paris); Rosadini, Introductio in libros Novi Testamenti (t. I, Univ. Gregoriana, Roma, 1931); Souter, A., The text and Canon of the New Testament (Londres, 1913); Wikenhauser, A., Einleitung in das Neue Testament (1952).
V. Os Evangelhos
O fato de que os quatro Evangelhos estejam e sempre tenham estado no cânon da Igreja significa para um católico, de forma direta, a inerrância desses documentos, e de forma indireta, sua integridade e historicidade, quer dizer, não chegaram até nós corrompidos e pertencem realmente aos autores aos quais se atribuíram. Todas essas notas conjuntas se chamam autenticidade dos Evangelhos.
A autenticidade dos Evangelhos a pressupôs tacitamente a Igreja Primitiva – implicitly, como dizem os ingleses, ou seja, sem nenhuma dúvida – e os séculos cristãos a aceitaram em paz; com o protestantismo começa a contenda em torno dela, que hoje em dia enche os livros de “apologética”. A rápida decomposição da teologia da Reforma – que, apesar do conservadorismo bíblico de Lutero e dos primeiros reformadores, levava em si o fermento revolucionário de per si incoercível – engendrou a crítica racionalista, que a si mesma se chamou de “a alta crítica”; no fundo, era anticristã. A autenticidade dos Evangelhos foi atacada por todos os lados, pontos e métodos, e igualmente defendida no plano científico pelos doutores católicos e protestantes crentes. Atualmente ela pertence mais à História: quem queira conhecê-la, pode encontrá-la em qualquer bom tratado de Introdução ou Propedêutica. Todos os pontos capitais, que a Tradição conservava, foram criticamente vingados um a um, às vezes através de investigações e discussões intrincadíssimas, que aqui não interessam; o acúmulo de hipóteses diversíssimas – talvez todas as possíveis – elaboradas como aríetes contra a antiga crença são agora peças de museu ou alimento de semicultos atrasados, como Lisandro de la Torre, ou de anticlericais furibundos, como o supracitado Gonzáles Blanco. Não obstante, esse trabalho de defesa e controvérsia favoreceu em definitivo o conhecimento dos livros santos e até sua hermenêutica. Talvez sem isso, por exemplo, Jousse não teria descoberto a psicologia do gesto...
A nós nos compete dar aqui, à brevidade, o conhecimento direto das conclusões.
1. Evangelho de Mateus
Mateus ou Levi, filho de Alfeu, era um cobrador de impostos a serviço de Roma (publicano ou fiscal) no Lago de Genesaré. Chamado de supetão por Jesus, que estava passando, seguiu-o e lhe aderiu à escola, sendo mais tarde designado por Ele entre os Doze. Depois da Ascensão pregou seu evangelho na Judéia e arredores, o qual reduziu a escrito antes da separação dos Doze, ou seja, uns 7-17 anos depois da morte do Senhor. Quando deixou a Judéia, para onde foi e onde morreu é coisa sobre que não existe certeza histórica total, restando apenas as legendas. A tradição católica considera-o mártir, celebrando-lhe a festa em 21 de setembro.
O Evangelho de Mateus parece que foi escrito em aramaico ou hebraico vulgar, e em seguida traduzido para o grego por um homem competentíssimo: abunda em aramaísmos, embora a dicção grega esteja correta e até elegante. A versão grega se difundiu com rapidez entre a cristandade nascente, e o original aramaico não chegou a nós... se é que existiu, pois é factível a possibilidade de que o próprio Mateus tenha escrito o texto grego – contra o testemunho algo duvidoso de Eusébio (ele se queixava de Papías) que os outros Padres depois repetem – pois o grego vulgar era então a segunda língua dos palestinos, que era um povo bilingüe, como o são os catalães e os irlandeses de hoje. Mais ainda, críticos eminentes agora defendem que Cristo falou em grego. Pode ver-se na pág. 106 do De Profundis de Oscar Wilde a exposição dessa hipótese: o fino e desditado poeta irlandês se regozijava no cárcere de Reading de que ao ler a cada dia – “depois de limpar a cela e lavar as cobertas” – o Evangelho grego, lia as “ipsissima verba” de Cristo. “Para mim é uma delícia pensar que, ao menos no que concerne à conversação, Cármides pudesse escutar ao Cristo, Sócrates discutir com Ele, e Platão compreendê-lo; que Ele de fato pronunciou ‘egóo eimí o poiméen o kalós’ (“Eu sou o Bom Pastor”); que quando pensou nos lírios do campo ‘que não trabalham nem fiam’, expressou-se exatamente assim: ‘katamáthete ta krina tu argoín’, e que seu grito derradeiro, quando exclamou: ‘Tudo está consumado, minha vida está completa, cheguei à perfeição dela’, foi tão-só esta palavra única e pungente que nos dá São João: ‘telélestai’ e nada mais”.
Como quer que seja, certo é que não existiu um Protoevangelho (urevangelium) de Mateus, nem sequer na forma de “loguia Jristos” (“ditos de Cristo”), como pressupôs a ciência racionalista. Ignorantes das condições do meio oral em que surgiram os Evangelhos, acreditaram fosse necessário estabelecer uma hipotética fonte escrita comum e perdida a fim de explicar as numerosas coincidências literais dos primeiros Evangelhos. A ciência atual acha graça dessa hipótese baseada sobre um falso pressuposto, ou melhor, uma ignorantia elenchi. “Mateus não precisou de nenhuma coleção escrita de ‘Ditos’, ainda menos dum Protoevangelho desconhecido, pois seu próprio evangelho aramaico [ou grego] é em realidade o evangelho primogênito”. Antes das descobertas lingüísticas decisivas de D’Udine, De Saussure, De Foucauld, Jousse e sua escola, entre outros, já o grande intelectual protestante Schleiermacher pressentira que a crítica racionalista estava no falso caminho, e ria-se “dos que imaginam que os evangelistas escrevessem num escritório coberto de notas e livros de referências”, como nós; o que equivale a imaginar São Mateus com uma máquina de escrever.
Mateus dirigiu o evangelho a seus compatriotas, e portanto sua finalidade era convencer de que Cristo de fato foi o Messias que Israel esperava; daí ele insistir tanto sobre o cumprimento das profecias, repetindo a fórmula “para que se cumprisse o que disse o Profeta” ou “conforme disse a Escritura”, citando mais copiosamente que os demais o Antigo Testamento (é possível contar em 28 capítulos 265 citações ou alusões ao Antigo Testamento) e interpretando-o nem sempre literalmente.
A questão de se Marcos ou Lucas conheceram o Evangelho de Mateus, ou se Mateus (ou ao menos seu tradutor) conheceu o de Marcos (como opinava Grotius) tão debatida pelos partidários da interdependência – hoje em dia não faz sentido, a não ser como curiosidade. Provavelmente Marcos não conheceu o Evangelho de Mateus, mas Lucas sim; ao passo que João conheceu os três sinóticos.
2. Evangelho de Marcos
Marcos foi judeu de nação, e com seu primo Barnabé acompanhou a pregação de São Paulo, embora com abandonos repentinos e alguns atritos. Não obstante, no primeiro encarceramento de Paulo em Roma, Marcos estava com ele (Col 4, 10). Depois durante muitos anos acompanha Pedro como meturgeman – repetidor intérprete (1 Pe 5, 13). Após a morte dos apóstolos, fundou a Igreja de Alexandria, no Egito, onde governou como bispo até o martírio. A Igreja lhe celebra a festa em 25 de abril.
Marcos escreveu o Evangelho em Roma; as condições e os motivos da escrita vimo-los nos testemunhos de Papías e Clemente Alexandrino, recolhidos por Eusébio. O exame interno deste Evangelho confirma a notícia das testemunhas: ele é vivo e visual, como duma testemunha presencial; a personalidade de Pedro transparece nele; acusam-se ali as faltas e as debilidades do Príncipe dos Apóstolos, enquanto as honras faltam ou ressoam em surdina; observam-se ainda as explicações dos costumes judaicos, as traduções das palavras aramaicas, a latinização das palavras gregas, as ilustrações topográficas da Palestina... em câmbio os lugares e os costumes romanos dão-se por conhecidos; tudo indica que o documento está direcionado aos cristãos provenientes da gentilidade, em especial aos latinos.
No Evangelho de Marcos existe um episódio curioso, que não se sabe para que serve nem está nos outros evangelistas (“ápax legómenon”, como dizem os críticos), que talvez seja uma espécie de “firma” discreta do autor. Quando levavam Cristo preso pelo Horto das Oliveiras, “seguia-o um jovem, coberto apenas com um pano de linho. E prenderam-no. Mas, lançando ele de si o pano de linho, escapou-lhes despido”. Que quer dizer isso? Os intérpretes fizeram várias interpretações ‘místicas”, como por exemplo aquela que diz:
Mas se esse é o caminho
do que não faz, mas consente,
far-me-ei santo somente
aceitando meu destino:
o do mancebo que, mudo
com um lençol coberto
viu a Cristo que ia ser morto
e o tirou e fugiu desnudo.
Hoje Cristo vai para morrer
e testemunhá-lo, pois,
segue minha vida, depois
do desejo de viver.
Mas ninguém sabe o que literalmente significa esse passo e para que se pôs ali. Alguns intérpretes supõem que esse mancebo era Marcos que, à semelhança dos pintores do Renascimento que punham o próprio rosto no quadro – Velásquez se pintou a si como um cavalariço em a Rendição de Breda – se comprazeu em estampar essa relação fugaz com o Cristo. Tal episódio tinha contra si o testemunho de Papías, de que Marcos “não conheceu nem seguiu a Cristo”. Contudo, ambas são conciliáveis: Papías se refere provavelmente ao discipulado, e não a um conhecimento fugaz. A mim me agrada essa hipótese, e não existe outra melhor para explicar esse fragmento; sem embargo, não lhes recomendo o que o poeta D’Annunzio fantasia sobre ela no livro Contemplazione della morte.
3. Evangelho de Lucas
Lucas foi um médico grego, de provável nascimento em Antioquia, na Síria, companheiro fiel e impertérrito do apóstolo Paulo em muitos caminhos por mar e terra, a partir da segunda missão de Troas a Macedônia até o martírio do Apóstolo das Gentes. Acompanhou-o em Roma – talvez na Espanha – e esteve com ele, incansável, durante as duas prisões: na segunda prisão “só ele”, atesta o Apóstolo (2Tm 4, 11): “Só Lucas está comigo”. Acompanhando Paulo esteve ele em Jerusalém nos anos de 42 a 50, onde suplementou a catequese oral de Paulo, pois como meturgeman a sabia de memória; além disso, tinha notícias “recolhidas diligentemente” – como disse ele – sur place e da boca das testemunhas presenciais e dos catequistas ou recitadores: daí seu Evangelho conter muitas novidades (datas e episódios exclusivos, até parábolas) em relação aos dois primeiros. A tradição afirma que conheceu a Mãe de Jesus, e dela recebeu o relato da Anunciação do Anjo e da Infância de Jesus, que só ele nos transmite. Ainda mais, dizem que pintou um retrato da Virgem, que hoje se conserva em Santa Maria sopra Minerva em Roma: por desgraça é um retrato bastante ruim, possivelmente apócrifo, mas dele saíram as diversas descrições do “físico” da Mãe de Deus, que deleitaram os poetas cristãos:
...De estatura de cuerpo fue mediana,
rubio el cabello, de color trigueño
afilada nariz, rostro aguileño
cifrado en él un alma humilde e llana.
los ojos verdes de color oliva.
la ceja negra y arqueada, hermosa,
la vista sana, penetrante y viva,
labios y boca de púrpurea rosa...
disse Rey de Artieda. Ou aquel’outro esplêndido de Lope de Vega:
Poco más que mediana de estatura
como trigo el color, rubios cabellos,
los ojos grandes, y la niña dellos
de verde y rojo com igual dulzura.
Las cejas de color negra y no oscura
aguileña nariz, los labios bellos
tan hermosos que hablaba el cielo en ellos
por ventanales de su rosa pura.
La mano larga para siempre darla
saliendo en los peligros al encuentro
de quien para vivir quiera tomarla...
Esa es María, sin llegar ao centro,
que el alma sólo puede retratarla
pintor que estuvo nueve meses dentro.
A alma de Maria aparece em Lucas somente em algumas frases cheias de mistério e modéstia. Não é possível retratar Maria, a criatura mais modesta e escondida do Universo, fonte selada do Criador. A devoção cristã diz que, se a formosura de Maria ficasse exposta, os homens a teriam adorado como uma deidade – é o que conta a legenda de São Dionísio o Areopagita.
O Evangelho de Lucas é o de melhor composição, o mais literário e cuidado; no entanto, seu estilo é semelhante aos outros, e conserva o traço – um pouco menos visível – dos esquemas rítmicos que caracterizam o estilo oral. O crítico Johann Perk, S.S., no livro Synope der Vier Evangelien, p. 23, escreve sobre ele estas palavras, que mostram conhecimento das descoberta da escola lingüística francesa:
Alguns investigadores consideram que a “memória” dos palestinos daquele tempo era capaz de conservar fielmente os esquemas originais, mesmo ao longo de dezenas de anos. A prova está nas centenárias transmissões orais dos rabinos e as surpreendentes memorizações dos povos primitivos. A transmissão oral possivelmente conservou com fidelidade e plasmou com exatidão os ditos e os feitos do Mestre, dos quais [os recitadores hebreus] queriam ser tão-só e exclusivamente “testemunhos” e não glosistas ou historiadores.
Lucas se serviu dessa transmissão oral, técnica e fidelíssima, auxiliado nessa tarefa pela sua própria função de meturgeman.
O Evangelho de Lucas, bem como o Ato dos Apóstolos, que também escreveu, estão dedicados a “Teófilo”, que alguns acreditam ser uma pessoa insigne, e outros dizem que é um nome simbólico, que representa a multidão dos cristãos.
Depois que muitos disseram
sobre as coisas que se passaram entre nós
dar relato ordenado –
como já nos deram a nós
os que desde o princípio as viveram
e se converteram em Servidores do Verbo –
me pareceu caber a mim também,
inteirando-me [dos fatos] com ordem e cuidado,
oh poderoso Teófilo,
pô-las por escrito e em ordem
para que tenhas fundamento seguro
do Verbo em que foste catequizado.
Assim reza o texto grego do começo do Evangelho de Lucas.
4. Evangelho de João
O quarto Evangelho é o livro mais egrégio que já saiu de mãos de homem.
A Igreja sempre afirmou que seu autor é o mesmo que escreveu o Apocalipse, o apóstolo João, que é chamado neste Evangelho de o “Discípulo Amado”. No começo do Apocalipse está escrito, à laia de título:
Revelação de Jesus Cristo
que lhe deu Deus Poderoso
para manifestar aos servos seus
o que deve acontecer em breve
e por intermédio do Anjo
comunicou a seu servo João,
que testemunhou o Verbo de Deus,
e o testemunho de Jesus Cristo:
coisas que ele mesmo viu.
Ao final do quarto Evangelho (21, 24), está escrito como firma ou autenticação:
Este é o Discípulo
Que dá testemunho disto
e que escreveu tudo isto
e sabemos que é verdade
o testemunho dele...
O penúltimo versículo crêem hoje em dia os críticos foi escrito pelos Presbíteros (ou Anciãos) da Igreja de Éfeso, como uma espécie de autenticação ou recomendação do livro às demais Igrejas.
O atropelo da crítica racionalista, ou “hipercrítica”, a este livro foi o maior de todos. O que já não disseram sobre ele e seu autor! Que o Apocalipse é um apócrifo, que o autor não é o autor do Evangelho, que o autor do Evangelho foram os anciãos de Éfeso, que foi um ancião desconhecido chamado João, que não teve autor e foi um produto “coletivo”, que é um livro teológico e “místico”, não histórico – escrito com o fim de inculcar a idéia “nova” de que o Messias Cristo era Deus; em suma, um livro “místico”, uma invenção, sublime decerto, mas irreal.
A crítica católica teve de pacientemente brigar com todas essas hipóteses, no fundo fantásticas, embora realizada às vezes com grande virtuosidade de erudição de formiga. Quem queira conhecer a briga vai encontrá-la na Introdução de P.M.J. Lagrange, O.P., no douto Comentário ao Evangelho segundo São João ou noutro dos livros técnicos que traz na bibliografia. A erudição aliada ao preconceito é uma arma perigosa; um historiador erudito e preconceituoso pode obrigar a “história” a dizer o que ele quer – isso sabemos de sobra.
Fácil nos seria resumir essa intrincada controvérsia, mas aqui não convém. Um argentino que queira repelir o Evangelho, por uma necessidade de qualquer ordem, basta dizer: “São coisas de padres”, sem empreender a tarefa alemã de aprender latim, grego e hebraico e ler os livros antigos – ademais não existem muitos deles aqui – para neles encontrar os indícios e os vestígios que lhe permitam com alguma decência negar a autenticidade de João “de forma científica”; e afirmar depois, por exemplo, que o quarto Evangelho é obra dum impostor de seita gnóstica, que se disfarçou com o nome do apóstolo, sumulando-o, para enfiar nela sua “doutrina gnóstica” de matuto, como afirmava Loisy, seguindo Heitmueller – e outras fantasias do estilo.
Mas, para os homens de ciência galeses ou germanos, tudo isso já é história antiga. O grande esforço da impiedade para destruir o Evangelho certamente foi um fator real de confusão e obscuridade, contribuindo para a grande apostasia; mas hoje em dia só cai no engodo quem quiser.
Certo é que o quarto Evangelho foi recebido desde o início em todas as Igrejas como da lavra do apóstolo João, endossado com a autoridade apostólica e o testemunho de todos os contemporâneos. Não existe possibilidade de erro ou engano em algo tão capital para os cristãos coevos. A “autenticidade” do Evangelho de João está, pois, in possessione, como dizem os juristas; por isso, são os que se opõem a ela – no séc. XIX! – que tem o dever de provar, contudo eles não provam suas negações de maneira nenhuma. Isto bastaria mas, para rematar a questão, o exame interno do escrito confirma a atribuição ao filho mais novo de Zebedeu; ademais, o testemunho unânime dos Santos Padres do séc. II e até o dos hereges daquele tempo, como os valentinianos Ptolomeu e Heracleão, além de Basilíades e Marcião, constituem uma evidência esmagadora.
Quem começasse a dizer que o livro De Bello Gallico não é de César, seria motivo do riso do mundo inteiro; por seu lado, existe um peso testemunhal muito maior a comprovar que o Evangelho de São João é do apóstolo João. Mas, como disse Pascal, se o teorema de Pitágoras impusesse aos homens alguma obrigação grave ou peso, há muitíssimo tempo já teria sido “refutado”.
João, o Discípulo Amado, galileu, foi filho do pescador Zebedeu e de Salomé, uma das santas mulheres que seguiu a Cristo até a morte – e além. Como Pedro e André, e muitos outros, seguiu primeiro João Batista, que lhe apontou a Cristo, e depois foi eleito como um dos Doze; foi testemunha ocular e ainda ator de todos os grandes episódios messiânicos. Com Pedro e seu irmão Tiago forma o grupo de comando dos apóstolos: presenciaram os três a Transfiguração, a ressurreição da filha de Jairo e a Agonia do Horto. Na Última Ceia reclina a cabeça sobre o ombro do Mestre e por sugestão de Pedro pergunta a Ele quem é o traidor; ao pé da cruz recebe a encomenda de cuidar da Mãe Deípara. Depois de Pentecostes permanece vários anos em Jerusalém e trabalha com Tiago e Pedro na organização e difusão da primeira Igreja. Depois se estabelece em Éfeso como bispo e primeiro Patriarca – como diríamos hoje – da Ásia Menor, cujas sete Igrejas sufragâneas menciona no Apocalipse; ali forma uma escola de doutores da fé, donde sai o ancião Papías, bispo de Hierápolis, Policarpo de Esmirna e talvez o mártir Santo Inácio Antioqueno – três padres apostólicos da maior importância. No ano 14 do império de Domiciano, João é desterrado para a ilha de Patmos e, como se acredita, condenado às minas – uma tremenda condenação naquele tempo, pior que a morte, porque para os condenados o labor das minas se realizava em condições tão atrozes que levava amiúde os desaventurados ao embrutecimento, à demência e ao suicídio. A rebelião das legiões, que matou o imperador Domiciano e alçou em seu lugar o “general” Nerva, o salvou desse inferno; o Senado Romano declarou nulos todos os decretos firmados pelo “tirano deposto”. De volta à Éfeso, João difundiu seu Evangelho, escrito não se sabe em que data, mas provavelmente após os oitenta anos de idade. Morreu no começo do reinado de Trajano, com uns 100 anos de idade; a Igreja lhe comemora a morte em 27 de dezembro.
É verdade que os 879 versículos deste livrinho por sua vez simples e sublime – dividido mais tarde em 21 capítulos – constituem um evangelho espiritual, e não místico segundo o sentido de Loisy e Renan, que para eles significa inventado ou mítico. Sua finalidade é proclamar explicitamente, e com maior clareza do que os sinóticos, que Cristo foi ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, ou seja, o abismo mais insondável que o intelecto humano já enfrentou, mas isso não isenta totalmente de que se trate duma narrativa estritamente histórica – e história de fonte direta, quer dizer, a crônica dum testemunho ocular.
O que era desde o princípio, o que temos ouvido,
[o que temos visto com os nossos olhos;
O que com as nossas mãos tocamos do Verbo da Vida –
Porque a vida se manifestou, e vimos, e testemunhamos,
E anunciamos a vós a vida eterna –
Que estava no Pai, e que se nos manifestou;
O que vimos e ouvimos nós vos anunciamos
Para que tenhais comunhão conosco
E que a nossa comunhão seja com o Pai
E com seu Filho Jesus o Cristo;
Escrevemo-vos estas coisas para que vos alegreis
E vossa alegria seja completa.
exclama o apóstolo na Primeira Epístola, que era provável acompanhasse o Evangelho, repetindo os conceitos do princípio e do final do próprio Evangelho.
De mais a mais João firmou propósito de complementar os três sinóticos, motivo por que seu Evangelho contém mais material novo, e é – como diria o literatismo atual – o mais “original”. Exceto na narrativa da Paixão, João não repete quase nada do que está nos três Evangelhos anteriores. Seu relato tem a vida, a viveza e o colorido dum testemunho ocular, além duma profunda e recatada ternura. Os grandes diálogos dramáticos da vida de Cristo se encontram em João tratados com a fineza dum dramaturgo; os grandes episódios da Promessa da Eucaristia seguida do primeiro cisma, as bodas de Caná e o primeiro milagre, a vida pública do Batista, a cura e o processo do cego de nascença, a ressurreição de Lázaro, a amizade do Cristo com os três irmãos de Betânia, o Sermão de Despedida e a Oração Sacerdotal da Ceia, a personalidade do traidor, o perdão da adúltera, o diálogo com a samaritana e as duas grandes contendas com os letrados – incluindo a autoafirmação de Cristo acerca de sua natureza divina – são como haustos de vento fresco no mundo, cuja excelência narrativa, sem a menor afetação de arte literária, a mão do homem não é capaz de sobrepujar.
João é o evangelista do coração de Cristo: ele o ouviu bater. O interior das pessoas e seu caráter está muito mais aprofundado em João que nos sinóticos, o que pode solucionar muitas perguntas problemáticas. São uma ou três madalenas, por exemplo? Os intérpretes racionalistas, com prurido de originalidade e mania de negar a tradição, inventaram que são quatro mulheres diferentes – ou três; daria no mesmo dizer duas ou cinco se quisessem: a “Adúltera” que Jesus salvou da lapidação, a “Pecadora” que ungiu seus pés na casa de Simão o Leproso e que o Salvador defendeu e louvou, e a “Maria” irmã de Marta e Lázaro que, em casa, sentada a seus pés “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”; além da “Madalena” que presenciou ao lado da Mãe a Crucificação e foi agraciada com a primeira aparição. Cansados de discutir com argumentos livrescos, exegetas resolveram comodamente declará-la uma questão insolúvel.
Mas quem leia com um pouco de intuição psicológica o Evangelho de São João tem a impressão clara de que se trata da mesma mulher: seus gestos são iguais entre si, que é a impressão que a Igreja teve durante anos. Existe um refinado drama velado com discrição por trás desses episódios soltos, e sua linha psicológica é visível. Cristo se deu ao luxo de salvar uma mulher, que é a façanha por antonomásia do cavaleiro; mas não apenas lhe salvou a vida, como São Jorge ou Sir Galaardo, mas a restabeleceu na honra e a devolveu perdoada e honrada a casa, com uma honra nova que só Ele poderia dar. Na cavaleria ocidental os dois feitos essenciais do cavaleiro são combater até a morte pela justiça e salvar uma mulher:
“salvaguardar as mulheres
e não renhir sem motivo”.
diz Calderón – como nas fitas de caubóis, atual reflexo pueril duma grande tradição perdida. Cristo fez os dois, e sendo Ele o mais alto que existe, sua “dama” teve de ser o mais baixo que existe, porque só Deus levanta o mais baixo até a maior altura, que é Ele mesmo.
Cristo exerceu a mais alta cavalaria. Os românticos do século passado e os deliqüescentes do nosso têm uma devoção mórbida pela Madalena, não precisamente pela penitente – que o Tintoretto pintou com toda a gama de seus amarelos na hórrida cova de solitária – mas pela outra, pela mulher perdida, pela traviata ou dama das camélias, de que fizeram um tema literário bastante estúpido. Até o nosso Lugones se sujou com o tema – que às vezes chega ao blasfemo – numa de suas filosofículas. Porém todos esses flibusteiros, ou filo-embusteiros, da Madalena não sabem muito: de cavalaria pouco, e do amor de Cristo absolutamente nada. “Cristo se apaixonou por uma mulher!” – dizem muitos, contentes – “Que humano!”. Sim. Cristo se apaixonou perdidamente pela humanidade perdida, e a viu como simbolizada numa pobre mulher, sobre a qual verteu regiamente todas as riquezas.
Dizemos isso como exemplo, a fim de caracterizar o quarto Evangelho. Concluamos com o resumo breve e preciso de São Jerônimo: “O apóstolo João, a quem Jesus muito amou – filho de Zebedeu, irmão do apóstolo Tiago, que Herodes mandou decapitar depois da morte do Senhor – foi o último de todos a escrever, a pedido dos bispos da Ásia Menor, seu Evangelho; contra Kerinto e outros heresiarcas, em particular contra os ebionitas [heresia de forte caráter judaizante], que asseveravam que Cristo não existira antes de Maria. Por isso se sentiu forçado a provar a origem divina de Jesus de Nazaré” .
(Tradução: Permanência)
Pe. François-Marie Chautard, FSSPX
“Se o catolicismo fosse inimigo da pátria,
não seria uma religião divina”.
São Pio X
Desagrade ou não a Jean-Jacques Rousseau, o homem é um animal social.
Portanto, não seria coerente tratar da perfeição moral sem examinar as relações que o homem estabelece com Deus e seus semelhantes.
Essas relações envolvem vínculos, trocas, deveres e direitos; daí existir no homem uma virtude que lhe permite cumprir retamente seus distintos deveres para com Deus, a sociedade e o próximo: a virtude da justiça.
É incontestável que os deveres variam em função das diferentes formas de relações: o dever para com o bem comum da sociedade não é o mesmo que o dever para com um simples bem particular. Igualmente, os deveres variam segundo as pessoas: Deus, os pais, ou desconhecidos. Eis por que a justiça ramifica-se em várias espécies e partes.
Ora, uma virtude que se tornou desconhecida a muitos, por causa da ingratidão cristalizada do espírito moderno, é a virtude da piedade para com a nação, a pátria.
Ao examinar a virtude da justiça, pela qual “a vontade se dispõe a dar a cada um o que lhe é de direito”, Santo Tomás examina seus beneficiários, que são variados e de diversas ordens. Por exemplo, o comerciante a quem se deve pagar uma quantia exata cobrada por um objeto comprado. É um caso bastante simples, pois o que é devido – o valor – é algo preciso, exato. Uma vez que o comprador pagou a fatura, quitou seu dever em toda a justiça.
Neste caso, a dívida repara estritamente a justiça, pois quita uma dívida precisa (pagar uma quantia exata). Mas quando se trata de Deus, dos pais ou da nação, poderíamos alguma vez nos julgarmos quites? Poderíamos aplicar essa justiça? Poderíamos, por exemplo, em toda a justiça prestar o culto devido a Deus? Ou recompensar aos pais um bem equivalente ao da vida que nos deram, sem falar na educação?
É claro que não. Por isso algumas espécies de justiça não têm a sua medida perfeita, visto que não se pode pagar plenamente o que é devido. É o caso de três virtudes:
- a religião: Devemos um culto a Deus, mas sozinhos jamais chegaríamos a honrá-lo na medida que a sua grandeza exige, bem como não poderíamos jamais retribuir-Lhe suficientemente e lhe dar tanto quanto nos deu .
- a piedade: Essa espécie de justiça reconhece a dívida de gratidão para com nossos pais, entendidos tanto no sentido estrito como no sentido amplo (ancestrais e pátria). Santo Tomás exprime-se assim: “A piedade, que se deve principalmente aos pais, deve se estender também a todos os que têm conosco vínculo de sangue, pois somos descendentes dos mesmos parentes; em seguida, deve se estender aos compatriotas, porque têm em comum conosco a mesma terra natal.”
- a observância: Consiste no reconhecimento e na honra devidas às pessoas de grande mérito e grande virtude, ou seja, os grandes homens de uma nação: santos, heróis militares, estadistas etc. Pois bem, jamais se recompensa suficientemente uma virtude vivida em grau excelente.
Mas o fato de não se conseguir recompensá-la suficientemente não faz disto algo dispensável. Muito pelo contrário. Como o homem jamais conseguiria restituir a Deus, aos pais ou a pátria o tanto que deles recebeu, ele nunca está quite e, portanto, deveria se pôr a praticar diligentemente essa virtude!
Em que consiste a piedade “patriótica”?
Essa piedade não é o fervor com que se reza a Deus, mas sim a veneração que se tem para com os pais e a pátria, porque estão no princípio de nossa existência. Segundo Cícero, “a piedade é o exato cumprimento de nossos deveres para com os pais e os amigos de nossa pátria.”
Somos herdeiros e devedores. Assim o ensina Santo Tomás, com sua clareza habitual: “O homem é constituído devedor a diferentes títulos para com os outros, segundo a excelência diversa deles e os benefícios diversos que deles recebeu.
“Ora, em ambos os casos o lugar supremo pertence a Deus, por ser excelentíssimo e o princípio primeiro que nos deu o ser e nos governa.
“Mas, em segundo lugar, este título convém a nossos pais e a nossa pátria, dos quais e na qual recebemos a vida e a educação. Portanto, depois de Deus, somos devedores sobretudo dos pais e da pátria. Em consequência, assim como o fim da religião é prestar culto a Deus, assim também, num degrau inferior, o objeto da piedade é prestá-lo aos pais e à pátria. Ademais, o culto dos pais se estende ao que prestamos a todos da mesma ascendência, como o demonstra Aristóteles. Ora, o culto da pátria abrange o prestado a todos os cidadãos e a todos os amigos dela. Por isso a eles se estende de maneira principal a piedade.”
Normalmente, quando falamos em “culto”, referimo-nos ao culto destinado a Deus, pois a honra devida ao pai e, por fim, a toda a autoridade, faz parte da honra rendida a Deus, já que toda autoridade criada é um reflexo da autoridade divina . É por isso que a apostasia hoje reinante está necessariamente acompanhada de uma crise de autoridade. Do mesmo modo, a restauração dos direitos do pai ou de qualquer autoridade só poderá ter resultados duradouros com a restauração dos direitos de Deus.
Enfim, como “as relações entre consanguíneos e concidadãos tocam mais intimamente os princípios da nossa existência do que as relações de amizade”, a honra e a piedade devem se dirigir antes de tudo aos pais e às autoridades. Quando certos católicos defendem que a Igreja deveria abster-se de toda consideração política, manifestam assim o senso estreito e raquítico de sua virtude da justiça.
A pátria, princípio de nosso ser
Falta definir o que entendemos por pátria. Primeiramente, é a terra dos pais. Charles Péguy assim a definia: “A pátria é certa extensão de terra onde se fala uma língua, onde os costumes podem reinar; é um espírito, uma alma, um culto, é a porção de terra onde uma alma pode respirar. É a terra que se tornou nosso lar”. A essa noção da pátria carnal, o Rev. Pe. de Chivré acrescenta um complemento oportuno:
“Na origem de uma pátria, há uma escolha, um casamento psicológico, um ‘noivado’ moral, entre um homem e um lugar, e o que compõe a pátria é o resultado entre o elemento temporal que se adotou e a ligação livre e definitiva do humano a esse elemento. Uma terra escolhida por um homem, na qual ele decidiu realizar atividades que unem a terra a si: eis a pátria.
“Existem, então, dois elementos: um carnal e outro livre e psicológico. Esta escolha da pátria traz consigo oportunidades de ação proporcionadas pela terra, o mar, a montanha, as minas, etc. A terra é um princípio de atividade. O Estado, responsável pela pátria, tem como primeiro dever obrigar a terra a fornecer seu máximo de atividade ao homem” .
Mas, para além da terra, há a herança dos pais, que não é somente o solo, mas o sangue, os bens, os princípios, a religião: os deuses de nossos pais.
Em seu comentário sobre o artigo de Santo Tomás citado acima, Caetano insiste na noção de princípio que fundamenta essa virtude. A pátria é para nós um princípio e inicialmente talvez isso nos surpreenda. Mas ao refleti-lo bem, não somos dependentes do passado da nação? Se somos católicos, não o devemos a nossos avós? Os costumes católicos aos quais nos habituamos, não os herdamos de nossos pais? Nossa língua, precisa e estruturante para o espírito, não é um patrimônio legado por nossos antepassados? As igrejas, os palácios, os monumentos que embelezam nossas cidades, não contribuem para criar uma atmosfera à qual não damos mais atenção hoje? Porventura a fé gravada nas pedras de nossas igrejas do interior, dos muros de nossos casarões antigos, de nossos cruzeiros do campo, não conta nada na transmissão da civilização e da cultura católicas? Quem quer que já tenha viajado, mesmo pouco, sabe o quão forte e durável é a marca deixada pela sociedade em seus membros: o homem é formado sobre um passado e não faz senão construir sobre esse passado, essa herança. É preciso ter uma mentalidade de adolescente para imaginar que um homem pode se construir sozinho, amputando suas raízes.
Esse culto dos pais encontrava-se tão enraizado na Antiguidade pagã que estava no fundamento de todas as sociedades e do direito das sociedades . A antiguidade havia até caído no excesso contrário, oferecendo um culto divino aos pais. A Igreja o corrigiu, mas salientou o que ele tinha de nobre:
“Depois de Deus, diz Santo Tomás, é a nossos pais e à pátria a quem mais devemos (IIa IIae, q.101, a.1). O verdadeiro patriotismo é a virtude moral da piedade filial, que, iluminada pela fé sobrenatural e a prudência cristã, como se vê em um São Luís ou uma Santa Joana d’Arc, é uma virtude infusa, uma virtude perfeitamente subordinada ao amor de Deus e de todos os homens nele.”
Quais os meios de se prestar culto à pátria e aos pais?
Antes de tudo, presta-se culto à pátria e aos pais perpetuando a lembrança e rendendo honra aos ancestrais e heróis. Aí, a comemoração dos heróis da guerra de 1914 é um ato de justiça elementar para com aqueles que combateram até verem libertado o solo da pátria, a herança dos pais . E, para numerosos soldados cristãos, esse sangue derramado pela França o foi em reparação aos crimes da França anticlerical e maçônica. E foram até à morte nesse espírito. “Sabemos bem que a nossa missão é redimir a França pelo sangue”, escreveu Psichari .
História nacional e virtude da piedade
Esta gratidão pelo passado requer o conhecimento da história do próprio país. Um homem que desconhece a história de sua pátria é um inculto na pele de um ingrato. Pode-se mensurar aqui o quanto a deterioração do ensino de história contribui para minar a piedade nacional. Além do que, no caso da França, fundada pelo batismo de Clóvis, a dimensão cristã é tão forte que não se pode compreender a sua história sem conhecer o seu passado religioso. É importante então conhecer os santos nacionais e locais e prestar-lhes culto. Aqui, ainda, nestes tempos de crescente globalização, é fundamental trazer à nação a lembrança dessa lição de bom senso, tão ancorada no espírito de nossos antepassados!
Além do dever de lembrarmo-nos de nossos ancestrais, é preciso honrar as autoridades legítimas, ato de justiça chamado observância. É necessário aqui um esclarecimento, já que a baixíssima qualidade dos governantes atuais nos faz duvidar desse dever. Santo Tomás já previra a objeção e a respondeu deste modo: “Os superiores maus não são honrados por causa da excelência de sua virtude própria, mas por causa de sua eminente dignidade, que faz deles ministros de Deus. E também porque neles é honrada toda a comunidade, de que são superiores.”
A transmissão do patrimônio
Está implícito que essa virtude da piedade supõe a transmissão de um patrimônio. Ora, essa transmissão se dá antes de tudo pela família e pela pátria. Estava tão ancorada na Antiguidade pagã – entre os indianos, gregos e romanos – que o celibato era ali rigorosamente proibido, como já lembramos. Com efeito, a transmissão da vida é a propagação do bem comum. Recorramos mais uma vez à explicação de Santo Tomás:
“A geração humana tem múltiplos fins: em primeiro lugar a continuidade da espécie, a continuidade também de um certo bem político, ou seja, a continuidade de um povo numa mesma cidade; a continuidade também da Igreja, que é o agrupamento dos fiéis. Tal geração deve, pois, obedecer a leis diversas. Ordenada ao bem natural, à continuidade da espécie, a geração está ordenada para esse fim pela natureza que a ela inclina: diz-se, neste sentido, que é um ofício de natureza. Ordenada ao bem da cidade, está submissa às disposições de lei civil. Ordenada ao bem da Igreja, ela deverá submeter-se ao governo eclesiástico.”
Outra vez, podemos mensurar o quanto uma sociedade contraceptiva e abortista é inimiga da pátria.
Essa transmissão do patrimônio é também a transmissão dos princípios civilizacionais. A fé, evidentemente, e a história, da qual já tratamos, mas também os sãos costumes nacionais e, por fim, a conservação dos monumentos materiais do país.
Sobre isso, espanta-nos a imprudência com a qual herdeiros muitas vezes dilapidam seu patrimônio familiar. Outrora se apegava à terra, aos móveis, aos bens dos familiares, mas nossos contemporâneos parecem não lhes dar muito valor, preferindo bens puramente financeiros e, portanto, impessoais. Se ao menos os desprezassem para entrar em um mosteiro, por amor à pátria celeste!
Está claro, enfim, que a virtude da piedade filial inclina o homem a trabalhar pelo bem comum da Cidade e não só pelo de sua própria família, de seus correligionários, de seu clã ou partido. E isso vai desde o respeito pelos costumes, pela propriedade e pelas preferências nacionais, até o sacrifício de dar o sangue pela pátria.
Assim o ensinaram os papas. Segundo Bento XV: “Se a caridade deve se estender a todos os homens, mesmo a nossos inimigos, ela quer que amemos especialmente os que estão unidos conosco pelos vínculos de uma pátria comum.” (Carta de 15 de julho de 1919). E Pio XII, em sua encíclica Summi Pontificatus (1939), acrescenta: “Existe uma ordem estabelecida por Deus segundo à qual deve-se ter um amor mais intenso e fazer o bem primeiramente aos que estão unidos conosco por vínculos especiais. O Divino Mestre deu o exemplo dessa preferência por sua terra e sua pátria quando chorou sobre ‘a iminente destruição da Cidade Santa’.”
O dom de piedade
Se a piedade é uma virtude, é também um dom do Espírito Santo. Este último certamente não tem por fim o dever de piedade para com a pátria. No entanto, na medida em que esse dom inclina a alma a ver em Deus um pai e, nos outros cristãos, irmãos, ele contribui grandemente para a vida em sociedade.
Quanto à justiça exercida para com os homens, esse dom ajuda-nos a abrandar o que poderia haver de áspero na virtude da justiça e coloca um bálsamo nas relações, muitas vezes áridas, entre os homens. O dom de piedade traz consigo um suave unguento que aperfeiçoa a justiça e dá-lhe um rosto humano.
“É a flor da civilização cristã, conclui Dom Lefebvre. Onde quer que falte essa graça do Espírito Santo, há o risco de se recair num mundanismo, no qual as manifestações exteriores de simpatia para com o próximo são muitas vezes falsas ou exageradas, onde falta-lhes sinceridade, onde são meras formalidades, ao passo que a civilização cristã é inspirada pelo Espírito santo, pelo verdadeiro espírito de humildade e caridade, de amor ao próximo e de amor a Deus, amor inspirado por Deus. ”
(Le Chardonnet, N. 300, julho-agosto-setembro 2014)
Introdução
Carl Gustav Jung (1875-1961) demonstrou um grande interesse pela religião em geral, tanto a ocidental mas especialmente a oriental . Certamente, ele está longe do ateísmo de Freud e da sua opinião negativa sobre todas as religiões.
Contudo, se examinarmos atentamente o pensamento junguiano, encontramos aqui um espiritualismo gnóstico, alquímico e esotérico muito mais perigoso do que o pansexualismo freudiano, porque é mais dissimulado e pode se tornar mais facilmente uma armadilha para os católicos .
É preciso ter em mente que, se Jung, como Hegel, lança mão de conceitos cristãos, no entanto, dá a eles um significado substancialmente diferente da teologia católica .
Simbolismo e relativismo religioso de Jung
É um fato objetivamente constatável que Jung, embora dizendo-se cristão/protestante, relativiza todos os conceitos e domas cristãos em um conceito muito abrangente do “religioso”, no qual todas as religiões se equivalem.
Ademais, ele estuda as religiões na sua relação com a psique humana, que para ele é a consciência humana mais o inconsciente, não as estuda como uma doutrina dogmático-moral objetiva porque, no tocante ao problema da sua objetividade e realidade, ele se declara agnóstico.
Ele justifica o seu agnosticismo relativista servindo-se da filosofia kantiana, segundo a qual o homem não pode conhecer a coisa em si, mas apenas como ela lhe aparece depois de lhe ter aplicado as suas categorias subjetivas — o a priori de Kant ou, para Jung, a nossa estrutura psíquica. Assim, supondo-se que Deus exista, sem poder prová-lo, não podemos conhecer a sua existência objetiva, mas apenas como o representamos graças aos símbolos que a psique humana forma dele.
Ora, o símbolo desempenha um papel fundamental na doutrina modernista. Os símbolos são sinais que representam uma verdade (por exemplo, a bandeira vermelha significa o perigo). Os modernistas aplicaram o simbolismo ao dogma, que para eles já não possui um valor objetivo e real, mas simbólico e prático. Por exemplo, Deus é um símbolo, não um Ente real e objetivo que exprime uma interpretação subjetiva e relativa do sentimento humano de um ato religioso, ou ainda uma entidade imaginada pelo sentimento religioso humano para ajudar o homem a se comportar melhor. Assim, o simbolismo modernista e junguiano esvazia toda a doutrina e dogmas da Igreja romana (esse simbolismo foi condenado pelo Decreto Lamentabile de São Pio X). Logo, a fé, segundo Jung, não possui nenhum fundamento objetivo e real, mas apenas psicológico, sentimental e simbólico. Não é só isso: Jung abraça o niilismo teológico da teologia apofática de Moses Maimônides, mas desliza no relativismo metafísico e teológico. absoluto.
Ele ainda é um teórico do pan-ecumenismo. Com efeito, escreve: “não consigo compreender porque uma religião deveria possuir a verdade única e perfeita”. A fé, para ele, é “extremamente subjetiva” .
A religiosidade junguiana é incompatível com a doutrina católica além de muito semelhante a doutrina modernista. Assim, não é por acaso que Antonio Fogazzaro , “foi um dos primeiros na Europa a se interessa pela psique humana, abrindo caminho para Bergson, Freud e a chamada literatura da interioridade (i.é, a psicologia analítica junguiana)” .
Entre as várias filosofias ocidentais, Jung aproxima-se do kantismo e, entre as orientais, do budismo.
A teologia de Jung
Na teologia católica, o problema do mal é resolvido definindo-se o mal como uma privação de um bem, enquanto Jung, como os maniqueus ou os cataros, sustenta que o mal possui um valor ontológico real e positivo .
É por esse motivo que ele substitui a Santíssima Trindade pela “Quaternidade”, porque na Trindade faltaria o aspecto positivo e “divino" do mal .
Em seguida, ele passa a proclamar que “dado que o Diabo é o adversário de Cristo, deveria ocupar uma posição equivalente à sua e ser, ele também, Filho de Deus, e um segundo Cristo” . Assim, na “Quaternidade” junguiana, Satanás é consubstancial ao Pai e ao Espírito Santo .
O Pai possuiria em si o mal. É preciso recorrer à coincidentia oppositorum spinoziana para resolver este problema : “Deus possui duas mãos: a direita é Cristo, a esquerda, é Satanás” . Em suma, Deus não é o bem absoluto, mas é ainda cruel, imoral, malvado, violento, demoníaco, infernal .
Se Cristo e Satanás são as duas mãos de Deus, significa que Deus age no mundo, tanto por meio de Cristo como de Satanás e, assim, a atividade demoníaca devem ser atribuídas a Deus: “Deus não pode mostrar a sua verdadeira face senão também por meio de Satanás” .
Cristo não é mais o Filho Unigênito, mas “o irmão de Satanás, assim Satanás é o primeiro Filho de Deus, e Cristo, o segundo” .
Logo, reprimir o mal em si mesmo seria nefasto e significaria reduzir a “Quaternidade" e a própria personalidade. Para alcançar a boa saúde psíquica, é preciso integrar o mal moral na própria existência. Por mal moral, Jung entende os instintos, por ele chamados de “impulsos animais”. A ascética cristã é, destarte, fonte de mal estar psíquico .
O homem, para Jung, deve tender à perfeita integridade, devendo assim assumir a porção do “mal" que está nele. Não se trata apenas de tomar consciência de aceitar-se como se é, mas de trabalhar positivamente para integrar o mal em si. A religião, para ele, é a “relação com os valores mais fortes, não importando se sejam positivos ou negativos” .
“Freud limita-se a fazer com o doente tome consciência da sua sombra para que ele veja como sair daquilo” , enquanto Jung sustenta que “o homem não pode se limitar a reconhecer a porção do mal que tem em si, mas deve aceitá-la, e fazê-la coisa própria; essa é a única solução válida” .
Conclusão
A psicologia analítica junguiana ensina o doente a assumir e a viver a sua porção obscura.
Mas, nem Freud nem Jung são capazes de oferecer ao doente uma terapia da doença da alma (como faz a espiritualidade católica), que constitua uma real superação do mal e um verdadeiro acesso à saúde interior.
(Sì sì no no, 15 gennaio 2020 - tradução: Permanência)
A REPÚBLICA DO PENSAMENTO
(A POLÍTICA ABSTRATA)
Alfredo Lage
Todas as civilizações, uma vez esgotadas as virtualidades humanas contidas nas formas coletivas que as constituem, e que exprimem a essência do homem dentro de certas condições particulares de tempo e lugar, tendem a se tornar repetitivas e a manifestar sintomas de esclerose. As estruturas que deviam ser meios para a expressão do homem e instrumento da sua atuação sobre o ambiente antepõem-se ao mundo real, passam de meios a fins, tornam-se fatores de isolamento e de irrealidade.
Nesse momento geralmente surgem elementos alheios à esfera dessas estruturas e que conservam a possibilidade de alguma relação mais direta com a realidade — assim, os romanos em face dos gregos, os bárbaros cristianizados relativamente aos romanos, etc. os antigos portadores de uma civilização ora são deixados à margem e “colonizados”, como as elites hindus pelos ingleses, ora são substituídos aos poucos, ou são varridos de um golpe, como os dominadores indígenas do México pelos espanhóis, etc.
A chamada civilização ocidental cristã não parece fazer exceção a essa regra. Cabe evocar aqui a mecanização da vida, a disseminação de uma cultura enlatada, a padronização forçada do indivíduo, enfim, uma tendência universal para o nivelamento sócio-cultural, tendência para passar do complexo para o simples e do diferenciado para o indiferenciado, que parece ser a lei da matéria e das coisas que se deixam arrastar pela entropia crescente do mundo físico. No nosso caso, desde o século XVIII, o peso das estruturas materiais mostra sinais de predominar sobre o espírito[1]. Mas ao mesmo tempo — e essa circunstância serviu para confundir o faro dos historiadores — aumenta consideravelmente o domínio do homem sobre o mundo físico. Declinam as forças criadoras à proporção que os meios da técnica se tornam mais perfeitos[2]. O chamado progresso técnico esconde aos olhos de muitos a realidade do processo que Spengler chamava o “ocaso do Ocidente”.
Seria fatal esse processo? Resta saber. Mas o fato é este: no momento em que a evolução do mundo vai ser entregue ao automatismo das forças materiais, e todos se comprazem (ou se conformam) com a idéia de submeter o curso da civilização ao incremento necessário dos meios de dominar a natureza, desenha-se no horizonte uma grande abdicação da inteligência, e surge uma forma aguda de irrealismo espiritual.
As teorias do liberalismo preparam uma primazia do sistemático sobre o vital e do técnico sobre o econômico. Primeiro: no centro motor da ordem social, no lugar da monarquia destronada ou da aristocracia que aboliu, a Revolução Francesa colocou não um princípio pessoal, ou uma nova elite responsável, mas uma Razão impessoal, cujo desdobramento, desimpedido dos inúmeros “embaraços” de ordem particular representados pelos privilégios e liberdades incorporados à antiga legislação, devia assegurar automaticamente o progresso decorrente da perfectibilidade indefinida do homem. Depois, à direção e iniciativa individual em economia substitui-se aos poucos a ação do poder público, ao passo que a regulação última da atividade econômica passa de um princípio natural: a necessidade do consumidor, para um princípio técnico: a produtividade. É importante conhecer esse processo[3]. Primeiro, o empreendimento torna-se um “instrumento de lucro”, um mecanismo independente dos homens que o realizam e de sua própria finalidade natural. Como um organismo autônomo, ele busca então seus interesses e finalidades em obediência a uma lei própria de conservação e de expansão (qualquer regulação propriamente humana — assim é alegado — perturba o jogo normal da concorrência). Em seguida, a empresa como unidade básica da atividade econômica e como comunidade natural especificada por um fim produtivo ou um ramo de atividade é englobada seja pelos monopólios, seja por grupos de empresas cujo fim é o bem de um império financeiro. Finalmente, “atendendo aos apelos dos próprios interessados — como salienta de Corte — o Estado se imiscui na totalidade do processo econômico”; essa primeira intrusão provoca uma reação em cadeia: “todos os grupos econômicos passam a exigir o apoio do Estado”.
De atividade que no mundo antigo era estritamente privada — de ordem aliás sobretudo doméstica (uma denominação usada ainda para designar a empresa: casa reflete esse fato) — a economia pende modernamente para a ordem pública. (Ao inverso, observou certa vez Hannah Arendt, as coisas que na antiguidade, como de resto na natureza das coisas, pertenciam à esfera cívica ou à órbita da vida pública, como a opinião política ou a religião, sob o liberalismo, tendem a ser consideradas como assuntos de foro interno).
A confusão entre as esferas do público e do privado foi extremamente prejudicial para ambas. De um lado, como observa de Corte, “os detentores do poder econômico que, no intuito de acrescer o seu império, obrigam o Estado a sustentar as suas empresas ou a mantê-las artificialmente, assumindo-lhes as dívidas, são vítimas do seu sucesso. Fazem a economia transferir-se infalivelmente da esfera privada para a esfera pública. Em vez de assumirem os riscos e fracassos que todo empreendimento humano comporta, tornam-se parasitas do poder político. Crêem dirigir o Estado mas, de fato, o Estado é que os submete a suas próprias imposições... e que acaba, sob a pressão conjugada de todas as forças ou, mais exatamente, de todas as fraquezas econômicas, por tornar-se o único motor da economia e o só proprietário dos meios de produção”.
De outro lado, a absorção da esfera privada do econômico pelo Estado determina uma degenerescência do Estado, usado afinal como simples instrumento de coação por uma oligarquia ou, pior ainda, por um tirânico Poder paralelo instalado pela Revolução. “Deslocando continuamente os limites que separam o setor público do privado — cito agora de Corte — estende e acresce o Estado seu poder; mas como age, no caso, sob a pressão de grupos econômicos, de fato ele o contrai e enfraquece. Seu poder se dilata na proporção em que é menos Estado — poder supremo a serviço do bem público. Se ele cada vez mais dirige, é na medida em que é cada vez mais dirigido”. No caso limite, tudo o que resta do Estado como instituto jurídico e como órgão finalizado pelo bem comum é a esfera administrativa dos serviços públicos hipertrofiada para englobar os negócios econômicos e os setores nacionalizados. Torna-se assim o Estado um mero instrumento do poder revolucionário ou do poder oligárquico, e se subordina à produtividade. O critério supremo da res publica será o desenvolvimento tecnológico e o incremento da produção. O homem como fator econômico de produção e de consumo ficará abrangido na esfera dessa universal “administração de coisas”, ele próprio reduzido pelo critério mensurável da eficiência a uma “coisa”.
Desse modo, o sistema assume precedência sobre a função econômica, a qual, como acentuou Pio XII, “não mais, de resto, do que qualquer outro ramo da atividade humana — constitui, por sua natureza, uma instituição do Estado; ao contrário, a economia é o produto vivo da livre iniciativa dos indivíduos e dos grupos que eles espontaneamente constituem”. Ao invés de ser regulada por um princípio real: a necessidade do consumidor (expressa pela demanda) passa agora a economia a ser regida por um critério abstrato: a produtividade e regulada pelo Estado a título de função econômica da Sociedade[4]. Essa precedência do abstrato sobre o concreto é o padrão que veremos sob o liberalismo insinuar-se em todos os domínios da atividade humana.
“A economia se artificializa em rápida cadência, continua de Corte. Seu sentido não mais deriva das suas atividades econômicas reais ou do fim que a natureza lhes impõe... O economista é chamado a pôr ordem, a introduzir uma estrutura numa coisa amorfa. Como essa ordem e essa estrutura deixaram de provir da realidade econômica definida por sua finalidade, ou da natureza das coisas, resta que seja imposta de fora como o plano de um mecanismo, graças ao apoio do poder político”. Desse modo, como já observara Pio XI, a propósito do antigo liberalismo, não são as necessidades humanas, conforme a sua importância natural e objetiva, que regulam a vida econômica e o emprego dos fatores de produção, mas, ao contrário, os interesses econômicos é que determinam quais as necessidades que devem ser satisfeitas e em que medida.
*
De qualquer sorte, o mundo moderno, instaurou-se sob a égide de uma dupla demissão do homem. Tanto em economia como em política, relega-se a realidade do espírito (presente na História pela decisão humana capaz de introduzir um fator novo: a liberdade) à margem da vida prática. O homem abdica da sua responsabilidade última. Deixa-se arrastar pelo Sistema. O resultado é a tirania. Pois assim como o governo impessoal, por consulta à “vontade geral”, na realidade é um governo pessoal e oculto que maneja grandes massas passivas e espiritualmente ausentes, assim também, a economia liberal é de fato uma economia dirigida por um poder oligárquico discreto através de um corpo de especialistas. Tudo converge para um só fim: substituir a sociedade política por uma gigantesca corporation,[5] converter um governo de homens na operação de um sistema e organismo dirigente da sociedade numa tecnocracia político-econômica alheia a toda finalidade ética ou espiritual. Fazendo “de necessidade virtude”, as elites responsáveis glorificam a sua abdicação sob a forma de um culto à Razão imanente e divina. A religião do progresso empresta virtudes mágicas à simples mudança, poder automático de transfiguração. Tudo o que muda se renova. Tudo o que se renova, sobe e o que sobe converge para a unidade do Divino. Os intelectuais transformaram o seu desentrosamento da realidade no acicate da contradição. Já que não podem influir na ordem de coisas vigente, fazem-se seus detratores e afinal seus destruidores pela exigência constante de renovação. Paralelamente ao mundo concreto constroem uma região do Absoluto, um reino teorético dos valores, de onde tiram os critérios para julgar o atual. Pois trata-se de um absoluto imanente, trata-se de um estranho mundo separado, abstrato e, ao mesmo tempo, mais real do que o mundo real, já que o norteia como seu modelo platônico baixado à terra.
Por volta de 1770, funda-se na Europa uma república singular. Escreve Augustin Cochin: “A República das Letras é um mundo onde se conversa, mas onde nada se faz a não ser conversar, onde o esforço de cada inteligência busca o assentimento de todos, i. é, a opinião, assim como, na vida real, busca a obra e o efeito”.
Eis aí — eu é que agora sublinho — eis aí o irrealismo. No mundo real, a inteligência procura adequar-se ao que é, quer dizer, atingir a verdade. Aqui, visa a acordar-se (ou afinar-se) com outros espíritos num mesmo esquema mental ao qual conformará o dado exterior. “On cause, prossegue Cochin. On est là pour parler, non pour faire”. Ou por outra, a obra aqui é verbal. As pessoas se reúnem para fazer a opinião.
E que significa a glorificação do “diálogo” e a reverência diante da “comunicação” senão que se pôr de acordo com alguém sobre alguma coisa é mais importante do que conhecer-lhe a natureza? Ora, como observa Marcel de Corte: “só pode haver concordância, harmonia, união real entre os corações, porque há valores e objetos independentes de nós (...) Sem esse fundamento objetivo para o esforço solidário dos membros de uma sociedade, sobre que se há de fundar a sua concordância? Só cabe uma resposta: sobre palavras (...) Enquanto numa sociedade viva o ser social faz a opinião real, na “dissociedade” democrática a opinião é que faz o ser social e constrói a sociedade. Aqui, não é pois o ser do vero, do bom, do belo participados que dá origem à opinião e que a faz existir mas, ao contrário, a opinião é que gera os valores de verdade, de bondade, de beleza. A OPINIÃO FAZ O SER.[6]
“Eu quisera que os filósofos constituíssem um corpo de iniciados. Então morreria contente”, escreve Voltaire a d’Alembert. E já em 1758: “Amotinai-vos e dominareis: eu vos falo como republicano, mas trata-se — é bem de ver — da república das letras; pobre república!” Retoma Cochin: Esses augúrios do patriarca se cumprem e até com demasia a partir de 1770: a república das letras está fundada e organizada, e intimida a Côrte. Tem seus legisladores: a Enciclopédia; seu parlamento: dois ou três salões; sua tribuna, a Academia Francesa, onde Duclos introduziu e, após 15 anos de luta perseverante, de política conseqüente, d’Alembert fez reinar a filosofia. Sobretudo, em todas as províncias, possui colônias e agencias; nas grandes cidades, as Academias; nas pequenas, as salas de leitura. De um extremo a outro dessa grande rede de sociedades, há um perpétuo vaivém de cartas, mensagens, votos, moções, um imenso concerto de palavras, de admirável harmonia: o exército dos filósofos disseminado pelo País, onde cada cidade tem sua guarnição de pensadores, seu “foco de luzes”, adestra-se em toda a parte no mesmo espírito, exercita os mesmos métodos, num idêntico trabalho verbal de discussões platônicas. De tempos em tempos, a um sinal de Paris, há um congraçamento geral para as grandes manobras, os “casos”, as “affaires”, como já então se dizia, i. é, incidentes judiciários ou políticos. Há sublevações contra o clero, contra a corte e mesmo contra tal ou qual imprudente particular, Palissot ou Pompignan, ou Linguet, que julgaram poder atacar essa curriola como qualquer outra, e, com estupor, vêem alçar-se de um golpe, desde Marseilles até Arras e de Rennes a Nancy, o enxame inteiro dos filósofos.
“Pois há perseguições — outra praxe de seita — (prossegue Cochin). Antes do Terror sangrento de 1793, houve, de 1765 a 1780, na república das letras, um terror seco, de que a Enciclopédia foi o comité de salut public e d’Alembert o Robespierre. Ele ceifa as reputações assim como o outro as cabeças. Sua guilhotina é a difamação, a infâmia, como então se dizia (...) A operação noter d’infamie conota um curso processual bem definido, que comporta inquérito, discussão, julgamento e, enfim, execução, quer dizer, condenação pública ao desprezo...”(Les Sociétés de Pensée et la Démocratie Moderne, Plon, Paris, 1921, ps. 4-6).
Esse trabalho das idéias abstratas acarreta finalmente, um imenso poder social. Poder essencialmente nivelador. Apenas, esse poder se exerce não diretamente, mas através de uma sociedade em miniatura, de um mundo separado e de um poder paralelo. “Os habitantes desse mundo, escreve Cochin, vêem-se situados num outro ponto de vista, numa vertente diversa, ante propósitos que não são os da vida real. Esse ponto de vista é o da opinião, “a nova soberana do mundo”, como diz Voltaire, que saúda o seu advento na cidade do pensamento (Ibid. p. 9). Toda essa agitação intelectual, esse trabalho incessante de elaboração verbal não conduz ao menor começo de obra no mundo real, à mais pequena iniciativa construtiva, como hoje diríamos. “O termo, não digo o objeto desse trabalho passivo, observa o historiador, é uma destruição. Consiste em suma em eliminar, em reduzir. O pensamento que a ele se submete perde a preocupação, depois, pouco a pouco, o sentimento, a noção do real (p. 15). “C’est l’opinion qui fait l’être”. As conseqüências sociais são terríveis. O concreto é substituído pelo ideal. A justiça declamatória corrói a real. A Liberdade com maiúscula extingue as liberdades. Assim como o amor abstrato da humanidade é uma forma niveladora de ressentimento, não há despotismo comparável ao da Razão entronizada. “O que me perturba, escreve Cochin, é reduzir essas apavorantes e diabólicas conseqüências ao fato insignificante que as explica, tão banal, tão miúdo: conversar. No entanto nisto reside o essencial” (p. 8).
*
Ligando de volta essas considerações ao seu ponto de partida, observarei que estamos diante da mais espantosa abdicação da inteligência. Conversar (hoje dissemos dialogar) é buscar na convivência compulsiva dos outros, às expensas quase sempre da realidade, uma unanimidade confortante. O indivíduo atomizado carece da aprovação do grupo para existir. O regime de opinião é o reino do conformismo, o predomínio que o contágio de massa vai adquirindo sobre as manifestações sempre individuais do gênio, do senso crítico e da capacidade criadora. E sendo a inteligência a faculdade do real, esse regime instaura, insensivelmente, o domínio incontestado do mito. Governar, de um lado, será construir as mitologias de massas, de outro, condicionar os espíritos para a aceitação desse irrealismo. Vejamos este último aspecto.
Com efeito, é em técnicas precisas de manipulação do pensamento e na imposição calculada de um mimetismo gregário que se fundamentam as práticas políticas do regime de opinião. O reino da opinião é o governo dos seus manipuladores, cujos processos só no mundo contemporâneo deram todos os seus frutos, atingindo, nas chamadas técnicas de animação de grupos, a sua maior perfeição e eficácia. Os grupos são os corpos fortuitos que na sociedade de massa substituíram as antigas comunidades naturais ou corpos intermediários, como se dizia, baseados em princípios naturais de convivência, como a profissão, a família, a paróquia, as “ordens” hierárquicas da sociedade, ou a comunidade local (cidade, município, comarca, etc). Exatamente porque não têm uma base natural, os grupos fortuitos, como as multidões das grandes cidades, carecem de uma animação extrínseca, de uma dinâmica incutida para existir. Reduzem o homem à condição abstrata de elementos social constitutivo. Daí serem o campo ideal para ação de minorias propulsoras das reformas igualitárias. As campanhas de opinião desencadeadas na imprensa e no seio das massas pelos pequenos grupos motores (como as sociedades para a promoção disto ou daquilo) preparam o terreno para a política e a legislação niveladoras que aos poucos arrancam o indivíduo às comunidades onde se enraizava naturalmente a sua vida e a sua atividade. Abolição dos “privilégios”, discriminações contra o clero e as instituições eclesiais, centralização da administração e do ensino, expulsão das Ordens e Congregações religiosas, separação da Igreja e do Estado; adoção do salário individual e do assistencialismo estatizado, proletarização das comunidades rurais, formação individualista nas escolas, lei do divórcio, monopólio estatal da educação, abolição das antigas divisões territoriais autônomas (substituídas por “departamentos” administrativos), etc. Eis em suma os processos usados para extrair o homem de seu meio formativo natural a fim de entrega-lo inerme ao mecanismo do Estado. Repito: aí temos, arroladas em rápido inventário, as metas e a substância da obra desagregadora do liberalismo inaugurada em 1789, continuada sob a Monarquia de Julho e a Terceira República e reativada hoje com as campanhas pela “liberdade contraceptiva”, a legalização do aborto, a abolição total da censura, o reconhecimento legal da homossexualidade, a legalização da eutanásia, a oficialização da Universidade contestatária etc., etc. Esse quadro ficaria incompleto se não mencionássemos a dissolução das antigas “ordens” sociais (clero, nobreza, tiers état) nas chamadas “classes” e a substituição das corporações profissionais pelos sindicatos. As classes (burguesia, proletariado) são formações sociais baseadas não numa função concreta ou numa realidade social que aproxima os homens, mas em semelhanças abstratas como “nível de vida”, gênero de atividade, estatuto funcional, etc. Seu arquétipo de primitivo manancial são os “proletários” de Marx (abusivamente identificados com as classes trabalhadoras); os “proletários”, nesse sentido, são os deserdados absolutos, os outsiders físicos — por isso mesmo supostamente imunes ao condicionamentos ideológicos do pensamento — assim como aintelligentsia, a classe intelectual, são os outsiders morais por vocação. Suas condições de existência não se realizam perfeitamente em nenhum segmento ou conjunto real de trabalhadores, já que os “proletários” como tais não passam de uma idéia limite, de uma abstração.[7]
*
Graças à unanimidade ostensivamente “sem mestres e sem dogmas” das sociedades ideológicas (cito mais uma vez Cochin), “o filosofismo é capaz de desencadear uma falsa opinião, mais ruidosa, mais unânime, mais universal do que a verdadeira. É pelo treinamento e a perfeição do trabalho conjunto da claque, que o sistema faz “passar” uma peça de teatro de baixa categoria. Tão bem exercitado é o pessoal das sociedades, que essa claque se torna até sincera; tão bem disseminada está pela platéia que a si mesma se ignora: cada um dos espectadores toma-a pelo público. Ela imita a amplidão e a unidade de um grande movimento de opinião, sem perder a coesão e a conduta de uma cabala (...). não há argumento nem sedução que atue sobre a opinião como esse fantasma dela mesma. Cada indivíduo se submete ao que julga aprovado por todos. A opinião acompanha a sua contrafação, e da ilusão nasce a realidade” (Ibid. ps. 21-2).
Se hoje estamos em situação de avaliar perfeitamente a penetração e a justeza das observações acima. Comparemo-las, por exemplo, com certas conclusões de Etienne Malnoux a respeito das assembléias e reuniões da Sorbonne sublevada em maio de 1968: “À primeira vista, escreve Malnoux, essas assembléias (...) davam uma impressão de anarquia, de incoerência, de espontaneidade; todos os estudantes tinham sido convidados; não havida pois nenhuma coerência de grupo, nenhuma unidade”.
“Mas a tribuna era ocupada e o microfone guardado por um grupo, uma equipe que preparara a reunião, fixara uma ordem do dia, conforme os métodos clássicos: essa equipe compunha-se de um presidente de mesa, de um ou dois relatores que expunham os resultados dos trabalhos das “comissões” e que apresentavam as moções. Esse grupo animador dispunha do auxílio de um ou mais grupos de apoio disseminados na sala, de um serviço de ordem, e também de alguns “figurantes” cujo papel seria intervir no debate para sustentar o grupo dirigente, no caso de se manifestar alguma oposição, e impedi-la de se exprimir, pedindo constantemente a palavra. Essa organização revolucionária era articulada com muita habilidade. Dava ao neófito a impressão de espontaneidade, de uma consciência coletiva a exprimir o sentimento e a vontade livremente manifestada do grupo ali reunido. Na realidade, era tudo combinado, tudo fruto das manigâncias de uma equipe animadora perfeitamente coerente bem treinada, emanada de agrupamentos que se adestravam cuidadosamente nas técnicas de animação de grupos (...)”.
“Em suma, numa vasta assembléia inorgânica e heterogênea, composta de indivíduos isolados que não se conhecem, e convocados para apreciar uma ordem do dia muito vaga, que não tiveram a ocasião de estudar, e à qual portanto dificilmente poderiam trazer a contribuição de soluções adequadas, um grupo coerente, organizado, que examinou as questões e que traz respostas preparadas não encontra muita dificuldade para impor-se e fazer que prevaleça seu ponto de vista” (“Techniques d’Animation Culturelle et Conditionnement Révolutionaire” ap. Culture et Révolution (Actes du Congrès de Lausanne V) ps. 239-242).
Uma sociedade de massa, precisamente, é um conjunto de “indivíduos isolados, que não se conhecem”. Nas assembléias inorgânicas que constituem, um grupo coeso de indivíduos que, estes sim, se conhecem e que ocultam essa circunstância, indivíduos versados em certas táticas de dissimulação, de liderança invisível, não tarda a impor a sua vontade. O regime soi-disant popular, revolucionário, ou de democracia direta, regime de poder impessoal, na realidade é um regime de poder pessoal e secreto.
Dois outros traços devem ser assinalados, ainda que resumidamente, para terminar este perfil da República do pensamento. Destes, o primeiro que mencionarei, o terrorismo, é bem conhecido. Um clima permanente de terror é necessário para manter o indivíduo numa situação de parcela isolada e perdida num todo amorfo que o engloba. O terror impede que o indivíduo se subtraia ao poder paralelo, encontre a sua expressão própria e refaça as conexões vitais com o ambiente através dos corpos intermediários: a família, as comunidades territoriais de base, a corporação, a igreja, etc. Pois na sociedade de massa nada deve se interpor entre o indivíduo puramente inerte, passivo, e o Estado (como instrumento do Poder paralelo), fonte de toda iniciativa vital e criadora. O terrorismo é o grande liquidificador cultural. O outro traço, regra geral menos debatido, resulta de certo modo do primeiro. É a degradação humana e cultural. Pois a cultura é sobretudo o fruto da atividade espontânea do indivíduo sob a proteção vital de grupos intermediários livremente constituídos. Subordinada ao primado da eficiência, a Tecnocracia estanca o processo natural de formação das elites. E aqui voltamos às nossas considerações sobre a “decadência do Ocidente”.
Esse clima de aviltamento do homem impressionou vivamente todos os observadores imparciais dos últimos eventos revolucionários em França. “A Revolução de maio de 1968 da intelligentsia subdesenvolvida, do proletariado intelectual fracassado — escreve Malnoux — constituiu uma extraordinária explosão de imbecilidade. Por uma ironia diabólica, foi obra do que se supunha a nossa elite intelectual” (Op. cit. P. 244).
Quem hoje pode avaliar o que, em matéria de cultura, foi irremediavelmente sacrificado ao terror Staliniano (pensemos na ceifa de talentos resultante dos sucessivos expurgos, no pompierismo glorificado e oficializado da arte soviética, etc.) ou o que na China pereceu sob a fúria desencadeada na Revolução Cultural.
Fenômeno de decadência, forma aguda de abdicação da inteligência, o progressismo social-revolucionário ameaça hoje o conjunto da cultura no Ocidente. Os remédios que porventura sejam eficazes contra ele dependem de uma condição prévia: uma tomada de consciência.
Alfredo Lage, A Recusa do Ser — A Falência do Pensamento Liberal, , Parte I, Cap. II, Agir 1971.
Notas:
[1] Não reclamava Bérgson um “supplément d’âme” para a sociedade industrial? A “cara negativa” do progresso técnico, como diz Hermann J. Meyer, compreende a padronização do pensamento, sua redução ao plano do pensamento calculador, a dissolução das comunidades naturais e da própria família, o cerceamento da liberdade individual por obra da racionalização, etc. Sem contar que a destruição do ambiente natural, o congestionamento dos centros urbanos e o excesso de “mudanças não significativas”, convertem às vezes o progresso técnico num logro e num pesadelo. E há uma grande aspiração da nossa barbárie interna, negativa e tecnológica, à barbárie externa. O desmoronamento interior, como um vácuo espiritual, é um chamamento de elementos estranhos à tradição do Ocidente.
[2] Não há contradição nenhuma entre essas afirmações. No primeiro caso, trata-se da criação de formas civilizacionais. No segundo, de estruturas técnicas da ciência, que poderiam passar, talvez, praticamente intactas, de uma civilização para outra.
[3] Ninguém o descreveu com mais clareza do que Marcel de Corte, cujo estudo “L´Economie à l’envers” (ap. “Itinéraires” n° 141) é a mais completa e profunda análise do ponto de vista filosófico da atual conjuntura sócio-econômica.
[4] “O termo do processo econômico — eis o ponto capital salientado por de Corte — é não o consumo mas o consumidor, isto é, o indivíduo de carne e osso. Ele é que unicamente é capaz de consumir os bens materiais; é o ser humano dotado de vontade, de liberdade e de responsabilidade; a França não o pode. O consumidor não é apenas a condição da produção, é aquilo, para que a produção existe, seu único fim possível. O papel dele não é absorver o fluxo da produção, como um vaso cujo volume seria indefinidamente dilatável. O consumidor não consome jamais para consumir. Ele consome para subsistir no seu ser, para viver. Utiliza os bens materiais produzidos na sua intenção em vista da realização do seu ser e do único fim cabível para o ser humano: a felicidade”.
A “sociedade de consumo” é aquela em que uma abstração “o consumo substitui o consumidor como fim real do processo produtivo. “A França consumiu tantos hectolitros de vinho, comprou tantos automóveis esta ano, etc. Invertendo a relação do produtor ao consumidor — prossegue de Corte — essa sociedade será obrigada a adaptar o consumo global à sua produção global por todos os meios” (Como? Pela eliminação da oferta diversificada, pelo nivelamento da qualidade; pelas baixas de preço e outros artifícios de venda; last but not least, pela propaganda como fator de condicionamento forçado, bourrage de crâne, etc. De sorte que os dados globais acima mencionados, por paradoxal que isto nos pareça, representam não a expressão numérica de um fator real determinante, mas o resultado de um cálculo abstrato que computou um acréscimo de tantos por cento sobre o consumo do ano anterior e que, por sua vez, servirá de base abstrata para avaliar o consumo do ano vindouro). Desse modo, “o consumidor exerce apenas a função inferior e instrumental de intermediário, ao qual o produtor é forçado a se dirigir para que a máquina continue a girar. O fim da economia é pois o produtor”. Assim caracteriza de Corte a “economie à l’envers”, o principal fator de desumanizaçao social — sob a sociedade industrial. Como observa Galbraith em O Novo Estudo Industrial, “a necessidade de controlar o comportamento do consumidor é uma exigência da planificação”. De onde a injunção de criar novas necessidades de consumo mediante pressões psicológicas, como a emulação (Keep up with the Jones), a sensação de progresso, de saúde, de “bem-estar ou eficácia peristáltica”, etc. Destarte, nota o conhecido economista, a sociedade de consumo empurra o indivíduo a trabalhar cada vez mais (horas extras, pluriemprego) para adquirir novos bens que a propaganda comercial inculca como imprescindíveis à sua dignidade.
[5] Empresa por ações. Sociedade Anônima.
[6] L’Intelligence em Péril de Mort. Ed. du Club de la Culture Française, Paris, 1969, ps. 234-5.
[7] Cf. Gaston Fessard: De l’Actualité Historique. Tomo II, ps. 150-9: “A diferença das tarefas, das condições de trabalho, de nível de vida, de origem social, para não falar da que nasce da hierarquia das formações de mão-de-obra, basta para criar divisões que tornam vã e abstrata a unidade operária”. Acrescentemos que o uso dessa abstração é por vezes legítimo. Posso falar em “proletariado” para designar as classes laboriosas na medida em que suas condições de vida são de inferioridade humana e cívica. O que não é legítimo contudo é usar essa abstração para substituir ou deturpar a realidade.
No quarto domingo depois da Epifania, a Igreja lê, na Missa, a narração da Tempestade no mar, que é contada pelos três Sinópticos, segundo o texto mais breve de todos, que é o de São Mateus: tem apenas quatro versículos, mas a narração é feita com energia tão formidável, que parece um gravado em cobre ou madeira, com quatro traços principais. São Mateus é o mais saboroso e enérgico dos três Sinópticos. A Bíblia de Bover-Cantera diz: "Este Evangelho pertence à literatura escrita; o de Marcos, à oral". É um erro grave que denota muito atraso em exegese. Com toda certeza, os quatro Evangelhos pertencem ao gênero que hoje lingüistas, etnólogos e psicólogos chamam estilo oral; e foram recitados de memória antes de serem fixados em pergaminho — ao menos os três primeiros — como as rapsódias de Homero, o Vedanta, o Corão, o Poema del Myo Cid e, em realidade, quase todos os monumentos religiosos ou épicos da Antiguidade. Esta noção, que hoje em dia se possui cientificamente, resolve de um golpe a falsa Questão Sinóptica, que preocupou a eruditos durante dois séculos; e que consiste em terem os Evangelhos, por um lado, algumas diferenças entre si e, por outro, uma concordância maciça; como pode se ver neste relato que os três Sinópticos trazem. Isto deu causa a uma confusão enorme na cabeça dos sábios alemães, alguns dois quais chegaram a negar a autenticidade destes três documentos religiosos, até que Marcel Jousse descobriu as admiráveis leis do estilo oral.
Coisa incrível: há uma tempestade tal no Mar de Tiberíades, que as ondas invadem a barca dos pescadores; e Jesus Cristo dorme. Fingiria dormir, como dizem alguns, para "provar seus discípulos"? Não, dorme, com a cabeça apoiada em um banco. Essa maneira de experimentar os outros com coisas fingidas é uma palhaçada inventada por algum mal mestre de noviços: a única coisa que prova verdadeiramente é a vida, a verdade, a realidade; não as ficções. Tampouco é verdade que Deus tenha proibido a Eva o Fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal para prová-la; proibiu-o porque, simplesmente, este fruto não lhe convinha, nem a ela nem a ninguém. Deus não faz tolices, mas há gente inclinada a atribuir-Lhe as tolices próprias. Deus fez o homem a sua imagem e semelhança; mas o homem retribuiu; porque, quantas vezes o homem não refez a Deus à sua imagem e semelhança!
Jesus Cristo é notável: dorme de dia, no meio de uma tormenta; e de noite deixa a cama e sobe até uma colina, para rezar até a madrugada. Não o despertam o bramir do vento, o golpe da água, os gritos dos marinheiros mas, à noite, o desperta um gemido ou uma mulher com hemorragia que lhe toca o vestido. Dona Madalena, minha avó, dizia: "Jesus Cristo é bom, não digo nada, mas, quem O pode entender?" Só uma criança ou uma animal podem dormir nestas condições em que os três Evangelistas dizem que Cristo realmente "dormia"; e também um homem que esteja tão cansado como um animal e que tenha uma natureza tão sã como a de um menino. Sabemos que muitos homens de natureza privilegiadamente robusta podiam dormir quando quisessem; como Napoleão I, por exemplo, do qual se conta que podia fazer isto: dormir quando lhe parecia bem, sobretudo nos sermões; e foi preciso despertá-lo na manhã da batalha de Austerlitz. Ao contrário, Napoleão III, seu sobrinho, não pregou os olhos na noite do golpe de Estado de 1851 e se levantou três vezes para ver se tinha dormido a sentinela. Isso porque Napoleão I foi um herói; mas, Napoleão III, uma imitação de herói: um palhaço. Bom, o fato é que Cristo dormia, e seus discípulos o despertaram dizendo algo que varia nos três Evangelistas; mas, na realidade, devem ter gritado não três, mas umas doze coisas diferentes pelo menos; que se resumem nesta: "vamos morrer!" Não vos importais se "vamos morrer"? que traz São Lucas como resumo de toda a gritaria. O que disse São Mateus, que estava ali, foi isto: "Senhor, ajuda-nos, que perecemos". Cada um disse o melhor que soube, e isto é tudo. O que lhes disse Cristo — nisto concordam os três relatos — foi, "covardes". A Vulgata latina traduz "Modicae fidei", ou seja, "homens de pouca fé"; mas Cristo, em grego ou aramaico, lhes disse: "covardes". Um homem que grita quando entra água em sua barca em uma tempestade do Mar da Galiléia, que são breves mas violentas; supondo até que tenha gritado um pouco demais, é covarde? Para mim, não é covarde. Mas para Jesus Cristo, é covarde. E Jesus Cristo não gosta de covardes. A Igreja ("a barca de Pedro", como é chamada) teve muitas tempestades e há de ter ainda outra que está profetizada, na qual as ondas entrarão a bordo e parecerá realmente que os poucos que estão dentro, morrem. Cristo parece ter conservado seu costume juvenil de dormir nestes casos; e também sua idiossincrasia de não amar a covardia. A covardia é pecado? Sim; e, em alguns casos, muito grave. Os Apóstolos tinham uma maneira de pregar que, se me deixassem, eu não usaria outra: trata-se de fazer uma lista de pecados grandes, recitá-la e depois dizer: "Nenhum destes entrará no Reino dos Céus. Basta" Assim, São Paulo disse: "Não vos enganeis, irmãos; que nem os idólatras, nem os ladrões, nem os adúlteros, nem os avarentos, nem os efeminados nem... e assim continua... entrarão no Reino dos Céus". Hoje em diz deveria pregar-se assim, de modo simples... é nossa opinião. Pois bem, São João, no Apokalypsis, que é uma profecia sobre os últimos tempos, acrescenta à lista de pecados outros dois que não estão em São Paulo: "os mentirosos e os covardes". O qual parece indicar que, nos últimos tempos, haverá um grande esforço de mentira e de covardia. Que Deus nos encontre confessados. A covardia em um cristão é um pecado sério, porque sinal de pouca fé em Cristo ("covardes e homens de pouca fé") que provou ser um homem "a quem o mar e os ventos obedecem" — como disse o Evangelho de hoje — ao lado de quem, portanto, ter medo não é coisa bonita; nem mesmo lícita. Júlio César, em uma ocasião parecida, não permitiu a seus companheiros que se assustassem. "Que temeis?" Levais César a sua boa estrela", lhes disse. Por mais forte razão Cristo, que é criador das estrelas. O que governa o mundo são as idéias e as mulheres, disse alguém. As idéias, não duvido. As mulheres, teria de se provar. Que sucederia se, na Argentina, surgisse uma S. Teresa de Jesus, que persuadisse a todas as mulheres deste propósito: "Não me casarei com nenhum homem que seja covarde!" Creio que cairia a tirania atual, e que não subiria ao poder mais nenhum tirano.
(extr. de "El Evangelio de Jesucristo ", tradução: PERMANÊNCIA)
A RELIGIÃO DO PROGRESSO
Alfredo Lage
I
O PENSAMENTO UTÓPICO
O mundo moderno apresenta-nos, sob muitos aspectos, a imagem de um progresso humano paralisado por falsas concepções do progresso. Não só, avaliado em termos propriamente humanos, esse progresso muitas vezes é apenas aparente (pois resulta de uma opção que preferiu um valor material a algum valor essencial do homem), mas a idéia de que o progresso é alcançado graças à negação dos valores tradicionais, e por oposição a uma conjuntura anterior, leva a confundir o movimento ascensional de um grupo humano ou da civilização em geral com as modificações mais superficiais e exteriores da vida, como o comprimento das saias ou a largura das lapelas. (Que essas, sim, se medem por uma fácil oposição ao passado). Além disso, o relativismo filosófico, isto é, a ausência de um seguro critério para escolher entre as possibilidades que se apresentam, abrindo tantos problemas quantos soluciona, geralmente torna esse “progresso” um “marcar passo” (um “piétner sur place”, como dizem os franceses).
Talvez não se conceda bastante atenção a um caso singular que oferece a ciência dos estudos pré-históricos. Toda a ciência se funda, com efeito, no conjunto admirável de suas conquistas, por um método de acumulação. Todas as invenções mecânicas e a maior parte dos descobrimentos da física derivam da observação completada pela experiência. Ora, bem; não se fabricam homens primitivos. Esta é a grande dificuldade para o conhecimento de nossas origens. Assim, chegareis a aperfeiçoar, peça por peça, o aeroplano de vossa invenção, assistindo no jardim às evoluções de um modelo reduzido feito de bambus e de latas de sardinhas; porém, jamais, nesse mesmo jardim, assistireis a evolução do missing-link. Se cometeis um erro de cálculo, o aeroplano fará, por si mesmo, a prova em uma caída precipitada. Porém, se incidis num erro de suposição, a respeito dos costumes de um dos vossos ascendentes, na selva, por exemplo, não será, de certo, ele quem o demonstrará, deixando-se cair, da árvore em que estiver trepado, ao solo.
É impossível criar o homem de Weanderthal em uma gaiola, como galo, com o objetivo de descobrir se ele pratica a antropofagia e o rapto nupcial. É absurda a idéia de manter uma manada de homens de Cromagnon a fim de estudar as manifestações do instinto gregário. Se um pássaro se comporta de um modo insólito, é bem possível que adivinhemos os costumes de outros pássaros; mas, de um crânio ou de um fragmento de crânio a imaginação mais científica não pode deduzir todo um vale de Josafat, e, falha de experiência, ficaria reduzida a contar com o único testemunho evidente, se o próprio desse passado, quase inteiramente abolido, não fora o não ter deixado dele nenhum, sequer... Dessas diversas dificuldades resulta que se as outras ciências progridem, segundo uma espécie de curva incessantemente corrigida por incorporações novas, os estudos pré-históricos tomam a tangente com uma velocidade geometricamente acelerada. Não importa. O costume de tirar conclusões é um reflexo tão profundo do espírito científico que se não poderá impedir de colocar em um único e mesmo plano de realidade a teoria construída sobre um resto de ossada e o avião Paris-Londres, fabricado com os despojos de vinte modelos destroçados.
A vantagem do aviador está em fazer tantas saídas falsas quantas lhe venham à vontade, enquanto que a desgraça do professor de pré-história reside em não ter ele direito a mais de uma saída, verdadeira ou falsa. Tudo isto explica, mas, não justifica, o estado de precipitação ousada e, ao mesmo tempo, temerosa que se apodera de certos teóricos, induzindo-os a hipóteses arriscadas, a ponto de caírem na região da pura fantasia. Fala-se muito, geralmente, da paciência científica. Da impaciência é que se devia falar. O mais empírico dos antropólogos, está nas mesmíssimas condições que o mais prudente dos arqueólogos: — é-lhe preciso ater-se a um farrapo do passado, sem a esperança de, jamais, vê-lo aumentar entre as suas mãos. Manuseia a porção dos seus descobrimentos com a mesma energia feroz com que o homem das cavernas manuseava o seu pedaço de sílex, e por idênticas razões. É o seu único patrimônio, o seu único utensílio e a sua arma única; arma que manejará com uma espécie de fanatismo desesperado, ao qual não nos acostumaram, ainda, os sábios do laboratório. Estou seguro de que mais de um professor superaria a mais de um cão, na arte de arreganhar os dentes, em defesa do seu osso.
Contemplemos a sua obra. Ante a dificuldade de criar um macaco e de vê-lo transformar-se em ser humano, nosso homem não se contentará em dizer, o que nós o faríamos de bom grado: — que uma evolução desse gênero se apresenta, em suma, como bastante verossímil. Não, ele exibe a sua pequena esquírola ou a sua minúscula coleção de ossos, e deduz, para maravilhar as multidões, toda uma série de revelações surpreendentes. Assim, por exemplo, em Java se encontraram os restos de um crânio que devia ser mais estreito que o nosso, pelo que se pôde deduzir. Um pouco mais distante, um fêmur, e, dispersos pelas cercanias, alguns dentes que não eram humanos. Se o todo proviesse de um mesmo indivíduo, o que está, ainda, por averiguar, a idéia que poderíamos fazer de tal indivíduo, não seria, talvez, menos incerta. Entretanto, tudo isto bastou à ciência popular para fabricar um personagem completo, mais que completo, terminado dos pés à cabeça, sem a carência do mínimo detalhe, e que recebeu, para logo, um nome próprio, como toda a personagem histórica que se respeite.
O público falou, assim de Pitecântropo como de Richelieu, de Fox ou de Napoleão. As enciclopédias ilustradas publicaram a sua efígie entre Pesistrate e William Pitt e, nós temos dele um excelente desenho, de um tão minucioso realismo, que se não pode duvidar de que lhe foram contados, um por um, até os cabelos. Quem suspeitaria ao ver aqueles rasgos fisionômicos, tão poderosamente acentuados, e aquele olhar meditabundo, que são o retrato de um fêmur ou de um pedaço de abóbada craniana e de um punhado de dentes? Seu caráter e seus costumes são, igualmente, de notoriedade pública. Eu li, ainda não faz muito, uma novela, cujo autor empenha toda a sua arte em demonstrar como os modernos colonos da ilha de Java se vêm irresistivelmente compelidos à infringirem as leis da conveniência pelo influxo pessoal desse pobre velho Pitecantropo. Que os habitantes contemporâneos daquela ilha observem, amiúde, uma conduta das mais inconvenientes, eu não o duvido. Mas, faz-me pena aceitar que sejam, fatalmente estimulados em seus excessos pelo descobrimento de uns velhos ossos de autenticidade mais que duvidosa. Ossos demasiado raros e bastante fragmentados para preencher o vácuo imenso que separa o homem, tanto em razão como de fato, do seu pretenso ascendente. Uma vez admitido este parentesco — o meu objetivo não é discuti-lo — não seria, de outra parte, senão mais surpreendente, ainda, a ausência quase completa de vestígios que o testemunhem.
Foi, exatamente, o que Darwin admitiu, de boa fé, criando a expressão — “missing link” — “elo perdido”, sem prever que o dogmatismo dos darwinistas acabaria, finalmente, com o agnosticismo darwiniano, dando a esse termo, completamente negativo, o sentido de uma expressão positiva. Essa gente fala, seriamente, em descobrir a habitação e os costumes do “missing-link”, depois do que não lhes faltará mais nada que almoçar com um guião, passear pelo bosque em companhia de uma solução de continuidade e passar o melhor possível com a incógnita de uma equação.
Isso é, propriamente, perder o tempo, tanto como conjeturar, sem regra, sobre o homem, antes que ele fora tal. Mas, ainda deduzida a matéria de seu corpo da dos brutos, esta explicação deixaria intacto o mistério de sua alma, tal como nos revela a história. Desgraçadamente, os autores em questão continuam raciocinando da mesma maneira, quando deparam com os documentos autenticamente humanos. Falando em um sentido estrito, quero fazer ressaltar que ignoramos tudo o que se refere ao homem pré-histórico, pela simples razão de que é pré-histórico, por isso que não é logicamente possível existir uma história da pré-história, expressão esta tão falha de razão, que só os racionalistas podiam inventá-la. Um predicador que qualificasse o dilúvio de antidiluviano surpreenderia, talvez, alguns sorrisos furtivos no rosto de seus ouvintes.
Um bispo faria bem não classificando Adão entre os pré-adanistas. Mas, que um historiador leigo nos fale das épocas pré-históricas da História não nos surpreende na medida que devera.
O que se quer dizer, sem dúvida, o que se pode e se deve dizer é que a Humanidade é mais velha do que a História, e que a civilização é anterior às crônicas escritas. O homem, de fato, cultivou várias artes antes da escritura, do que se não deve deduzir que, até então, fosse ele um consumado bruto.
O caçador que traçava a imagem de um rengífero não sabia fazer a descrição escrita da sua caça, por forma que esta não pertence à História. Mas, o seu desenho é inteligente; sua descrição também podia sê-lo. Em uma palavra: a expressão — tempos pré-históricos — não designa, necessariamente, tempos bárbaros e incultos, senão tempos, simplesmente, durante os quais se não escreveu nada que possamos decifrar. É bem possível que o grande passado mudo encerre em seu antro, inacessível à nossa sondagem, formas sociais tão civilizadas como rudes ou ferozes, ou melhores, talvez, do que o vão público pensa hoje em dia. Mas, quanta prudência e tato se requer para estas conjecturas! Qualidades, aliás, que não embaraçam aos senhores evolucionistas e que estão muito pouco de acordo com o gênio íntimo de uma época, devorada pela curiosidade, que nada teme tanto como às angústias do agnosticismo!
Na época darwiniana fez-se possível o fenômeno da — “palavra antes da coisa!” — Tanta ignorância, digamo-lo claramente, se cobre com o manto da mais ultrajante impudicícia. Fazem-se em um tom tão categórico e soberbo certas afirmações gratuitas, que é preciso, para examiná-las, uma virtude crítica que ultrapasse o comum. Escolhamos, entre outros, um estudo recente sobre um povo da idade de pedra. Começa, destemerosamente, deste modo: “Viviam em completa nudez!” Talvez não ocorresse a um leitor, entre cem, pensar donde e como esse autor pode comprovar o estado do guarda-roupa de gene da qual se não encontrou outro vestígio que um montão de ossos ou de calhaus. Será que se esperava encontrar um chapéu de sílex entre os machados feitos desse material ou se pensava descobrir umas ceroulas de pedra e umas calças literalmente paleolíticas? Pessoas de temperamento mais ponderado, ao contrário, aceitariam que um povo se poderia vestir sumariamente ou, mesmo, com suntuosidade, sem que ficassem vestígios disso. Se poderiam ter trançado ervas e juncos num trabalho esquisito, sem eternizar os tecidos. É fácil imaginar a existência de certas sociedades especializadas em artes frágeis, tais como as do tecido e do bordado, em detrimento de outras mais duradouras como a da escultura e a da arquitetura. Existem numerosos exemplos dessas sociedades especializadas. Nossos descendentes distantes, quando registrem as ruínas de nossas fábricas, deduzirão, quiçá, que não conhecíamos mais do que o ferro, e anunciarão, como um interessante descobrimento, que o diretor e seus engenheiros, andavam completamente nus, a não ser trouxessem trajes e chapéus feitos de ferro. Eu não afirmo que os primitivos se vestissem com roupas feitas de ervas. Limito-me a comprovar que não sabemos nada a respeito da sua indumentária e que suas pinturas testemunham que eles possuíam a noção da ornamentação bastante desenvolvida. Outro escritor notável, comentando os desenhos atribuídos aos povos neolíticos da época da rena, e conjeturando que nenhuma dessas imagens parecia ter uma significação religiosa, não vacila em chegar à conclusão de que aqueles povos não tinham religião alguma. Belo sistema! Deste modo nos podemos fazer intérprete dos mais íntimos e secretos movimentos da alma primitiva, por isso que um não se sabe quem, ensaiando, não se sabe porque, esgravatar na rocha, achou mais cômodo desenhar uma rena que uma religião! Desenhou uma rena porque esta era o seu emblema religioso; desenhou porque não o era; desenhou porque não importa o quê, exceto o seu emblema; desenhou seu verdadeiro emblema religioso em outra parte; ou este emblema desenhado foi deliberadamente borrado. Há dez mil explicações de igual valor. Mas, eu, em todo o caso, acho peregrina a dedução de que nosso homem não possuísse um emblema religioso, ou que, ainda no caso de o não possuir, não acreditasse em nada.
E vede que lógica! Descobriram-se, nas mesmas grutas, outras figuras de animais não desenhadas, e sim esculpidas, algumas das quais têm buracos ou talhos que se supõem sejam sinais de flechas. As figuras, assim danificadas, foram, imediatamente, catalogadas como vestígios excludentes de um rito mágico que matava as bestas em efígie, enquanto que as figuras indenes serviriam a outros ritos não menos de magia que tinham como objeto a fecundação de animais. Assim, as imagens danificadas testemunham uma superstição e as indenes, outra. Decididamente estes cavalheiros cultivam uma comicidade inconsciente, que é, também, a melhor. Tudo isto é trabalhar demasiado depressa. Se terá pensado em que uma tribo de caçadores encerrados pelo inverno numa caverna pode entreter o tempo atirando ao alvo? Mas, enfim, que seja superstição: — que se faz, então, da teoria segundo a qual a religião nada tem a ver com os desenhos? Em uma palavra: todas estas hipóteses são flechas lançadas à lua. É muito melhor, ainda, como jogo de sociedade, atirar contra um bisonte de argila.
Se os nossos teóricos se dessem ao trabalho de olhar em redor, comprovariam que o homem moderno conservou o gosto de escrever na pedra. A passagem de uma caravana de turistas por lugares históricos é seguida, fatalmente, por uma floração de legendas e de hieróglifos, aos quais os sábios recusam atribuir qualquer antiguidade. Mas, se os professores do ano 3.000 não se tiverem curado da magnífica seguridade de seus antecessores, entre os quais não me conto, — que admiráveis deduções tirarão das inscrições insertas no ano da graça de 1925! As iniciais entrelaçadas de Júlia e Marianinho, na gruta de Butts-Chaumont, lhes revelariam, indiscutivelmente: — 1°, por serem grosseiramente talhados com um canivete mal afiado, que no século XX não se dispunha de nenhum instrumento de precisão e, ignorava-se a arte da escultura; 2°, que sendo formadas por maiúsculas, nossa civilização não tinha idéia da caixa baixa da tipografia, nem da escrita cursiva; 3°, que estando agrupadas em consoantes impronunciáveis, nossa linguagem tinha fundas afinidades com o “galés”, ou mais provavelmente, com os dialetos proto-semitas, que proscrevem o uso das vogais; 4°, que estando manifestamente desprovidas de sugestões religiosas, nossa época não tinha, por isso, nenhuma religião. No que, aliás, não se equivocariam, senão em parte, por isso, se tivéssemos religião, teríamos, certamente, mais senso comum. Afirma-se, segundo os mesmos métodos, que o sentimento religioso se desenvolveu pouco a pouco, em um encadeamento de causas fortuitas que não têm mais do que um valor de coincidência. Estas causas, se nos assegura, se reduzem a três principais: a) ao terror ao chefe da tribo, a que Mr. G. Wells chama, com uma deplorável familiaridade, “o velho”; b) os fenômenos do sonho, e c) a associação de idéias que reúne a colheita, as sementes e a germinação, de uma parte, e, de outra, as noções de sacrifício e de ressurreição. Confesso não conceder grande credulidade a uma opinião que faz derivar um sentimento tão vivo de três fontes tão díspares. Imaginemos que Mr. Wells, em uma das suas encantadoras antecipações, quer fazer-nos assistir ao advento de uma paixão nova e misteriosa que embriague o homem, — como o primeiro amor, pela qual verteria o seu sangue como por uma pátria. Ficaríamos bastante intrigados se o novelista nos explicasse que essa paixão singular era resultante de três influências distintas, a saber: o gosto pelos cigarros turcos, aumento do imposto sobre a renda e os cento e vinte à hora.
A relação se nos escapa; não a compreendemos. Porém, não há outra entre um pesadelo, uma seara e um velho cacique armado de lança, a menos que pré-exista um sentimento que os associe. Este sentimento não pode ser senão de ordem religiosa e eu me permito observar que se é ele a causa da associação de idéias assinaladas, então, não pode ser, ao mesmo tempo, o efeito. Sentimento, graças ao qual, agora como antes, é natural ver os campos, os reis e os sonhos sob uma luz mística.
É um excesso de malícia dar ao passado um aspecto estranho e inumano, fingindo não se entender o que se entende muito bem. Se poderia dizer, igualmente, que os homens pré-históricos tinham o costume repugnante de abrir a boca desmesuradamente em intervalos regulares e engolir substâncias estranhas, ou que os terríveis trogloditas da idade de pedra imprimiam, alternativamente, a cada uma das pernas, um movimento de elevação centrífuga, — como se ninguém ouvira, ainda, falar em comer ou em caminhar.
Não se faria, assim, mais do que um mal em parte, se se pretendesse, desse modo, solicitar nossa fibra mística e tornar-nos sensíveis ao milagre das coisas familiares. Trata-se, ao contrário, de fazê-las ininteligíveis. Mas, quem não sentirá o mistério do sonho? Quem não pressentirá na morte e na ressurreição da matéria vegetal um dos segredos do universo? Quem não apreenderá esse caráter sagrado da autoridade em que se encarna a alma de um povo?
O antropólogo que de boa fé achasse estas idéias inverossímeis teria de confessar que tinha menos espírito e menos coração que o homem de Cromagnon. Eu creio indubitável que só um instinto religioso, já manifesto, poderia reunir em uma mesma veneração coisas tão diversas. Querer que a religião nasça do temor a um chefe ou de sacrificar à colheita, é pôr um veículo moderníssimo diante de uma parelha de cavalos não domados. É pretender que a idéia de pintar provenha da contemplação de imagens em uma caverna e que ninguém pensasse escrever em verso sem o costume de compor uma ode oficial para festejar a chegada da primavera, ou, sem o hábito, adquirido por certo jovem, de ouvir primeiramente o canto da calhandra para depois fixar no papel a impressão recebida. É bem verdade que freqüentemente algum jovem, em chegando o mês de maio, se descobre uma alma de poeta, e, então, aqui em baixo, nada é capaz de impedi-lo que celebre à calhandra ou ao rouxinol. Isto, entretanto, não significa que o senso poético venha da prosódia. Tão pouco que a religião provenha dos ritos religiosos.
Precisa-se uma certa dose de espírito para sentir o mistério do sonho e da morte, o valor poético da primavera e o canto dos pássaros. A vaca, nos prados, não parece tirar nenhum partido lírico das facilidades insignes que lhe são oferecidas para ouvir o rouxinol e nada permite pressagiar que os carneiros vivos se decidam a render aos carneiros mortos a homenagem de piedosas cerimônias. É verdade que os primeiros raios da primavera sugerem aos quadrúpedes jovens fantasias galantes, mas todas as primaveras do mundo têm sido, até o presente, impotentes para lhes sugerirem fantasias literárias. Igualmente, se o cão, segundo todas as aparências, possui a faculdade de sonhar, há muito que esperamos que faça de seus sonhos a base de um sistema refinado de cerimônias litúrgicas; tanto tempo esperamos e muito nos surpreenderia vê-lo utilizar seus sonhos em um sentido eclesiástico e interpretá-lo segundo as doutrinas da psicanálise. Qualquer que seja a razão é indubitável que certas experiências e certas emoções não franqueiam mais que no homem a fronteira da expressão criadora.
Jamais se viu isto em outra criatura e, sem dúvida, nunca será visto. Não é impossível, num sentido de auto-contradição, que víssemos os bois se absterem do pasto nas sextas-feiras e, como na legenda, caírem de joelhos ao ouvir o sino da Natividade ou, então, expressarem suas esperanças de felicidade celeste por meio de uma dança simbólica em honra da famosa vaca da canção que saltou por cima da lua. A força de sonhar o cão chegaria, talvez, a erigir um templo a Cérebro, concebido como uma espécie de trindade canina. Talvez seus sonhos comecem já a traduzir-se em visões suscetíveis de expressão verbal, em revelações concernentes à constelação do Grande Cão, pátria espiritual dos cães abandonados... Nada de tudo isto constitui uma contradição de princípio absoluto; mas o senso das probabilidades ou o bom senso nos adverte de que os animais não evoluem nesta direção, ainda que a morte, a primavera e até o sonho pertençam tanto à sua experiência como à nossa. Do que se depreende que só o nosso espírito é suscetível de receber as impressões de ordem religiosa.
E, eis-nos, de novo, no âmago de nosso tema — a existência, tão distante quanto possamos remontá-la, de um pensamento ativo, solitário, capaz de formar doutrinas tanto como imagens, de extrair da matéria imóvel suas razões de temor e de esperança e de abandonar-se à contemplação misteriosa de sua natureza, que o fará já não crer mais na morte.
As raras observações permitidas aos nossos olhos só nos deixam ver o homem como tal. Guardam na sombra o elo suposto que o uniria ao animal, pela razão muito simples de que ele é mera suposição, e, em conseqüência de não saber se o Pitecantropo existiu, de fato, ignoramos mais, ainda, se ele sabia rezar. É um ente de razão, um sinal convencional, um tampão destinando a tapar a brecha que separa macacos incontestes de homens incontestáveis. Assim, o homem-macaco, se é que existiu, será, segundo nosso humor, tão piedoso como o homem, tão livre-pensador como o macaco e não será um resto de crânio recolhido em Java que vai nos ilustrar sobre este ponto. A verdade é que, em um dado momento, tão distante que escapa à ciência, produziu-se uma transição de que não podem ser testemunhas nem pedras, nem ossos, e na qual se revelou a alma humana.
Reconhecemo-la como nossa e a saudamos no seu longínquo aparecer. Seu passo e seu gesto nos são familiares. Por ela, todos somos irmãos. Por ela um selvagem, um estrangeiro, uma figura histórica despertam em nosso coração fibras profundas.
Assim, vemos que o costume de vestir-se é uma das regras fundamentais da vida humana universal. O vestuário é, desde suas origens, o sinal de um sacerdócio, pois, se é verdade que o homem, enquanto como animal difere dos outros, a ponto de que a nudez lhe pode causar a morte, não é menos certo que se veste por decência e magnificência quando não por necessidade. O traje tem, amiúde, um valor de decoro. A diversidade de convenções que o regem, segundo os povos e segundo os tempos, é extrema como também o é a simplicidade da boa gente, a qual esta simples observação basta para desmoralizar. Será, pois, que o pudor não existe desde o momento em que os insulares do Pacífico e os habitantes de Paris não têm a mesma idéia da moda? Como se disséramos que, posto que tenham levado tantos e tão estranhos chapéus, estes não existem, nem sequer a calvície e as insolações. O simples bom senso mostra que sempre se tem precisado de regras que, velando certas intimidades do homem, o pusessem a coberto da mofa e do desprezo e que a observação destas regras, qualquer que fossem gera o sentido da dignidade e do respeito mútuo. O fato delas, a maior parte das vezes, estarem ligadas às relações entre os dois sexos, ilustra os dois grandes casos que dominam desde a origem da história da indumentária: um deles é que o pecado original é literalmente original, não somente no sentido teológico como no histórico da palavra. Quaisquer que tenham sido suas crenças, a Humanidade acreditou, sempre, na evidência do mal, e este senso do pecado tornou impossível, para sempre, o viver nu e o ser natural na vida. O outro caso é a família.
Aqui, mais do que em nenhuma outra parte, guardemos o justo sentido das proporções. Estamos em frente de uma montanha. A nuvem flutuante das teorias e das teses pode ofuscá-la em parte, mas não por completo; mons parturiens em verdade, de onde procede todo o reino aqui de baixo, todo o império e toda a república. O que chamamos família teve de abrir um caminho através das diversas formas de anarquia e de aberração?
Pode ser. O certo é que ela os sobrevive; o provável é que ela os precedeu. O comunismo e o nomadismo provam que estados sociais amorfos podem se desenvolver à margem das sociedades civilizadas; mas nada testemunha que a forma não se tenha adiantado à deformidade. Sempre é a forma a que conta e a humanidade foi quem escolheu esta forma. Nada mais curioso, por exemplo, que o costume selvagem que se chama couvade, mundo invertido, digno dos antípodas, em que o pai, durante o embaraço da mulher, é tratado como se fora esta. Não somente se supõe certo misticismo sexual, senão que simboliza a aceitação pelo homem de suas responsabilidades paternais. Neste caso, a feroz mascarada se converte em um rito dos mais solenes, e no fundamento de toda família e de toda sociedade.
Alguns têm emitido a hipótese de que a humanidade constituía, em outro tempo, um matriarcado (feminismo devera chamar-se); outros, alegam que se tratava de um período de anarquia no qual a mãe não representava o ponto fixo, senão em razão do descuido e do anonimato dos pais. Depois, viriam os tempos em que o pai se decidiria a cuidar da prole, a protegê-la e a converter-se em chefe de família consciente e organizado. É muito possível, e, então, pela primeira vez, o homem teria obrado como homem. Porém, é também possível, igualmente, que o estado de matriarcado, de anarquia, de promiscuidade, como se queira, não fora mais que uma das inumeráveis regressões bárbaras que se terão produzido nos tempos pré-históricos tanto como nos históricos. Se é um símbolo, a couvade talvez comemore, não o nascimento de uma religião, mas a destruição de uma heresia.
Quaisquer que sejam as origens do edifício humano, ele está ante nossos olhos e a família constitui sua célula central, ao redor da qual, como uma guarda de honra, velam as santas virtudes domésticas que nos distinguem da abelha e da formiga. O pudor é a cortina da tenda e a liberdade a muralha desta cidade. A propriedade não é senão o reduto da família. A honra seu brasão.
A história se abre com um pai, uma mãe e um filho, e se não somos dos que invocam uma divina Trindade, teremos, não obstante, de invocar uma trindade humana, cujo triângulo se repete até o infinito na trama do universo. Pois o ponto culminante da história, para o qual tende a criação de todas as partes, vibrando, estremecendo-se, nos apresenta esse mesmo triângulo invertido, ou, melhor dito, um triângulo novo, que, superpondo-se ao primeiro, forma com ele uma estrela de cinco pontas, mais terrível para os demônios que a dos Magos.
A antiga trindade, composta do pai, da mãe e do filho, tinha um nome: a família humana. A nova se compõe do filho, da mãe, e do pai, e, também, tem um nome: a Sagrada Família. Não foi alterada, exceto no sentido de ter sido inteiramente invertida. O mesmo que o mundo, que ela transformou, não se tornou diferente, mas completamente ao inverso: — Isto é, tudo ao contrário do que era antes.
(“The Everlasting Man”, 2o. cap., trad. Lourival Cunha, Editora O Globo de Porto Alegre, 1934.)
Um leitor nos escreve:
“Prezado Diretor,
Faço questão de participar-lhe do alívio e da satisfação que senti ao ler o Si Si No No de fevereiro de 2003 [edição italiana], especialmente o artigo ‘Autoridade e verdade. Noite ao meio dia?’ [que está sendo publicado neste número da edição brasileira]. Realmente, a brilhante argumentação referente à autoridade papal, que não é absoluta e está limitada pelo direito divino e, portanto, nem sempre obriga à obediência, confirmou-me, mais uma vez, que têm razão de sobra os que decidem continuar pertencendo à Igreja de sempre, isto é, à Igreja da Tradição Apostólica.
Suas demonstrações e provas, dedicadas à refutação dos neomodernistas e “conciliaristas” (que hoje estão soltos pelo mundo e como que possessos por uma sanha diabólica), baseiam-se num plano profundo da moral e da doutrina que nos enche de certeza e esperança quanto ao futuro da Igreja e também à salvação de nossas almas.
Mas, caro diretor, eis aqui a razão de minha carta: há pouco tempo deparei-me com um texto que transcrevo brevemente e que me causou uma pequena “crise” [...]. Trata-se de um livro sobre os grandes santos italianos [...] em que Santa Catarina de Sena, a grande santa do século XIV, padroeira da Itália, dirige-se a Sire Bernabó Visconti, senhor de Milão, um dos mais perigosos inimigos do papado (1373): “Pecamos diariamente, e por isso necessitamos diariamente de receber o perdão de nossos pecados, mas só a Igreja administra este sacramento, por ser a única depositária do sangue do Cordeiro. Então, quão néscio é quem se afasta do Vigário de Cristo, guardião das chaves do céu! Mesmo que fosse o diabo encarnado, o senhor não deveria rebelar-se contra ele, e sim, humilhar-se sempre e pedir o sangue [do Cordeiro] por misericórdia. De outro modo não poderia obtê-lo nem participar de seus frutos. Rogo-vos, pelo amor de Cristo crucificado, que nunca façais nada contra vosso Chefe [...]. Dai-vos conta de que só o demônio pode vos ter tentado a fazer justiça em relação aos maus pastores da Igreja. Não creiais no demônio; o castigo dos prelados não é vossa incumbência; não o consente nosso Salvador, que não quer que Vós nem criatura alguma faça tal justiça, pois é ele próprio quem deseja realizá-la [...]”.
Mais tarde [...], em 1375, a República de Florença rebelou-se abertamente contra a autoridade do Papado; Catarina trovejou e fulminou seus anátemas contra os reitores do Povoado de Sena:
“Quem, como membro infecto, rebela-se contra a Santa Igreja e contra nosso Pai, o Cristo na Terra, cai no domínio da morte, porque o que se faz ao Vigário de Cristo faz-se ao próprio Cristo. Prestai atenção ao que conseguistes com vossa desobediência e perseguições: cair na morte, tornar-vos odiosos a Deus e desagradáveis a Ele; não vos podia acontecer coisa pior do que estar privados de Sua graça. Admito que muitos imaginam não ofender a Deus agindo assim, e que enquanto perseguem a Igreja e seus pastores se desculpam alegando que eles são maus e autores de toda sorte de dano. Mas digo-vos que Deus quer e manda que, apesar de o Cristo na terra e os outros pastores serem diabos encarnados, submetamo-nos igualmente e os obedeçamos. Não por causa de suas pessoas, senão por obediência a Deus, pois o Papa é o vigário de Cristo”.
Chegando a esse ponto, caro Diretor, peço-lhe um comentário, uma explicação sobre as afirmações de Santa Catarina relativas ao Papa e à obediência absoluta que lhe devemos, como parece, em qualquer caso ou circunstância, mesmo que seja o demônio encarnado. Encontro-me entre a “cruz” das poderosas razões que o senhor expôs no artigo supracitado e a “espada” das palavras da padroeira da Itália que parecem, à primeira vista, irrefutáveis e irrepreensíveis”.
Carta assinada
Para compreender os textos de Santa Catarina é mister levar em conta que para ela eram perfeitamente normais e verdadeiras as noções de obediência e desobediência. São Pedro também dizia aos escravos que obedecessem a seus senhores mesmo que fossem maus (I Pedro 2, 18) mas, certamente, não queria dizer com isso que deviam obedecer às más ordens dos maus senhores, nem a Igreja jamais o compreendeu assim (caso contrário, os mártires teriam oferecido sacrifícios aos deuses para obedecer ao imperador). Portanto, aproveitando a ocasião que nos oferece o leitor, “tiremos o pó” da doutrina católica sobre a obediência, já recordada aqui em mais de uma ocasião.
Comecemos por descartar que Santa Catarina exija uma obediência “absoluta” ao Papa. Na verdade, a Igreja ensina que a obediência absoluta se deve somente a Deus. Santo Tomás pergunta-se, em sua Summa Theologica se é necessário obedecer a Deus em tudo (S. Th. II-II, q.104, a.4). Sim, responde, porque além de ser o senhor supremo, Deus não pode mandar nada contra a verdade e a virtude (ibid. ad 2). Depois o santo pergunta-se se os subordinados também estão obrigados a obedecer em tudo a seus superiores (S.Th. II-II, q.104, a.5). Não, responde, porque o superior pode mandar alguma coisa contra Deus, e nesse caso é imperativo obedecer a Deus sem considerar a ordem da autoridade inferior, de acordo com o princípio proclamado por São Pedro (At 5, 29): “É preciso obedecer a Deus antes que aos homens”(ibid.).
Tampouco é absoluta a obediência a que estão obrigados por voto os religiosos. Tal obediência está submetida à norma supracitada, e a partir daí Santo Tomás distingue três tipos de obediência:
“A primeira, suficiente para a salvação, limita-se a obedecer nas coisas obrigatórias; a segunda, perfeita, obedece em todas as coisas lícitas; a terceira, desordenada (indiscreta), obedece também no que é ilícito” (ibid. ad 3). Entretanto, é em nome dessa última obediência “indiscreta”, desordenada e sem discernimento, que muitos religiosos e eclesiásticos se dobram frente ao modernismo, outrora condenado pela Igreja.
Assim, “a obediência é ilimitada quando diz respeito a Deus...; quanto aos homens, ela é limitada pelo direito divino (natural e positivo), por toda autoridade humana superior e pela matéria subtraída ao poder do superior” (Enciclopédia Católica, verbete “ubbidienza”).
Não há autoridade humana que seja superior à do Papa, mas seu poder não está isento dos outros dois limites: o direito divino (natural e positivo) e a matéria que não é de sua competência.
A revista jesuíta La Civiltá Cattolica, que era, então, influente, gloriosa e benemérita, escrevia há mais de um século:
“Todo poder absoluto nesse mundo repugna. Nem a Igreja o possui: ela tem no Evangelho um código imutável; em seu organismo, uma constituição de que não pode afastar-se; na assistência divina um guia que a conforta. Temos algum poder graças à verdade, mas nada podemos contra ela. São Paulo escreveu: Non possumus aliquid adversus veritatem, sed pro veritate [...]. Só Deus, Senhor supremo de Suas criaturas, carece de limites de qualquer tipo, porque não necessita deles de modo algum, sendo reto e sábio por essência; portanto só Ele é regra para si próprio. [...] Qualquer outro poder só pode ser ministerial, pois acha-se circunscrito por limites e necessita de direção” (vol II, série XV, 1892, pág. 10). Também comentou acerca do Papa em particular: “Mas, enfim, é verdade que o Papa goza de soberania absoluta na Igreja? Tal expressão, se nos fixarmos no sentido próprio das palavras, é falsa. Não há dúvida de que a Igreja parece reger-se monarquicamente – assim é, de fato. Mas uma coisa é pôr no Papa uma soberania monárquica na forma, e outra muito distinta é fazer dele sujeito de uma soberania absoluta. A soberania monárquica refere-se ao sujeito do poder, e significa governo de um só; a soberania absoluta faz referência ao poder, e significa um poder independente de quem quer que seja. O Papa goza da soberania monárquica enquanto que só nele está concentrado todo o governo da Igreja, mas não tem a soberania absoluta, visto que não é rei nem dono da Igreja, senão vigário de seu rei e de seu dono: Cristo. Donde se segue que, assim como o vigário não pode exercer a administração de que está encarregado a seu “bel prazer” e está obrigado a submeter-se às prescrições daquele de quem é vigário, também o Papa não pode conduzir a Igreja de acordo com seus caprichos, mas tem que depender da vontade de Cristo, de quem é vigário. Em outros termos, o Papa tem que guardar, sem violar, as leis e prescrições dadas por Cristo e, atendo-se a elas, tem de administrar a Igreja com prudência” (vol VII, série IX, 1875, pág 193).
Por isso Bento XIV escreveu o seguinte ao bispo de Breslava (12 de setembro de 1750): “O fato de que nós conhecemos isso e o toleramos deve ser suficiente para tranqüilizar vossa consciência, pois nesse assunto não há nenhuma oposição ao direito divino (natural ou positivo) [caso houvesse oposição, a consciência do bispo não poderia gozar de tranqüilidade], somente ao direito eclesiástico”.
E, até mesmo nessa questão de uma tolerância não contrária ao direito divino, o Papa se acha na obrigação de justificar-se: “Tudo que fazemos, testemunhamos diante de Vós, e ao pé do crucifixo, fazemo-lo somente para evitar maiores males à nossa religião”.
Assim respondeu Pio VI a Napoleão, que lhe pedia que anulasse o matrimônio – válido - de seu irmão: “Se usurpássemos uma autoridade que não temos, tornar-nos-íamos culpáveis do abuso mais abominável de nosso ministério diante do tribunal de Deus e da Igreja” (Que Votre Majesté, 26 de junho de 1805).
Compreendido isso, claro está que ao falar de obediência ao Papa, Santa Catarina refere-se, como São Pedro, a ordens que não usurpem uma autoridade que o Papa não recebe de Cristo; ela se refere a ordens que não contrariem o direito divino (natural ou positivo), que mesmo sendo um “demônio encarnado”, o Papa pode dar. Se além de ser um “demônio encarnado” o Papa der ordens próprias de um “demônio encarnado”, então o fato de ser Papa não basta para “tranqüilizar a consciência” de ninguém (cf. Bento XIV cit).
A obediência, na verdade, exige não apenas que a autoridade seja legítima, mas que as ordens sejam também legítimas (e por aqui se vê a inconsistência do sedevacantismo: se meu pai me ordena algo mau, não devo me preocupar em provar que ele não é meu verdadeiro pai. Para negar-lhe obediência, basta que sua ordem seja má).
A obediência é uma virtude moral, não teologal. Entre as duas categorias há uma diferença fundamental: não é possível pecar por excesso nas virtudes teologais (fé, esperança e caridade), porque tendo Deus por objeto direto, quanto mais se crê, mais se espera e mais se ama, melhor. Nas virtudes morais, entretanto, pode-se pecar por excesso ou por falta. Quanto à obediência, “peca-se por defeito quando não se executa uma ordem legítima. Nesse caso, há desobediência. Peca-se por excesso contra a obediência quando se obedecem a coisas contrárias a uma lei ou um preceito superiores; nesse caso há abjeção (ou servilismo)” (cf Roberti, Dizzionario de Theologia Morale, ed. Studium verbete “ubbidienza”). Por isso São Francisco de Sales escreve: “Muitos se enganaram profundamente ao crer que a obediência consistia em cumprir, com ou sem razão, tudo que nos é mandado, mesmo quando for contrário aos mandamentos de Deus e da Santa Igreja, no que erraram sobremaneira [...] porque em tudo que diz respeito aos mandamentos de Deus, os superiores não têm faculdade para dar uma ordem contra eles e os subordinados não têm jamais obrigação de obedecer em tal caso. Pior ainda: se obedecessem, cometeriam um pecado” (Centelhas Espirituais, cap IX, págs 170-171).
Assim, o dever de obedecer pressupõe sempre que a ordem do superior seja sempre legítima. Caso contrário, não há obediência e sim, pecado contra a obediência. E para a obediência perfeita, também chamada “cega” o Padre Persh esclarece: “Para que ocorra um ato de obediência é necessário que o subordinado veja duas coisas:
1o. Que quem manda é um superior competente.
2o. Que aquilo que ele manda não é um pecado.
Para assegurar-se desses dois pontos, a obediência deve enxergar e não ser cega... Em que sentido então se fala de obediência “cega” como ato perfeito de obediência? No sentido de que, estando seguros acerca dos dois pontos acima, tanto da competência do superior quanto da liceidade de sua ordem, nós excluímos a prudência carnal, que torna odioso para nós tudo aquilo que vai contra nossa natureza corrompida e nos estimula a buscar razões para subtrairmo-nos aos preceitos desagradáveis” (Pralectionas Dogmatical, t. 9, ed 1923, nn 261 s.).
Contudo, há um caso em que se deve ao Papa uma obediência “verdadeiramente” cega, e é quando ele fala “ex cathedra” (magistério extraordinário infalível) ou quando ele propõe novamente o que a Igreja sempre creu e ensinou (magistério ordinário infalível). Assim, a obediência cega pressupõe uma autoridade infalível (cardeal Billot, De Ecclesia): no primeiro caso, o Papa goza pessoalmente da infalibilidade prometida a Pedro e a seus sucessores; no segundo, seu ensino goza da infalibilidade prometida por Nosso Senhor Jesus Cristo à sua Igreja em geral. Por isso, a obediência cega, que “não examina a intenção nem pesa as razões [...] é absolutamente necessária em relação a Deus e ao magistério infalível da Igreja” (Enciclopedia Cattolica, verbete “ubbidienza”).
Conclui-se que, fora do magistério infalível, vale para o Papa o mesmo critério que para qualquer superior (melhor dizendo, vale com maior razão para o Papa, dadas suas gravíssimas responsabilidades): nos casos em que ele não goza do dom de infalibilidade, ele tem o dever de ser muito prudente e os súditos não têm obrigação de obedecer “cegamente”, achando-se, sim, obrigados àquela obediência que pode e deve “enxergar”, como dizia acima o padre Persh. “Enxergar” é perceber com o “sensus fidei” (que não é o juízo pessoal dos luteranos) um contraste com o que a Igreja sempre creu, ensinou, e praticou constantemente. Claro, não nos referimos a um contraste de gostos ou opiniões particulares.
Por isso os bispos alemães responderam a Bismarck, depois da definição da infalibilidade pontifícia, que “a Igreja Católica não é, certamente, uma sociedade em que se admite o princípio imoral e despótico de que a ordem do superior libera, sem condições, os inferiores de qualquer responsabilidade pessoal”; e que tampouco a infalibilidade faz do Papa “um soberano absoluto”, como pretendia o chanceler alemão, porque “a infalibilidade é uma propriedade que se refere unicamente ao magistério supremo do Papa; e isto coincide com o âmbito do magistério infalível da Igreja em geral e está diretamente ligado às Sagradas Escrituras e à Tradição, assim como às definições efetuadas pelo magistério eclesiástico”.
Pio IX aprovou, em nome de sua suprema autoridade apostólica, a supracitada declaração coletiva dos bispos alemães, louvou-a e fê-la sua, e por isso ela figura no Denzinger 5 (cf parag. 3115-3116).
Na Inglaterra, Gladstone acusou os católicos de não poderem ser súditos leais à rainha porque deviam ao Papa uma obediência “absoluta”, o que dava ao Papa “o direito de criar uma consciência falsa para seus fins” e tornava os católicos “escravos intelectuais e morais”. O cardeal Newman respondeu que o Papa não reivindicava uma obediência absoluta, nem os católicos obedeciam daquela maneira, em coisas lícitas ou ilícitas. Newman citou São Belarmino, entre outros doutores da Igreja: “assim como seria lícito resistir ao Papa se ele atacasse fisicamente qualquer homem, também seria lícito resistir-lhe se ele atacasse as almas e perturbasse os Estados, e com maior razão se ele pretendesse destruir a Igreja. Seria lícito resistir-lhe não cumprindo o que ele mandasse e impedindo que sua vontade fosse cumprida” (Newman, carta ao Duque de Norfolk, Belarmino, De Romano Pontifice, II, 29). Se devêssemos interpretar os textos de Santa Catarina no sentido em que entendeu nosso leitor, com sua conseqüente perturbação (o demônio é bem esperto na hora de arrumar um jeito de roubar a paz às almas de boa vontade), teríamos de dizer que, apesar do ensinamento da Igreja e de seus doutores, a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo é realmente uma sociedade em que está vigente o princípio imoral segundo o qual a ordem do superior libera, sem condições, os subordinados de toda responsabilidade pessoal, o que é falso. Portanto, devemos supor, e a história daquele tempo no-lo confirma, que se tratavam de príncipes ou governantes que resistiam a ordens papais legítimas (ou que não estavam fora de sua competência) e que se justificavam hipocritamente, como se depreende da carta ao povo de Sena, com o pretexto da indignidade pessoal do Papa e dos demais pastores da Igreja; por isso, Santa Catarina sublinha que se devia obediência “àquele e a estes, não por causa de suas pessoas, mas por obediência a Deus, de quem o Papa é vigário”. A Santa não teria escrito tal coisa se a obediência exigida pelo Papa fosse contrária a Deus e ao ofício do vigário de Cristo.
Quando as ordens ou as diretrizes do Papa contradizem o direito divino (natural ou positivo), deve-se obediência a uma autoridade mais alta que o Papa, a Jesus Cristo Nosso Senhor, de quem ele é o vigário. Vale então para o Papa o que vale para toda autoridade terrena: “quando o mandato é contrário à razão, à lei eterna, à autoridade de Deus, então deve-se desobedecer aos homens para obedecer a Deus” (Leão XIII, Libertas Praestantissimum, no. 15).
No que tange à situação atual, limitar-nos-emos a uns poucos exemplos:
1) Sabemos que Deus quer que o Evangelho seja pregado a todos os homens, porque não há salvação fora de Jesus Cristo nem de sua Igreja (Mc 16, 15-16), e por isso a Igreja sempre foi missionária.
O ecumenismo atual, entretanto, quer que abracemos a idéia de que já não é necessário pregar o evangelho de Jesus Cristo, nem que as pessoas sejam batizadas em sua Igreja; além disso, tacha de “proselitismo” toda ação missionária de cunho tradicional, porque dizem que para os mouros se salvarem basta que sejam bons mouros (o que significa negar a Trindade de Deus, a divindade de Jesus Cristo, a realidade de seu sacrifício pelos homens, etc.); para os hindus, basta serem bons hindus (o que significa até negar a unidade de Deus), e assim para todos os outros, inclusive os heréticos e cismáticos.
A quem prestaremos a obediência de nosso intelecto: a Deus ou a alguns homens da Igreja que traem a Deus e a sua Igreja? (Não julgamos seu grau de responsabilidade, porque não nos cabe julgar).
2) O direito divino proíbe que os fiéis tenham parte e relação com os infiéis, a não ser no campo das atividades materiais e por necessidade (São Paulo: Haereticum hominem devita: “evita o herege”, Tito 3, 10, e São João: “Nem sequer o saudais”. 2 Jo. 10, etc.). Na verdade, é um pecado contra a fé expô-la ao perigo (cf. Enciclopedia Cattolica, verbete fé). O ecumenismo atual, entretanto, promove contatos em todos os níveis, inclusive no âmbito do culto e da pregação (intercâmbio de púlpitos), com infiéis de todo tipo (hereges, cismáticos, idólatras).
A quem devemos obediência: a Deus, ou a homens que, mesmo sendo homens da Igreja, não agem como tais?
3) Nosso Senhor Jesus Cristo fundou sua Igreja na unidade da fé, raiz e fundamento da vida cristã e de toda virtude, a caridade inclusive, porque é conforme à própria natureza do homem que a concórdia das vontades nasça da concórdia das inteligências (cf. Leão XIII, Satis Cognitum, Pio XI, Mortalium animos).
O ecumenismo atual nos diz, entretanto, que devemos colocar a “caridade” como fundamento, desconsiderando a fé e abraçando a idéia de “unidade na diversidade” (salta aos olhos que se referem à diversidade de fé, porque a diversidade na unidade de fé sempre houve na Igreja). A quem obedeceremos: a Deus ou aos homens? E poderíamos estender-nos muito mais em nossos exemplos.
Sabemos – porque a Santa Madre Igreja sempre nos ensinou (e porque a reta razão no-lo dita) – que é preciso obedecer primeiro a Deus, e depois aos homens (Atos, 5, 29), mesmo que sejam homens da Igreja (mas que abusam de sua autoridade). Conclui-se que, com tranqüilidade de consciência, defendamos nossa fé e a de nossos irmãos contra o “novo rumo” promovido na Igreja em nome de um concílio apresentado como “pastoral” e imposto como “dogmático”; melhor dizendo, como se fosse o único concílio dogmático, ou ao menos como se fosse superior a todos os demais, inclusive ao de Nicéia (Paulo VI!), que defendeu a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo contra Ário.
O que diria hoje Santa Catarina? Ela fez os desobedientes voltarem à verdadeira obediência, mas em sua carta ela também exortou aos Papas, com extrema franqueza, que cumprissem seus deveres: “Peço-vos que façais virilmente o que tendes de fazer, e com temor de Deus”. “Sede homem varonil, não um covarde” (a Gregório XI). Assim, as deficiências daqueles Papas não eram nem de longe como as da hierarquia atual. E tal comentário não supõe que estejamos nos arrogando o direito de “julgar” o Papa (ou os outros pastores). Na verdade, escreve Vitoria, grande teólogo dominicano, citando Caetano e outros teólogos de renome na Igreja: “Nós afirmamos tudo isso (o direito de resistir, inclusive publicamente, ao Papa que demole a Igreja), não porque alguém tenha o direito de julgar o Papa ou porque tenha autoridade sobre ele (exceto Deus, entende-se), mas porque é lícito defender-se. Todo mundo goza do direito (inclusive natural) de resistir a um ato injusto, de tentar impedi-lo, de defender-se dele” (Vitoria, Obras, pág. 487). Com maior razão quando se trata de fé.
Não, os príncipes e governantes a quem Santa Catarina escrevia, não tinham de escolher, como nós, entre a fé e uma “obediência” indevida ao Papa, entre a fidelidade a Cristo e uma “fidelidade” indevida a seu vigário, que deslumbrado pela quimera do ecumenismo, sai de seus limites de vigário e expõe a fé, as almas e a Igreja a todos os tipos de perigo. Caso contrário, Santa Catarina, ao exortar-nos a uma falsa obediência ao homem, indevida e ruinosa, teria nos exortado a desobedecer a Deus para obedecer aos homens.
Georgius
Há verdades fundamentais que cada vez se nomeiam menos, quando não são deixadas sistematicamente no esquecimento; silêncio que explica por que nossos contemporâneos encontram um não sei quê de estranho e antinatural cada vez que, devido a circunstâncias excepcionais, estas verdades chegam a seus ouvidos.
Convém observar que em tempos normais — tanto em sua vida social como pessoal — o homem manifesta uma atração pela verdade se esta se apresenta sob uma aparência lisonjeira e sedutora.
E se, ao contrário, a verdade requer um esforço nos atos ou uma renúncia? O homem se aparta rapidamente para seguir seu próprio interesse ou prazer; não consente em escutar essa voz que vem do alto, e só o faz quando que se encontra oprimido, metido em um caminho sem saída ou presa do sofrimento.
Chegamos nós hoje a tal extremo no plano das realidades temporais? Sem dúvida ainda não de todo. No entanto, desde há alguns anos um sentimento novo parece manifestar-se nas massas: um desgosto e uma inquietude que não provêm somente das dificuldades do momento presente ou das dificuldades que se prevêem para um futuro mais ou menos próximo, mas que consistem mais profundamente em uma angústia mesclada com um ceticismo acerca das respostas dadas às aspirações humanas de felicidade e de justiça em todas as formas técnicas de organização.
Na medida em que estas dúvidas afastem de nós uma segurança artificialmente alimentada durante décadas pelo racionalismo e pelo positivismo político, devemo-nos alegrar: o florescimento de tal sentimento é provavelmente a percepção do que um filósofo chamou “a insuficiência essencial das coisas visíveis”. Sobre a terra, somente o homem é capaz desta percepção.
O fato curioso é que esse fenômeno geral e ainda bastante informe não parece ser advertido no plano da classe dirigente, seja porque esta tem o poder e em tal caso não percebe o que sucede nos corações inquietos acerca da ordem por ela estabelecida, seja porque se encontra na oposição, em cujo caso se mostra totalmente insensível àquilo que não entra em uma visão catastrófica do homem e das coisas.
De qualquer forma o fato está aí, imponente. E assim os “políticos”, em vez de dignar-se considerar esse desgosto coletivo, se limitam a lançar reformas superficiais, incessantemente submetidas a discussões por um prurido psicológico de mudanças, ou a elaborar programas unicamente centrados no melhoramento das condições técnicas.
Essa solicitude pelo progresso material, comum a todas as instituições, trate-se de instituições amigas ou rivais, impede-lhes conceber o futuro de outra maneira que não seja sob a forma de uma benéfica evolução contínua, concebida segundo o modelo — admirado por todos — do desenvolvimento científico. Desta perspectiva, a visão social do futuro não pode evidentemente consistir em outra coisa senão em proporcionar cada vez mais abundantes vantagens e direitos aos cidadãos, os quais cada vez estão mais exigentes com respeito à quantidade e variedade dos alimentos terrestres oferecidos a seu apetite.
Só se trata de um consumidor para alimentar e divertir?
É verdade que faz parte da responsabilidade do Poder procurar tais bens, e seria injusto reprovar a dita preocupação dos governantes, os quais se esforçam com boa vontade e com talento por corresponder às aspirações gerais da população. Todos esses esforços, no entanto, não impedem que as coletividades entrem em uma engrenagem geradora de novas dificuldades. Assegura-se-nos um nível de vida cada vez mais alto, mas os recursos do universo são ilimitados? A explosão demográfica do Terceiro Mundo nos permitirá desfrutá-los tranqüilamente? Os danos trazidos pelo progresso técnico não atentam contra o bom funcionamento dos fatores naturais? E, sobretudo, o homem se torna com tudo isso mais sábio?
Os governantes do mundo se submetem ansiosamente aos problemas próprios de nosso tempo recorrendo a novos remédios materiais, dado que, uma vez mais, não podem imaginar outros.
Como não se perguntar se esse comportamento político-econômico universal não traduz uma filosofia do homem radicalmente insuficiente, que desemboca no desconhecimento de suas necessidades autênticas?
É como se nossos governantes considerassem o homem só sob o aspecto de um consumidor que há que alimentar e divertir, como se não vissem nele mais que uma emanação da ordem material, já que não se fala nunca do que constitui sua essência e sua nobreza, ou seja, sua participação na ordem espiritual, nem, com maior razão, se fala da subordinação da ordem espiritual à da Graça.
Podemos figurar a diversão dos homens públicos a quem se pediu que se debruçassem sobre as exigências morais e espirituais dos cidadãos, assim como, por outra parte, podemos figurar a irritação dos ditos homens se lhes dissessem que as vantagens materiais devem ter em vista seu próprio bem e não a satisfação de seus próprios egoísmos; sua ascensão às alturas e não seu envilecimento na lama.
Ai de mim! A maior parte de nossos chefes — também cristãos (sem dúvida cristãos na vida privada, mas fortemente “laicilizados” em seus pensamentos e comportamentos políticos, por terem demasiado bem aprendida a lição dos clérigos desviados) — já não querem saber que coisa é o homem, donde vem, para onde vai, as aspirações de seu coração nem a grandeza de seu destino.
Subdesenvolvimento moral e espiritual
É mister ir ainda mais longe e deplorar o fato de que a filosofia política dos tempos modernos se baseia no repúdio deliberado da “ferida original”, sem a qual é impossível compreender o homem e ajudá-lo eficazmente no plano político-social.
Alguns pensadores disseram que seria necessário dar ao mundo “uma alma suplementar” ou recordaram que as civilizações são mortais. Suas vozes não são escutadas: a batalha cotidiana, provocada pela busca dos próprios interesses, sufoca todos os clamores da razão.
Para estarem ainda mais seguros de que nenhuma luz seria projetada sobre a condição real do homem, foi negado às autoridades espirituais o direito de “informar” e de “animar” a ordem temporal, deixando-lhes somente o direito de ocupar-se do culto e a possibilidade de testemunhar sua simpatia a um mundo em decadência, e é necessário reconhecer que, salvo raras exceções, elas não fizeram muitos esforços por rechaçar a voz do Tentador.
É finalmente demasiado evidente que os bens materiais, ainda que sejam necessários tanto para o exercício da inteligência especulativa e prática como para a satisfação dos sentidos, não podem nutrir o corpo nem a alma. Mas os governantes não olham para o alto: limitam-se a formar eruditos, artistas, técnicos, amantes de doçuras sensíveis e de raciocínios sutis. Estão oficialmente impossibilitados de formar corações leais, ardentes e puros, almas cheias de coragem e de fé. Esse campo está “minguado”, “posto entre parênteses”, como dizem os filósofos alemães.
O resultado dessa extraordinária carência se manifesta agora: o mundo inteiro se encontra imerso em um subdesenvolvimento moral e espiritual, o qual comove todos os ambientes, e do qual pouquíssimos homens públicos parecem ter consciência, sem porém ousar dizer uma palavra.
Ao rés do chão, como as andorinhas que anunciam a chuva
Conhecer sempre mais a fundo o mundo exterior, interpretá-lo e transformá-lo para melhor gozá-lo parece ser verdadeiramente o único objetivo dos governantes e dos governados.
Até que ponto chefes e cidadãos compartilham esta visão mutilada e mutilante do homem, pudemos constatá-lo por ocasião dos debates sobre a anticoncepção e o aborto. Guias e guiados, todos sofrendo a mesma cegueira, trabalharam por via legal no delito mais inescusável, explicando solidamente seu repúdio em aceitar que no homem há algo que ultrapassa o mesmo homem.
No entanto, essa cumplicidade não tira absolutamente a maior responsabilidade dos governantes.
Os programas que hoje nos propõem sofrem todos esta lacuna. Nenhuma perspectiva ética ou espiritual se delineia, nem sequer em filigrana. Seja em nome da justiça, do progresso ou da liberdade, nós continuamos voando ao rés do chão como andorinhas que anunciam a chuva. Não nos surpreendamos que nessas condições nos choquemos contra obstáculos que podíamos evitar alçando os olhos um pouco mais alto.
Não imaginando tampouco a subordinação da ordem temporal à ordem espiritual e da ordem espiritual à ordem sobrenatural, os governantes podem esperar somente um redobramento de concupiscências ferozes, estendidas para colher os frutos proibidos, o que portanto fará necessário pôr em prática medidas repressivas destruidoras da liberdade.
Uma “liberdade” homicida
Quando se perdem de vista a origem e o fim do homem, por que o Poder e os cidadãos se deveriam privar de violar as leis naturais e morais, cujos imperativos os perturbam? Uma liberdade que se exercita no contexto de uma filosofia mutilada não é mais que uma liberdade egocêntrica e se torna, mais cedo ou mais tarde, uma liberdade homicida.
Dizem-nos que a metafísica e a religião não devem entrar no plano de nossos economistas e de nossos políticos, da mesma maneira que no século passado eram também declaradas alheias ao trabalho de nossos sábios. Mas essa decisão arbitrária nada pode contra a realidade: dado que criado por Deus, o homem é constitucionalmente um animal metafísico e religioso. O não levar em conta sua verdadeira natureza e seu fim leva aos piores erros doutrinais e práticos, até ao próprio sacrifício das vidas humanas.
Repetimo-lo: não podemos rechaçar em nome da verdade — ao contrário! — nenhum dos esforços realizados para melhorar a vida cotidiana dos homens. Digamos somente que é uma loucura querer limitar-se a obrar só no nível “cérebro-digestivo”, oferecer ao espírito humano só algumas quimeras astrais e a seu apetite só alimentos materiais. Estamos seguros de que os demônios que dormem em nós não tardarão a despertar para desencadear uma espantosa carnificina. Esse extermínio já se está realizando diante de nossos olhos, mas não perturba o sono de ninguém!
Uma escolha dramática
Em verdade se trata de uma escolha dramática, que consiste em salvar nossa vida ou perdê-la. Amiúde se comparou a vida humana à subida de uma alta montanha: antes de alcançar o cume onde nos espera Aquele que não pode enganar-se nem enganar-nos, nós caminhamos penosamente, não sem ser tentados a cada passo a tomar sendas equivocadas que nos convidam a descer facilmente a abismos bem dissimulados.
Não existe um caminho no meio! A maior parte dos homens gostaria de poder divertir-se descuidadamente sobre vertentes menos escarpadas, onde brotassem a cada passo todos os tipos de alimentos agradáveis. Mas este agradável hedonismo entra nas miragens ou paraísos que se podem chamar, com toda a justiça, artificiais.
O êxito sanguinário do século XVIII, tão próximo de nós por seu aspecto racional e por seu afã de gozo, está cheio de ensinamentos. Lembra aquele amante apaixonado da liberdade que, no momento de subir ao patíbulo, teve de reconhecer os crimes cometidos em nome dessa idéia. Como poderia ser de outra maneira, dado que se havia querido cortar o laço ontológico que une o homem à sua origem e ao seu fim? Estavam condenados a não compreender mais nada do mistério do homem e a deixar de respeitar sua dignidade. Algo desventurosamente semelhante nos ameaça ainda. As hierarquias desmoronam por todos os lados, enquanto as barreiras legais e morais, protetoras da Sociedade, se transtornaram. Sinal revelador, que, não podemos cansar de repeti-lo como um Leitmotiv, é o massacre legalmente autorizado dos inocentes.
Vae victoribus! (Ai dos vencedores!)
Em verdade, o trabalho que cabe a nossos governantes é gigantesco. Muitos deles se dedicam sinceramente a dar à gente o alimento e as diversões que exigem. Quase nenhum — ai de mim! — tem a coragem de praticar e de requerer dos outros o agere contra e o sursum corda (equivalente social e moral da inesgotável fórmula dada pela Virgem em Lourdes: “Oração e penitência”), o que constitui o preâmbulo indispensável para qualquer diretriz nacional.
Resta alguma esperança humana? Uma só poderia ser: a existência de certo número de dirigentes decididos que conheçam perfeitamente, conscientemente, as medidas por tomar:
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para favorecer a unidade e a fecundidade da célula familiar;
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para ensinar aos jovens e aos não tão jovens o respeito às leis fundamentais que regem a vida humana;
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para restituir às instituições civis e militares o sentido de sua missão e para inseri-los novamente no “tecido” nacional.
Esta breve admoestação patriótica e moral feita aos governantes pode, por outro lado, ser dirigida aos governados. Deploramos já a cumplicidade na astúcia e no mal que infecciona de cima a baixo a pirâmide social. Essa constatação permite dizer aos cidadãos que também eles devem merecer os governantes que desejam ter.
Observemos, finalmente, um ponto importante que está relacionado com o que eu disse: as relações entre o poder temporal e o poder espiritual. Esse ponto mereceria, por si só, uma longa explanação. Basta dizer que sobre esse ponto capital haveria que corrigir muitas coisas tanto no plano dos princípios como no que se refere a atos concretos. Em todo o caso, não pode ser supérfluo recordar que os representantes dos dois poderes estão submetidos aos mesmos imperativos do bem e da verdade, e que tal exigência veda qualquer acordo secreto ao serviço de causas equívocas.
Estas últimas afirmações parecerão duras a alguns. Poderia pensar-se que fossem infundadas. Ao contrário, no curso da metade do século passado não assistimos muito freqüentemente à marginalização de espíritos excelentes pelas pressões, às vezes conjuntas (e jamais confessadas), das autoridades civis e religiosas? Sem dúvida é uma lei constante que a Cruz seja a sorte daqueles que amam e servem a verdade, ao passo que aqueles que abusam de seus poderes legítimos recebem na terra sua recompensa. Mas não duvidamos em dizer: Vae victoribus!, ai dos vencedores por um dia, que crucificam os justos com a aprovação do mundo e do inferno! São responsáveis pela dupla ruína do Templo e de Jerusalém, quer dizer, da Igreja e da Sociedade, à espera de serem os grandes vencidos na eternidade.
Conclusão
Possam os dirigentes em todas as ordens e de todos os graus:
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compreender que a grandeza de um país não está ligada à acumulação de riquezas materiais nem ao desenvolvimento da arte e da técnica, mas que está unida sobretudo ao valor moral e espiritual dos homens que o compõem;
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reconhecer, por conseguinte, que só a formação dos planificadores, peritos e eruditos, por muito honrosos que esses qualificativos possam ser, não acrescenta um côvado à estatura moral de uma nação;
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dar-se conta de que, limitando-se a fabricar cada vez mais objetivos de consumo para indivíduos moralmente subdesenvolvidos, faz crescer consideravelmente o risco de graves desequilíbrios passionais tanto no plano individual como no coletivo;
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aceitar corajosamente pôr em seu verdadeiro lugar os ídolos apresentados muito freqüentemente pelos tribunais oficiais como fins supremos;
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pôr termo à mortal separação entre a política, a metafísica e a religião;
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assumir os cargos públicos para servir ao bem comum e não para seu próprio proveito pessoal ou para o prestígio de um partido;
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rechaçar os jogos de prestidigitação que consistem em apresentar a realidade sob uma luz incerta ou falsa, propícia para todos os maquiavelismos;
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dedicar-se desde agora a construir, sobre os fundamentos dos verdadeiros princípios, a arca temporal que nos permitirá enfrentar sem demasiados danos o dilúvio devastador cujos sinais premonitórios já se fazem sentir;
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em uma palavra, tomar consciência da excepcional responsabilidade tanto moral como social que pesa sobre eles, acrescentando que um dia serão julgados de maneira proporcional ao uso que hajam feito de seu poder e à energia que hajam utilizado para tal.
Está bem claro: só o ordenamento da ordem temporal à lei natural e sobrenatural apresenta caráter de necessidade; não está permitido (non licet) a nenhuma autoridade civil ou religiosa nem a nenhum súdito o subtrair-se. Ao contrário, as modalidades de atribuição ou de devolução do poder apresentam, enquanto puras técnicas institucionais, um caráter contingente; elas podem variar sensivelmente segundo os dados da história e do temperamento dos povos. Nesta perspectiva, a legitimidade do poder não está unida nem à forma do regime, nem a um homem eleito segundo os acontecimentos, nem a uma dinastia, mas essencialmente à fidelidade de que dá prova aquele regime, aquele homem ou aquela dinastia diante da lei natural e sobrenatural.
Fora dessa referência meta-histórica, o poder não pode senão alegar justificações mutiladas ou relativas que, por outro lado, ele não tarda a absolver, imitando a verdade para idealizar suas próprias ações e para melhor seduzir os espíritos.
Finalmente, é evidente que em nenhum país do mundo os mecanismos políticos, econômicos e sociais podem funcionar normalmente se estão “gangrenados” contemporaneamente pela sujeição de uma fração importante da nação a um empreendimento progressivo e programado de dominação planetária, e pela existência de um poder paralelo, difundido por todos os lados, que duplica de maneira oculta as instituições oficiais (civis, militares ou religiosas).
(Sim Sim Não Não, no. 106)